Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.41 no.41 Rio de Jeneiro jul./dez. 2019
ARTIGOS
O desejo de viver e a transmissão do saber: perspectivas psicanalítica e filosófica
The desire to live and the transmission of knowledge: psychoanalytic and philosophical perspectives
Débora Passos de OliveiraI*; Maria Celina Peixoto LimaI**; Carolina Carrah ColaresI***
IUniversidade de Fortaleza - UNIFOR - Brasil
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo abordar a questão da transmissão do saber na atualidade. Partimos da constatação do alto índice de suicídios cometidos entre os jovens para demonstrar que esse fato não é contingencial, mas trata-se de um fracasso estrutural da sociedade moderna como um todo, sobretudo no que diz respeito ao que Freud entendia como desejo de viver. Diante disso, relacionamos o desejo de viver com a questão da transmissão. A partir daí, procuramos relacionar a transmissão a partir de quatro perspectivas centrais: o sujeito, a educação, a tradição e a história ou o tempo. Para nossa compreensão, a transmissão envolve mais do que um método específico de passagem de conteúdo, mas implica a transmissão do saber que só pode ser pensado como desejo. Por isso, cada perspectiva central será abordada a partir de pensadores específicos. Freud para tratar da questão da transmissão no sujeito. Rancière para pensar a transmissão na educação. Benjamin para tratar da transmissão na tradição. E Agamben para abordá-la segundo o tempo e a história. Defendemos que o suicídio em nossos tempos só pode ser abordado com eficácia se o tratarmos como sintoma estrutural do fracasso na transmissão do saber.
Palavras-chave: Transmissão, Sujeito, Educação, Tradição, Tempo.
ABSTRACT
This article aims at addressing the issue of the transmission of knowledge at the present time. We start from the high suicide rate among young people to demonstrate that this fact is not contingent, but it is a structural failure of modern society as a whole, especially in what Freud understood as a desire to live. Facing this, we relate the desire to live with the issue of transmission. From there, we try to relate the transmission as from four central perspectives: the subject, the education, the tradition and the history or the time. To our understanding, transmission involves more than a specific method of passage of the content, but implies the transmission of knowledge that can only be thought of as desire. Therefore, each central perspective will be approached by a specific thinker. Freud to deal with the issue of transmission in the subject. Rancière to think about transmission in education. Benjamin to deal with transmission in tradition. And Agamben to approach it according to time and history. We argue that suicide in our times can only be approached effectively if we treat it as a structural symptom of failure to transmit knowledge.
Keywords: Transmission, Subject, Education, Tradition, Time.
Introdução
Em uma coluna para jornal El País, de junho de 2018, a escritora Eliane Brum analisa os altos números de suicídios entre jovens no Brasil e no mundo. A análise ganha relevância após o marcante episódio em uma escola privada em São Paulo, onde dois alunos cometeram suicídio em um espaço de menos de um mês. A partir de dados da Organização Mundial de Saúde, a autora aponta o suicídio como a segunda maior causa de morte entre adolescentes. Diante disso, ela nos apresenta a pergunta que constantemente aparece nessas discussões: o que faz com que mais jovens cometam suicídio hoje? Ou seja, inseridos em uma realidade cada vez mais caótica, como os jovens poderiam se orientar nesse contexto e, mais grave, como conseguiriam "encontrar sentidos diante do desespero"? (BRUM, 2018)
Uma resposta possível seria através da transmissão da experiência passada pelos mais velhos, que serviria, em tese, como uma espécie de amparo para a geração mais nova, capturando-a pelos sonhos, desejos e vontades consolidadas na e pela tradição. Tal movimento permitiria aos jovens uma inserção no campo do desejo. Contudo, as coisas hoje ganham um contorno inaudito. Aparentemente, a geração mais velha, que deveria servir como base de experiência e sentido, sente-se tão descrente com o presente, e angustiada com o futuro, quanto se sente a geração dos mais jovens. Ora, sem a referência daqueles que supostamente seriam responsáveis pela transmissão da tradição, a questão urgente de nossos tempos é: como é possível, pensando no processo de emancipação, efetuar passagem de uma geração a outra? Ou ainda: como compensar em nossa sociedade "sem gravidade"1 os rituais de iniciação, tão presentes nas ditas sociedades pré-modernas, que exprimem esse momento de transição pelo qual a geração mais velha dá lugar à geração seguinte? O que pôr no lugar? Estaremos fadados ao puro desencantamento da vida, presos à pura horizontalidade homogênea das gerações, e desprovidos de memória ou densidade significativa que sirva de matiz à existência? São, basicamente, essas as questões que nos nortearão.
O artigo procura investigar essas questões a partir de um único fio condutor, mas que ao longo do texto vai tecendo diferentes perspectivas a partir de diferentes pensadores. A ideia central é ampliar o campo da discussão articulando autores que foram capazes de compreender com profundidade a temáti ca da transmissão, mas sem desconsiderar as condições objetivas e determinantes de nossa era moderna. O eixo fundamental de nosso trabalho é, portanto, a questão da transmissão, e mais especificamente, a transmissão do saber. Acreditamos que a atualidade apresenta uma grave crise relativa à questão da transmissão do saber. Cumpre afirmar que transmissão do saber não coincide com transmissão de conhecimento, ou transmissão de conteúdo. Melhor dizendo, transmissão do saber não implica a transmissão de um conteúdo dado e objetivo, mas sim a transmissão da própria forma que põe em marcha o curso da tradição. Logo, pensar numa transmissão do saber envolve mais do que um método específico para transmissão de conhecimento. Envolve uma reflexão mais aguda sobre temas como sujeito, educação, tradição e tempo/história. Estes são, portanto, nosso guia temático.
