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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.4 no.3 Ribeirão Preto dez. 1996
Preconceito, indivíduo e sociedade
José Leon Crochík1
Universidade de São Paulo
O objetivo principal deste trabalho é discutir o preconceito a partir de suas dimensões psíquicas e sociais. Para isso, utilizaremos os resultados obtidos em pesquisas empíricas, como as de Allport (1946), Adorno, Erenkel-Brunswik, Levlnson e Satiford (1965), Jahoda e Ackerman (1969) e os trahalhos teóricos de Duckitt (1992) e de Adorno e Horkheimer (1986), entre outros. O trabalho serã apresentado em três partes. Na primeira, serão descritos diversos elementos que constituem o preconceito ou que auxiliam na sua constituição; na segunda, serão dadas explicações sobre a formação do preconceito no que se refere as suas variáveis sociais e individuais; e, na terceira, serão apresentadas as características dos indivíduos predispostos ao preconceito, tomando como base o estudo de Adorno et al. (1965).
ELEMENTOS DO PRECONCEITO
Uma das questões centrais sobre o preconceito refere-se a como se dá a relação entre os aspectos psíquicos e sociais na sua constituição. Conforme as pesquisas de Allport(1946) e de Adorno et al. (1965) mostram, o preconceito não é inato; ele se instala no desenvolvimento individual como um produto das relações entre os conflitos psíquicos e a estereotipia do pensamento - que já é uma defesa psíquica contra aqueles-e o estereótipo, o que indica que elementos próprios à cultura estão presentes. Por outro lado, essas pesquisas indicam também que o indivíduo que apresenta o preconceito em relação a um objeto lende a apresentá-lo em relação a outros objetos, o que revela um relativa independência do indivíduo que porta o preconceito e o objeto ao qual esse se destina. Contudo, como são diversos os estereótipos presentes nos preconceitos que são dirigidos a diferentes objetos, algo destes últimos deve estar presente para a constituição daqueles, ainda que não se refira aos próprios objetos, mas á percepção que se tem deles. Ou seja, ao mesmo tempo que podemos afirmar que o indivíduo predisposto ao preconceito independe dos objetos sobre os quais aquele recai, podemos dizer também que o objeio não e totalmente independente do estereótipo apropriado pelo preconceito que lhe diz respeito. O estereótipo em relação ao negro não é o mesmo daquele que se volta contra o judeu que, por sua vez, e diferente do estereótipo sobre o deficiente físico.
Jahoda e Ackerman (1969), em seu estudo sobre o anti-semitismo, dizem que para o anti-semita o judeu funciona como se fosse uma prancha de Rorschach sobre a qual o preconceituoso projeta os seus medos. Conforme podemos lembrar, o teste de Rorschach compõe-se de uma série de manchas a serem mostradas para os sujeitos, que devem dizer o que percebem nelas, ou seja, pede-se para configurar algo apresentado como desconfigurado, há um objeto não definido ao qual se deve dar significações definidas.
Já Adorno e Horkheimer(1986) indicam que a própria história do povo judaico dentro da cultura ocidental e seu papel civilizador trazem elementos que atiçam reações hostis nos anti-semitas. Por exemplo, o fato de os judeus durante o período moderno terem a sua participação vedada nos processos de produção confinou-os na esfera da circulação, no comércio, por um longo tempo, o que leva a indentifica-lo com esse esfera, daí proviriam as caracteristicas atribuidas a eles de apego ao dinheiro e às coisas materiais, ou seja, uma situação histórica delimitada e substituída no estereótipo por uma série de características consideradas imanentes judeu. As características de um povo que foram determinadas historicamente, mais devido às circunstâncias sociais do que a si mesmo, são consideradas inerentes a ele.
Assim, se não é possível dizer que o preconceito seja proveniente das características de seus objetos e se tampouco elas lhe são indiferentes, pode-se dizer que algo è percebido no objeto que não pertence a ele, mas às circunstâncias que o levam a agir de determinada forma. Dessa maneira, um dos elementos do preconceito seria dado pela atribuição de características, comportamentos, julga dos inerentes aos objetos, quando não o são, o que o configuraria por uma percepção e por um entendimento distorcidos da realidade. Como veremos mais adiante, essas distorções relacionam-se com conflitos psíquicos.
Outro elemento do preconceito é a generalização das características suposta de um determinado grupo para todos os indivíduos que pertencem a ele. A experiência individual, o contato com o particular, são obstados pelo preconceito. As relações pessoais dos preconceituosos se dão através de categorias que permitem classificar os indivíduos, o que impede que a experiência individual possa se contrapor ao estereótipo. As experiências, em geral, conforme mostram Adorno e Horkheimer (1986), são pouco úteis para desfazer o preconceito, um vez que o sujeito preconceituoso não precisa de contato com o objeto para desen volve-lo. Ou seja, aquilo que é o objeio de preconceito já está previamente enunciado, de forma que a sensibilidade e a reflexão próprias das experiências com o objelo são suspensas. Mesmo as experiências que de alguma maneira poderiam ser graíificantes são racionalizadas para que o estereótipo se mantenha. Em outras palavras, não só a experiência não é necessária para a constituição do preconceito como este a deforma.
Evidentemente, toda experiência é medida por conteúdos pré-formulados, mas ela serve para reformular o conceito previamente formado. Quando isto não ocorre é porque existem conflitos psíquicos que se beneficiam da manutenção de uma conceituação rígida e fechada à realidade externa.
A não necessidade de contato com o objeto do preconceito para que este surja mostra que ele pode se dar sem conexão nenhuma com a realidade, mas assim lemos de supor que os estereótipos apresentados no preconceito ou são produções individuais ou são produções culturais; como a sua expressão em geral é coletiva, ou seja, se repete da mesma forma em diversos indivíduos, podemos deduzir que os individuos se apropriam de algumas representações culturais para que, junto à hostilidade dirigida ao objeto, configurem o preconceito.
Assim, o preconceito se caracteriza por um conteúdo específico dirigido ao seu objeto e por um determinado tipo de reação frente a ele, em geral, de estranhamento ou de hostilidade. Ao conteúdo podemos chamar de estereótipo, cujo significado inicial pode ser remetido à máquina de reproduzir tipos utilizada pela imprensa, que deve portanto reproduzir fielmente as letras, mas que passou a ganhar o sentido também daquilo que é fixo, imutável. No caso do preconceito, e neste último sentido que ele deve ser entendido.
O estereótipo compõe-se de uma série de predicados fixos que são atribuídos ao objeto, mas há um principal, do qual os outros são derivados. Assim, o intelectual é visto como alheio ao que ocorre com o mundo material, tem pouco interesse por atividades esportivas, é pedanle, julga-se o dono da verdade etc. O predicado principal é, no exemplo, ser intelectual, que, no caso, deriva da própria divisão social do trabalho. Obviamente, aquele que é designado por esse termo tem outras qualidades não derivadas e não associadas a ele: é homem ou mulher, religioso ou ateu, esportista ou não, que são eliminadas quando o rótulo aparece.
O estereótipo retira o seu predicado principal e os derivados de distinções estabelecidas pela cultura entre sexos, ocupações, doenças, raças, povos, religiões, idade etc. e assim, de alguma maneira, as classificações culturais colaboram com ele. Mas não é somente com a nomenclatura que a cultura contribui, ela atribui também juízos de valores às suas distinções. Assim, historicamente o trabalho inleleclual lem sido mais valorizado do que o trabalho manual; o sexo masculino tem sido considerado mais adequado ao trabalho na esfera pública e o sexo feminino ao trabalho doméstico; os deficientes são desvalorizados por não poder participar da construção e da manutenção da sociedade; as raças e os povos que adentraram posteriormente na civilização ocidental são discriminados frente à raça branca dos povos europeus, e assim por diante.
