Temas em Psicologia
ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.6 no.2 Ribeirão Preto ago. 1998
A criança e sua educação na família no início do século: autoridade, limites e cotidiano1
Children and their education by the family at the beginning of the century: authorithy, limits and daily life
Regina Helena Lima Caldana2
Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto
RESUMO
As dificuldades sentidas atualmente na educação dos filhos têm sido atribuídas à vigência de um modelo "moderno" de relação adulto-criança, que teria prevalecido a partir da segunda metade deste século. No entanto, estudos históricos apontam o início do século como um momento de grandes transformações nas relações sociais e familiares, e este trabalho tem como objetivo estudá-las a partir da análise qualitativa de 20 entrevistas voltadas para a descrição da infância de pessoas nascidas entre 1896 e 1919. Estes relatos mostram a relação adulto-criança caracterizada pela obediência, mas com a presença de atitudes indicativas de preocupação em satisfazer desejos infantis, limitada pela escassez dos bens e por um dia a dia marcado pela parcimônia e pelo trabalho árduo. Assim, considera-se que já se anunciam no início do século aspectos da educação da criança que se tornariam predominantes posteriormente com a plena emergência de uma sociedade de consumo.
Palavras-chave: práticas educativas; criança; família.
SUMMARY
The difficulties felt now in the children's education have been attributed to the prevalence of an "modem" educational model that would have been predominant in the second half of this century. But historical studies point to the beginning of the century as a moment of great transformations in social and familiar relationships. This is the period focused in this work through a qualitative analysis of twenty interviews that describe the infancy of persons bom between 1896 and 1919. The analysis evidenced a adult-child relationship characterized by obedience, but also showed many moments when the adult's attitudes indicated concern in satisfying children's desires, limited by scarceness ogods and a of daily life marked by parsimony and hard work. This picture shows a period when aspects of the child's education that would become predominant in the second half of the century by the emergency of the consumption society were already announced.
Key-words: childearing practices; child; family.
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1. Mini-conferência proferida na XXVIII Reunião Anual de Psicologia, outubro, 1998. A criança e sua educação na família no início do século:autoridade, limites e cotidiano.
2. Departamento de Psicologia e Educação - FFCLRP/USP Endereço: Av. Bandeirantes, 3900 - CEP 14040-901 - Rib. Preto - SP. E-mail: rhlcalda@ffclrp.usp.br
Anexo 1: Tópicos focalizados na entrevista
caracterização dos locais onde passou a infância: a cidade, a casa, a escola, outros espaços freqüentados
caracterização da família: constelação familiar, pessoas que moravam na casa, profissão e nível de escolaridade dos pais
caracterização do cotidiano da criança em termos de suas atividades gerais, alimentação, hábitos de higiene, vestuário, lazer, brinquedos e brincadeiras e obrigações
caracterização dos pais: aspectos pessoais (personalidade) e tarefas cotidianas
caracterização do relacionamento entre irmãos
caracterização do relacionamento entre os pais
caracterização do relacionamento entre adultos e crianças e, particularmente, entre os pais e o entrevistado
caracterização do relacionamento com outras crianças
caracterização das regras, permissões, comunicação e formas de correção na educação
caracterização do cotidiano escolar: tarefas, vestuário e atividades
caracterização do professor
caracterização do relacionamento com pares na escola
solicitação de fotos de família e de crianças, do período em questão, e da descrição das mesmas.
Anexo 2: Caracterização das pessoas entrevistadas
Sr. Gustavo, de 99 anos (1895), nasceu e passou a infância na fazenda Dumont, onde seu pai tinha um hotel junto à estação de trem. Seu pai era descendente de brasileiros e africanos; a mãe era italiana, tendo chegado ao Brasil na infância ou juventude. Sr. Gustavo perdeu a mãe ainda em criança. Cursou o primário completo, trabalhou e aposentou-se como comerciante. É viúvo, tem filhos e netos e atualmente mora com uma filha e sua família.
Sr. Paulo, de 88 anos (1907), nasceu em Gênova e aos sete anos sua família emigrou, fixando-se inicialmente em Araraquara e depois, aos onze anos, em Ribeirão Preto. O pai era engenheiro agrônomo e trabalhava nessa área como funcionário público. Os pais eram católicos, mas se tornaram espíritas quando Sr. Paulo ainda era criança. Sr. Paulo cursou o primário completo e foi aprendiz de serralheiro, profissão na qual trabalhou e aposentou-se. Vive com a esposa e uma filha solteira.
