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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.18 no.2 Ribeirão Preto 2010
ARTIGOS
A experiência da vinculação e o acolhimento familiar: reflexões, mitos e desafios
Attachment experience and foster care: reflections, myths and challenges
Paulo Delgado
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto - Portugal
RESUMO
A teoria do attachment permite compreender o desenvolvimento humano, as interações e interdependências que o caracterizam e o reestruturam, bem como identificar os fatores que condicionam ou facilitam a construção de uma base de segurança, que permite que a criança se sinta confiante para explorar o que a rodeia e interagir com estranhos. No caso específico do Acolhimento Familiar, esta perspectiva possibilita a compreensão das transições que ocorrem na vida da criança acolhida, a separação dos pais e o desenraizamento do seu contexto, a que se sucede a colocação num mundo novo e desconhecido, numa casa e num contexto de vida alternativo, e orienta a intervenção na prática, de modo a prevenir os riscos e a promover a integração e o desenvolvimento adequado da criança. Este artigo revê o trabalho de alguns autores que se têm debruçado sobre a vinculação e o Acolhimento Familiar e questiona alguns mitos que se têm criado à volta daquela relação.
Palavras Chave: Família, Vinculação, Maus tratos, Acolhimento Familiar.
ABSTRACT
Attachment theory analyses the interactions and interdependences in human development, and highlight the necessary conditions to build a «secure base», from which a child feels confident to explore the world around and responding to the overtures of strangers. This perspective is particularly well suited to study the transitions occurring in the lives of children in foster care: separation from parents and the challenges of an unknown environment, living in a new home in an alternative life context. This approach is also valuable in orienting intervention in practice, preventing risks and promoting children's integration and development. This article analyses some pieces of research about attachment and Foster Care and questions some myths created towards those relationships.
Keywords: Family, Attachment, Child Abuse, Foster care.
1 Natureza e âmbito do Acolhimento Familiar
Estudar o Acolhimento Familiar de Crianças requer, como primeiro passo, a abordagem do conceito de família, confrontar definições, articular perspectivas culturais, sociais, econômicas e jurídicas sobre a partilha familiar, espaço por excelência do desenvolvimento da pessoa, da sua socialização e da sua inserção num certo modo de agir, face a si e perante os outros. Requer, deste modo, a compreensão da socialização como o processo "através do qual os indivíduos apreendem, elaboram e assumem normas e valores da sociedade em que vivem, mediante a interacção com o seu meio mais próximo e, em especial, a sua família de origem, e se tornam, desse modo, membros da referida sociedade" (Pinto, 1997, p. 45).
O conceito de família é amplamente discutido (veja-se, por exemplo, Minuchin & Fishman, 1997; Rodrigo & Palacios, 1998a; Segalen, 1996; Burguière, Klapisch-Zuber, Segalen, & Zonabend, 1986; Rios, 1998) e em Portugal, nomeadamente, Alarcão (2000); Relvas (1996); Wall (2005); e Gameiro (1998). Segundo Bronfenbrenner (2005), constitui a estrutura mais capaz de alimentar e sustentar o funcionamento efetivo do ser humano, ao longo de toda a sua vida (e não apenas durante a infância ou juventude) nos vários domínios da atividade humana: intelectual, social, emocional e psicológico. A família não será encarada neste documento restritivamente, de um ponto de vista legalista, que faz depender os laços familiares do casamento, do parentesco, da afinidade e da adoção; pelo contrário, é entendida como o grupo de pessoas que se organiza com base na confiança e na intimidade, no suporte mútuo ou interdependência e na partilha de um destino comum, consoante os critérios intangíveis referidos por Rodrigo e Palacios (1998b). De acordo com Bronfenbrenner (2005), a família pode definir-se como "o grupo de pessoas que possui e implementa um compromisso irracional para com o bem-estar de cada um dos outros" (p. 249).
