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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.20 no.1 Ribeirão Preto jun. 2012
ARTIGOS
Em busca de um encontro: o método hermenêutico na pesquisa em Psicologia Social
In search of a meeting: the hermeneutic method in Social Psychology research
En la búsqueda de un encuentro: el método hermenéutico en la investigación en Psicología Social
Belinda Mandelbaum
Universidade de São Paulo - São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
A partir de uma definição do campo da Psicologia Social como lugar no qual não apenas se integram de forma indissolúvel o psíquico e o social, mas as diversas teorias produzidas sobre os homens e a experiência concreta da vida humana, a autora propõe a Hermenêutica como um método de pesquisa nesse campo, que abre a possibilidade de um encontro entre pesquisador e pesquisado no qual conhecimentos novos possam vir a ser gerados. Para tanto, utiliza a noção de círculo hermenêutico, que integra o conhecimento das condições objetivas de produção do campo da pesquisa à compreensão interpretativa das expressões humanas neste campo.
Palavras-chave: Psicologia Social, Pesquisa, Hermenêutica.
ABSTRACT
Starting from a definition of the Social Psychology field as a place where not only the psychic and the social are integrated in an indissoluble way, but also where the various theories produced about men and the concrete experience of human life are integrated, the author proposes Hermeneutics as a method of research in Social Psychology that opens the possibility of an encounter between the researcher and the researched subject in which new knowledge may be produced. For this, she uses the notion of an hermeneutic circle, which integrates the knowledge of the objective conditions of production in each research with the interpretative comprehension of the human expressions in this field.
Keywords: Social Psychology, Research, Hermeneutics.
RESUMEN
A partir de una definición del campo de la Psicología Social como lugar en el cual no sólo se integran de forma indisoluble lo psíquico y lo social, sino las más diversas teorías producidas sobre los hombres y la experiencia concreta de la vida humana, la autora propone la Hermenéutica como un método de investigación en el campo de la Psicología Social, la cual abre la posibilidad de un encuentro ente el investigador y el investigado en el que se pueden generar nuevos conocimientos. Para ello, utiliza la noción de círculo hermenéutico, que aúna el conocimiento de las condiciones objetivas de producción del campo de la investigación a la comprensión interpretativa de las expresiones humanas en dicho campo.
Palabras clave: Psicología Social, Investigación, Hermenéutica.
Toda investigação no campo da Psicologia Social deve ter como referência e preocupação as relações entre o individual e o coletivo, entre o homem e a sociedade, não como entidades separadas que pudessem ser estudas de forma independente pela Psicologia e pela Sociologia, mas como fenômenos cujos aspectos psicológicos e sociológicos, vistos a partir de qualquer uma das diversas teorias desses campos especializados do saber, encontram-se indissociavelmente interligados.
O campo da Psicologia Social é o hífen do psicossocial, lugar no qual se inter-relacionam, nas palavras de Adorno (1950/1986), o homo oeconomicus - que é o resultado da ação das instituições e engrenagens nas quais se suporta e se limita seu intercâmbio com outros homens, em cujo interjogo dá-se o essencial das trocas responsáveis pelo comércio da adaptação - e o homo psychologicus - determinado e agente de uma economia subjetiva que, a partir de Freud e outros seguidores, ressalta as intensidades de uma demanda pulsional, de um além do campo do racional, como parte do comércio essencial do processo de colorir emocionalmente a si mesmo e ao mundo em que se está.
Toda tentativa de fixar este hífen e trabalhar em seu interior permite-nos, segundo a esclarecedora posição de Adorno (1950/1986), fazer uma "sociologia com sociedade" (p. 50), ou seja, levando em consideração o homem e evitando, ao mesmo tempo, o silenciamento das implicações sociais como territórios da presença do acontecer histórico, econômico e cultural. O hífen nos estudos psicossociais significa tanto a irredutibilidade do psicológico ao social (e vice-versa), como a complementaridade entre eles, isto é, a impossibilidade de existir um sem o outro.
Adorno (1950/1986) diz que foi o processo de fragmentação e especialização do conhecimento, próprio dos modos capitalistas de produção, que separou e atomizou os conhecimentos sobre o homem, de um lado, e sobre a sociedade, de outro. A integração entre o psíquico e o social - cujo modelo poderia ser a fita de Moebius1, que integra, sem solução de continuidade, os dois lados - é um aspecto essencial de qualquer estudo desenvolvido no campo da Psicologia Social.
