Temas em Psicologia
ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.19 no.2 Ribeirão Preto dez. 2011
Instrumentos na prática clínica: CBCL como facilitador da análise funcional e do planejamento da intervenção
Clinical practice instruments: CBCL as a functional analysis and intervention planning facilitator
Annie Wielewicki; Alex Eduardo Gallo; Renata Grossi
Universidade Estadual de Londrina - Londrina, PR - Brasil
RESUMO
É amplamente documentado na literatura o uso de instrumentos variados - questionários, inventários, testes - tanto na pesquisa, quanto na prática clínica comportamental. Neste trabalho, destacaremos o uso do CBCL como um instrumento facilitador da análise funcional de comportamentos de encoprese apresentados por uma criança de 10 anos de idade. O instrumento foi utilizado como indicativo de comportamentos-alvo, pois as escalas que foram apresentadas por maior pontuação (queixas somáticas, problemas de pensamento, ansiedade/depressão, comportamento agressivo, e problemas sociais) serviram como pistas para investigação nas análises funcionais. A partir dessas análises, definiram-se estratégias de intervenção, considerando as classes de comportamento que precisavam ser trabalhadas.
Palavras-chave: Instrumentos, Análise funcional, Encoprese, CBCL.
ABSTRACT
It is widely documented on literature the use of varied instruments - questionnaires, inventories, tests - on research as on behavioral clinical practice. In this paper we highlight the use of CBCL as a facilitator instrument for functional analysis of encopresis behavior presented by a 10 years old child. The instrument was used as an indicative of target behaviors because the scales presented as having high scores (somatic complains, tough problems, anxiety/depression, aggressive behaviors, and social problems) acted as clues for further investigations on functional analysis. Based on these analyses, we defined intervention strategies, considering behaviors classes that needed to be addressed.
Keywords: Instruments, Functional analysis, Encopresis, CBCL.
É amplamente documentado na literatura o uso de instrumentos variados - questionários, inventários, testes - tanto na pesquisa, quanto na prática clínica comportamental (Oliveira, Noronha, Dantas, & Santarém, 2005; Oliveira, Noronha, & Dantas, 2006).
Na área clínica, é comum a utilização de instrumentos, principalmente nas primeiras sessões de atendimento. Esta prática tem o objetivo de coletar, de maneira mais rápida e focal, informações importantes sobre o cliente, que, de outra forma, dificilmente seriam levantadas nas primeiras sessões. Podem ainda ajudar no levantamento e teste de hipóteses e no planejamento das intervenções.
Reconhecendo a importância e utilização dos instrumentos de avaliação em psicoterapia, Oliveira et al. (2005) buscaram caracterizar as estratégias, técnicas e instrumentos psicológicos mais conhecidos e utilizados por psicólogos de abordagem comportamental ou cognitiva. O estudo foi realizado com 35 psicólogos de diversas universidades e estados brasileiros e verificou-se que 85% dos pesquisados também realizavam avaliações quantitativas do comportamento do cliente. Dentre estes, os objetivos apontados para o uso de instrumentos foram: diagnóstico (80%), intervenção (66%), avaliação dos resultados (60%), avaliação da intervenção (57%), encaminhamento (37%) e avaliação psicológica (20%). Estes resultados confirmam a alta recorrência do uso de instrumentos por terapeutas.
Apesar de largamente utilizados, o emprego de instrumentos de avaliação não é consenso entre teóricos, como afirmam Godoy e Noronha (2005). Uma crítica ao seu uso poderia ser a de que a utilização de um instrumento de avaliação resultaria apenas em medida topográfica e, como o comportamento só pode ser explicado por sua função, os dados provenientes dos instrumentos não se constituiriam em uma medida confiável. E, assim, apenas uma análise funcional seria relevante na avaliação de comportamentos. Porém, para a realização de uma análise funcional, além de antecedentes e consequentes, também são coletados dados topográficos - intensidade, frequência, duração - do comportamento. Sendo assim, os instrumentos auxiliariam na coleta destes dados.