A família de uma criança é constituída pelo(s) adulto(s), independentemente de serem os seus pais biológicos, os seus avós, vizinhos ou outras pessoas e eventualmente por outras crianças que a ajudam a crescer, que dela cuidam, a protegem e se preocupam com o seu futuro. Conclui-se, deste modo, que o Acolhimento Familiar pode constituir uma família, mesmo que seja o trabalho de um ou dos dois acolhedores, desde que ofereça um compromisso de longa duração, do ponto de vista jurídico ou de fato, e se cumpram certas funções básicas (Rodrigo & Palacios, 1998b). Entre estas, destaque para a necessidade de assegurar a sobrevivência e o crescimento saudável das crianças, o seu desenvolvimento psicológico, proporcionando o clima de afeto e a estimulação necessária para a adaptação ao contexto que as rodeia, para a gestão das incertezas da vida (Zeldin, 1994) e para a abertura a outros contextos educativos.
Depende em grande parte do sistema familiar de cada criança o desenvolvimento do seu potencial físico, socioemocional e intelectual, enquanto instância primeira da socialização, que proporciona afeto, compreensão, valores, crenças, modos de pensar, de sentir, de agir, uma identidade e um patrimônio comum que é partilhado no interior de um pequeno grupo de pessoas, na sua intimidade e de um modo contínuo. Dela resultam também, como sucede com todas as relações de reciprocidade e dependência afetiva, problemas, conflitos, rivalidades, ressentimentos, dívidas e segredos, que geram discussões, sofrimento e impõem limitações, especialmente quando o sistema familiar reprime ou nega estas emoções negativas (Gimeno, 2001). De uma forma ou de outra, são interações que marcam de forma indelével o ser humano (Gameiro, 2004) e que condicionam os lugares da memória familiar (Muxel, 1996), essa escrita interior, composta por palavras, episódios, imagens, sons, odores, impressões, etc., que constitui a verdadeira subjetividade de cada um.
Se a família, a mais antiga de todas as instituições humanas (Linton, s.n.), é esta estrutura flexível composta por um conjunto de subsistemas e pelas relações que se estabelecem entre si e no seu seio (Relvas, 1996; Alarcão, 2000), este meio plurifacetado e contraditório, e em permanente reconfiguração, fator protetor principal na prevenção do risco e da inadaptação social, é simultaneamente o espaço onde no cotidiano as crianças correm o maior perigo de serem maltratadas (Almeida, André & Almeida, 1999). Em situação de crise, quando o mau trato se consuma, e a criança vê comprometida a satisfação das suas necessidades físicas e psicológicas básicas de um modo particularmente grave (Rodrigo & Palacios, 1998b), pode estar comprometida, de um modo temporário ou definitivo, a permanência junto da sua família, ou, de um modo mais frequente, junto dos seus pais. O mau trato é inibidor do desenvolvimento, ao enfraquecer ou reduzir a concretização do potencial que caracteriza a criança (Daniel, Wassell & Gilligan, 1999) e surge nas famílias mais insuspeitas (Almeida et al., 1999). No ponto de vista de Garbarino e Eckenrode (1999), o mau trato define-se por uma combinação de quatro pontos, a intenção, os efeitos, a avaliação e os critérios, consistindo em "todo o acto de omissão ou acção por parte de um progenitor ou tutor que, por uma combinação de valores da comunidade e de apreciações de peritos profissionais, se considera inapropriado e lesivo" (p. 22).
A retirada da criança do seio familiar é o último recurso, pois todas as alternativas devem ser cuidadosamente ponderadas; não é o fim do percurso protetor, atendendo à segurança afetiva da criança e aos custos emocionais envolvidos (Coelho & Neto, 2007; Ruegger & Rayfield, 1999). O Acolhimento Familiar é um serviço especializado que proporciona um contexto familiar alternativo, quando o perigo torna a retirada inevitável. Proporciona à criança a possibilidade de continuar a viver com uma família, no seu lar, um lar novo e inteiramente desconhecido, na companhia de outros adultos e crianças que nunca vira até então, com os seus costumes, as suas regras, os seus valores, os seus afetos, um modo de ser muito provavelmente distinto do padrão a que estava habituado. Noutros casos, passará a viver com os seus avós ou outros parentes, nas suas casas, com pessoas e espaços que poderão ser mais ou menos conhecidos. Em paralelo, deverá decorrer um trabalho junto da família biológica tendo em vista a reunificação familiar, sempre que as dificuldades forem reversíveis (Orte, 1999), uma vez que as "boas práticas parentais não são um dado da natureza, nem dependem apenas dos sentimentos - exigem a aquisição de competências específicas" (Almeida et al., 1999, p. 143). Conclusão inquestionável, se entendermos como Garbarino e Barry (1999) que "a parentalidade é um contrato social, não é um acto individual" (p. 113).