Isto não apenas por estabelecer um modelo teórico que, de forma mais ou menos coerente, consiga abranger e estabelecer conexões necessárias entre os diversos domínios da existência humana e as determinações da vida dos homens, mas porque estabelece um vínculo entre o que seriam as teorias sobre a vida dos homens - as teorias históricas, econômicas, socioculturais, psicológicas, etc. - e a experiência em si da vida humana.
Mais do que vincular interioridades e exterioridades, subjetividades e objetividades, vida psicossexual e processos históricos socioeconômico-culturais, singularidades humanas e histórias coletivas - todas, de algum modo, elaborações teóricas sobre a vida dos homens - a Psicologia Social deve ressaltar o hífen entre todo esse campo teórico, as minuciosas e inumeráveis construções elaboradas em seu interior, e a concretude da vida humana em si, colaborando, deste modo, para que a representação sobre a vida dos homens não se desprenda da situação de vida concreta e ganhe plena autonomia, reduzindo a vida humana à representação, ou a representação dela ao campo de postulados ideacionais que sobre ela e a partir dela são produzidos. Diz Gonçalves Filho (1998):
A Psicologia Social caracteriza-se não pela consideração do indivíduo, pela focalização da subjetividade no homem separado, mas pela exigência de encontrar o homem na cidade, o homem no meio dos homens, a subjetividade como aparição singular, vertical, no campo intersubjetivo e horizontal das experiências.... Trata-se sempre do modo mais ou menos singular por que um homem aparece em companhia de outros. (p. 14)
E ele tem razão, não apenas porque a Psicologia Social estabeleceria as interconexões entre subjetividade e história, a serviço das quais o autor expõe a ideia que citamos, mas porque ressalta a exigência de encontrar o homem, de nos aproximarmos de sua situação de vida concreta. O que estamos procurando ressaltar é que a vida de cada homem posiciona-se diante dos modelos teóricos como a coisa em si diante dos fatos da razão, e devemos levar em consideração que o desenvolvimento dos modelos no campo teórico das Ciências Humanas ganhou uma extensão e também uma fragmentação tão amplas, tanto em sua vertente histórico-sociológica, quanto psicossocial, que o que ameaça nos dias de hoje não é tanto uma extrema "psicologização" do social ou uma "sociologização" da subjetividade, mas o divórcio entre as produções teóricas e a vida concreta dos homens.
Buscando encontrar o homem: o método hermenêutico
Como então encontrar o homem? Como vencer esta distância que separa as teorias sociológicas, econômicas, históricas e culturais ou psicológicas sobre o homem, da experiência em si da vida humana? O presente texto é uma tentativa de refletir, ainda que de modo limitado, sobre os caminhos pelos quais as teorias em Ciências Humanas podem, ou não, encontrar o homem e, no diálogo com ele, conhecê-lo.
No final do século XIX, o filósofo alemão Wilhelm Dilthey2 propôs que não é possível conhecer o homem a partir dos mesmos pressupostos com que trabalham as Ciências Naturais; que as Ciências Humanas, ou do Espírito, como ele dizia, demandavam um método específico de conhecimento, apropriado ao seu objeto, que não funcionaria segundo as mesmas leis que regem os fenômenos naturais. Num contexto de pensamento positivista, ele propunha que este método não se baseasse em qualquer forma de obscurantismo romântico, mas que ganhasse um estatuto de organização e estabilidade, através do qual o estudo do homem e de suas produções pudesse ser legitimamente considerado científico.
Dilthey afirmava que o espírito tinha um sentido social, era um reflexo mimético de um determinado contexto sócio-histórico e, portanto, não poderia ser apreendido como uma realidade desencarnada. Conhecer uma obra do espírito, para ele, seria situá-la em relação a uma certa visão de homem e de mundo de uma época, da qual ela - a obra - seria expressão. Para alcançar esta visão de mundo e de homem, seria necessário interpretar a obra a partir dos signos que esta oferece à captação.