Os valores não têm um papel menor na constituição do preconceito. E,na nossa cullura, eles até o momento têm sido relacionados com a autoconservação, segundo Adorno e Horkheimer (1986). Neste sentido, os papéis sociais têm sido valorizados em função da sua importância para a manutenção da ordem social, mas isso só de forma aparente, uma vez que na divisão do trabalho todos são importantes, e que a diferenciação através da valorização social só pode ser entendida pela existência de um poder desigual entre os homens frente à natureza e frente aos outros homens.
Se esse poder desigual, conforme afirmam Adorno e Horkheimer (1986), é fundado na vida sedentária, na apropriação da propriedade privada, aquilo que deriva desta situação repõe a dominação inicial, contrapondo-se ao impulso presente, quer no conhecimento quer na moral que, por sua possivel universalização aponta para a igualdade entre os homens. Assim, no próprio processo civilizatório está presente uma contradição que, ao mesmo tempo que permite o progresso, indica a manutenção da ordem social. Os preconceitos serviriam paia auxiliar a conservação desta ordem, na medida em que tendem a fixar e a naturalizar a realidade a partir da qual são criados.
Com o progresso, muito do sacrifício exigido de todos os indivíduos poderia ser eliminado, contudo, como o próprio sacrifício contido no trabalho foi interiorizado como um fim, a liberdade da autoconservação é sacrificada. Assim, embora as condições sociais objetivas já possam permitir a independência de uma vida calcada na sobrevivência diária, esta continua a ser necessária, e todos os elementos que possam indicar a fragilidade humana frente à natureza - que desde os primórdios devia ser conquistada - suscitam a lembrança da nossa importância e a de nossos antepassados frente a ela, que deve ser ocultada da consciência para que o processo de dominação prossiga. Por isso, também é ensinado aos homensque devem ser fortes, não devem ser frágeis como uma criança.
Os estereótipos do homem adulto, forte, empreendedor, independente, funciona como padrão de ideal social. Que ele não possa ser independente, uma vez que tambem depende das circunstâncias sociais; que ele continue frágil, quer frente à vontade coletiva, quer porque, como Freud (1986) mostrou, o passado que é vivido como fragilidade frente ao mundo adulto sobrevive no adulto, são dados que devem ser ocultados de sua consciência. Certamente, os estereótipos que ele atribui ao outro e a si mesmo contribuem para isso.
Se a mimese - no sentido de imitação - era utilizada, no início dacivilização, como uma fora de se defender da natureza, ao longo do desenvolvimento, quer cultural quer individual, cia continua a existir apesar de sua prescrição, que pode ser notada na perseguição que os ciganos e os artistas tiveram durante longos períodos e no incentivo dado à criança para que ela não imite os outros, que seja ela mesma:
O rigor com que os dominadores impediram no curso dos séculos a seus próprios descendentes, bem como às massas dominadas, a recaída em modos de vida mimélicos - começando pela proibição de imagens na religião, passando pela proscrição social dos atores e dos ciganos e chegando, enfim, a uma pedagogia que desacostuma as crianças de serem infantis -éa própria condição da civilização... Toda diversão, lodo abandono tem algo de mimeíismo. Foi se enrijecendo contra isso que o ego se forjou. (Adorno e Horkheimer, 1986, p. 169).
Contudo, ao tentar aproximar-se do ideal estabelecido pela cultura, o mecanismo damímese não deixa de estar presente: imita-se aquilo que é valorizado culturalmente; de oulro lado, o objeio do preconceito, para exacerbar aquela mimese, é percebido como a cópia daquilo que o ideal nega: aquilo que não se deve ser.
Enquanto a mimese original continha a possibilidade de o indivíduo ajustar-se ao mundo externo, tornando o eslranho familiar, a imitação de um ideal que postula o homem como senhor coloca as características do ideal como se fossem propriedades do homem para que aquele possa ser realizado, e o que é familiar torna-se estranho. Esta falsa mimese rompe a relação entre o indivíduo e o mundo. Enquanto investido da posição de senhor, o indivíduo se cinde e se fixa, lendo necessidade de levar essa cisão para o oulro, que também deve ser fixado para ser melhor controlado. O controle sobre a natureza que o homem teve de desenvolver para a sua própria sobrevivência implicou também o controle sobreos outros homens e sobre si mesmo; para controlar a natureza, ele próprio teve de transformar-se em natureza a ser dominada e, assim, mesmo a matemática, que se baseia na contraposição à mimese - no conceito -, guarda em si algo daquela:
A ciência é repetição, aprimorada como regularidade observada e conservada em estereótipos. A fórmula matemática é uma regressão conscientemente manipulada, como já era o rito mágico; é a mais sublime modalidade do mimelismo. A técnica efetua a adaptação ao inanimado a serviço da autoconservaçào, não mais como magia, através da imitação corporal da natureza externa, mas através da automatização dos processos espirituais, isto é. através de sua transformação em processos cegos. (Adorno e Horkheimer, 1986, p.169).
A própria ciência, dessa forma, como substituta e oponente da magia, contribui com os processos de criação de estereótipos enquanlo mantém a sua função de dominação danaturezaque a leva a enrijecer o conceito assim como o seu objetivo. Mas, se o ideal pode ser considerado um conceito ao redor do qual os tipos sociais devem ser constituídos, na socialização apresentam-se modelos referidos a este ideal que implicam mimese, que não é mais voltada à natureza, mas a algo que a transcende, e nem por isso perde o seu caráter original. Se há um ideal, permeado por valores, há também aquilo que se contrapõe ao ideal e, se aquele é fixado em formas próximas ao estereótipo, aquilo que se afasta dele também o é. A estereotipia justaposta ao objeto do preconceito é concomitante à estereotipia que o sujeito se atribuí.
O estereótipo, assim, é um produto cultural que nasce no próprio processo de adaptação do homem à natureza, que na nossa cultura implicou uma dominação a mais, visto que o poder entre os homens - exercido inicialmente pela força - transformou-se em violência sublimada, propagada pelas palavras na própria divisão social do trabalho, Isso explica porque foi proibida a entrada de mulheres muçulmanas que insistiam em manter um véu sobre o seu rosto em universidades européias. A explicação econômica que reduz essa proibição ao medo de enfrenlar a concorrência na busca dos escassos empregos é só parcialmente verdadeira, na medida em que mesmo na época de pleno emprego a necessidade de garantir a sobrevivência não é anulada.
Da mesma forma que uma presa é observada pelo caçador para que a regularidade de seus movimentos possa indicar o momento preciso do bote, o objeto do preconceito precisa ser descrito pela sua regularidade, fixidez, para que possa ser contido. Contudo, como a natureza não se reduz à mera regularidade pela qual é percebida, a natureza humana menos ainda. Se o homem, tal como Kant pôde mostrar, se contrapõe à causalidade presente na natureza como ser dotado de liberdade, esta não deve ser afiadorada fixação do objeto, mas de sua libertação. E, assim, o ser psicológico preso ao mundo da empiria, ao reino da causalidade, deve ser libertado de sua conformação às leis naturais.