Durante essa estadia, continuará muito provavelmente a ver os seus pais ou familiares com quem vivia, e terá de gerir a dualidade das relações, dos espaços, do sentir e do pensar, poderá ter que se adaptar a uma escola nova, a novos amigos, a novas atividades, tendo sempre como pano de fundo um futuro incerto e desconhecido. Será obrigada ainda a manter contato com a equipe responsável pelo acompanhamento da medida, a responder a perguntas, a visitar tribunais ou outros espaços institucionais, a falar com magistrados, a pronunciar-se, na medida da sua maturidade, sobre o seu destino. Mudanças que se acentuam e agravam com a duração imprevisível da estadia, com a incerteza do regresso a casa ou da direção para outro destino, com a ambivalência com que encara os seus acolhedores, que foram recrutados e selecionados e que recebem um montante em dinheiro para desempenharem a sua função.
Entre as várias definições de Acolhimento Familiar, apresenta-se a de Colton e Williams (1997), porque se baseia numa perspectiva comparada da medida, alicerçada no estudo do acolhimento em 21 países, dos cinco continentes do mundo. O Acolhimento Familiar é "o cuidado prestado na casa dos acolhedores, numa base temporária ou permanente, através da mediação de uma autoridade reconhecida, por acolhedores específicos, que podem ou não ser parentes da criança acolhida (definida de modo diferente em diferentes países), que pode ou não residir oficialmente com eles" (p. 292).
Novos rostos, novos trajetos, novos espaços, novos desafios, para uma criança que sofreu a dor do mau trato e o abandono da retirada, a pior forma de terror, segundo Cairns (2002), e que tem de lutar com a resiliência de que disponha para cicatrizar, compreender, aceitar e acreditar outra vez. A memória não funciona no vazio, está inscrita em relatos, em locais e objetos (Segalen, 1996), que remetem para o passado da criança, que deve ser respeitado e preservado, promovido nos seus aspectos mais positivos e partilhado no seu lado mais sombrio, como um patrimônio singular irrecusável (Foxon & Fuller, 2007). Porque "o passado é uma casa" (Segalen, 1996, p. 233) e na casa da infância residem os primeiros atributos da identidade (Muxel, 1996). A mesma observação se aplica, sem dúvida, ao período pós-acolhimento, e à necessidade de preservar as relações, as memórias e os espaços do Acolhimento Familiar.
Se a identidade da criança inclui a sua história pessoal, as relações que estabeleceu, a etnia, a religião, a cultura e a nacionalidade, bem como a rotina do seu dia a dia, quanto maior for a frequência da mudança do local de acolhimento, maior será "a necessidade de se acomodar a diferentes versões de si mesma" (Romaine, Turley & Tuckey, 2007, p. 56), e o risco de perder a coerência e a continuidade do seu modo de ser. Esta tendência pode agravar-se quando a criança procura ser a pessoa que, na sua opinião, facilitará o «encaixe» no novo contexto, acabando por "perder de vista a pessoa por detrás da fachada" (Romaine, Turley, & Tuckey, 2007, p. 56), ou falso self, na expressão de Winnicott (1989).
2 Acolhimento Familiar e vinculação
O Acolhimento Familiar é um contexto familiar alternativo que representa um enorme desafio para o principal ator, a criança, e para os seus outros protagonistas. Uma prova difícil porque estabelece rupturas, distâncias, isolamentos, a mudança e o confronto com o desconhecido. Por outro lado, permite o contato com outros estilos de vida familiar, enriquece a perspectiva sobre as expectativas e o valor que se lhe atribui, bem como sobre os seus padrões de funcionamento (Gimeno, 2001), tece novas relações com grande poder emocional e afetivo (Triseliotis, Sellick & Short, 1995). É também uma oportunidade de construir a partir de novos alicerces, de recuperar, de criar novas cumplicidades, de conhecer, de se distanciar do passado para o melhor compreender, de refazer o presente, de sonhar com o futuro, de mudar e aprender com o desconhecido, porque a família "existe para produzir o inesperado" (Zeldin, 1994, p. 358).