Para Dilthey, enquanto as Ciências da Natureza seriam organizadas em torno de leis de causa e efeito, antecedentes e consequentes, e conhecer um fenômeno seria explicá-lo nos termos dessas leis, o método para o conhecimento do homem e de suas produções seria a compreensão, ou seja, a interpretação dos signos a partir dos quais se expressa a vida humana. Explicar e compreender seriam, para ele, duas maneiras diferentes de pensar e falar sobre as coisas, e a compreensão anunciava uma especificidade das ciências do homem, que deveria buscar não leis de causa e efeito, como dissemos, mas visões de mundo, motivos, intenções, sentidos.
A compreensão é um método de conhecimento que se funda basicamente em nossa capacidade de trasladar-nos a uma vivência psíquica alheia, sobre a base dos signos que o outro oferece à captação, e que incluem o gesto, a palavra falada, o discurso, a obra de arte ou o texto, isto é, todas as inscrições que a realidade humana deixa atrás de si. Todo fenômeno humano é linguagem. E é com nossa humanidade comum - o que de estruturalmente temos em comum em nossa vida psíquica - que captamos, através da linguagem, a humanidade do outro, os sentidos que o mobilizam. A compreensão, portanto, pressupõe uma espécie de fusão entre o sujeito e o objeto do conhecimento: para compreender, precisamos nos colocar no mundo junto com o que está para ser compreendido.
Dilthey propôs a criação de uma psicologia que guiaria a compreensão e buscou codificar esta prática, uma vez que só se poderia falar de ciências do homem se estas se erigissem como um verdadeiro saber que conservaria sua marca de origem na compreensão dos signos, mas que, a partir da compreensão, se organizasse como um método de conhecimento. Toda compreensão é uma interpretação, uma leitura do mundo que diz respeito ao nosso modo de estar nele. As palavras e gestos, os signos de forma geral, já são interpretações que dizem respeito ao nosso modo de estar no mundo. A vida se expressa em signos e, assim, se interpreta a si mesma. Mas, para que pudesse se tornar ciência, para Dilthey, era necessário buscar codificar e sistematizar a prática interpretativa.
A hermenêutica, isto é, a ciência da interpretação, como prática sistemática de desvelamento de sentidos, tem origem na exegese bíblica, no desenvolvimento de um enquadre teórico e de um método que dirige essa prática, realizada em séculos de leituras e discussões dos textos sagrados. Nos séculos XVIII e XIX, a hermenêutica amplia-se para a interpretação de textos em geral, em busca de uma boa prática interpretativa.
Para o filósofo e hermeneuta alemão Gadamer (1960/1997), o modelo básico do método compreensivo é o diálogo, quando este envolve uma troca entre parceiros que buscam concordância sobre algum assunto. Mas, para que este diálogo possa constituir-se como um método de conhecimento compreensivo entre os homens, seria necessário que nenhum dos parceiros tivesse controle sobre o intercâmbio, que seria determinado, guiado, pelo próprio tema em questão.
O processo de compreensão dialógico assim estabelecido permitiria a formação de uma linguagem comum, mediada pelas regras linguísticas compartilhadas e construídas a partir de sentidos compartilhados. Neste sentido, a compreensão é um método interpretativo de conhecimento que envolve necessária e indissociavelmente o familiar e o alheio e obriga o traslado de um ao outro. Da mesma forma, para Gadamer (1960/1997), compreender um texto seria estabelecer uma comunicação entre a alma do autor e a alma do leitor, uma espécie de comunhão semelhante à que ocorre no diálogo em presença um do outro.
A hermenêutica na pesquisa em Psicologia Social
Podemos agora nos perguntar, guiados pelo objetivo de nossa reflexão, quais são as condições que possibilitam que este diálogo entre parceiros se constitua como método de conhecimento em Ciências Humanas em geral, e em Psicologia Social em particular, uma vez que, como propõe Gadamer (1960/1997), nenhum dos dois deve ter controle do intercâmbio. É possível que entre pesquisador e pesquisado, entre o sujeito do conhecimento e aquele que se quer conhecer, estabeleça-se um diálogo que seja uma conversa entre parceiros, em pé de igualdade em relação ao controle do intercâmbio?