Todos esses temas - sujeito, educação, tradição e tempo/história - serão atravessados por uma questão principal: a transmissão não se dá segundo a perspectiva platônica de um mundo ideal e perfeito que serve de modelo para uma realidade menos perfeita e incompleta. Na verdade, a transmissão se realiza através de um modelo incompleto e imperfeito, e somente nessas condições é que tanto o sujeito, a educação, a tradição e a história tornam-se possíveis de serem efetivamente abordados na modernidade. Essa é a razão pela qual resolvemos abordar esses quatro tópicos a partir de quatro autores que, apesar de divergentes em vários aspectos, partem, de forma unânime, do mesmo ponto, a saber: que a transmissão do saber é a transmissão da forma, e não do conteúdo. Isso significa que a transmissão do saber envolve, antes de tudo, um desejo de transmissão, cujo sentido só pode ser abordado a partir de sua forma, e não de seu conteúdo.
Dessa maneira, no campo do sujeito, Freud articula a ideia de transmissão com base no romance familiar e no processo de identificação subjetiva, como formação da fantasia. No campo da educação, Jacques Rancière apresenta o modelo pedagógico de Jacotot a partir da figura do mestre ignorante, ou seja, da transmissão do saber como potência de tradução. No que concerne à ideia de tradição, Walter Benjamin demonstra, mediante a ideia de experiência e narração, como a tradição se mantém viva a partir da perspectiva de sua própria ruína. E por fim, com Giorgio Agamben e seu conceito de tempo e história, fica claro que a transmissão entre gerações só pode ocorrer através da tensão entre diacronia e sincronia, ou seja, na transmissão de um significante puro do tempo e da história, e não do conteúdo acumulativo da tradição.
Todavia, nosso trabalho se inicia com uma reflexão sobre a ideia do absurdo em Albert Camus. Isso porque foi o pensador franco-argelino quem inseriu o absurdo da vida e, consequentemente, o tema do suicídio, como questão fundamental da existência humana. Partimos, portanto, do suicídio em Camus para alcançar o desejo de viver em Freud. Porém, tal deslocamento não pressupõe uma dicotomia entre o absurdo e o desejo de viver. A passagem não é semântica, mas topológica. Em outras palavras, a diferença entre o suicídio e o desejo de viver é que, enquanto Camus preocupa-se com o problema da existência e sua falta de sentido, Freud aloja o problema do absurdo no próprio cerne da formação subjetiva. Ou seja, não é contrapondo o suicídio à vida que atingiremos o cerne da delicada questão que assola nossos jovens. O suicídio só pode ser efetivamente problematizado se inserirmos o absurdo da vida como condição da própria vida. Essa é a razão pela qual associamos Freud, Rancière, Benjamin e Agamben numa mesma linha discursiva.
Existência, sentido e absurdo
É comum a impressão de que há em nossos tempos um vazio irredutível relativo à perda da experiência, cujo quadro, de alguma forma, justifica o cansaço generalizado da vida como um todo. No célebre O amor nos tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, nos defrontamos no início com a chegada do Doutor Urbino à casa de seu amigo, Jeremiah de Saint-Amour, que havia infligido a morte a si mesmo. Posteriormente, temos a explicação para o ocorrido: Jeremiah "(...) havia sucumbido à sedimentação do desencanto" (MÁRQUEZ, 1993, p. 15). Gostaríamos de frisar essa bela expressão de García Márquez: sedimentação do desencanto. É em torno dela que estamos conduzindo nossa reflexão. O eu passado de Jeremiah reverberava no seu eu presente em forma de decepções, impedindo-o de manter ilusões que o ajudariam a confiar em um futuro mais favorável. O personagem de García Márquez, ao se suicidar, tinha "se posto a salvo dos tormentos da memória" (Id., ibid., p. 9). Eis, portanto, a questão crucial: nossos jovens, na iminência constante de sucumbir a essa sedimentação do desencanto, se poriam igualmente a salvo dos tormentos da memória?
Se a busca de sentido é um fator elementar da condição humana, a ausência de sentido, que acompanha como uma sombra a própria busca, corresponde à fonte de nosso desespero. O suicídio, como solução radical diante da situação de tormento, é o tema central de Albert Camus (2013) em seu o clássico O mito de Sísifo. No início da obra, nos deparamos com uma história análoga à de Jeremiah de Saint-Amour. Um homem que, atormentado pela perda da filha, comete suicídio. A ideia de Camus é que o suicídio precisa ser compreendido a partir da imanência das histórias individuais, e não a partir do social. Em suas palavras: "[...] a sociedade não tem muito a ver com esses começos. O verme se encontra no coração do homem. Lá é que se deve procurar" (CAMUS, 2013, p. 20). Para o autor, diante da ausência de sentido, cada um de nós precisa encontrar uma saída. Segue mais adiante: "Um gesto desses se prepara no silêncio do coração, da mesma maneira que uma grande obra" (loc. cit.). Mas entender a presença do verme no coração dos homens também implica pensar que as construções em sociedade, ou melhor, a transmissão da tradição, tem de revelar as vicissitudes de tal destino demoníaco.
Camus nomeia tal contraste de absurdo ou sentimento do absurdo. Mais especificamente, o suicídio seria uma confissão. Seria uma declaração de que "fomos superados pela vida ou que não a entendemos" (Id., ibid., p. 21). Para o homem, um mundo familiar é uma "[...] exigência de familiaridade, apetite de clareza. Compreender o mundo para o homem é reduzi-lo ao humano, marcá-lo com seu selo" (Id., ibid., p. 30). Já o tormento aparece como amostra de uma lacuna de significação plena da existência, impulsionando o sujeito a buscar sentido e compreensão. Ainda que vacilante, o entendimento do mundo e da vida ampara o sujeito no interior de uma realidade minimamente descoberta. Do contrário, sem explicações, o sujeito perderia o sentimento de pertencimento. Nas palavras do autor:
Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida (Id., ibid., p. 21).