Allport (1946) verificou em sua pesquisa se os grupos minoritários tendiam a desenvolver preconceitos em relação a outros grupos minoritários ou se tendiam a solidarizar-se com eles. Concluiu a partir de seus dados pelas duas possibilidades, ou seja, em algumas ocasiões, há solidariedade entre os grupos vítimas do preconceito, em outras há contraposição. Já Adorno e Horkbeimer (1986), na análise que fizeram do anti-semitismo, parecem defendera primeira possibilidade, quer porque o preconceito contra os judeus foi apresentado pelos trabalhadores alemães, vítimas eles mesmos de preconceitos, quer porque, dizem esses autores, as vítimas c os algozes são intercambiáveis ao longo da história:
A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção. E como as vitimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos, judeus, protestantes, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do assassino, na mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta poderosa enquanto tal. (p.160).
O que marca a contraposição continua entre as minorias sociais, permeada pelo preconceito, é a oposição força-fraqueza que é remetida à proximidade que cada qual é julgado da natureza que deve ser dominada. Contudo, como a dominação também se dá entre os homens e a propria natureza que continua a estar presente:
Hoje, quando a utopia baconiana de "imperar na prática sobre a natureza "se realizou numa escala telúrica, tornou-se manifesta a essência da coação que ele atribula à natureza não dominadora. Era a própria dominação. Ea sua dissolução que pode agora proceder o saber em que Bacon vê a "superioridade do homem". (Adorno e Horkheimer, 1986, p.52).
Esta dominação se apresentou no século passado na noção de indivíduo. O conceito de indivíduo com autonomia de consciência, livre e responsável, defendido pelo liberalismo, transformou-se em ideologia por não se anunciar que as condições objetivas para a existência são cada vez menos propicias. Se. segundo Marcuse (1972), o objeto psicológico vem sendo preparado desde Lutero, o conceito sobre ele cede frente ás teorias totalitárias de Estado. Essa transformação, de acordo com esse autor, ocorreu também com a noção, que tinha sido desenvolvida pelo iluminismo, de autoridade, desencadeando o surrgimento de teorias que, por explicar a coesão social existente ou possível por fatores quer morais quer psicológicos, auxiliaram a preparar o caminho para o surgimento da teoria do estado totalitário.
Se Kant e Hegel tinham apontado para a possibilidade de uma sociedade constituída á base da razão, que pressupõe tambem indivíduos que ajam racionalmente, as teorias que apontam que a coesão social se dá a partir da moral e dapsicologia inaugurama possibilidade de a dominação se dar através dessas esferas. E, de falo, segundo ilustram Adorno e Horkheimer (1986), o fascismo pode caracterizar-se como totalitário também porque se utiliza dos desejos psíquicos em um sentido contrário aos interesses racionais do indivíduo. Maisà frente teremos outros elementos para poder pensar se o preconceito não se releve a essa mesma utilização. Até o momento temos que: 1. o preconceito não é inato, é desenvolvido durante o processo de socialização; 2. o indivíduo que estabelece um determinado tipo de preconceito tende a estabelecer diversos outros; 3. o estereótipo presente no preconceito, se não diz respeito diretamente ao objeto, mas à percepção dirigida sobre ele, não é totalmente independente deste; a percepção sobro o objeto desfigura-o; 4, o preconceito é dirigido a um grupo de indivíduos que não são diferenciados entre si; 5. o indivíduo predisposto an preconceito tende a ser imune à experiência, sendo que, em geral, esta é apropriada em função daquele; 6. o estereótipo é constituído por predicados culturais, sendo que um deles - em geral o que nomeia o objeto do preconceito - e o principal e os outros são derivados dele; 7. a (desvalorização dos objetos do preconceito provém da divisão do trabalho, da hierarquia social estabelecida, das necessidades sociais do mundo do trabalho; 8, o objeio do preconceito é confrontado com o ideal cultural introjetado pelo indivíduo predisposto ao preconceito; 9, os grupos-alvos do preconceito podem solidarizar-se com outros grupos também vítimas do preconceito ou ser preconceituoso sem relação a eles; nos Estados fascistas, esta última possibilidade é a mais provável, um vez que os excluídos socialmente são lançados contra outros grupos sociais.
Passemos agora a ver algumas das explicações dadas sobre o preconceito para tentar entender a sua constituição, embora parle disto já tenha sido feito.
EXPLICAÇÕES SOBRE O PRECONCEITO
No passado, outros sentidos foram dados ao termo preconceito. Marcuse (1972) mostra que no movimento da contra-reforma - que visava restaurar o poder dos nobres e da igreja que fora tomado pela burguesia - o termo preconceito foi utilizado e defendido para representar os dogmas que deveriam ser aceitos para que não se gerasse um caos social. Do lado oposto, Kant (1992) propunha a autonomia da razão como antídoto ao preconceito que se dirigia ao apego aos dogmas que impediam que cada um pudesse pensar por si próprio e assim sair de seu estado de menoridade. Foucault (1978), por sua vez, mostra como a loucura de fenômeno de significado coletivo se transforma em doença mental com significado quer médicoquer psicológico, ao mesmo tempo em que descreve como crime, que até o século passado era basicamente considerado devidoàscircunsláncias sociais, passa a ser considerado também como produto da história de vida individual (ver Foucault, 1977),
Ou seja, uma série de fenômenos que nos séculos passados eram atribuídos à cultura ou à sociedade passam, sobretudo a partir do século passado, a ganhar um cunho individual. E importante darmos ênfase a essa transfomação, tendo em vista que o preconceito, nos nossos dias, é de forma geral percebido como um fenômeno individual, isto é, busca-se menos entender as determinações sociais na sua constituição do que prejulgar o preconceituoso e assim repetir o mesmo procedimento que e criticado. Mas, ao dizer isso, não se quer eliminar a importância dos estudos que mostrem o fenômeno de seu lado individual, desde que não o vejam desarticulado de sua mediação social.
O entendimento de que o preconceito seja uma distorção da realidade e que dependa de necessidades psíquicas para se constituir e recente, conforme mostra Duekitt (1992). Esse autor alega que, ao longo desle século, diversos paradigmas teóricas sucederam-se na compreensão do preconceito, ora enfatizando aspectos culturais, ora aspectos individuais, ora ambos os aspectos. Segundo esse autor, até o final do século passado, o preconceito não era entendido como uma distorção da realidade, como um fenômeno psíquico ou cultural, A ciência de então buscava encontrar os motivos que explicariam as diferenças que eram percebidas entre as raças. Estas explicações, em geral, recaíam sobre fatores biológicos e, em última instância, genéticos.
Com as críticas presentes nos movimentos sociais à dominação colonial nas primeiras décadas deste século, principalmente nos Estados Unidos, passou-se a se preocupar com o que levaria algumas pessoas a converter diferenças sociais e culturais em diferenças biológicas. Por certo, as teorias que atuavam neste sentido foram consideradas preconceituosas, o que por si só já indica uma crítica à isenção pela qual a ciência gera as perguntas que norteiam as suas pesquisas.
Ainda segundo Duekitt (1992), as teorias sobre o preconceito, que foram desenvolvidas neste século, podem ser agrupadas da seguinte forma:
1. teorias que utilizam conceitos psicanalíticos para explicá-lo como produto de mecanismos de defesa que surgem frente à frustração. Os indivíduos preconceituosos procurariam um objeto para justificar a sua insatisfação com a situação de vida;
2. teorias que consideram que o preconceito resulfa dc perturbações no desenvolvimento de estruturas psíquicas, o que levaria o indivíduo a tornar-se predisposto a ele;
3. teorias para as quais o preconceito é fruto da socialização, ou seja, os indivíduos se adaptariam às normas e aos valores culturais transmitidos;
4. teorias que julgam ser o preconceito um produto dos conflitos enlre interesses sociais diversos; e
5. teorias que consideram ser o preconceito um problema cognitivo. Ou seja, os indivíduos para poder compreender o mundo, simplificam-no através de estereótipos.