Outra crítica poderia ser a de que o comportamento medido por um instrumento seria apenas o relato verbal do comportamento-problema, e não o próprio comportamento. Todavia, em clínica, o relato verbal do cliente é a principal fonte de dados e se este não for considerado válido, se faria necessário o uso, em todos os casos, de técnicas de verificação da veracidade das informações, como perguntar várias vezes, de forma diferente ou questionar outras pessoas do convívio do cliente que pudessem confirmar ou refutar as informações obtidas por meio do relato verbal do cliente.
No entanto, é reconhecido que o método mais favorável para avaliação dos comportamentos-problema seria a observação no ambiente natural do cliente. Porém, este procedimento impõe dificuldades ao clínico. Diante disto, os instrumentos se configuram como uma possibilidade de identificar e medir, de forma mais sistemática, os comportamentos do cliente (Oliveira et al., 2005).
Para aumentar a eficácia do instrumento na coleta de dados relevantes, Guilhardi (2003) sugere que o terapeuta deveria coletar mais informações sobre quais circunstâncias as mudanças ocorreram, ou ainda realizar outras perguntas, durante a aplicação do instrumento, que poderiam descrever a contingência que produz o tipo de comportamento assinalado pelo cliente. Um item de um questionário, por exemplo, se tornaria um estímulo discriminativo para o terapeuta fazer mais perguntas para o cliente, o que tornaria as perguntas do terapeuta uma condição para comportamentos de auto-observação e/ou descrição, por parte do cliente, de comportamentos públicos e privados diante das situações enunciadas no instrumento. Assim, tem-se a avaliação quantitativa e, mais importante, a qualitativa.
Os instrumentos que podem ser utilizados na psicoterapia são inúmeros e podem atender a uma ampla gama de objetivos. Alguns dos instrumentos mais utilizados e pesquisados por terapeutas comportamentais fazem parte do Sistema de Avaliação ASEBA (Achenbach System of Empirically Based Assessment), entre eles Child Behavior Checklist - CBCL (Achenbach & Rescorla, 2001), Youth Self Report - YSR (Achenbach & Rescorla, 2001), Teacher Report Form - TRF (Achenbach & Rescorla, 2001). Além destes, Inventário Beck de depressão (Beck, Steer, & Brown, 1996); Escala de ajustamento conjugal - MAT (Locke & Wallace, 1959); Questionário de Situações Domésticas - QSD (Barkley, 1987), Inventário de Habilidades Sociais - IHS (Z. A. P. Del Prette & A. Del Prette, 2001), Inventário de Estilos Parentais - IEP (Gomide, 2006), entre outros.
Aqui será adotada a posição de que, com ressalvas, qualquer instrumento que apresente objetivos bem delineados e que sejam compatíveis com o referencial teórico do terapeuta pode contribuir para a avaliação clínica em diferentes momentos do processo psicoterápico, que pode ser inicial, do andamento e de resultados de um determinado caso. Os dados coletados por instrumentos padronizados e validados para a população brasileira são mais confiáveis, pois apresentam validade de conteúdo, de construto e de critério. No entanto, outros instrumentos ainda não validados podem fornecer pistas importantes do comportamento do cliente. É comum que instrumentos padronizados para outras populações sejam traduzidos e utilizados por pesquisadores e clínicos.
O quadro 1 apresenta algumas das vantagens e desvantagens de se utilizar um instrumento nas diversas etapas do processo psicoterápico.
Apontadas as vantagens que a utilização de um instrumento pode acarretar na prática clínica comportamental, convém destacar que nenhum instrumento deve substituir o método de análise mais consolidado na Análise do Comportamento, isto é, a Análise Funcional.
Conforme apontado por Oliveira et al. (2005), o maior interesse da Análise do Comportamento é a identificação das variáveis de controle de uma classe de respostas e de sua funcionalidade, além da predição do comportamento futuro. Sendo assim, a Análise Funcional configura-se como a mais útil ferramenta do clínico e neste contexto, os instrumentos podem fornecer dados sobre o comportamento atual do cliente em diversas ocasiões, se constituindo como um recurso que auxilie na construção de uma análise funcional melhor fundamentada (Segura, Sanchez Prieto, & Barbado Nieto, 1991).