A questão principal para Camus não é, porém, engajar-se obstinadamente numa busca frenética por sentido a fim de penetrar numa dimensão familiar, benevolente e acolhedora. O filósofo existencialista reconhece que essa é uma medida ineficaz contra o absurdo da vida, e, o que é pior, a condição de seu próprio padecimento. O que está em jogo para ele é a temática desse absurdo em sua raiz mais profunda para extrair daí a contradição inerente à própria existência. É, por assim dizer, o fim da idade da inocência. Com Camus, a existência em si é o próprio absurdo e, como tal, o vazio absoluto de sentido. Por isso, para o autor, ou bem o suicídio é o tema fundamental da filosofia, ou esta não tem sentido algum.
Deparamo-nos, pois, com um problema específico da nossa era, mas com o qual não fazemos a menor ideia de como lidar: o problema, posto pelos existencialistas, sobre a ausência de fundamento (ou essência) da vida e da existência. Todavia, ainda que este seja um tema que, de um modo ou de outro, percorrerá o presente texto, nossa reflexão visa situar a contradição camusiana da existência em outro campo. Não propriamente no campo da existência, como faz Camus, mas no campo do psiquismo, como faz Freud. O mérito de Freud é, portanto, ter inserido o absurdo da existência como condição constituinte da própria subjetividade.
Identidade como desidentificação
No seu breve ensaio, Romance familiar, de 1909, Freud assinala que os avanços de um determinado arranjo social estariam necessariamente relacionados à oposição entre as gerações de pais e de filhos. Ou seja, é tarefa de cada nova geração suplantar a autoridade que a precede, consolidando, desse modo, uma identidade autêntica. Nas palavras de Freud: "desprender-se da autoridade dos pais é uma das realizações mais necessárias e também mais dolorosas do indivíduo [...] de fato, o progresso da sociedade baseia-se nessa oposição" (FREUD, 1909/2007, p. 420). Com base nisso, podemos presumir que os impasses na transmissão, segundo Freud, não se encontram assegurados pelo estabelecimento de uma identidade construída e propagada pela transmissão da tradição. Mas sim pela perda da familiaridade em prol da construção de um novo universo de sentido. No fundo, é como se cada um tivesse de criar uma ficção de si mesmo.
Com efeito, os indivíduos não reconhecem mais o seu lugar no seio familiar. Isso provoca um efeito de estranhamento (Unheimlich ) inerente ao próprio processo de subjetivação, de maneira que o indivíduo, completamente mergulhado numa densa rede de conflitos, passa a pôr em dúvida o lugar de sua própria filiação. Diz Freud: "A imaginação da criança se dedica à tarefa de livrar-se dos pais menosprezados e substituí-los por outros" (FREUD, 1909/2007, p. 424). A dúvida neurótica em relação a sua origem põe, assim, em movimento a construção de um romance individual que tentaria arrematar os furos desta origem e restituir um novo lugar para si, previamente marcado pela própria experiência em comum. Sendo assim, precisamos compreender a construção do romance, em Freud, como a exigência de familiaridade trazida por Camus. Mas com uma diferença essencial: o processo de familiarização em Freud, decorrente do processo de identificação no romance familiar, é marcado desde sempre pelo desamparo.
Em tese, o romance familiar consiste numa articulação fantasiosa elaborada pela criança para recobrir uma falha percebida nos seus progenitores. Com isso, a criança passa a fantasiar uma plenitude perdida, "em que o pai lhe parecia o homem mais forte e mais nobre, e a mãe, a mulher mais bela e adorável" (FREUD, 1909/2007, p. 424). Portanto, o romance familiar, embora preconize a destituição das figuras de autoridade, não consiste na infidelidade e ingratidão por parte da criança. O que está em jogo é, antes, uma reconstrução fantasística a partir dos modelos reais e incompletos. Quer dizer, é com base numa incompletude intrínseca ao modelo de seus progenitores que a criança "cria" o ideal de pais que ela almeja. Diz Freud (1909/2007, p. 424): "a criança não elimina propriamente o pai, e sim o eleva".
Percebemos, portanto, que Freud opera uma inversão bastante original. As construções romanescas passam a ser não construções inspiradas em modelos ideais absolutos, mas construções ideais pautadas em modelos incompletos e falhos. Ou seja, o que vem antes não é, como poderia sugerir uma visão utópica, a totalidade ideal a partir da qual surgem as cópias imperfeitas, mas o contrário: é a incompletude do original que permite a construção de uma totalidade ideal. A subjetivação se constitui, portanto, a partir da tentativa de superação dessa incompletude do original. Vale dizer, nesse contexto, que a repetição sintomática do sujeito neurótico representa o esforço da subjetividade em manter intocada essa cena fantasística. Sem ela, não só o ideal dos pais se desfaz, mas também o próprio indivíduo que fora constituído sobre essa ficção.
