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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.3 no.3 Ribeirão Preto dez. 1995
O uso de animais em estudos de processos psicológicos: uma estratégia ultrapassada?
Maria Helena Leite Hunziker1
Universidade de São Paulo. Endereço para correpondência: Departamento de Psicologia Experimental - IP/USP Av. Prof. mello Moraes, 1721 - 05508-900 - São Paulo, SP. Endereço eletrônico: HUNZIKER@USP.BR
O pensamento evolucionário de Darwin influenciou diversas ciências, dentre elas a psicologia. Como um dos seus efeitos, animais passaram a ser utilizados em investigações de processos psicológicos, sendo este uso justificado pela suposição de que os processos básicos são comuns às diferentes espécies. Nestes estudos, o animal é utilizado apenas como um meio e não como o objeto de investigação, sendo a compreensão do comportamento humano o seu objetivo final.(2)
Fazendo-se uma avaliação retrospectiva, é inegável a relevância do conhecimento acumulado por meio destas investigações. Por exemplo, ao nível clínico, estudos psicológicos com animais têm contribuído para a análise (e, indiretamente, tratamento) da depressão, ansiedade, psicoses, fobias, dependência a drogas, além das mais diferentes doenças não convencionalmente consideradas psicológicas (AIDS, câncer, entre outras). Contribuições igualmente relevantes têm sido oferecidas para as diversas áreas envolvidas com o comportamento humano, tais como educação, produção industrial, economia, urbanismo, propaganda, arquitetura, política, cinema, etc.
Se, por um lado, o olhar retrospectivo não deixa dúvidas sobre a relevância que os estudos com animais tiveram para se aumentar a compreensão sobre o comportamento humano, o olhar para o presente pode sugerir um esgotamento desta estratégia: conforme apresentarei adiante, há uma série de dados que sugerem que, apesar do estudo do comportamento animal ser hoje uma área muito desenvolvida, ele vem se tornando menos freqüente, e talvez menos prestigiado, como um meio de investigação dos processos psicológicos.
Historicamente, pode-se constatar que houve um período em que os pesquisadores do comportamento animal foram prestigiados dentro da psicologia de forma mais acentuada que nos dias atuais. Um levantamento feito por Innis (1992) sobre os 100 anos de existência da American Psychological Association (APA), mostra que entre 1912 e 1961 praticamente metade dos presidentes eleitos anualmente pela APA foi composta por pesquisadores que utilizavam animais em suas investigações. Considerando-se que a eleição para a presidência de uma associação científica é equivalente ao reconhecimento do trabalho do eleito, pode-se dizer que em 1912, ano da eleição de Edward Thorndike, a psicologia americana estava reconhecendo nos trabalhos com animais uma alternativa de investigação relevante para a área. Conforme mostra a Tabela 1, ao longo destes 50 anos foi freqüente que os psicólogo, membros da APA, elegessem como seu representante máximo um pesquisador do comportamento animal. Contudo, depois de Neal Miller, eleito em 1961, estas escolhas cessaram abruptamente.
Segundo Innis, a eleição de Thorndike coincidiu com o período em que as suas publicações sobre inteligência animal causavam grande repercussão. Nesta época, outros psicólogos de destaque (Watson, por exemplo) também argumentavam fortemente contra o mentalismo, propondo uma abordagem mais objetiva para a psicologia. Portanto, Thorndike, Watson e seus seguidores representavam, em 1912, a "nova ordem" que propunha mudanças para o desenvolvimento de uma psicologia objetiva. O fato de que depois de 1961 nenhum estudioso do comportamento animal foi eleito para esta presidência (nem mesmo Skinner que, dado seu enorme prestígio, foi muitas vezes proposto para este cargo) indica mudanças nas prioridades da psicologia: aparentemente, na década de 60 o estudo do comportamento animal passou a ser parte da "velha ordem".
Outro aspecto que merece análise é o decréscimo do uso de animais dentro das instituições voltadas para pesquisa e ensino de psicologia. Nos Estados Unidos, foi feito um extenso levantamento do uso de animais nos cursos de graduação dos melhores colleges do país (Benedict e Stoloff, 1991) e nos departamentos de psicologia com cursos de pós-graduação (Gallup e Eddy, 1990). Os resultados de ambas as pesquisas apontaram uma tendência decrescente para se utilizarem animais nestas instituições. No geral, encontrou-se que embora 2/3 dos departamentos mantivestem colônias de animais, 17,6% deles estavam discutindo a sua desativação. Dentre os que não mantinham biotérios, praticamente metade os havia desativado recentemente, mostrando que o decréscimo no uso de animais é fruto de um processo que ainda está em curso. Por fim, estas pesquisas revelaram também que das escolas que utilizavam animais para ensino, 40% o faziam apenas em uma ou duas disciplinas.