O Child Behavior Checklist (CBCL)
O CBCL é parte de um sistema de avaliações desenvolvido por Achenbach e Rescorla (2001) que avalia os comportamentos infantis por faixa etária. Existem duas versões: uma para crianças de 1 & #189; a 5 anos e outra para crianças e adolescentes de 6 a 18 anos. Em ambos os instrumentos, o informante deverá ser os pais ou cuidadores. A primeira versão é composta de 99 sentenças que deverão ser avaliadas pelo respondente como não verdadeira - tanto quanto se sabe; um pouco verdadeira ou algumas vezes verdadeira; ou muito verdadeira ou frequentemente verdadeira, o que corresponde, respectivamente, a 0, 1 e 2 pontos na escala.
A versão para crianças e adolescentes de 6 a 18 anos é composta por 138 sentenças, nas quais 118 referem-se a problemas de comportamento e 20, à competência social. Esta escala é composta por 20 itens que incluem atividades da criança, como brincadeiras, jogos e tarefa; participação em grupos; relacionamento com familiares e amigos; independência para brincar e desempenho escolar. Na maior parte destes itens, é solicitado que os pais comparem o comportamento de seus filhos com o de outras crianças da mesma idade, nos quesitos desempenho e tempo despendido em cada atividade, assinalando como abaixo da média, dentro da média ou acima da média. O instrumento avalia as síndromes reatividade emocional, ansiedade/depressão, queixas somáticas, problemas de atenção, comportamento agressivo e problemas de sono (comuns à versão para crianças de 1 & #189; a 5 anos) e problemas sociais, problemas de pensamento e violação de regras. A partir dos escores obtidos nessas escalas, a criança ou adolescente pode ser incluído nas faixas clínica, limítrofe ou normal, em relação ao seu funcionamento global e nos perfis internalizante e externalizante. Para inclusão no perfil internalizante, são considerados os itens isolamento, queixas somáticas, ansiedade/depressão, e para inclusão no perfil externalizante, os itens avaliados são violação de regras e comportamento agressivo.
O Child Behavior Checklist, construído a partir de dados normativos da população dos Estados Unidos, tem demonstrado ser efetivo em diferentes culturas. No Brasil, foi feito um estudo preliminar de validação do CBCL em que os resultados advindo das respostas da mãe ao instrumento foram comparadas com resultados de avaliação psiquiátrica e apresentaram alto índice de correlação (Bordin, Mari, & Caeiro, 1995). Estudos conduzidos em diferentes países mostram alta correlação entre os resultados obtidos por diferentes instrumentos, mostrando validade multicultural (Achenbach & Rescorla, 2006).
Em função de seu rigor metodológico e importância em pesquisas e na prática clínica (Bordin et al., 1995), o CBCL encontra-se disponível com tradução para 61 línguas e é pesquisado em 50 culturas diferentes (Achenbach & Rescorla, 2001; Carvalho, Junqueira, Gracioli & Bordin, 2009).
É citado por Gauy e Guimarães (2006) como um dos três instrumentos mais utilizados para a avaliação de comportamentos-problema infantis. As autoras apontam que este instrumento propicia uma avaliação do repertório geral da criança e favorece um diagnóstico rápido, porém confiável. A agilidade que o CBCL propicia na avaliação inicial de um caso tem consequências significativas principalmente em clínicas-escola, nas quais frequentemente o terapeuta dispõe de menos tempo para realizar as primeiras análises que antecedem e direcionam a intervenção.
Carvalho et al., (2009) relatam que o CBCL é indicado na literatura como um dos instrumentos mais eficazes na quantificação das respostas parentais sobre o comportamento dos filhos.
A seguir, será apresentado um estudo de caso que tem como objetivo mostrar o uso do CBCL como um instrumento facilitador na elaboração de uma análise funcional.
Estudo de caso
Cliente
Bruna, 10 anos, estudante das séries iniciais do ensino fundamental em um colégio estadual, não demonstrava atraso em relação à série escolar e idade prevista para aquela classe. A menina era filha única e seus pais eram separados. Residia com a mãe e a avó e recebia visitas constantes do pai, que frequentemente almoçava ou dormia na casa da filha.