Cabe, no entanto, compreender melhor o papel que a fantasia cumpre no pensamento psicanalítico, sobretudo após as contribuições teóricas de Jacques Lacan. Antes de tudo, é preciso deixar claro que Lacan não articula dois momentos diferenciados da fantasia, um de identificação e outro de desidentificação subjetiva. Ou seja, não se trata de pensar uma desidentificação para além dos protocolos de identificação que constituem a identidade do sujeito. Logo, o que ele denomina de travessia da fantasia não significa um para além da fantasia no sentido de uma ruptura com o cerne da identidade e uma passagem para uma dimensão pós-fantasmática. O que está em jogo na travessia da fantasia é apenas uma identificação plena e irrestrita com o núcleo que estrutura a própria fantasia subjetiva. Nesse sentido, atravessar a fantasia é consumar as palavras de Goethe em Fausto - citadas por Freud em Totem e tabu: "Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu". Sabemos, contudo, que o que é herdado não é o conteúdo substancial inalterado do passado que atravessa gerações, mas os restos e migalhas desse passado. Nesse sentido, como diz Richard Boothby (2001, p. 275-276): "Atravessar a fantasia, no sentido lacaniano, é ser mais profundamente solicitado pela fantasia do que antes, no sentido de ser levado para uma relação ainda mais íntima com o verdadeiro núcleo da fantasia que transcende as imagens". Em uma palavra, a travessia da fantasia é o reconhecimento do indivíduo com o seu nome próprio, isto é, com a marca da diferença que serve como esteio da identidade.
Lembremos, então, que, para Freud, o elo social se realiza a partir da oposição entre gerações de pais e de filhos, e não há progresso fora desse conflito. Isso nos possibilita concluir que a transmissão da herança da tradição, na qual os filhos procuram superar seus progenitores, não se orienta de cima para baixo, do Todo ao particular, da tradição ao indivíduo, da filogênese à ontogênese, mas o contrário. Ela ocorre de baixo para cima, do singular que se expressa como universal mediante a incompletude e falha do original.
Façamos um desvio pela educação a fim de compreendermos melhor como esse modelo de identificação pelos restos se aplica ao princípio da transmissão.
Construção e transmissão do saber na educação
No que diz respeito à motivação de construir um lugar de saber, Freud (1914/2007), em seu texto Sobre a psicologia do escolar, se coloca a seguinte questão: "Não sei o que mais nos absorveu e se tornou mais importante para nós: as ciências que nos eram apresentadas ou as personalidades de nossos professores" (p. 419-420). Mais adiante, o autor afirma: "para muitos de nós o caminho do saber passava inevitavelmente pelas pessoas dos professores" (FREUD, 1914/2007, p. 420). À primeira vista, tem-se a impressão de que Freud defende o modelo pedagógico tradicional (ou modelo bancário, para falar com Paulo Freire), no qual o professor, através de sua autoridade sobre o aluno, transmite a este um determinado conteúdo didático. Por esse prisma, a relação entre professor e aluno consistiria numa relação hierárquica entre alguém que detém o conhecimento e alguém que recebe passivamente um conteúdo específico, devendo este, portanto, permanecer inalterado no processo de transmissão.
Jacques Rancière (2013) em seu livro O mestre ignorante subverte essa relação sem cair nos métodos construtivistas convencionais. O filósofo retoma a experiência pedagógica proposta pelo francês Joseph Jacotot, concretizada em meados do século XIX, cuja ideia pode ser resumida na seguinte declaração: "É preciso que eu lhes ensine que nada tenho a ensinar-lhes". Segundo Rancière (2013), Jacotot desnudou habilmente os mecanismos do processo educacional de seu tempo, cuja proposta apoiava-se, impreterivelmente, na referência a um mestre explicador. Em outras palavras, de acordo com Jacotot, o conhecimento, segundo essa metodologia ortodoxa, era hierarquicamente exposto e explicado pela figura do mestre, introduzindo uma lacuna irredutível entre a matéria ensinada e a apreensão individual. Tal lacuna no seio da educação tradicional é, por seu turno, a principal responsável pelo que Rancière denomina de ficções estruturantes, cujo modelo é constituído segundo a oposição entre mestre explicador e aprendiz inválido. Em suma, esse método pedagógico padrão consiste em um procedimento que opera por acúmulo contínuo de informações, mas cuja base é totalmente desprovida de reflexividade.
O trabalho de Jacotot se fundamenta, portanto, em desvelar essa base dicotômica na raiz da metodologia educacional clássica e, ao mesmo tempo, propor uma inversão de seus operadores. Desse modo, segundo ele, ao invés de considerarmos que aquele que se encontra em processo de formação necessita de um mestre explicador, seria mais conveniente pensar o contrário: é o próprio explicador que, para perpetuar os mecanismos de transmissão vigentes, necessita de um aprendiz. Somente assim podemos falar em uma verdadeira emancipação intelectual no processo de aprendizagem. Há, por trás de tudo isso, uma questão ética fundamental. Sob a perspectiva clássica unilateral que confere ao aprendiz uma posição meramente passiva na transmissão do conhecimento - uma vez que ele é visto como puro receptáculo de informações - o estatuto moral do sujeito emancipado encontra-se gravemente comprometido: no lugar de uma autonomização propriamente dita do conhecimento - pensado em termos de um engajamento reflexivo do próprio conteúdo adquirido - temos apenas uma concepção dessubjetivada e heterônoma da educação.
Esse processo é denominado, pelo próprio Jacotot, de embrutecimento. Em suas palavras: "há embrutecimento quando uma inteligência é subordinada a outra inteligência". Essa experiência pedagógica, cuja prática extrapola os muros de uma sala de aula, é na realidade uma tentativa de pensar os caminhos de uma transmissão quando o solo de uma tradição compartilhada - aquilo que Benjamin, como veremos adiante, denomina como Erfahrung - se encontra dissipada. Porém, na medida em que Jacotot oferece um método pedagógico que ultrapasse a metodologia educacional clássica, esse método não deve, em contrapartida, servir como modelo padronizado universal a ser aplicado de forma indiferenciada em todos os casos. A universalidade desse método funda-se, a rigor, numa singularidade irredutível. Ou seja, esse procedimento aposta numa verdade associada às narrativas pessoais cujo relato faz de cada falante o poeta de si próprio e das coisas. Assim, explica Rancière: "[...] é porque não há código dado pela divindade, língua da língua, que a inteligência humana emprega toda a sua arte em se fazer entender e em entender o que a inteligência vizinha lhe significa" (2013, p. 93).