Apesar da variabilidade de explicações. Duckitt(1992) as considera complementares. E, de fato, esla complementaridade surge ao menos em um estudo que veremos mais adiante BM um pouco mais de detalhes: o de Adorno et al. (1965).
Como foi visto, o estereótipo é um produto cultural e para existir ele precisa que os indivíduos se apropriem dele. Mais do que isso, os individuos precisariam ter ou desenvolver uma estrutura psíquica para incorporá-lo e deixar que ele ocupe o lugar daquilo que sua experiência poderia lhe proporcionar.
Freud (1986) mostra que no inicio da constituição do "eu" começa a se formar, mediado pelo principio do prazer, uma cisão, na qual tudo que é considerado prazeroso é tido como pertencente a si e tudo que leva ádor, à frustração, à carência, e percebido como sendo externo ao eu. Cabe, segundo esse autor, a experiência reparar essa falsa dicotomia. Contudo. como aquilo que se formou no passado é preservado no presente, podemos supor que aquela dicotomia, por vezes, tome o lugar da experiência.
Assim, à participação do mundo em estereótipos variados acresce-se a dicotomia própria do principio do prazer e, dessa forma, a cultura não deixa de propor conteúdos e um modo de se estruturar esses conteúdos que podem suscitar a presença do "eu-prazer". A experiência e, em ambos os casos, negada. Mas se é através da experiência que o eu pode adaptar os juízos aos fatos e estabelecer a consciência, com a sua negação ocorre uma regressão a um ponto anterior à sua formação, como se ela fosse sustada.
O estereótipo pode tanto substituir a experiência quanto alterar o seu teor, conduziodo-a para o resultado previsto por ele. Mas o que pode levar o indivíduo a abandonara possibilidade de julgar por si mesmo, que a experiência permite, para aderira um julgamento consolidado por parte da cultura? Por que a experiência deve ser negada? Para pensarmos essas questões, podemos fazer uma analogia com a análise que Freud (1986) fez da adesão por parle dos individuos às ilusões presentes na religião.
Segundo esse autor, o conteúdo da religião vai ao encontro da necessidade de um pai que atenue ou encubra o sentimento de desamparo, de impotência, existente na infância, quando se descobre que o pai não pode oferecer a proteção que Inicialmente se Imaginava:
E quanto às necessidades religiosas, parece-me irrefutável que derivam do desamparo infantil e da nostalgia do pai que aquele desperta, tanto mais se se pensa que este último sentimento não se prolonga em forma simples desde a vida infantil, e sim que é conservado duradouramente pela angústia frente ao hiperpoder do destino, (pp.31-32).
Em outras palavras, o conteúdo da religião serve para ocultar a possibilidade de se experimentar a realidade do desamparo, que é universal na época contemporânea. E, ao impossibilitara percepção do sofrimento, permite que ele possa ter continuidade, fazendo com que quanto mais ele aumente mais seja necessária a presença da ilusão.
Assim, a heteronomia e privação da experiência seriam provenientes da tentativa de se iludir o sofrimento. Isso explicaria porque o conteúdo dos estereótipos nãoé indiferente às necessidades psiquicas, ou seja, não c qualquer conteúdo que se presta àquelas necessidades. Se dessa forma a cultura e o psiquismo se complementam não e porque a primeira seja adequada às características do ultimo, mas porque ambos impedem o surgimento do indivíduo que possa ser considerado autônomo.
Se, como dissemos antes apoiados em Freud, na infância se estabelecem os mecanismos adequados à apropriação do conteúdo do preconceito, surge a questão de se esses mecanismos impediriam ou dificultariam o surgimento de uma consciência oriunda da experiência, ou se, ao lado desses mecanismos, a experiência se daria em certa medida sendo mediada por eles, embora transcendendo-os.
Marcuse (1982) parece apontar para a primeira alternativa, na medida em que afirma que a cultura se caracteriza pela gratificação "imediata" dos desejos individuais com a redução de Hros a sexualidade. Além disso, segundo esse autor, com o enfraquecimento da família patriarcal, o indivíduo passa a ser socializado por diversas instâncias sociais, resultando que o indivíduo atualmente é diretamente socializado pela sociedade como um lodo. havendo o surgimento de um eu frágil, que tem dificuldades de perceber a realidade e quase não tolera o sofrimento:
...a perda da consciência em razão das liberdades satisfatória concedidas por uma sociedade sem liberdade favorece uma consciência feliz que facilita a aceitação dos malefícios dessa sociedade E o indício de autonomia e compreensão em declínio, (p.85).
Neste sentido, Adorno (1986) mostra o enfraquecimento do eu como nula inslancia mediadora entre os desejos individuais e o mundo exterior. Mais do que isso, já como crítica à psicanálise, esse autor mostra que o eu não é somente um produto do desenvolvimento individual, mas também um produto cultural, na medida em que implica a adaptação do indivíduo ás categorias externas a ele. Com o eu frágil, a comunicação se dá diretamente entre as instâncias sociais e o inconsciente, sustentando e reforçando no individuo as suas necessidades irracionais.
Para que esta hipótese nao soe absurda, basta lembrar o quanto os indivíduos atentam contra a sua própria vida no cotidiano e o quanto eles são levados a esse tipo de alentado devido ás necessidades sociais que lhes são impostas. Os kamikazes da segunda guerra mundial e os atuais homens-bombas são apenas o exagero da situação da normalidade. A violência nos estádios de futebol; o prazer com que se assiste uma lula de boxe; a satisfação com a desgraça alheia, daqual as gargalhadas que damos quando alguém sofre um tombo é somente o seu protótipo; e o acirramento da competição entre os indivíduos num mercado caótico não são meramente exemplos.
Mas, se a primeira hipótese pode ser sustentada, a segunda também é defendida por Marcuse (19821 e Adorno (1986), o que mostra que as duas são complementares. Já Freud (1986) indicou a convivência entre os desejos infantis e a consciência adulta e criticou a necessidade de ilusões e de restrições sociais que são injustas com a diversidade humana. É verdade que esse autor sofre críticas de Marcuse (1981) e de Adorno (1986) por ter entendido o desenvolvimento de nossa cultura em termos de filogenese e não de história, alem de Adorno alegar que a psicanálise e anacrônica, uma vez que o objeto que analisou, constituído pela relação entre as três instâncias psíquicas - id, ego, superego -, já se constitui de outra forma. Contudo, mesmo esses autores não desprezam a possibilidade de que o eu frágil possa se fortalecer e perceber o sofrimento e as contradições presentes na sociedade:
Na verdade, há infelicidade penetrante, e a consciência feliz è bastante abalável - uma delgada superfície sobre o temor, o decepção, o desgosto Essa infelicidade se presta facilmente à mobilização política; tem lugar para o desenvolvimento consciente, ela se torna o reservatório instintivo para um novo estilofascista de vida e morte. Mas há meios pelos quais a infelicidade que está sob a consciênciafeliz pode ser transformada emfonte de vigore coesão para a ordem social (Marcuse, 1982, p.86).
Ou seja, mesmo a consciência danificada pode ser reconstituída, uma vez que sob a máscara da felicidade o sofrimento confirma a pressionar. Contudo, deve-se atentar também, na última citação, á énfase dada pelo autora possibilidade de o sofrimento transformar-se em violência quando não é consciente, que é o que ocorre, como estamos assinalando, quando a realidade insiste em se mostrar harmônica, ocultando, ainda que de forma branda, as suas contradições.