Queixa
Bruna foi encaminhada à terapia por indicação do gastrologista, por apresentar dificuldades de evacuação (prende as fezes, ressecamento) sem causa orgânica. A queixa da mãe referia-se aos "problemas psicológicos decorrentes das lavagens" pelas quais Bruna foi submetida. Segundo o relato da mãe, após as lavagens, a menina ficou com "medo de defecar", "medo de ir a hospitais ou ao dentista", ficou "rebelde" e "manhosa".
Histórico da queixa
Tereza, mãe de Bruna, afirmou que a filha sempre foi ressecada, mas, no ano em que foi realizada a triagem, estes problemas se agravaram e foi indicado pelo médico o procedimento de lavagem, que consiste na injeção, por meio do reto, de água no intestino grosso para retirar os resíduos fecais.
Bruna fez 4 lavagens no período de 35 dias (com intervalo de 15 a 20 entre elas, sendo que a 3ª e a 4ª lavagem foram realizadas no mesmo dia). A mãe não relatou problemas durante a primeira lavagem. Após a segunda lavagem, o pai de Bruna pediu que esta fosse levada para casa antes do término do período em que ela deveria permanecer no hospital e disse para a filha que esta poderia defecar no assoalho do carro, se fosse necessário. A mãe contou que a menina segurou-se firmemente no carro e quando chegou em casa disse que não queria descer do automóvel. A mãe acreditava que ela tinha ficado com medo de não conseguir segurar as fezes e defecar no carro ou no chão. Após 30 minutos tentando convencê-la, com conversas, a descer do carro, o pai a pegou no colo e a levou até o banheiro onde a deixou sentada em uma cadeira que foi posta em baixo do chuveiro. O pai e a mãe ficaram com a filha no banheiro até que ela terminasse de defecar, sob o chuveiro. Tendo terminado, a mãe deu banho e o pai a secou e ambos (pai e mãe) ficaram deitados com a filha até que esta pegasse no sono, sendo que o pai permaneceu na casa durante essa noite.
Após a segunda lavagem, Bruna passou a prender as fezes quando sentia dor de barriga. Nestes momentos (que, segundo a mãe, ocorriam todos os dias, com intervalos de 10 a 20 minutos) Bruna gritava para que todos ficassem quietos e mandava desligar a televisão. Segundo a mãe, estes comportamentos de Bruna tinham por objetivo retirar qualquer distração que dificultasse a retenção das fezes. Os parentes, exceto o pai, acatavam os direcionamentos de Bruna.
A mãe contou um episódio em que recebeu uma visita em casa e que, diante desta visita, Bruna, ao invés de gritar para que todos ficassem quietos, correu ao banheiro, cerca de cinco vezes. Afirmou ainda que, após ter observado este comportamento da filha, disse a ela que, a partir daquele dia, estava proibida de fazer cocô na calça, já que a mãe tinha observado que ela conseguia ir ao banheiro quando tinha dores de barriga.
Bruna, algumas vezes, quando não conseguia prender as fezes, defecava na calcinha. Por esta razão, a mãe já chegou a deixá-la sem ir à escola por aproximadamente 30 dias. Antes de mandá-la novamente para o colégio, a mãe a ensinou a usar absorvente e a trocá-los com regularidade (sempre que percebesse que havia feito cocô na calça). A mãe relatou ter feito isto para evitar que sua filha ficasse mal cheirosa na escola. Bruna usou absorvente por algum tempo, mas próximo ao dia da triagem, disse à mãe que não iria mais usá-lo. Tereza comentou que estava preocupada que o cheiro de fezes pudesse causar constrangimentos à filha na escola.
Relatou ainda que a filha tinha ficado mais "rebelde", que segundo a entrevistada referia-se a gritar e chorar quando os familiares discordavam dela. Após estes episódios, a mãe conversava, dizia que o comportamento de Bruna era errado e explicava o porquê, a menina continuava gritando e chorando até que a mãe gritasse com ela. Em seguida, ela corria para a avó que a abraçava e dizia à mãe que esta deveria ter mais paciência com a filha devido aos problemas que ela estava passando.
História de vida
Tereza informou que, após seis meses de namoro decidiu, junto ao seu namorado, que era o momento de terem um filho. Tereza engravidou após dois meses, mas perdeu a criança no segundo mês de gestação, segundo ela, em razão de um episódio de stress muito forte - ter presenciado sua casa ser assaltada. Dois meses após a perda do bebê, engravidou novamente de gêmeos, porém, na segunda ultrassonografia, não mais havia indícios de um dos fetos. Tereza contou que, apesar de não morar com o pai da criança, este participou ativamente da gravidez, acompanhando as ultrassonografias, tocando sua barriga diariamente.