Sendo assim, é justamente pela fragmentação de um horizonte de sentido comum aos homens que se torna imperativa a construção de uma significação que é, ao mesmo tempo, universal e singular. Universal, pois remete aos vestígios de um patrimônio cultural, e singular por incluir a própria história individual - o eu. Ora, é precisamente no estilhaçamento da tradição que se encontram as condições para a emergência de um saber que se ancora nos limites da experiência vivencial e interior - Erlebnis - sobrepujando o discurso oficial da cultura dominante e evidenciando, por conseguinte, uma dimensão mais autêntica da experiência pessoal (GAGNEBIN, 2009). É nesse sentido que Jacotot assevera a existência de uma igualdade das inteligências não como equivalência da inteligência entre os indivíduos, mas como uma potência que atravessa cada um dos homens e os impele a utilizar a inteligência a fim de conhecer o mundo. Conforme Rancière (2013), esta potência equivale a uma potência de tradução. Estaria a cargo dos sujeitos contemporâneos, desse modo, a construção de uma versão da sua própria história, que Benjamin (2011) captura de forma poética no seu livro Rua de mão única.
Pois aquilo que alguém viveu é, no melhor dos casos, comparado à bela figura à qual, em transportes, foram quebrados todos os membros, e que agora nada mais oferece a não ser o bloco precioso a partir do qual ele tem que esculpir a imagem do seu futuro (BENJAMIN, 2011, p. 41-42).
Assim, se o estilhaço do original, do modelo pré-figurado pela tradição, é a condição pela qual o sujeito tem que esculpir a imagem de seu futuro, segundo Benjamin, então a tarefa do sujeito moderno, para quem a tradição está perdida, é construir a sua narrativa unindo as sobras desse passado. Ou, nas palavras de Rancière (2013, p. 89): "Cada um de nós descreve, em torno da verdade, sua parábola, não há duas órbitas semelhantes".
Passemos a discutir o foco principal de nosso trabalho: a ideia de transmissão. Nosso intuito a partir de agora é analisar como a identificação a partir dos restos torna-se fator imprescindível para a transmissão do saber.
Transmissão do saber na psicanálise
Devemos, antes de tudo, estar atentos para um aspecto fundamental do conceito de transmissão para a psicanálise. Para isso, podemos retomar a citação freudiana feita no tópico anterior. No artigo Sobre a psicologia do escolar, de 1914, Freud, motivado pelo encontro com um professor de sua juventude, ressalta: "para muitos de nós o caminho do saber passava inevitavelmente pelas pessoas dos professores". Sublinhemos que Freud não se refere propriamente ao caminho do conhecimento, mas ao caminho do saber. Esse ponto é determinante para compreender o real sentido de transmissão em Freud. É digno de nota que a transmissão para a psicanálise não se dá no nível do conteúdo do conhecimento, mas no nível da forma do saber. Isso significa que não há um continuum da transmissão pelo qual o conteúdo passa de forma integral do mestre para o aluno, mas sim uma descontinuidade relacional através da qual o mais importante não é propriamente o conteúdo transmitido, mas o ato de transmissão em si. Freud atesta isso ao associar o saber à pessoa do professor. Portanto, para a psicanálise, a transmissão se dá pela via da identificação.
Em sua Alocução sobre o ensino, Lacan (2003) destaca essa descontinuidade ao apontar para o caráter não complementar da relação entre ensino e saber. Observa-se que não há garantia alguma de que o ensino propicie a produção de um saber. A ilusão de complementaridade, que é intensamente propagada, parece referir-se, segundo Lacan, a uma necessidade de que os conteúdos transmitidos sejam compreendidos integralmente - numa quimera de sentido que mais obscurece o saber do que o alimenta. Sendo assim, o saber não se apresentaria a partir de um movimento pendular, do professor ao aluno, mas a partir de um desamparo intrínseco.
Não se trata, portanto, de um acúmulo de conteúdos e nem de uma relação com posições rigidamente preestabelecidas. Longe disso. Como aponta Lacan (Ibid.), a forma de abrir caminho para que o sujeito alcance e construa o saber é permitir o livre associar, para que os significantes de seus percalços se tornem pontos de significação. Ou seja, o saber é construído a partir de seus próprios significantes. Na medida em que o sujeito só pode ser ensinado a partir de seu próprio não saber, Lacan atesta que a construção da familiaridade só pode se dar pelo recobrimento dos vazios de sentido precedentes.
Com base nisso, retomemos a questão freudiana sobre a construção de um lugar de saber. Se a função do professor vai além de ser um "portador de conteúdo", ela visa plantar uma dúvida naquele que, desde jovem, demonstrou a intensa necessidade de se apropriar das mais diversas ciências, para que, assim, pudesse alcançar seu desejo de "dar uma contribuição ao conhecimento humano" (FREUD, 1914/2007, p. 419). Nesse sentido, podemos parafrasear o famoso aforismo de Picasso, retomado por Lacan (1988) no seminário XI: o professor não cria conhecimento, ele o encontra ali onde ele já existe em potência. Numa inversão dialética do desejo, Freud salienta que o verme responsável pela repetição demoníaca da pulsão é domado pelo desejo e transvestido em seu destino.
Vejamos com mais propriedade como a transmissão do saber concretiza-se no curso da tradição.