No Reino Unido, esta tendência decrescente parece ser ainda mais acentuada. Analisando 62 departamentos de psicologia, Thomas e Blackman (1992) compararam os dados encontrados em 1977 e 1989, e constataram grandes mudanças ao longo deste período:
1. houve redução de 25% no número de departamentos que ofereciam condições para se trabalhar com animais;
2. os departamentos que mantiveram o uso de animais no ensino e pesquisa reduziram em cerca de 70% a população dos seus biotérios;
3. o envolvimento com pesquisa caiu 35% entre os profissionais e 62% entre osf alunos de pós-graduação.
No rastro destas pesquisas, foi feito um levantamento preliminar na Universidade de São Paulo (USP) sobre o uso de animais no ensino e pesquisa em psicologia.(3) Em 1994, das 50 disciplinas obrigatórias oferecidas aos graduandos em psicologia, apenas uma utilizava o trabalho direto com animais (Psicologia Experimental I). Outras disciplinas utilizavam material didático relacionado ao comportamento animal, porém sem colocar o aluno em contato direto com este tipo de experimentação. Uma disciplina optativa (Treino em Pesquisa, níveis I, II e III) podia ou não envolver trabalhos com animais dependendo do orientador escolhido. Além destas, atividades práticas com animais foram realizadas apenas em disciplinas complementares (Fisiologia e Farmacologia). Portanto, dentre os alunos que atualmente se graduam em psicologia na USP, a maioria não tem mais que 2% da sua formação em trabalhos diretos com animais.
Ao nível de pós-graduação, este levantamento mostrou que das 20 disciplinas oferecidas na área de concentração em Psicologia Experimental em 1994, apenas duas utilizavam o trabalho direto com animais, ou seja, 10% delas. Outras disciplinas utilizavam a literatura decorrente de pesquisas com animais, mas não ofereciam o trabalho direto com estes sujeitos como estratégia de ensino. Quanto às dissertações e teses defendidas em Psicologia Experimental, este levantamento mostrou uma tendência decrescente no uso de animais entre 1971 e 1994 (Figura 1). Agrupando-se estes trabalhos por períodos sucessivos de 8 anos, podese constatar que dentre as 196 dissertações e 124 teses defendidas, a proporção dos trabalhos realizados com animais caiu de 66,0% para 32,8% entre o primeiro e último período, Analisando-se separadamente os trabalhos de Mestrado e Doutorado, verifica-se em ambos uma queda na proporção de trabalhos realizados com animais, sendo que no período final (1987-1994) esta queda foi mais acentuada nas teses de Doutorado: enquanto que no Mestrado o uso de animais caiu de 66,0%, no período inicial, para 46,3%, no período final, no Doutorado ele caiu de 66,7% para 20,0(4). Assim, estes dados sugerem não apenas a redução do uso de animais pelos pós-graduandos em Psicologia Experimental da USP, como que esta queda está mais acentuada entre os doutorandos. Considerando-se que cada Doutor é um orientador em potencial - portanto formador de novos pesquisadores - estes dados permitem que se faça uma projeção de que o uso de animais será ainda menor entre os futuros psicólogos experimentais, a menos que algo modifique esta tendência atual.
O conjunto dos dados coletados na USP são coincidentes com os apresentados anteriormente. As análises americanas e européias sobre as causas desta tendência apontam tanto para os altos custos financeiros, quanto para as restrições morais/éticas, ambos decorrentes dos movimentos pelos direitos animais. Por exemplo, nas escolas americanas, o custo financeiro da manutenção de animais tem sido um forte argumento para a desativação de biotérios, uma vez que o ativismo em prol dos direitos animais exigiu que se fizessem melhorias que aumentaram enormemente seus custos; nas escolas inglesas, a forte mobilização dos alunos que consideram "politicamente incorreto" o uso de animais em pesquisas científicas tem sido apontada como um dos fatores críticos para a redução do uso de animais em ensino e pesquisa em psicologia. Foi também sugerido que o aumento da burocracia necessária à aprovação de projetos de pesquisa com animais, decorrente destes movimentos, tem criado dificuldades adicionais a este tipo de investigação.
Esta análise não parece ser suficiente para explicar o panorama geral aqui esboçado. Por exemplo, não se pode dizer que a política dos direitos animais tenha grande responsabilidade pelos dados apresentados na Figura 1. Ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, este movimento não tem interferido de forma significativa na realização de pesquisas com animais no Brasil. As tentativas de se criem leis regulamentadoras do uso de animais em pesquisas científicas têm tido o apoio dos pesquisadores brasileiros, no sentido de regulamentar códigos de ética que já vinham sendo respeitados nos bons laboratórios.
Pode ser argumentado que os dados coletados na USP foram influenciados por diversas mudanças na instituição que ocorreram ao longo dos 24 anos analisados. De fato, o Departamento de Psicologia Experimental da USP sofreu uma grande ampliação do seu corpo de orientadores, o que trouxe maior diversificação das áreas de pesquisa oferecidas aos alunos, principalmente de pesquisas teóricas ou experimentais com humanos. Contudo, este tipo de argumentação apenas constata o fato que está sendo apontado aqui: se na ampliação do departamento analisado as áreas voltadas para estudos teóricos e experimentais com humanos têm crescido proporcionalmente mais que as que realizam estudos com comportamento animal, não seria este fato, em si, um indicativo de mudanças nas prioridades atuais da psicologia?