O parto de Bruna não apresentou complicações. A menina foi amamentada por aproximadamente seis meses. Começou ingerir alimentos sólidos com sete meses. Com um ano e sete meses, deixou de usar fraldas. Não teve problemas de saúde.
A rotina alimentar de Bruna era a seguinte: café com leite e mel e às vezes uma fatia de pão, às 8h30; um iogurte ou suco, às 10h; almoço - 1 colher de sopa de arroz e 1 de feijão, 1 bife e 1 tomate inteiro - às 12h; sopa ou suco de laranja, beterraba e alface, às 18h30; e antes de dormir, entre 21h30 e 22 horas, leite e mel. A mãe relatou que todas as vezes que Bruna comia algum alimento fora de sua rotina alimentar a filha perguntava se faria o cocô sair mais mole ou mais duro.
Na tentativa de solucionar o problema, Bruna já havia feito terapia por dois meses, mas a mãe desistiu do atendimento por dificuldades financeiras. O pai dava pouca ajuda financeira à filha, a mãe disse que ele era o responsável pelo material escolar e que, quando saía com a menina, comprava algum brinquedo ou sapato. Os pais não estavam mais namorando, porém saíam frequentemente com a menina e várias vezes durante a semana o pai dormia ou almoçava na casa de Bruna.
Os pais discordavam em alguns aspectos na criação da filha, a mãe disse que o pai era muito presente, mas dava poucos limites à filha, que esta responsabilidade ficava com ela. A mãe acreditava que o pai cooperaria na terapia, caso fosse chamado pela terapeuta.
Tereza esperava que o atendimento pudesse dar uma solução ao problema de sua filha. Disse que sabia que eram os pais os principais responsáveis na educação dos filhos, mas que eles precisavam de ajuda e de compreensão.
Observações do comportamento da mãe nas primeiras interações com a terapeuta
No contato por telefone, Tereza já iniciou o relato da queixa. Durante a entrevista, pareceu bastante ansiosa: chegou para a triagem com aproximadamente 30 minutos de antecedência, chorou em alguns momentos e falou durante 1 hora quase sem interrupção da terapeuta. Foi necessário marcar uma segunda entrevista para coletar os dados que faltaram. Durante as duas entrevistas de triagem, a mãe pareceu querer convencer a terapeuta a selecionar o caso para atendimento na Clínica-Escola, disse que: "seria importante para o aprendizado dos alunos estudarem o caso de Bruna, que é muito raro", ou "Se o caso dela for selecionado, ela nunca vai faltar, eu não deixo ela faltar" , ou ainda "eu sempre sou pontual", etc.
Encaminhamento
Foi oferecido à Tereza atendimento na modalidade de orientação de pais, que seria realizada em dupla com outra mãe que aguardava em fila de espera para que seu filho recebesse atendimento individual. Foi dada preferência para que as mães recebessem atendimento, em dupla, na modalidade de orientação a pais em detrimento do atendimento individual das crianças por considerar-se que resultaria em maiores benefícios tanto para os clientes, quanto para a clínica-escola.
Para os clientes, haveria o ganho na agilidade e eficácia do atendimento, já que estudos mostram que intervenções pautadas exclusivamente na orientação de pais têm impacto efetivo sobre a redução de comportamentos inadequados dos filhos e no desenvolvimento de repertórios alternativos (Gallo & Williams, 2010). As duas mães foram selecionadas para receber orientações em conjunto, porque, em primeira análise, a queixa que relatavam sobre seus filhos apresentava topografia distinta, porém indicava funções semelhantes. As mães seriam instrumentalizadas a analisarem funcionalmente os comportamentos dos filhos e seus próprios comportamentos e poderiam servir de modelo e apoio uma a outra neste processo. Fora isto, as orientações recebidas poderiam ser generalizadas e, dessa forma, os ganhos poderiam ser estendidos a outras pessoas do convívio das clientes.