Gonçalves Filho (1998) diz que esta conversa, capaz de revelar sentidos novos, até então desconhecidos, é possível na pesquisa apenas quando se estabelece entre os parceiros uma relação de amizade, que é relação entre iguais. Ou quando concebemos, como diz Bosi (1973/1987) em Memória e sociedade: lembranças de velhos, que entre os interlocutores há o que ela chama de comunidade de destinos, ou seja, que estes partilham não apenas de um destino comum a todos os homens - o envelhecimento e a morte - mas de uma humanidade com a qual podem compreender, cada um, a humanidade do outro, colocar-se em seu lugar.
O sociólogo Pierre Bourdieu (1993/1999), em sua exposição sobre o método de pesquisa utilizado no livro A miséria do mundo3, recomenda que a conversa seja feita entre pessoas que, ainda que em posições diferentes dadas pela própria situação de pesquisa, tenham, por uma história de convívio, identificação ou afinidade, diminuídas as distâncias que as separam. Assim, por exemplo, numa pesquisa com jovens negros no Harlem, em Nova Iorque, ele treinou jovens negros como entrevistadores.
Mas esta recomendação, segundo Bourdieu (1993/1999), não é suficiente. O trabalho fundamental com a desigualdade que ele propõe necessária para de algum modo superá-la, em direção à igualdade, é a inclusão das determinações estruturantes do campo que se constitui a partir da conversa em seu próprio interior, num movimento permanente de "reflexividade reflexa", como ele o nomeou, para explicitar o debruçar-se da relação intersubjetiva sobre si mesma, a fim de pensar, num movimento contínuo entre os parceiros, suas próprias determinações sociais, culturais e psicológicas.
A dialética entre igualdade e desigualdade, o esforço do diálogo igualitário entre pessoas que as estruturas sociais e psicológicas diferenciam e separam, está no cerne de grande parte dos trabalhos de pesquisa realizados no campo da Psicologia Social, em especial, evidentemente, quando envolvem o contato entre pesquisador e pesquisado em situações de entrevistas que vão desde os questionários fechados até os diálogos abertos em torno de temas de interesse. Constitui-se num enorme desafio que o encontro entre pesquisador e pesquisado seja um diálogo entre parceiros do qual emerja uma compreensão verdadeira e original, dado que é antes um encontro entre capitais culturais, simbólicos, linguísticos muito diferentes, que reproduz a desigualdade social numa relação que tende muito facilmente a eivar-se de poder e submissão, em função de tudo o que determina e engloba o que acontece nesse encontro que nós chamamos de entrevista.
Entrevista: uma vista entre, uma visão que se faz entre dois. Mas, na realidade, se assim pudermos nos expressar, acompanhando, para tanto, o pensamento de Canetti (1960/1981) num capítulo de seu livro Massa e poder que tem por título "Pergunta e resposta", talvez baste dizer, para por em suspensão a ideia da entrevista como conversa que se realiza entre dois como numa parceria de iguais, que toda pergunta já é em si instrumento de poder, uma vez que obriga o outro a dar uma resposta. Acho que vale a pena citar alguns trechos de Canetti, implacável em sua análise do ato de perguntar e responder. Ele diz:
Todo perguntar é incursionar. Quando a pergunta se pratica como meio do poder, corta como uma navalha no corpo do interrogado. Já se sabe o que se pode encontrar. Mas se quer encontrar e tocar realmente. Com a segurança de um cirurgião se penetra nos órgãos internos. O cirurgião mantém viva a sua vítima para averiguar coisas mais precisas acerca dela .... A pergunta, que no final das contas é uma espécie de dissecção, começa com um tateio. O contato se intensifica e chega a diferentes áreas. Onde encontra pouca resistência, penetra. Ela irrita determinadas zonas para saber algo mais seguro acerca de outras.... As perguntas buscam respostas [e] não apenas retêm o inquirido externamente. Com cada resposta ele mostra uma parte mais de si. Podem ser coisas sem importância, superficiais, mas lhe foram extraídas por um desconhecido. Estão relacionadas com outras que jazem mais ocultas e que ele considera mais importantes. O desgosto que experimenta não tarda em tornar-se desconfiança (pp. 280-281, tradução nossa)
A partir desta reflexão, podemos pensar que, numa conversa em que a um é dado perguntar e ao outro responder, não há propriamente pesquisa, produção de conhecimento novo, construção intersubjetiva do qual nenhum dos parceiros teria controle, porque já se sabe o que se quer encontrar. O outro é irritado até confirmar o que já se sabe, reforçando, portanto, o poder de um, o inquiridor ˗ que "quer encontrar e tocar realmente" ˗ sobre o outro. Canetti (1960/1981) continua, mais adiante:
O efeito das perguntas é realçar o sentimento de poder do interrogador. Dá-lhe vontade de fazê-las mais e mais. Quem responde se submete tanto mais quanto mais cede às perguntas. A liberdade da pessoa reside em boa parte em defender-se das perguntas. A tirania mais exigente é a que permite fazer a pergunta mais exigente. É sensata uma resposta que põe fim às perguntas ...