A ligação emocional e duradoura entre dois indivíduos, de grande proximidade, é analisada pela teoria do Attachment (Bowlby, 1969; Ainsworth, Blehar, Walters, & Walls, 1978), que caracteriza geralmente a relação que se estabelece entre uma criança pequena e a sua mãe ou cuidador principal, não obstante caracterizar também a relação que se estabelece entre outras pessoas. O relacionamento tão chegado assenta na satisfação das necessidades básicas da criança e na confiança que este (re)encontro vai produzindo (base de segurança) e que permite que a criança se sinta confiante para explorar o que a rodeia e interagir com estranhos, possibilitando o seu desenvolvimento cognitivo, moral e ao nível da linguagem. Como observa López (1998), "o sujeito quer as figuras de apego porque com elas se sente seguro: incondicionalmente aceite, protegido e com os recursos emocionais e sociais necessários para o seu bem-estar" (p. 118). Paradoxalmente, a segurança que o vínculo transmite permite que a criança se afaste da sua base segura para explorar o ambiente desconhecido (Bowlby, 1969, 1988).
Este padrão de comportamento resulta de uma interação positiva com a mãe ou cuidador, um tipo de ligação ou apego que Ainsworth et al. (1978) apelidaram de segura, e que se distingue das ligações inseguras, que se subdividem em três tipos, a vinculação evitante, a vinculação ambivalente/resistente, a que se somou mais tarde o padrão da vinculação desorganizada/desorientada (Bateson, 2001). Estes três padrões são potencialmente geradores no futuro de incompetência social nas relações interpessoais, dificuldade no estabelecimento de vínculos apropriados e um sentimento de baixa autoestima. Este padrão de comportamento provoca uma reação adversa nas outras pessoas, gerando um círculo vicioso, em que os menos preparados para lidar com as dificuldades nas relações acabam por ser aqueles que têm maior probabilidade de as encontrar (Howe, 1995). Apesar de menos recompensadoras, as ligações ocorrem e continuam a ser nestes três últimos casos primordiais para a criança e assentes em laços profundos, o que explica a relutância que pode manifestar na separação dos seus pais, no momento da retirada, mesmo daqueles que as rejeitam ou maltratam de forma grave. Simultaneamente, revela a necessidade de se respeitarem esses sentimentos, contraditoriamente associados à dor e à perda, e de se resgatarem os aspectos positivos que possam ter existido nesses relacionamentos.
Uma interpretação mais restrita da teoria defende que o attachment só acontece uma vez na vida da criança, no decurso do seu primeiro ano de vida, e com a sua mãe, pondo de lado a possibilidade da ligação ser construída mais tarde, ao longo da infância, e com mais do que uma pessoa. Esta formulação recebeu as críticas do movimento feminista, ao longo dos anos e 1970 e 1980. Outra perspectiva (Thomas & Pierson, 1995) defende que, não obstante o funcionamento emocional saudável ao longo da vida estar relacionado com a qualidade da ligação inicial, o attachment "é um processo contínuo que passa por diferentes fases, e se houver uma ruptura, mesmo que ocorra muito cedo na relação entre a mãe e a criança, isso não significa que o attachment não irá ocorrer" (p. 33). Sellick, Thoburn e Philpot (2004) alertam para que não basta cessar o mau trato e proporcionar cuidados parentais adequados para que a perda inicial seja reversível, ou seja, corre-se o risco de que os sintomas de distúrbio se prolonguem pela idade adulta. As experiências adversas iniciais podem ser bem mais difíceis de superar do que alterar o comportamento abusivo dos pais e podem influenciar o desenvolvimento da criança. Mas todos devem ter uma oportunidade de mudar (Cairns, 2002) e a mudança pode ocorrer, se as condições necessárias forem asseguradas (Triseliotis, 1998). Com efeito, as crianças que nunca experimentaram nenhuma forma de attachment são as que mais prejuízos sofreram no desenvolvimento (Howe, 1995).