Experiência, tradição e transmissão
Seria válido então promover uma espera silenciosa do conhecimento, já que não se trata da transmissão do conteúdo, mas da forma como saber? Walter Benjamin é o pensador ideal para responder a essa questão. Principalmente a partir de suas análises sobre tradição e memória (afinal, suas reflexões se destinam, em grande medida, a retirar do silêncio as vozes sussurrantes do passado).
Formulemos, de início, a questão: o que fazer com as migalhas provenientes desse conhecimento do passado?
O que nos interessa em Benjamin é a possibilidade que o autor nos oferece de pensar um conceito de transmissão da experiência que ultrapassa e transcende a dimensão da individualidade e da imediaticidade. Ou seja, devemos problematizar a partir de Benjamin o mesmo ponto que viemos problematizando acima com Freud, isto é, a ideia de que o homem moderno não pode se furtar a um enfrentamento reflexivo com relação a seu passado e a sua tradição, ascendendo, por conseguinte, a um plano compartilhado de experiência que excede os limites do individualismo liberal-burguês, especificamente moderno.
Para isso, é importante definir a diferença entre dois sentidos de experiência presentes na língua alemã: Erfahrung e Erlebnis. Erfahrung expressa uma noção mais profunda de experiência, como a experiência compartilhada por uma tradição ou por um universo simbólico, ao passo que Erlebnis retrata a ideia vulgar de experiência como experiência vivencial, direta e subjetiva. Com efeito, o sentido de experiência que, para Benjamin, fracassa na era moderna, é justamente a experiência como Erfahrung.
Tomemos, pois, o ensaio Experiência e pobreza, texto onde Benjamin aborda com clareza o declínio do sentido de experiência na modernidade. Logo no início do texto, Benjamin (1933/1994) narra a parábola de um velho que, perto de morrer:
[...] revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho (BENJAMIN, 1933/1994, p. 114).
De acordo com Benjamin, essa era a maneira pela qual uma tradição era passada adiante. As experiências eram transmitidas sem que se soubesse exatamente no que consistia seu real significado. Uma rotina, uma prática, um costume era acatado e repetido de geração em geração, ainda que o sentido dado aos rituais não condissesse com a prática em si (como no caso da parábola). Entretanto, na modernidade essa fidelidade incondicional ao passado foi inconsolavelmente perdida (ressoando a experiência do absurdo de Camus). Diante disso, Benjamin (1933/1994) enumera algumas das experiências traumáticas e "desmoralizadoras", específicas da era moderna, responsáveis por erradicar de vez qualquer referência à tradição: "a experiência da guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral dos governantes" (BENJAMIN, 1933/1994, p. 115).
O cenário é amplamente desolador. Com o avanço cego da ciência e da tecnologia associado à dança frenética do Capital, estamos todos condenados à nossa autodestruição através da guerra, da crise, da fome, da corrupção. Construímos, com isso, uma nova espécie de miséria humana, revelada como barbárie que emerge no seio da própria civilização. Como diz Benjamin: "Uma nova forma de miséria surgiu com o monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem" (1933/1994, p. 115).
Portanto, sem a luz da tradição para nos nortear em direção a algum horizonte de sentido sólido e discernível, estamos destinados a vagar nas trevas (como disse Alexis de Tocqueville em seu clássico A democracia na América ). Na miséria epocal na qual nos encontramos, somos completamente incapazes de realizar verdadeiras experiências compartilhadas (Erfahrung ), nos limitando ao choque incessante de fragmentos de experiências vagas e superficiais (Erlebnis ).
Essa é a razão pela qual uma verdadeira experiência não pode vir desabrigada do fundo significativo da tradição. Quando manifestamos, a cada minuto, um desejo ardente pelo novo - provocado pelo bombardeio incessante das campanhas publicitárias dos meios de comunicação de massa - conseguimos, mediante isso, apenas exprimir a insípida atmosfera de nosso Zeitgeist. Por isso mesmo, como afirma Benjamin (1933/1994, p. 118), "não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna [...]".
Eis, portanto, a pobreza de experiência do homem moderno. Ante o abismo do tempo, o homem parvo de nossos dias procura superar o vazio de sentido através de meios rápidos e simplórios de transcendência (tais como a astrologia, a prática de ioga, o espiritualismo, a meditação etc.). Mas para Benjamin, isto representa apenas o outro lado da medalha, "porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, mas uma galvanização" (1933/1994, p. 115). Ou seja, na tentativa de superar o fracasso de transcender ao aqui-agora maçante do tempo presente, essas práticas new age - que vigoram por toda parte - não só confirmam, mas, pior, dissimulam e até potencializam a miséria do homem moderno. Eis, portanto, a contradição inerente da modernidade.
Contudo, a atitude de Benjamin diante desse fenômeno não se reduz simplesmente a lamentações do presente ou saudosismo do passado. Longe disso, em Experiência e pobreza, a postura de Benjamin é uma postura primordialmente crítica, e de modo algum uma atitude pessimista. Como um pensador crítico, um interlocutor assíduo com a Escola de Frankfurt, sua tarefa não é apontar uma saída utópica para além de nossa claustrofobia social. Ao contrário, a tarefa do crítico é, em primeira instância, apresentar as contradições internas de nossos tempos, cujo principal indício é o surgimento da barbárie como expressão genuína da modernidade. E, a partir daí, apresentar uma saída utópica no cerne mesmo de nossa claustrofobia.
Benjamin segue esse mesmo fio condutor em outro texto, escrito mais ou menos na mesma época de Experiência e pobreza, O narrador. Aqui, Benjamin (1936/1994) interpreta a perda da experiência pela perda da arte de narrar:
[...] a experiência [da] arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (BENJAMIN, 1936/1994, p. 197-198).