Também em circunstâncias ordinárias, a resposta aprisiona o interrogado. Ele já não pode abandoná-la. A resposta obriga-o a situar-se em determinado lugar e permanecer nele, enquanto o interrogador pode apontar desde qualquer ângulo. De certo modo contorna o interrogado e escolhe a posição que mais lhe convém. Pode rondar em torno dele, surpreendê-lo ou confundi-lo. A mudança de posição confere-lhe uma espécie de liberdade que o interrogado não pode ter. "Quem é você?" "Sou fulano". Já foi privado da possibilidade de escapar por metamorfose. (pp. 281-282, tradução nossa)
E mais adiante Canetti (1960/1981), seguindo o método etnográfico de investigação dos mecanismos de poder em diferentes sociedades, confere uma espécie de ancestralidade à situação de perguntar e responder:
Interessaria saber se é concebível uma situação arcaica, que tenha existido antes da pergunta em forma de palavras, e fosse equivalente a esta. Esta situação arcaica efetivamente existiu. É o vacilante contato com a presa. Quem é você? Pode-se te comer? O animal, interminavelmente em busca de alimento, toca e cheira tudo o que encontra. Mete seu focinho em toda parte: pode-se te comer? Que gosto tens? A resposta é um odor, uma contrapressão, uma rigidez inerte. Mediante o cheirar e o tocar o animal familiariza-se com a presa ou, traduzido aos nossos costumes humanos, a nomeia. (pp. 282-283, tradução nossa)
A situação desigual entre o pesquisador e o pesquisado é, na maior parte das vezes, fundante do campo no qual a entrevista tende a desenrolar-se, de todas as formas: no que é dito e no que não pode ser dito, nos gestos e olhares, na forma de apresentação de cada um dos interlocutores, nas emoções e sensações mobilizadas. No livro Operário, operária, Rodrigues (1978), inspirada em Bourdieu, faz um relato dos bastidores de sua pesquisa com operários e operárias pobres da cidade de São Paulo, mostrando todas as dificuldades que encontrou na pesquisa e como, particularmente, detalhes aparentemente insignificantes e pouco descritos em boa parte das pesquisas em Psicologia Social, como a roupa do pesquisador, o carro com que ele chega à casa de seu entrevistado, a linguagem utilizada, determinam os rumos da conversa, constituindo por si só o cenário da desigualdade a que os operários de longa data aprenderam a se submeter.
Por todas estas determinações que constituem o campo da relação intersubjetiva mobilizada na pesquisa, é difícil para todos nós realizar entrevistas nas condições que sugere Gadamer (1960/1997), e das quais falam Gonçalves Filho (1998) e Bosi (1973/1987). Mas, como dizíamos anteriormente, é com nossa humanidade, porque partilhamos destinos comuns, que é possível ainda assim deixar surgir e levar em consideração o que o outro tem a dizer. Nas palavras de Merleau-Ponty (1960/1980): "Método singular: trata-se de aprender a ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro" (p. 200). Pode parecer simples, mas não é. É um diálogo entre alteridades que envolve o reconhecimento de distâncias e proximidades.