Avaliação inicial
Como avaliação inicial, optou-se pela aplicação do CBCL, por este instrumento: a) ser de fácil aplicação; b) permitir avaliar a percepção da mãe sobre o repertório geral da criança; b) dar indícios do repertório geral da criança; c) fornecer dados quantitativos acerca do comportamento de Bruna, que pudessem ser comparados com dados obtidos no final da intervenção.
Os resultados do CBCL apontaram que os escores para competência social e escolar da avaliada estavam na faixa considerada normal para meninas com idade entre 6 e 11 anos. Já os escores para competência em atividades, que abarcam o tempo e desempenho da criança em esportes, grupos sociais e outras atividades, foram levemente abaixo da faixa normal. Sendo o escore para sua competência total inserido na faixa normal limítrofe (até 40 pontos).
Os escores que se encontravam em faixa limítrofe (entre 65 e 69 pontos) ou faixa clínica (70 pontos ou mais) para as oito síndromes descritas foram: ansiedade/depressão (80 pontos); queixas somáticas (70 pontos); problemas sociais (70 pontos); problemas de pensamento (77 pontos); comportamento agressivo (81 pontos). O Quadro 2 apresenta os comportamentos assinalados pela mãe que integram cada uma dessas síndromes.
Análise funcional
A análise funcional é uma importante ferramenta que descreve relação entre variáveis ambientais e o comportamento. São formulações pautadas nas contingências que podem estar mantendo o comportamento. Sendo assim, realizar uma análise funcional equivale a assumir que os comportamentos foram aprendidos ao longo da história de vida do organismo e foram mantidos aqueles que representaram vantagem adaptativa para o comportamento de acordo com suas consequências. Para uma análise confiável, o comportamento deve ser descrito em termos de operantes, os quais podem ser agrupados em razão de similaridade na função. Além de descrever o comportamento-alvo, devem ser levantados os antecedentes e as consequências que podem incluir reforçadores positivos, negativos e punição.
No caso de Bruna, o comportamento-problema era encoprese que pode ser descrito como evacuações repetidas nas roupas. Segundo os dados coletados na entrevista inicial, reter as fezes foi seguido de muita atenção dos pais - dar banho, secar, dormir juntos, etc - e de ganhos secundários, como permissão para faltar à aula e proteção da avó contra brigas da mãe, conforme ilustrado na Figura 1:
Figura 1 - Clique para ampliar
Estas consequências poderiam funcionar como reforçadores positivos para o comportamento de encoprese. E, se de fato, representassem esta função, dariam indicativos que o ambiente familiar de Bruna estava escasso de reforçadores positivos para comportamentos adequados ou de independência, pois de outra forma, receber atenção dos pais e familiares por evacuar na calcinha poderia não ser uma consequência fortalecedora.
Nota-se que a presença da família era um antecedente que sinalizava a oportunidade de reforço, pois apenas na presença desta variável os comportamentos-problema ocorriam, corroborando a hipótese de a atenção funcionar como um reforçador. Em uma situação na qual uma variável foi acrescentada - ter uma visita na casa - Bruna apresentou um comportamento adequado: ir ao banheiro quando sentiu dor de barriga. Pode-se hipotetizar que este comportamento poderia ser de esquiva, porque poderia evitar críticas de terceiros, vergonha, etc.
Em uma situação na qual o comportamento esperado é emitido, o correto seria apresentar consequências funcionalmente similares àquelas obtidas por meio do comportamento incompatível: evitar defecar no vaso. Ou seja, para que o comportamento de defecar no vaso fosse modelado, os pais deveriam dar atenção contingente ao comportamento de melhora e valorizar por meio de elogios e reconhecimento do esforço da criança. No entanto, observa-se que, pelo contrário, a mãe aumentou o nível de exigência - verbalizando que proibia a filha de fazer cocô na calça novamente, dessa forma, aumentou o custo da resposta e diminuiu a probabilidade de ocorrência da mesma. Ou seja, as consequências foram punitivas, conforme mostra o quadro 3:
Quadro 3 - Clique para ampliar
Estes dados, somados aos dados do CBCL e dados históricos da cliente, permitem uma melhor compreensão do contexto que produz os comportamentos-problema, favorecendo, desta forma, um planejamento mais rápido e eficiente da intervenção.