Se, como alega Adorno (1986), de tempos em tempos a cultura favorece os modelos de constituição de subjetividade que deve fortalecer, o eu tambem se forma a partir do principio da realidade, que, se não pode ser reduzido à realidade existente, tampouco pode se desvincular desta. Se, no século passado, o ideal cultural se calcava em uma sociedade racional, o princípio da realidade também deveria suscitar a racionalidade individual, mas se, neste século, com o desenvolvimento do capitalismo dos monopólios, a racionalidade do indivíduo não c mais necessária para a manutenção do sistema produtivo, uma vez que a administração racionalizada e as máquinas pedem ao indivíduo somente que siga corretamente regras e instruções, não é mais o mundo do trabalho que pode ser o responsável pela constituição dc um indivíduo autônomo:
A teoria de alienação demonstrou o fato de que o homem não se realiza em seu trabalho, que sua vida se tornou um instrumento de trabalho, que seu trabalho e os respectivos produtos assumiram uma forma e um poder independentes dele como indivíduo. Mas a emancipação desse estado parece requerer não que se impeça a alienação, mas que esta se consuma; não a reativação da personalidade reprimida e produtiva, mas a sua abolição. A eliminação das potencialidades humanas do mundo de trabalho (alienado) cria asprecondiçòes para a eliminação do trabalho do mundo das potencialidades humanas. (Marcuse, 1981, p. 103).
Se é certo que isso tem um caráter emancipatório, pois o indivíduo poderia já prescindir de trabalhar para viver ou ao menos diminuir a intensidade de seu trabalho, as outras instâncias sociais - a família, a escola e, ultimamente, os meios de comunicação de massa -, responsáveis pela socialização do indivíduo, se aproximaram em demasia da racionalidade da produção do mundo do trabalho através do crescente processo de racionalização social, conforme mostram Marcuse (1981) e Habermas (1983). Assim, ao invés de o indivíduo poder ser libertado do mundo do trabalho e passara ser dono de seu tempo livre, ele tem de adaptar-se à racionalidade da máquina que passa a impregnar as diversas esferas sociais.
Como a racionalidade da produção capitalista é voltada para o lucro enão para as necessidades humanas, e como com as transformações sociais ocorridas neste século a racionalidade do mundo do trabalho se propaga às outras esferas de vida, o objetivo da sociedade torna-se o de ser um mundo perfeitamente administrado, ou seja, como a racionalidade virou o fim do próprio sistema social, mas não mais um meio para que todos possam ter uma vida digna, a sociedade tornou-se irracional.
Se a cultura que se reduziu à sociedade da sobrevivência torna-se irracional, o seu princípio de realidade contém também algo dessa irracionalidade. E se, no século passado, a irracionalidade presente no inconsciente poderia contrapor-se com a irracionalidade da cultura introjetada pelo indivíduo, atualmente aquela irracionalidade compõe-se com a irracionalidade da cultura e opõe-se às próprias percepções que tenham um caráter racional, que apontam para o sofrimento desnecessário dos homens em um sociedade que visava à sua eliminação.
A possibilidade de uma sociedade racional que vise igualdade de condições de existência e a possibilidade de a diversidade poder expressar-se a partr daquela igualdade passam a ser consideradas um sonho. A loucura converteu-se em realidade e a realidade em loucura.
Em uma sociedade assim, não é incompreensível que a predisposição psicológica ao preconceito seja a regra, uma vez que a realidade existente é fixada como eterna e a possibilidade de pensar e de agir para que ela se transforme é convertida em características de visionários Se a cultura atual se mantêm pela ênfase na naturalização e na fixação dos fenômenos, esses são elementos básicos do preconceito Mais do que isso, junto a fixidez da cultura exige-se de cada um de seus membros a fixidez de seus comportamentos e a fixação do comportamento dos outros. Certamente é um ambiente oportuno para surgir o preconceito.
Assim como os preconceitos tendem a fixar os objetos de uma vez para sempre, a nossa cultura apresenta o que ê percebido como imediato, como natural. O pensamento é treinado para adaptar-se à realidade tal como se apresenta e não para refleti-la a partir daquilo que a determina:
Compreender o dado enquanto tal, descobrir nos dados não apenas suas relações espaço-temporais abstratas, com as quais se possa então agarrá-las, mas ao contrário pensá-las como a superfície, como aspectos mediatizados do conceito, que só se realizam no desdobramento de seu sentido social, histórico, humano - toda a pretensão do conhecimento ê abandonada Ela não consiste no mero perceber, classificar e calcular, mas precisamente na negação determinante de cada dado imediato. Ora. ao invés disso, o formalismo matemático, cujo instrumento é o número, a figura mais abstrata do imediato mantém o pensamento firmemente preso à mera imedialicidade. (Adorno e Horkheimer, 1986, pp.38-39).
Mas se a sociedade tende a tornar-se autônoma em relação aos homens, ou seja. pode prescindir deles para o seu funcionamento reprodutivo, aos homens não resta outra alternativa para atenuar o seu sofrimento, as suas carências, que se voltar para si, afastando-se dos outros. Se não encontram amparo nas relações sociais, devem apropriá-las para si conforme as suas necessidades. Devem atuar como um ser social que no fundo despreza essa sua característica. A sociedade que deveria poder, através do trabalho, mitigar o sofrimento humano, torna-se adversária do indivíduo, tal como pode ser notado na descrição que Freud (1986) faz da hostilidade dos homens em relação à cultura.
Em um texto anterior, Freud (1976) já havia apontado que, quando os ideais coletivos desmoronam, surge o pânico que leva os indivíduos a atuarem contrariamente ás regras a que antes obedeciam. Como, atualmente, os ideais coletivos são escassos, o pânico surge, mas as ações contrárias à ordem social são mantidas pela ameaça direta. Ou seja, se no passado os ideais coletivos poderiam justificar os sacrifícios individuais desde que fossem racionais, possibilitando a adesão não só pela supremacia da vontade coletiva, mas também pela racionalidade desta, com o ruir daqueles ideais, só a ameaça de um poder coletivo é capaz de conter o caos.
Contudo, junto à ameaça existe a percepção do sofrimento que obriga a consciência a cada vez mais se encolher frente à realidade e a procurar objetivos externos sobre os quais possa projetar a sua própria impotência. Os preconceituosos vêem no objeto aquilo que eles têm de negar em si mesmos: a fragilidade, o desamparo. Não é à toa que os objetos do preconceito sejam, em geral, considerados frágeis socialmente: os judeus, os negros, as mulheres, os deficientes, os portadores do vírus da AIDS, os doentes mentais.
Se, no mundo da concorrência, os indivíduos são levados a disputar entre si, as suas habilidades devem transformar-se em instrumentos para derrotar o mais frágil, e os outros homens devem ser percebidos como inimigos á sua sobrevivência. Os meios de comunicação de massa não se fazem de rogados e fortalecem a apologia da força desde que as regras sejam seguidas Mas. assim como no futebol um gol com a mão é validado e traz satisfação para a torcida, pois o que importa é vencer, no trabalho aquele que consegue vencer, ainda que com métodos pouco lícitos, e admirado e não deixa de servir de modelo. Aliás, se é verdade que a administração é independente da sistema social ao qual serve, os traficantes de tóxicos eos mafiosos mostram a essência dessa verdade, pois são tão organizados quanto os monopólios industriais.