Nós, pesquisadores, muitas vezes premidos por dar conta de um roteiro de perguntas, ou por algum conhecimento a priori, perdemos as respostas, mal as escutamos, muito menos refletimos sobre elas para, a partir do que é dito, formular novas questões ou novos pontos de vista para a continuidade da conversa, para construir junto com o entrevistado um conhecimento novo, que emerja do campo relacional criado pelo encontro. A entrevista, ao contrário, pode tornar-se quase que um procedimento burocrático. Para reforçar o que estou dizendo, cito ainda Bourdieu (1993/1999), num subitem de seu capítulo "Compreender", de A miséria do mundo, que tem o sugestivo nome de "A imposição". Lá ele diz:
Algumas vezes é surpreendente que os pesquisados possam ter tanta boa vontade e complacência para responder a perguntas tão absurdas, arbitrárias ou deslocadas como tantas daquelas que lhes são frequentemente "administradas".... Isto posto, é suficiente ter feito uma única entrevista para saber a que ponto é difícil concentrar continuamente sua atenção no que está sendo dito (e não somente nas palavras) e antecipar as perguntas capazes de se inscreverem "naturalmente" na continuidade da conversação, seguindo uma espécie de "linha" teórica. Isto quer dizer que ninguém está livre do efeito de imposição que as perguntas ingenuamente egocêntricas, ou simplesmente desatentas, podem exercer e, sobretudo, livre do efeito contrário que as respostas assim extorquidas correm o risco de produzir no analista, sempre disposto a levar a sério, na sua interpretação, um artefato que ele mesmo produziu sem o saber. (p. 696)
Bourdieu (1993/1999) propõe que esta não seja uma reflexão solitária do pesquisador, mas que as diferenças entre os capitais culturais e linguísticos, dentre outros que determinam os limites e possibilidades do campo criado pela situação de entrevista, sejam incluídos como matéria de conversa, debruçando-se assim a pesquisa sobre si mesma, em busca da explicitação das determinações que lhe dão sentido. O autor faz da distância um desafio a ser superado, e a superação deste o melhor sinal da produção de um conhecimento novo. De outro modo, como puro exercício de poder, o entrevistador obterá as respostas que o entrevistado supõe que ele deseja ˗ aquelas, segundo Bourdieu, produzidas pelo seu próprio artefato de extorsão.
Bourdieu (1993/1999) ressalta ainda que, no diálogo entre pesquisador e pesquisado, é necessário que se estabeleça uma espécie de relação triangular ˗ não dual ˗ através da qual possam comunicar-se não apenas os sujeitos implicados, mas o conhecimento de cada um deles sobre as determinações do campo sócio-histórico-cultural no qual o diálogo se faz. Trata-se de uma postura que
associa a disponibilidade total em relação à pessoa interrogada, a submissão à singularidade de sua história particular, que pode conduzir, por uma espécie de mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua linguagem e a entrar em seus pontos de vista, em seus sentimentos, em seus pensamentos, com a construção metódica, forte, do conhecimento das condições objetivas, comuns a toda uma categoria (p. 695).
Assim, nem fusão afetiva entre pesquisador e pesquisado ˗ que anularia em indiferenciação os diversos e diferentes capitais de que são ambos portadores (capitais sociais, simbólicos, linguísticos) ˗ nem fusão entre pesquisador e conhecimento teórico ˗ que impediria a abertura para ouvir o que um pesquisado singular, a partir de uma história de vida singular e de sua singular forma de estar no mundo ˗ tem a dizer. A reflexão contínua, no decorrer do próprio processo da entrevista, nunca deve perder de vista estes termos em relação: a realidade do pesquisador e do pesquisado, que trazem para esse diálogo um conjunto de saberes específicos que não devem dissolver-se no contato que estabelecem.
Neste sentido, poderíamos arriscar dizer que a boa situação de pesquisa assenta-se sobre uma estrutura edípica: não se fundir, seja na vivência com o entrevistado ou com os conhecimentos teóricos, é manter um permanente diálogo interno do qual pesquisador, pesquisado e teoria - o conhecimento das condições objetivas, no dizer de Bourdieu - fazem parte, sem que qualquer um dos termos anule o outro. Parte disto é a prática, que encontramos na edição das entrevistas por Bourdieu e seus colaboradores, de situá-las e situar cada entrevistado em seu contexto social e histórico, para evitar o que ele chama de desvios de sentido produzidos pela leitura, porque o leitor também corre o risco de esquecer-se das determinações a partir das quais cada entrevistado diz o que diz e, neste esquecimento, interpretar as falas a partir de seus próprios contextos de leitura.