Sr. Hugo, de 85 anos (1909), nasceu numa fazenda em Santa Rosa do Viterbo e nela passou sua infância. Os pais imigraram da Itália adultos; perdeu o pai com um ano de idade, tendo sido criado com o auxílio dos irmãos mais velhos, trabalhadores rurais, todos eles nascidos na Itália. Cursou o primário sem chegar a concluí-lo. Trabalhou como comerciário e como comerciante. E aposentado e atualmente vive com a esposa.
Sr. Nelson, de 84 anos (1909), nasceu na fazenda Dumont, onde morou até os três anos, mudando-se depois para Ribeirão Preto. Os pais, imigrantes italianos vindos para cá na juventude, tinham um armazém em sociedade com os avós paternos. Completou o curso técnico em contabilidade, tendo trabalhado em banco até sua aposentadoria. E casado, tem uma filha e mora atualmente somente com a esposa.
Sr. Igor, de 83 anos (1910), nasceu em Araraquara, mudou-se para Pindorama com um ano de idade, e com 10 anos para Piracicaba. Os pais vieram da Espanha em criança. O pai, dono de um armazém, abandonou a família na época desta última mudança; sua mãe, apesar de oriunda de uma família de mais recursos, passou então a lavar roupa para sustentar os filhos. Sr. Igor cursou o primário completo, e trabalhou em criança numa marcenaria. Em adulto trabalhou e aposentou-se como ferroviário. É viúvo e mora com uma filha.
Sr. Oto, de 83 anos (1911), nasceu na zona rural de Orlândia, e passou a infância em fazendas na região. Os pais eram imigrantes italianos que aqui chegaram em criança; o pai era administrador de fazendas. Cursou o primário completo e teve várias atividades profissionais, mais foi predominantemente comerciante. É viúvo e mora com uma filha e sua família.
Sr. Hélio, de 83 anos (1912), nasceu e passou sua infância em Ibaté. Os pais eram imigrantes italianos que para aqui vieram já adultos, e o pai, embora tivesse muita cultura e fosse filho de um funcionário público na Itália, trabalhou no Brasil como sapateiro. Sr. Hélio começou a trabalhar como aprendiz de alfaiate e também no comércio desde criança e seguiu a profissão de alfaiate, inicialmente como empregado, mas depois montando sua própria oficina; paralelamente foi músico e prefeito. E casado, tem filhos e netos, e mora atualmente na casa de uma filha.
Sr. Tadeu, de 83 anos (1912), nasceu e passou sua infância em Ribeirão Preto. O pai e a mãe vieram da Itália, ele na juventude e ela na infância. O pai era sapateiro, com seu próprio negócio e nesta profissão Sr. Tadeu trabalhou (inicialmente com o pai e depois como empregado) e aposentou-se. Cursou até o terceiro ano primário, é solteiro e mora com uma irmã.
Sr. Luís, de 76 anos (1918), nasceu em Campinas, onde morou até os sete anos; passou o restante de sua infância na cidade de São Paulo. O pai e a mãe eram de famílias de fazendeiros brasileiros. O pai era guarda-livros. Sr. Luís fez um curso técnico na área de engenharia mecânica, tendo trabalhado e se aposentado nessa área como funcionário público. É casado pela segunda vez e mora com a esposa.
Sr. Márcio, de 76 anos (1919), nasceu e passou a infância em Rio das Pedras. Os pais vieram da Itália em criança. O pai era pedreiro e a mãe eventualmente costurava para fora. Sr. Márcio cursou o primário completo e trabalhou desde criança para ajudar a família, em atividades diversas (como auxiliar numa chácara, como engraxate e, ainda, vendendo legumes na cidade e água no campo de futebol). Foi aprendiz de marceneiro e posteriormente de sapateiro, atividade na qual trabalhou na vida adulta, primeiro como empregado e depois com seu próprio negócio; paralelamente trabalhou como inspetor de alunos. E aposentado e viúvo, morando com uma filha e um neto.