A figura do narrador representa, para Benjamin, uma espécie de mediador capaz de manter viva uma tradição através da palavra. O narrador simboliza, portanto, o elo entre o passado e o presente, responsável por interligar uma determinada geração ao horizonte histórico das gerações passadas, compondo, desse modo, um vasto nexo de experiências num horizonte comunitário. Deve-se pensar o narrador como um personagem que, ao mesmo tempo que pertence à narração, isto é, que possui uma experiência pessoal e vivencial no interior do enredo narrado, deve, em contrapartida, tornar seu relato cada vez mais dessubjetivado, renunciando ao posto de entidade portadora da mensagem oculta do texto. Essa é a razão pela qual uma mesma narrativa torna-se uma fonte hermenêutica inesgotável, podendo, pois, ser reproduzida ao longo das gerações sem exaurir seu potencial interno.
É por isso que o narrador é aquele que, de dentro do enredo, transmite uma herança simbólica da tradição na medida em que captura, a partir de sua própria experiência, os indícios de algo que é infinitamente maior que ele. Portanto, o narrador deve contar o que se ouve falar, o que se aprende e o que se percebe (diz-se que..., ouve-se que..., sabe-se que...) no interior de determinada tradição, sem, com isso, atribuir a si a posse de um saber subjetivo ou privado.
Mas cumpre não confundir sabedoria com o conhecimento objetivo da ciência moderna. A sabedoria transmitida pelo narrador não tem a ver com a explanação de um conteúdo em si, mas sim com a prática peculiar de dar conselhos. E conselho, por sua vez, não consiste em responder perguntas, mas dar uma "sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada" (BENJAMIN, 1936/1994, p. 200). A exemplo da parábola citada acima (do pai que aconselha seus filhos a cultivarem os vinhedos mais ricos e abundantes da região, sem fazer menção a qualquer referencial técnico-objetivo sobre seu saber) a sabedoria da narrativa consiste em transmitir uma verdade sem necessariamente precisar validar epistemologicamente essa verdade. É somente assim que, segundo Benjamin, tem-se a manutenção e a expansão de uma tradição que atravessa o tempo.
Como dissemos, a narrativa se exime de explicar o conteúdo, preferindo manter-se de forma sedimentada e impessoal para que, dessa maneira, possa circular de geração em geração produzindo diferentes interpretações sobre a "moral" de sua história. Em contrapartida, a informação esmiúça, por assim dizer, seu conteúdo, impedindo desse modo a elaboração de sentido a partir do texto. Diferentemente da narrativa, a informação é um gênero textual autossuficiente, cuja vida útil é consumida no ato de sua publicação. Segue Benjamin:
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. [...] Os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. [...] Quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. (BENJAMIN, 1936/1994, p. 203).
A informação é o gênero textual que corresponde aos ideais burgueses de transparência irrestrita do conteúdo transmitido. Mas o que está por trás desse ideal de transparência do conteúdo textual na informação? Benjamin imputa ao processo de institucionalização burguesa no século XIX, com seu excesso de higienização pública e privada, uma tendência cada vez maior de negação do "espetáculo da morte". Ou seja, se, na Idade Média, segundo Benjamin, a morte era um evento público, simbolizado e assimilado ritualisticamente, "hoje, os burgueses vivem em espaços depurados de qualquer morte e, quando chegar sua hora, serão depositados por seus herdeiros em sanatórios e hospitais" (BENJAMIN, 1936/1994, p. 207). De acordo com o autor, essa aversão à morte na sociedade de mercado nos conduz inevitavelmente a um profundo esquecimento da tradição. O paradoxo é que o excesso de informação com o qual nos deparamos hoje representa, no fundo, não uma potencialização da memória como capacidade de conhecer, mas um esquecimento dissimulado pela superabundância de informações autoexplicativas. Quer dizer, o elemento repelido através dessa propensão à autotransparência absoluta da sociedade burguesa é, com efeito, a própria memória.
A narrativa, por sua vez, tem de pressupor a experiência da morte. Somente a morte, como negação desse projeto de totalização do sentido, permite a transmissibilidade da tradição. "Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida - e é dessa substância que são feitas as histórias - assumem pela primeira vez uma forma transmissível" (BENJAMIN, 1936/1994, p. 207). Em uma palavra, é unicamente através da irredutibilidade da finitude humana que pode haver transmissão e, portanto, memória.
Com efeito, encontramo-nos diante de uma questão bastante espinhosa. Sabemos que a transmissão do passado não corresponde à transmissão de um conteúdo em si que atravessa as gerações. Até porque a narrativa não está interessada no conteúdo propriamente dito, mas na produção de sentidos a partir do próprio ato de narrar. Quer dizer, a narrativa possui antes de tudo um caráter performativo, que, como tal, gera significados mediante as tentativas de decodificação do texto por parte de uma comunidade simbólica. Nesse sentido, o passado do qual estamos falando não pode ser o passado histórico, aprisionado à cadeia sequencial do tempo, segundo o princípio de causa e efeito. Ao invés disso, é necessário admitir, a fortiori, que o passado, ao qual Benjamin se refere, é estruturalmente homólogo à ideia de passado para a psicanálise. Ou seja, um passado como resto recalcado pela força do discurso hegemônico.
Então, o quesito essencial da arte da narrativa em Benjamin não consiste propriamente em resgatar uma tradição perdida pelo tempo, mas em apreender esse resto como produto da própria tradição. Se a sociedade burguesa é regida pelo princípio de transparência e totalização de si, expelindo, desse modo, qualquer possibilidade de reminiscência, então, o resgate do passado ou da tradição é o resgate do elemento renegado por essa mesma sociedade. Pensar a memória e a tradição só tem sentido em Benjamin se as pensarmos como sendo o refugo do próprio tempo.