Penso que seja neste mesmo sentido que Ricoeur (1986) retoma a dicotomia estabelecida por Dilthey entre explicar e compreender, para perguntar-se se há uma continuidade entre as ciências naturais e as ciências do homem, ou há entre elas de fato um corte epistemológico. E ele conclui que explicar e compreender não são métodos opostos e excludentes para conhecer as produções humanas, mas momentos relativos de um processo complexo que se pode chamar de interpretação. A explicação informa a compreensão, ao indicar os determinantes estruturais que se expressam nos signos que se oferecem à compreensão.
Ricoeur (1986) utiliza a noção de círculo hermenêutico para integrar dialeticamente o explicar e o compreender. De um lado, faz-se necessário relacionar as ações e falas humanas aos seus determinantes sociais e históricos, à realidade objetiva de sua produção. A realidade histórica oferece a moldura dentro de cujos limites as manifestações humanas se tornam possíveis. É neste sentido que as explica. Mas isto não é suficiente para uma interpretação correta. Junto à pesquisa das determinações, e em diálogo com elas, é preciso fazer o exercício do traslado a uma vivência psíquica que nos é alheia, colocando-nos no mundo, como dissemos antes, junto com o que está para ser compreendido.
Bourdieu (1993/1999) diz que é preciso que façamos o esforço de colocar-nos no lugar do outro até o ponto em que possamos imaginar que, se estivéssemos em seu lugar, faríamos o mesmo. O fenômeno humano se situa entre uma causalidade que reclama ser explicada e uma motivação que reclama ser compreendida. Estes dois exercícios, o da explicação e o da compreensão, exigem rigor e sensibilidade, uma escuta informada cuja construção é o desafio contínuo do pesquisador.
Referências
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Bosi, E. (1973-1987). Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz. [ Links ]
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Canetti, E. (1960-1981). Masa y poder. Barcelona: Muchnik Editores. [ Links ]
Frosh, S., & Baraitser, L. (2008). Psychoanalysis and Psychosocial Studies. Psychoanalysis, Culture and Society, 13,346-365. [ Links ]
Gadamer, H-G. (1960-1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica (3a. Ed). Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Gonçalves Filho, J. M. (1998). Humilhação Social - um Problema Político em Psicologia. Revista Psicologia USP, 9(2),11-67. [ Links ]
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Ricoeur, P. (1986). Del texto a la acción. Ensayos de hermenêutica II. México: Fondo de Cultura Economica. [ Links ]
Rodrigues, A. M. Operário, operária: estudo exploratório sobre o operariado industrial da Grande São Paulo. São Paulo: Símbolo. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Av. Prof. Mello Moraes, 1721 Bloco A, Cidade Universitária
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Tel: (11)3091-4184. Fax: (11)3091-4460
E-mail: belmande@usp.br
Recebido em 20 de Junho de 2011
Texto reformulado em 05 de Fevereiro de 2012
Aceite em 13 de Fevereiro de 2012
Publicado 30 em Junho de 2012
Sobre a autora:
Belinda Mandelbaum - Professora Associada do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Instituto de Psicologia, USP.
1 Diversos autores no campo da Psicologia Social têm se utilizado da fita de Moebius como imagem expressiva da integração entre o psíquico e o social. Ver, por exemplo, Frosh e Baraitser (2008).
2 O pensamento de Wilhelm Dilthey, tal como aqui exposto, foi extraído da obra de Paul Ricoeur (1986).
3 A miséria do mundo é um livro organizado por Pierre Bourdieu (1993) a partir do trabalho de um grupo de sociólogos que, sob sua coordenação, realizou entrevistas com pessoas que, na França, vivem o que ele chamou de "pequenas misérias", nomeando assim as mazelas do confronto cotidiano na vida social com condições tão adversas como a moradia em conjuntos habitacionais onde o convívio obriga a aproximar o que tudo o mais separa - as diferenças de origem, de etnia, de línguas e costumes; o trabalho insano e ameaçado; a falta dele; e a educação em instituições que mais violentam do ensinam. A ideia de Bourdieu e seu grupo foi a de dar voz a essas pessoas e registrar suas falas.