D. Luisa, de 92 anos (1903), nasceu em São João da Boa Vista num ramal da estrada de ferro em construção, onde passou sua infância até chegar à idade escolar, quando mudou-se para Batatais. O pai, imigrante português, era ferroviário; sua mãe, de ascendência brasileira, faleceu quando era adolescente. Cursou o primário completo. Seu marido era formado em Contabilidade, tendo trabalhado como funcionário público e professor universitário. Teve cinco filhos e tem netos e bisnetos; viúva, mora com duas filhas solteiras.
D. Inês, de 90 anos (1903), nasceu em Franca, e mudou-se diversas vezes: aos três anos e meio para Ituverava, aos onze anos para Pedregulho e aos catorze para São Joaquim. Os pais eram descendentes de brasileiros, de famílias com posses. O pai, inicialmente fazendeiro, adoeceu, perdeu bens e a mãe passou a sustentar a família trabalhando como costureira. Em função da doença, o pai teve uma vida profissional instável, com várias atividades, entre elas a de proprietário de um hotel. D. Inês cursou até o terceiro ano primário. O marido era farmacêutico, tendo se dedicado à política. D. Inês teve nove filhos, tem muitos netos e bisnetos; é viúva e mora com um dos filhos.
D. Rita, de 89 anos (1905), nasceu em Campinas de onde saiu com 13 anos para morar em Santos. Os pais vieram recém casados de Portugal. O pai era tesoureiro de bonde. Cursou o primário completo. Tem filhos e netos, é viúva e mora sozinha.
D. Eneida, de 83 anos (1912), nasceu em Franca e lá passou sua infância. De ascendência brasileira, os pais, protestantes, eram descendentes de grandes fazendeiros. O pai era agrimensor. D. Eneida formou-se em Farmácia, e trabalhou e aposentou-se como funcionária pública em área próxima; paralelamente foi também jornalista. Casou-se duas vezes, é viúva e mora sozinha. Tem um filho, netos e bisnetos.
D. Laura, de 82 anos (1913), nasceu em Santos Dumont onde viveu até os cinco anos de idade, quando mudou-se para Ribeirão Preto. Os pais vieram da Itália já adultos. Seu pai, dono de um hotel junto à estação de trem, faleceu quando ela ainda era bebê. A mãe manteve o hotel até a mudança para Ribeirão Preto, onde criou-a com o auxílio financeiro dos outros filhos. Seus pais eram católicos, mas D. Laura tornou-se protestante na infância e espírita na juventude. D. Laura tem filhos, netos e bisnetos e reside atualmente com o marido, Sr. Paulo (também entrevistado, vide acima).
D. Lúcia, de 80 anos (1913), nasceu em Pontal e lá passou sua infância. Os pais vieram da Espanha na juventude. O pai era eletricitário. D. Lúcia cursou até o terceiro ano primário. E viúva, tem filhos, netos e bisnetos, e atualmente reside sozinha.
D. Marta, de 80 anos (1914), nasceu em na zona rural de Santa Rosa do Viterbo, onde passou sua infância Os pais, imigrantes italianos que aqui chegaram na infância, eram lavradores. Cursou dois anos do primário. É casada, tem filhos e netos, e mora atualmente com o marido, Sr. Hugo (também entrevistado, vide acima).
D. Nadir, de 79 anos (1915), nasceu em Ribeirão Preto onde reside até hoje. O pai e a mãe vieram da Itália, ele na juventude e ela na infância. O pai era sapateiro. D. Nadir cursou até o terceiro ano primário, trabalhou e se aposentou como bordadeira, tendo sido também comerciaria. É solteira e mora atualmente com Sr. Tadeu (também entrevistado, vide acima), seu irmão.
D. Célia, de 77 anos (1917), nasceu e passou a infância em Ribeirão Preto. Os pais, de ascendência brasileira, ambos descendentes de fazendeiros, trabalhavam na área de educação, o pai como secretário e a mãe como professora. D. Célia completou o curso normal, tendo trabalhado e se aposentado como professora. É viúva e tem filhos
D. Deise, de 76 anos (1918), nasceu e passou sua infância em Ribeirão Preto. O pai, imigrante italiano que veio criança para o Brasil, trabalhava numa fazenda mas, tendo perdido a perna num acidente, montou uma selaria. A mãe era descendente de italianos. D. Deise cursou o primário completo, é casada, reside com o marido, tem filhos, netos e bisnetos.