Para Schofield (2003), mesmo as colocações familiares tardias de crianças que passaram por várias experiências de acolhimento "podem conduzir a uma família para a vida e ser um recurso para entrar na vida adulta" (p. 241). Em muitos casos, apesar de toda a sua importância, o acolhimento não é suficiente, por si só, para garantir resolver os problemas e garantir uma recuperação total, sendo necessária a intervenção de serviços educativos ou terapêuticos adicionais (Amorós, Palacios, Fuentes, León & Mesas, 2003).
López (1998) caracteriza as diferentes etapas de desenvolvimento do apego numa criança, distinguindo os primeiros 6 meses, a segunda metade do primeiro ano de vida, o período que decorre até aos 4-6 anos, a etapa até ao início da puberdade e adolescência e esta última fase. Cada criança forma uma constelação de relações única, em termos de número e de qualidade, que podem incluir os irmãos, os amigos ou outros adultos, para além daqueles que constituem as figuras primárias de attachment (Howe, 1995). Quando a reintegração na família biológica se revela inviável, o Acolhimento Familiar prolongado pode assegurar os benefícios de fazer parte, de um modo seguro e contínuo, de uma nova família (Schofield, Beek, Sargent & Thoburn, 2000; Schofield, 2003; Beek & Schofield, 2004). O mais importante para as crianças são as pessoas que as ajudam e fazem crescer, e não necessariamente aquelas que as fizeram nascer (Triseliotis, 1998).
Na opinião de Kelly e Gilligan (2000), uma das principais vantagens do Acolhimento Familiar consiste na possibilidade que proporciona à criança acolhida de desenvolver novos vínculos com os seus acolhedores mantendo a vinculação e a identificação com a família de origem.
Daqui decorre a importância de, na intervenção social, se proporcionar à criança um ambiente que garanta a experiência de pelo menos uma relação de attachment positiva (Cairns, 2002), com um adulto carinhoso e responsável, que possa desempenhar um papel especial e que pode nomeadamente ser um irmão ou irmã, outro membro da sua família, um professor, um técnico de uma equipe de serviço social, ou um acolhedor, no âmbito do Acolhimento Familiar. Na verdade, "cortar laços, sem dar alternativas vinculativas, significa estar a traçar um destino vazio de afecto, que trará custos a curto e a longo prazo" (Coelho & Neto, 2007, p. 20). A este ponto de vista, que denuncia os excessos na separação das crianças das suas famílias, contrapõe-se outro discurso, que alerta para o otimismo profissional infundado sobre as hipóteses de reabilitação (Triseliotis, 1998). Decisões difíceis, que exigem do educador/assistente social competências de análise, de diagnóstico e de execução, que se devem articular com as características singulares de cada caso concreto, de modo a salvaguardar que as expectativas de evolução dos pais se façam à custa da carência dos filhos (Diniz, 1993) ou que o imperativo da proteção da criança hipoteque a convivência familiar, a necessitar eventualmente de outras medidas de apoio.
3 Mitos e realidades sobre a relação entre o Acolhimento familiar e a vinculação
As crianças necessitam que os adultos lhes proporcionem segurança material (comida, abrigo e segurança) e educação, garantindo, na sua ação educativa, a continuidade, a estimulação e a reciprocidade, que podem "ser providenciadas por um grupo de pessoas familiares e não estão necessariamente confinados a um indivíduo ou casal (Triseliotis, 1998, p. 35). Dos pais ou dos seus substitutos, deles se esperam muitos anos de disponibilidade material e afetiva, pois "aquilo que cada um de nós é como pessoa depende do que foram os adultos que povoaram a nossa infância" (Diniz, 1993, p. 22).
A criança pode constituir um leque de attachments significativos com diferentes pessoas e até a relação com "memórias, símbolos, animais, histórias, imagens, lugares, linguagens e acontecimentos podem contribuir para que a criança sinta que tem uma «base segura»" (Daniel et al. , 1999, p. 293); veja-se também Howe (1995) ou Garbarino e Eckenrode (1999). O processo de memorização familiar apropria-se de objetos e de referências da decoração cotidiana, porta aberta para a recordação das redes familiares e sociais, pois "através deles exprimem-se a personalidade, a identidade social, as peripécias da vida familiar e profissional" (Segalen, 1996, p. 234), em suma, todo um patrimônio identificável, ou, na expressão de Muxel (1996), a figuração de uma geografia interior.