Para o preconceituoso, segundo mostra o estudo de Adorno et al. (1965). a dicotomia força - fragilidade está sempre presente com o concomitante respeito ã primeira e o desprezo à segunda. Os líderes fascistas em seus discursos, segundo Adorno e Horkheimer (1978), apoiam-se nesta dicotomia, mas inicialmente colocando-se no lugar dos perseguidos por aqueles que detêm o poder sem merecê-lo, ou por aqueles que exercem influência sobre o poder, os quais seriam os responsáveis pela exclusão social de que se sentem alvos. Como a audiência e identificada com o líder, não deixa de haver, segundo os autores, um ganho narcisico nesta identificação que encontra unia explicação para as suas frustrações, ou seja. para a sua própria fragilidade. Mas se aqueles que exercem o poder usurparam-no, cabe reapiopriá-lo pela força. Assim, nessa percepção distorcida, os inimigos devem ser despossuídos de seu lugar, que se sustenta por uma ordem que privilegia a fraqueza daqueles que não deveriam ocupar o poder. Pela impossibilidade de perceber que o lugar que ocupam de subalternos na estrutura social é devido a esta e não a outros grupos sociais, voltam-se contra estes úllimos para reproduzir a exclusão de que se julgam vítimas. Ou seja. por mais que aparentemente a violência fascista seja imediata, ela se vale de categorias sociais mediadas por necessidades psíquicas individuais.
Até o momento temos acentuado, predominantemente, os aspectos culturais e sociais presentes na constituição do preconceito que não podem ser dissociados das individuais. Passemos agora a ver quais são as necessidades psíquicas subjacentes ao preconceito, O estudo de Adorno et al. (1965) traz dados sobre isso.
CARACTERÍSTICAS DOS INDIVÍDUOS PREDISPOSTOS AO PRECONCEITO
O estudo de Adorno et al. (1965) visava saber qual era a predisposição dos americanos na década de 40 a aderir uma ideologia fascista. Os autores partiram da hipótese de que a adesão a determinada ideologia pode ser mediada por necessidades psíquicas profundas, e não necessariamente pela sua racionalidade. Utilizaram diversos instrumentos para atingir o seu objetivo. Quatro escalas de atitudes, o Teste de Apercepção Temática e perguntas de caráter projetivo foram aplicados a alguns milhares de sujeitos de diversos grupos sociais e vários sujeitos foram submetidos a entrevistas.
Uma das escalas de atitudes visava verificar a tendência dos sujeitos em relação ao etnocentrismo (E) e outra delas ao anti-semífismo (AS). Uma terceira escala foi construída para verificar a presença de tendências autoritárias nos sujeitos (F) e uma outra para verificar as suas atitudes em relação ao ideário político-econômico (PEC).
As altas correlações obtidas entre as duas primeiras escalas (AS e E) comprovam o que foi dito no início deste texto sobre haver uma tendência no indivíduo preconceituoso a desenvolver o preconceito em relação a diversos objetos, unia vez que a escala sobre o etnocentrismo continha questões sobre diversos tipos deni monas As correlações também altas entre as duas primeiras escalas com a terceira (escala F) mostram que as atitudes diretamente voltadas ao preconceito se relacionam com atitudes autoritárias. Já as correlações medianas, embora significamos, entre as três primeiras escalas e a escala sobre o conservadorismo polílico-econômico mostram que, se de fato os sujeitos preconceituosos tendem a aderir a uma ideologia conservadora e os sujeitos sem preconceitos tendem a aderir à ideologia liberal, existem outros elementos presentes nesta relação. Como a correlação não foi alfa, os autores apresentaram outras formas de relação entre os dois tipos de variáveis. Uma delas é que alguns sujeitos isentos de preconceitos aderiram á ideologia conservadora, o que os levou a concluir que a adesão à ideologia poderia se dar por motivos psíquicos ou pela própria racionalidade contida na ideologia. Em outras palavras, em alguns sujeitos a adesão à ideologia se dá devido ao reconhecimento de sua racionalidade por um ego maduro; em outros, por necessidades psíquicas não imediatamente apreensiveis.
Este último dado é importante por mostrar que a relação entre a adesão a ideários político-econômicos e os conflitos individuais não é imediata, ou seja, há outros elementos na escolha individual que apontam tanto para a possível racionalidade presente na ideologia quanto para o emprego da razão por parte do indivíduo, assim como indica que a defesa de certos ideários emancipatórios nem sempre se dá com a intenção da emancipação. Assim, no ideário político-econômico conservador examinado estão presentes elementos considerados importantes para uma sociedade justa, e o ideário político-econômico liberal pode ser apropriado por inclinações individuais autoritárias. Por exemplo, na época, a idciadaintervençào do listado para a correção de d istoições sociais era considerada um dos propósitos do ideário liberal, mas para alguns sujeitos da pesquisa essa idéia serviria para a satisfação de sua necessidade de controle; de forma contrária, a livre iniciativa, presente no ideário conservador, poderia significar a defesa da própria liberdade.
Como os autores deste estudo não eram indiferentes aos tipos de ideologia em questão, conforme apontaram Rouanet (1989) e Crochík (1990), não deixaram de alegar que os conservadores genuinos, por se pautarem por escolhas racionais, ao longo do tempo perceberiam que o ideário adotado por eles leva à injustiça social e passariam a adotar uma postura liberal.
Se esses autores associaram os preconceitos com ideologias políticas é porque supunham que não só o indivíduo desenvolve o preconceito, mas que a sociedade colabora para esse desenvolvimento. Contudo, seria a relação entre os conflitos individuais e a ideologia apropriada segundo esses que apontaria para uma relação análoga àquela presente entre o preconceituoso e o seu objeto.
Assim, se há relação entre os preconceitos avaliados diretamente pelas escalas de Etnocentrismo e a de Anti-Semitismo e indiretamente pela Escala F, de um lado, e a posição político-econômica, avaliada pela estala de conservadorismo polilico-econômico, de outro lado, é porque há um mesmo movimento presenle em ambos - tanto o objeto do preconceito como o ideário político responderiam a necessidades psíquicas. Os sujeitos com altas pontuações nos dois tipos de escala não estariam respondendo pela sua experiência ou pela reflexão sobre o objeto.
A relação entre preconceito e ideologia pôde ser claramente associada pelos autores, como hipótese, pela clareza da evocação de preconceitos presentes na ideologia fascista. Como para Adorno e Horkheimer (1986) o fascismo não ocorreu por acaso na história, mas foi produto da própria forma de evolução de nossa cultura, essa movimenlo não foi percebido separadamente da sociedade capitalista.
Isso nos leva a pensar a relação entre a consciência individual e a consciência social. Em "A Personalidade Autoritária", Adorno et al. (1965) afirmam que uma remete à outra, o que não significa que sejam reduliveis uma à outra, isto é, o conhecimento dos conflitos não leva necessariamente á consciência social, caso contrário, todos aqueles que se submeterem a um bom tratamento analítico estariam necessariamente associados com posições sociais progressistas, o que parece não ser verdadeiro. De outro lado, a consciência das contradições sociais não conduz necessariamente à autopercepção, caso contrário, aqueles que defendem idéias progressistas não utilizariam de métodos de controle da opinião alheia, que são facilmente visíveis nos movimentos sociais.
Mas não se trata de objetos separados e sim de um objeto contido, cujo isolamento recíproco de suas partes não desfaz o seu entrelaçamento, uma vez que o indivíduo para se constituir, precisa incorporar a cultura. Assim, a distância entre o indivíduo e a sociedade é menos fruto da busca de idiossíncrasias pessoais do que do que do impedimento de o indivíduo se desenvolver pela apropriação daquilo que a cultura pode oferecer-lhe. E é uma cultura empobrecida, que tem dificuldades de superara si mesma, que afasta o indivíduo de si.