Os dados do CBCL indicaram alto desempenho social e acadêmico que pode estar relacionado ao alto nível de exigência apresentado e relatado pela mãe. Responder com bom desempenho social e acadêmico pode evitar consequências desagradáveis que poderiam ser apresentadas pela mãe.
Por outro lado, a alta exigência da mãe pode deixar a criança confusa quanto a que repertório é esperado e que tenha alta probabilidade de reforço. Dessa forma, a criança pode apresentar comportamentos de exploração, apresentando repertórios variados, até que algum seja reforçado. Os comportamentos públicos podem ser acompanhados de comportamentos encobertos de ansiedade, que justificariam os altos escores para esta síndrome e para a síndrome problemas de pensamento.
Frente a estes comportamentos exploratórios, podem aparecer comportamentos agressivos, que podem ser entendidos como subprodutos das contingências aversivas. Quando estes comportamentos são seguidos por atenção materna, ainda que sob a forma de críticas, gritos e palmadas, estes comportamentos aumentam de frequência. Tanto pelo reforçamento por meio da atenção, quanto por ser a única classe de respostas que apresenta consequências previsíveis.
Neste sentido, ainda podem ser explicados os problemas somáticos apontados pelo CBCL que se relacionam diretamente com a queixa apresentada pala mãe. Os comportamentos desta classe também apresentam consequências previsíveis e alta probabilidade de reforço social.
Se observada a história de Bruna, é possível identificar alguns eventos que podem ter favorecido o desenvolvimento e agravamento dos comportamentos-problema. A gravidez de Bruna foi planejada, porém a mãe enfrentou diversas dificuldades - o aborto espontâneo da gravidez anterior e a perda de um dos bebês na gravidez de Bruna - que podem ter favorecido que Tereza desenvolvesse um padrão de superproteção e hipervigilância em relação à sua filha, criando condições para que a mesma apresentasse comportamentos de dependência.
A alimentação de Bruna é adequada e poderia dar indícios de que o problema teria causas orgânicas, já que, ainda que a alimentação seja correta, a garota apresenta dificuldades de evacuar. No entanto, suas dificuldades não apresentam causa orgânica, como confirmado por exames que não detectaram variáveis biológicas que pudessem atuar no controle dos comportamentos de encoprese.
Planejamento da intervenção
Estes dados dão subsídios para que o planejamento da intervenção se dê no sentido de aumentar as contingências reforçadoras no contexto de Bruna; diminuir as contingências aversivas e promover na criança repertórios de autoconfiança e autocontrole. Estes repertórios podem ser desenvolvidos se trabalhados com os pais repertórios que promovam estes comportamentos, já que são os pais aqueles que dispõem a maior parte das contingências de reforço na vida de Bruna e estão diretamente envolvidos na manutenção dos repertórios inadequados. Este trabalho pode ser continuado na modalidade de orientação de pais somado a atendimento individual da criança. O quadro abaixo exibe os objetivos inicialmente propostos para a orientação de pais.
Considerações finais
Este trabalhou buscou destacar o uso do CBCL como facilitador da Análise Funcional em caso de encoprese. O instrumento apontou alguns comportamentos-problema que puderam dar indícios dos padrões de comportamento tanto da criança - por meio dos escores - quanto de sua mãe - por meio dos comportamentos apresentados no preenchimento do checklist. Assim, puderam ser levantadas hipóteses acerca das contingências que produziram e que mantiveram os comportamentos-problema, além de indicar alguns comportamentos que deveriam ser melhor investigados.
Vale destacar que, neste trabalho, foram utilizados, além dos dados do CBCL, dados da entrevista inicial e dados de observação dos comportamentos da mãe, pois o clínico deve basear-se não apenas no instrumento de análise escolhido, mas os resultados por meio dele obtidos devem ser somados aos demais dados a fim de proceder uma análise funcional bem fundamentada. Do contrário, o olhar do clínico pode ser restringido e sua análise enviesada.
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Enviado em 10 de Agosto de 2010
Texto reformulado em 22 de Agosto de 2011
Aceite em 11 de Novembro de 2011
Publicado em 31 de Dezembro de 2011
Apoio financeiro: Secretaria do Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI - Paraná)