No fundo, o desafio é aprender que "é positivo e seguro confiar e estar próximo" (Daniel et al., 1999, p. 290). O que não pode ser reparado, pode sempre receber ajuda, afirma Cairns (2002), pois "em nenhum momento das nossas vidas estamos imunes ao dano ou à ajuda" (p. 56), assim o determina a vulnerabilidade da condição humana. As palavras de Bowlby (1988) recordam-nos que, "apesar da capacidade para a mudança ao longo do desenvolvimento diminuir com a idade, as mudanças continuam através do ciclo de vida o que significa que as mudanças para melhor ou para pior são sempre possíveis" (p. 136). Ao assistente ou educador social cabe, no processo de Acolhimento Familiar, estabelecer a ponte entre a família biológica e o novo contexto de vida, gerir a transição com a sensibilidade e o cuidado necessários, procurar uma solução, manter-se presente na vida da criança, mas não oferecer de modo permanente a base de que a criança necessita. Constituir-se como a solução pode impedir o seu aparecimento, para além de outras considerações que do ponto de vista ético seriam apropriadas, mas que por razões de economia ficarão por fazer. Por outro lado, deve ter presente que o sucesso total e o falhanço total ocorrem em poucos casos, pois "para o resto, faz-se genericamente um retrato de «benefícios e perdas», sabendo que ainda há muitas lacunas no conhecimento das respostas a algumas das mais importantes questões" (Triseliotis et al., 1995, p. 15).
Os membros da família acolhedora devem revelar capacidade afetiva e equilíbrio emocional. A teoria do attachment pode conferir o quadro teórico para se proceder à seleção e ao acompanhamento dos acolhedores, identificando-se nestes processos o seu estilo de attachment, o padrão de relacionamento que mantêm com os outros - que será seguro, quando a pessoa em causa tem uma expectativa positiva de apoio e de cuidado dos que lhe estão próximos, e inseguro, quando as expectativas preveem o abandono, a ofensa ou a traição (Bifulco, Jacobs, Bunn, Thomas & Irving, 2008). Pode e deve ser ainda tópico a abordar na formação inicial dos candidatos que pretendem acolher, sem prejuízo de ser mais tarde discutida nas ações de formação contínua dirigidas a acolhedores, técnicos das Equipes de Acolhimento e outros protagonistas do Acolhimento Familiar.
Schofield e Beek (2008) identificam algumas ideias sobre o attachment e as relações familiares que influenciam a planificação da intervenção no âmbito do Acolhimento Familiar prolongado, apesar de não encontrarem o melhor fundamento na teoria ou na investigação. Barber e Delfabbro (2004) denunciam, por sua vez, alguns dos preconceitos acerca das visitas parentais. São algumas destas ideias, ou mitos, que este conjunto de autores denunciam e contestam, que motivam, nomeadamente, a escolha entre a Adopção e o Acolhimento familiar, ou entre o Acolhimento em Instituição e o Acolhimento Familiar, ou a recusa de que o Acolhimento familiar possa ser permanente.
A simplificação origina representações falsas, que são aceitas genericamente pelos membros de um grupo ou comunidade, e que urge identificar, debater e clarificar. Aos mitos indicados na Tabela 1, podemos acrescentar muitos outros, decorrentes de outras dimensões ou vertentes da medida, como os que passamos a identificar.
O Acolhimento familiar necessita de princípios de atuação devidamente alicerçados na investigação científica, que incida sobre a prática e que tenha em linha de conta as diferentes variáveis situacionais e individuais. Agir segundo a força e a direção dos ventos soprados pelos pré-juízos e das ideias feitas não produz os resultados desejados face à diversidade e à complexidade que caracteriza o modelo interativo do Acolhimento Familiar. Por outras palavras, "os mitos simplificam o modo de ver as coisas e podem ter desastrosas consequências quando são aplicados de modo acrítico ao mundo real" (Barber & Delfabbro, 2004, p. 206).