Se o indivíduo se vê impossibilitado de pensar as suas experiências através de instrumentos culturais que não incorporou, ele só pode desenvolver uma relação de estranheza frente á cultura. É esse estranhamenfo que o faz tomar segundo os seus desejos o que a cultura dispõe como objetos, ficando a consciência impedida de se desenvolver, ou ao menos, de se firmar. Para evitar perceber a irracionalidade na cultura, com a qual é obrigado a conviver para sobre vi ver, o indivíduo deve renunciar à possibilidade de crítica. O que significa que mesmo em uma cultura marcantemente irracional a racionalidade individual pode se desenvolver negativamente, isto é, a partir de alguma racionalidade que consegue perceber no mundo. Segundo Adorno e Horkheimer (1986), esse paradoxo pode ser explicado pela contradição presente no movimento do esclarecimento; ao mesmo tempo que este movimento, por não poder avançar, esteja levando o indivíduo à regressão, não deixa de manter a possibilidade de libertação.
Mas se a experiência e o pensamento levam á percepção do sofrimento, eles devem ser escamoteados e a relação com o mundo deve se dar de forma preconcebida. Os objetos passam a ser aquilo que se diz sobreeles, indicando o caminho do que não devemos seguir. Neste sentido, está presente no preconceito aquilo que devemos abandonar no desenvolvimento. Dotamos o objeto do preconceito de características que devemos esquecer em nós mesmos. Assim, aquele que evoca a fragilidade, a natureza, deve ser perseguido para que a nossa força natural beire a onipotência.
Dessa forma, os preconceitos são por nós desenvolvidos em conjunto com uma serie de valores e idéias A forma como se dá a incorporação desses valores e idéias já foi descrita por Freud (1986). Ela se dá através da ameaça que vemos a nós dirigida por nossos pais, ou quem os represente, para que não percamos o seu amor, ou seja, a sua proteção. Nessa linha de raciocínio, os mecanismos do preconceito já se apresentam na infância.
Adorno et al. (1965) estabeleceram uma tipologia composta de uma variabilidade de constituições de indivíduos predispostos aos preconceitos e de indivíduos menos afeitos a eles. Fizeram isso a partir das entrevistas realizadas com os siucitos que obtiveram respectivamente os escores mais altos e os mais baixos na escala sobre o fascismo, ou em suas congêneres. Foram descritos seis tipos de individuos com altos escores e cinco tipos de indivíduos com baixos escores.
Os tipos descritos no primeiro grupo foram denominados de: ressentido superficial; convencional; autoritário; rebelde e psicopata; lunático e manipulador.
Os indivíduos considerados ressentidos superficiais são os que utilizam o objeto do preconceito para justificar os seus fracassos pessoais, uma vez que não conseguem encontrar os motivos destes fracassos nos condicionantes sociais de sua vida. Diferentemente de outros indivíduos preconecituosos, não projetam sobre a sua vitima os seus impulsos agressivos, limitam-se a utilizar o preconceito como uma forma de racionalização. Têm o pensamento estereotipado e pouca consciência critica.
Outro tipo propicio a apropriar-se de estereótipos foi denominado convencional. Os indivíduos descritos como convencionais incorporam os estereótipo do grupo ao qual querem pertencer sem refletir sobre eles. O ódio voltado ao objeto de preconceito não tem motivos próprios além daqueles presentes na identificação com o grupo aque desejam pertencer. Em geral, não demonstram impulsos hostis, são "bem-educados". Se o grupo a que pertencem recrimina o preconceito, eles não o desenvolvem. Contudo, costumam iritrojetar rigidamente as normas e têm facilidades de criar dicotomias que dão suporte ao preconceito.
O tipo autoritário dirige impulsos hostis ao objeto do preconceito. Devido a sua ambivalência frente ao pai, que representa a autoridade, cinde os seus afetos, dirigindo o sen amor ao pai e o ódio àqueles que rcpresenlam tuna ameaça imaginária ao grupo a que pertence. O ódio que sente também é cindido em uma parte masoquista, que emprega para submeter-se á autoridade, e em uma parte sádica, utilizada para submeter aqueles que julga mais frágeis a si. A experiência e a razão pouco podem fazer para atenuar ou eliminar o seu preconceito e, de outro lado, como a nossa cultura preza a hierarquia, a obediência e a força, não se sente inadaptado a ela.
Já o rebelde, ao contrário do autoritário, identifica-se com a autoridade inconscientemente, mas manifestamente se contrapõe a qualquer tipo de poder. E niilista e preza o presente. O alvo de seu preconceito não e especificamente elaborado, serve, apenas, para dar vazão aos seus impulsos hostis. A sua agressividade, em geral, é dirigida aos mais frágeis, e seda, segundo os autores, devido a uma aliança inconsciente com a autoridade que representa a força. Não consegue identificar-se com a hierarquia do mundo do trabalho, pois não quer seguir regras; quando trabalha, a sua realização não se dá como uma forma de sublimação, mas pela satisfação direta de seus impulsos hostis. Ainda segundo esses, autores, o rebelde é um tipo de indivíduo comum nas camadas mais pobres da população e se adapta bem ao trabalho de torturador nos regimes manifestamente fascistas. A cultura não deixa de fortalecer as características deste tipo de indivíduo:
Não é possível deixar de mencionar em relação a esse tipo, o incentivo que a culltira dá. O culto ao corpo, a critica ao espirito, a autoridade desprezada enquanto representante de um saber acumulado, a ênfase nos esportes perigosos e violentos, a necessidade de o indivíduo se defender por si mesmo, a valorização do momento se contrapondo à possibilidade de um projeto de vida, são marcas da cultura atual (Crochík, 1995, p. 131).
O psicopata tem a mesma dinâmica que o rebelde, mas deseja a plena gratificação de seus desejos.
O tipo lunático diz respeito ao indivíduo que frente aos conflitos entre os desejos e a realidade modifica ilusoriamente está última para suportá-los. Abrange aqueles indivíduos que criam ou seguem as seitas fanáticas. Eles substituem o mundo externo por vozes internas ou por forças sobrenaturais.
O último tipo descrito entre aqueles que apresentaram altos escores na escalas sobre o fascismo é o manipulador. Para ele, os estereótipos deixam de ser meios e passam a ser fins. A realidade os e os seus objetos devem ser classificados seguindo dicotomias. Quase não apresenta vinculação e afetos em relação às pessoas. Aprecia o trabalho quando este lhe permite exercer um controle eficaz, sem que o conteúdo do trabalho em si mesmo importe. Se não há afetos em relação as pessoas, esses são deslocados para a técnica. Segundo dizem os autores, é de se esperar um número crescente deste tipo de indivíduo em nossa cultura, pois esta preza a eficácia do emprego da técnica de forma desarticulada dos fins visados.
Os indivíduos entrevistados que tiveram baixos escores na escala sobre o fascismo foram divididos em cinco tipos: rigido, protestador, impulsivo, despreocupado, e liberal genuíno.
O tipo rígido apresenta também a estercotipia do pensamento e a sua rigidez, tal como os sujeitos de alto escore. No entanto, o conteúdo básico que segue e o de um ideal coletivo indiferenciado; as minorias são defendidas em nome desse ideal. Não deixade apresentar desejos de punição em relaçãoaelas, mas esses são racionalizados.