Um outro fator mais geral a ser considerado é que atualmente existem procedimentos bastante sofisticados para a investigação básica de processos psicológicos cológicos com humanos. Estes procedimentos podem estar sinalizando que os estudos com animais deixaram de ser os meios mais adequados para se chegar à compreensão do comportamento humano. Esta argumentação, embora atraente, não basta: se alguns processos psicológicos, anteriormente estudados em animais, podem hoje ser satisfatoriamente investigados em humanos, há outros que, por questões éticas ou ordem prática, só são passíveis de serem investigados com animais.
Talvez um forte motivo para esta tendência decrescente dos trabalhos com animais esteja associado à evolução da psicologia, que atualmente se torna crescentemente mentalista: se no começo do século a "nova ordem" era a mudança para a psicologia objetiva, que descartava a mente como seu objeto de estudo, neste fim de século observa-se um movimento contrário de trazer a mente para o centro das investigações. Embora a mente possa ser atribuída tanto aos homens quanto aos demais seres (numa visão compatível com o darwinismo), ainda é predominante a noção de que ela é própria apenas do ser humano.
Neste contexto atual, os estudiosos do comportamento animal acabam tendo maior identificação com profissionais de outras áreas, sendo freqüente sua incorporação nas neurociências, onde "cérebro e comportamento" representam hoje a nova ordem. E significativo o fato de que nestas áreas não exista a discussão sobre a importância do uso de animais em pesquisas. Possivelmente uma diferença marcante entre psicologia e neurociências esteja nas suas bases como ciências humanas e biológicas, respectivamente. Tantos anos após Darwin, há ainda resistência entre os humanistas para aceitar as implicações do Homem como parte do contínuo evolucionário. Com o crescente mentalismo na psicologia, associado ao viés humanista, pode-se compreender porque esta ciência esteja dando menos ênfase aos estudos com animais.
Em resposta à pergunta feita do título, eu diria, portanto, que o uso de animais, como meio de investigação psicológica, é atualmente uma estratégia menos freqüente mas não ultrapassada, uma vez que ela não se esgotou. Ela pode ser dispensável em algumas áreas onde o estudo direto com humanos permite um avanço satisfatório de conhecimentos. Contudo, há um grande número de processos psicológicos que estão para ser investigados, para os quais o uso de animais pode representar uma contribuição indispensável. A própria comparação entre os processos psicológicos observados em animais e humanos tem, em si, um interesse teórico muito grande. O quadro aqui delineado parece ser fruto de um conjunto de eventos que ocorrem no momento atual. Ele poderá ser alterado na medida que surgir uma "nova ordem", ou seja, que questões consideradas relevantes para a psicologia venham a ser melhor respondidas, ao menos inicialmente, dentro do laboratório. Até lá, só nos resta torcer para que esta redução das pesquisas com animais - cujo crescimento no passado representou uma forte contribuição para o desenvolvimento da psicologia como ciência - não venha comprometer as suas bases científicas.
Referencias Bibliográficas
Benedict, J. e Stoloff, M. (1991) Animal laboratory facilities at "American Best" Colleges. American Psychologist, 46, 535-536. [ Links ]
Gallup Jr., G.G. e Eddy, T.J. (1990) Animal facilities survey. American Psychologist, 45, 400-401. [ Links ]
Innis, N.K. (1992) Animal psychology in America as revealed in APA presidential addresses Journal of Experimetal Psychology: Animal Behavior Processes, 18, 3-11. [ Links ]
Thomas, G.V. e Blackman, D. (1992) The future of animal studies in psychology. American Psychology, 47, 1679. [ Links ]
(1) Pesquisadora do CNPq
(2) Outras abordagens existentes na psicologia, igualmente influenciadas pelo darwinismo, buscam a identificação de caracteristicas comportamentais próprias de cada espécie (por exemplo, a Etologia). Para elas o animal pode ser, em si, o objeto de estudo. A análise que vem a seguir não se aplica a estas abordagens
(3) Embora os dados obtidos nesta instituição não possam ser generalizados para todo o Brasil, consideramos que ele pode ser indicativo de uma tendância nacional uma vez que o Departamento de Psicologia Experimental da USP vem sendo o responsável pela maior parte das pesquisas psicológicas realizadas com animais do país, além de ter sido o pioneiro na formação destes profissionais
(4) Esses dados não separam os trabalhos realizados em Etologia - onde a investigação do comportamento animal é o objeto de estudo em si - daqueles que usam o animal como meio de investigação de processos psicológicos pesquisas etológicas, frequentes neste programa, aumentam a incidência do uso de animais nestas dissertações e teses - decidu-se que os dados, na sua forma atual, poderiam ser mantidos como indicativos da tendência