Reflexões finais
O Acolhimento Familiar situa-se num espaço de intersecção entre o domínio privado e o domínio público. Domínio privado, porque a família coloca-se na área da individualidade e da intimidade, e define-se pelos sentimentos subjetivos do amor, da confiança, do ciúme, da posse, entre outros. Domínio público, porque não dispensa o acompanhamento e a avaliação da competência de uma equipe técnica especializada, porque implica um suporte financeiro, porque obriga a celebração de contratos e à participação em reuniões ou atos administrativos e judiciais. Constitui, deste modo, uma contradição, porque pretende ser um espaço de vida familiar normal, que contribua para o desenvolvimento da criança, mas integra-se ao mesmo tempo num sistema que faz solicitações que reduzem a qualidade da vida familiar, e, por consequência, a capacidade de proporcionar o desenvolvimento desejado (Twigg & Swan, 2007).
As leis, os procedimentos e as práticas que o sistema de proteção impõe destinam-se a evitar que uma excessiva privatização legitime uma «família-fortaleza», que se feche à comunidade exterior (Almeida et al., 1999), escondendo riscos ou perigos que o acolhimento também pode conter. Quanto maior a privacidade, maior é o risco de isolamento, e quanto maior o isolamento, maior é o risco da ocorrência de maus tratos (Garbarino & Barry, 1999).
Apesar dessa «invasão» contínua, o espaço de acolhimento não pretende ser apenas uma «casa» ou espaço físico, isto é, o local em que as suas necessidades básicas são atendidas e a criança se encontra supervisionada. Espera-se que seja o «lar» das crianças acolhidas, no pequeno grupo doméstico em que está integrada, um espaço de práticas únicas e um invólucro protetor (Segalen, 1996), um espaço de compreensão, de mistério, de cuidados, coletivo e individual (Zeldin, 1994). Este constitui aliás um dos principais traços que distingue o Acolhimento Familiar do Acolhimento Residencial, porque "o instinto ou a imitação não são suficientes para a criação de um lar" (Zeldin, 1994, p. 387).
A teoria do attachment, como observamos, assenta na interação da criança com o seu ambiente, com o seu cuidador principal, com a sua família ou com outras pessoas, e nas consequências que dela resultam para o seu desenvolvimento (Howe, Brandon, Hinings & Schofield 1999). Porque a única pessoa que está disposta a fazer todas as coisas que a criança necessita para se desenvolver é provavelmente alguém que tem um attachment irracional com ela. É claro que existe "um termo menos pejorativo para «attachment irracional», e o mais comum é amor" (Bronfenbrenner, 2005, p. 34). O desenvolvimento humano depende da interação que cada indivíduo estabelece com o ambiente em que está inserido, da qualidade das relações que nele constrói (e destrói). O Acolhimento Familiar pode constituir-se como um espaço privilegiado para o desenvolvimento das crianças e jovens excluídos, maltratados e votados ao abandono pelas suas famílias e pelas comunidades em que vivem.
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Endereço para correspondência:
Paulo Delgado
R. Dr. Roberto Frias, n. 602, 4200-465
Porto, Portugal
Email: pdelgado@ese.ipp.pt ou jpfdelgado@iol.pt
Enviado em Abril de 2009
Texto reformulado em Março de 2010
Aceite em Novembro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010
Sobre o autor:
Paulo Delgado - Licenciado em Direito e Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), é investigador externo, vinculado ao Instituto da Criança da Universidade do Minho (Portugal). Área científica principal: Infância e juventude; família, legislação social. É autor dos livros Acolhimento Familiar. Conceitos, práticas e (in)definições (2007) e Crianças e Acolhedores. Histórias de vida em Famílias (2008), ambos publicados pela Profedições, no Porto, e respeitantes à matéria desenvolvida no artigo. É Professor Adjunto na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto e colaborador externo da equipe SEPA-interea da Universidade de Santiago de Compostela; é vogal da Direção da Sociedade Iberoamericana de Pedagogia Social (SIPS), eleito para o período 2005-2008 e reeleito para o período 2009-2011.
O artigo apresentado insere-se num projecto de investigação que tem o apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior português, no âmbito de uma Bolsa de Pós-Doutoramento, atribuída pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia (com a referência SFRH/BPD/20443/2004).