O tipo protestador tem um superego bem desenvolvido, tem uma consciência interna que se opõe à autoridade externa e tenta reparar as injustiças contra as minorias. Apresenta, tal como o rígido, um ideal coletivo que parece aproximar-ae de um ideal, de um mundo perfeito, o que talvez o afaste da experiência que lhe permitiria fortalecer o ego.
O indivíduo impulsivo tem um superego e um ego frágeis e, assim, é dominado pelos impulsos do id, mas, ao contrário do rebelde, quase não apresenta impulsos agressivos Simpatiza com as minorias pela diversificação de prazer que essas podem proporcionar. Se ele é imune ao estereótipo, não se preocupa em conceituar, o que segundo os autores, e problemático por não possibilitar o pensamento sobre a realidade e a sua modificação.
Ao contrário do ripo impulsivo, o despreocupado tem controle sobre a sua experiência e evita a todo custo molestar o outro. Não emprega a violência nem para deter a violência: atua como se já estivéssemos vivendo em uma sociedade verdadeiramente humana (conforme Adorno et al. 1965, p.725).
Por fim, o liberal genuíno aproxima-se do ideal freudiano e apresenta um bom equilíbrio entre as três instâncias psíquicas. Introjeta os valores e ideais paternos, mas não de forma rígida, O que lhe permite dar vazão a alguns impulsos provenientes do id. Identifica-se com as minorias sem deixar de diferenciá-las Percebe a realidade não através de classes ou de categorias, mas de indivíduos.
Os indivíduos com baixos escores são pouco propensos, como vimos, a desenvolver preconceitos, embora alguns deles não deixem de apresentar a estercotipia de pensamento ou mesmo um pensamento pouco elaborado.
Em geral, a descrição dos lipos feita por Adorno et al. (1965) calca-se no Complexo de Édipo e, portanto, passa pela família. No caso do liberal genuíno, é dito que a família conseguiu transmitir compreensão e carinho de forma a facilitar a superação daquele complexo. Ou seja, se o conflito edipiano envolve basicamente dimensões psíquicas, essas não são imunes à influência que a família exerce sobre ele. Um pai autoritário não é semelhante a um pai indulgente. embora em ambos os casos, seja possível encontrar prejuízos á formação da consciência individual, segundo Freud (1986). Um pai autoritário pode gerar a submissão e a ambivalência a toda autoridade; um pai brando e indulgente pode levara criança a desenvolver um superego rígido, por não ter a quem dirigir a sua hostilidade, sendo obrigada a voltá-la novamente a si.
As mudanças na configuração da família nuclear durante este século e a socialização cada vez mais direta do indivíduo por agencias extra-familiares enfraqueceram a figura do pai. Este quase não tem mais a possibilidade de se apresentar como um ideal, uma vez que a sua impotência frente à realidade é palpável e, devido à própria instabilidade dos valores e regras sociais, tona-se cada vez mais difícil para ele se constituir como um modelo;
Os especialistas dos meios de comunicação com a massa transmitem os valores requeridos; oferecem o treino perfeito em eficiência, dureza, personalidade, sonho e romance. Com essa educação, a tomiíia deixou de estarem condições de competir... A sua autoridade (do pai) como transmissor de riqueza, aptidões e experiências está grandemente reduzida; tem menos a oferecer e, portanto, menos a proibir. (Marcuse, 1981, p.97).
Alem disso, o falo de ter de preparar o filho para um mundo competitivo e sem perpectivas leva a própria educação a não ter quase outros valores que não sejam os da sobrevivência. A culpa de se colocar um filho em um mundo no qual vive as injustiças e se vê impotente para mudá-lo torna o pai permissivo e submetido á vontade daquele, impedindo o filho de perceber adequadamente os sofrimentos presentes na realidade, aos quais não está imune.
Para viver aparentemente sem conflitos, o indivíduo deve desenvolver uma insensibilidade ao próprio sofrimento, que logo se estende ao sofrimento do outro Allport (1946) mostra que os indivíduos que incorporam preconceitos não sentem nem culpa nem vergonha por eles, a Adorno et al. (1965) indicam que esses indivíduos são contrários à intracepção. ou seja, a tudo aquilo que seja pessoal e subjetivo. A hostilidade que volta contra a vítima, de forma manifesta ou não, não e associada por eles à sua própria subjetividade, mas aquilo que julgam que impede a realização de seus desejos, mesmo que esses sejam contrários a seus próprios interesses racionais, como a preservação da vida, por exemplo. A autoridade é amada ou odiada não em função de sua racionalidade, mas em si mesma. O preconceito formulado pelo ódio é tão indiferenciador quanto o conceito elaborado a partir do desprezo do objeto.
Neste sentido, como aludimos antes, mesmo a ciência, apesar de toda a sua potencialidade emancipatória do mundo do sofrimento, não é imune ao preconceito. A separação entre fato e valor (ver Horkheimer, 1976), destinando o primeiro à ciência e o segundo a uma sociedade desigual, possibilita que a própria neutralidade científica possa prescindir de conceitos que permitam pensar a sua produção. Além disso, na idealização dos fatos esquece-se de buscar as determinações sociais presentes na percepção do próprio objeto, eliminando-se a possibilidade de se pensar a si mesmo como objeto, ou seja, como ser determinado.
Mas se o próprio sujeito é detenninado, ele não deixa de trazer consigo ideais, valores que sejam anteriores ao objeto percebido, que podemos denominar de pré-conceitos para distingui-los dos preconceitos. Ou seja, toda experiência é mediada por aquilo que já se estabeleceu no indivíduo, que pode transformar-se em conceito quando pode ser refletido naquilo que o objeto fornece, ou pode não se alterar. Se o objeto oferece novos atributos ao sujeito, mas este mantém os seus pré-conceitos, esses se tornam preconceitos; de outro lado, se a concepção anterior não é considerada na produção do conhecimento, e esse mesmo que é eliminado (ver Crochík, 1995). Há, portanto, dois perigos a serem enfrentados: o impedimento da percepção do objeto por aquilo que é preconcebido, que diz respeito diretamente ao preconceito, e a idéia da experiência pura, não mediada pela constituição do próprio sujeito, que impediria a própria construção da teoria. Neste último caso, devemos lembrar que o pensamento deveria ser um dos antídotos ao preconceito e o quanto a nossa cultura o despreza, desprezando, entre outros elementos, o passado.
De um lado, a experiência é fortemente impedida pelos riscos que enuncia de conhecer algo que é distinto daquilo que se formou, ou daquilo a que se reduziu o objeto preconcebido, de outro lado, o pensamento é reduzido a tarefas também já preconcebidas pelas necessidades industriais. A realidade, não se mostrando em sua diversidade, impede o movimento da consciência em direção ao combate ao sofrimento existente, pois este é eludido sem por isso deixar de existir. Do mal-estar resultante provém o preconceito.
Evidentemente, neste texto, o preconceito foi concebido em diversos aspectos e poderia ser considerado em vários outros, mas isso não nos deve levar apensarqueeles devam ser analisados isoladamente, sem que isso signifique que as suas particularidades sejam abandonadas. Antes, o preconceito deve ser concebido quanto aos seus diversos elementos e na configuração que assume na nossa cultura. Se a sobrevivência, quer cultural quer individual, parece ser a base mais importante para que ele seja desenvolvido, é só com a superação dessa necessidade que poderíamos viver semeie. Como tal possibilidade parece distante, resta-nos poder favorecera experiência e a razão para que o preconceito possa ser, ao menos, atenuado.
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(1) Instituto de Psicologia.