Todavia, cumpre se perguntar qual é o tempo específico da arte de narrar.
Em seu último texto, Sobre o conceito de história, Benjamin diferencia dois modos de temporalidade: o tempo homogêneo e vazio e o tempo saturado de agoras. É assim que ele inicia sua décima quarta tese: "A história é objeto de uma construção cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas aquele saturado de agoras [Jetztzeit ]" (1940/1994, p. 229). Para Benjamin, o tempo homogêneo e vazio é o tempo da historiografia dominante, um tempo formal que articula os acontecimentos segundo uma chave de leitura instituída pela classe privilegiada. O tempo vazio é, pois, o tempo cronológico, o tempo do relógio de pulso do pequeno burguês, cuja função a priori consiste em medir a quantidade da produção pelas horas de trabalho dispensadas. Em suma, o tempo vazio é o tempo quantitativo do capitalismo industrial. Mas Benjamin revela a presença de outra temporalidade, de um tempo qualitativo e não linear. Esse tempo não é apreciado pela historiografia oficial, uma vez que é o tempo dos que sucumbiram à sua própria hegemonia. Mas, apesar disso, esse tempo insiste em permanecer presente.
Para melhor compreendermos esse ponto, convém citar, no mesmo texto, uma famosa passagem da sétima tese: "Não há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie" (1940/1994, p. 225). O documento de cultura ao qual Benjamin se refere diz respeito ao documento endossado pela classe dominante, cuja importância é devidamente enquadrada no contexto da historiografia oficial como tempo vazio. Ocorre que tal documento, que em geral exprime um acontecimento singular, é ao mesmo tempo um documento da barbárie, na medida em que sob ele foram soterradas esperanças utópicas fracassadas. Em vista disso, o mesmo episódio festejado pela historiografia dominante deve ser dialeticamente invertido em sua barbárie inconfessa, expondo assim o seu antagonismo inerente e, por conseguinte, fazendo implodir a lógica que sustenta o discurso standard da tradição. Desse modo, a história que interessa a Benjamin, a verdadeira história, não é a historiografia dominante, triunfante, vitoriosa, mas a história subterrânea que, embora não seja mais que ruínas e migalhas, não para de sussurrar sua verdade indigente por entre as brechas da formalidade insípida do tempo burguês - tal qual o brilho ininterrupto de uma estrela perdida entre as nuvens.
Esse problema é brilhantemente contemplado por Jeanne-Marie Gagnebin (2009) em seu notável artigo Memória, história e testemunho. A autora encontra em O narrador de Benjamin essa possibilidade de conceber uma figura do narrador justamente quando a era da narrativa tradicional chega ao fim. De acordo com ela, esse personagem seria, portanto, o "narrador de migalhas":
[Em] "O narrador" [Benjamin] formula uma outra exigência; constata igualmente o fim da narração tradicional, mas também esboça como que a ideia de uma outra narração, uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas (GAGNEBIN, 2009, p. 53).
A autora também remete à figura do sucateiro, do trapeiro, fazendo uma alusão direta ao poema le vin des chiffonniers (o vinho dos trapeiros), de Baudelaire. Esse personagem representa o catador de sucata e de lixo das grandes cidades, que passa recolhendo os cacos, os restos e os detritos despejados. Mas o sucateiro, segundo Gagnebin (2009), não é movido apenas pela necessidade e pela penúria, mas também por um desejo de não deixar nada para trás. Correlativamente, o narrador sucateiro tem por finalidade recolher não os grandes feitos da humanidade, - cujos relatos já foram apropriados pela historiografia oficial - mas deve, antes de tudo, "[...] apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que parece não ter importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer." (GAGNEBIN, 2009, p. 54). Conforme expõe Benjamin em seu Paris do segundo império (2011, p. 78): "Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico". Ou seja, o narrador contemporâneo é quem, por assim dizer, reúne e organiza a "outra história" contada no e pelo lixo da sociedade de consumo. Nas palavras do próprio Charles Baudelaire:
Aqui temos um homem - ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o carfanaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1936/1994, p. 78).
Conforme Gagnebin (2009, p. 54): "essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo - principalmente - quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido". Tanto o narrador como o historiador, cujas práticas podem se confundir, têm como missão conduzir adiante a memória desse passado soterrado. E aqui é impossível negar a proximidade entre Benjamin e Freud no que tange à memória: de uma parte, esquecimento do tempo vazio da historiografia dominante, e, de outra, lembrança de um passado em migalhas. E eis que Jeanne-Marie Gagnebin primorosamente encontra as palavras que procurávamos:
Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecimento e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras (GAGNEBIN, 2009, p. 55).
Passemos, por fim, a analisar através do pensamento de Giorgio Agamben como a transmissão do saber ocorre no próprio tempo, através da passagem de gerações, como transmissão da forma e não do conteúdo.
A transmissão e tempo
Giorgio Agamben (2012) nos oferece uma interpretação similar à ideia de transmissão em seu ensaio O país dos brinquedos: reflexões sobre a história e sobre o jogo. Nesse texto, Agamben, assim como Benjamim, recorre a uma diferença entre duas representações do tempo. Agamben parte da diferenciação na língua grega entre: aion e chrónos. Aion representa, grosso modo, o eixo da sincronia, o tempo imóvel, eterno, enquanto chrónos, o eixo diacrônico, o tempo contínuo, mensurável e de duração objetiva. Para o autor, a diferença e a relação entre esses dois tipos de tempo exprimem o caráter da própria historicidade do homem, independente da cultura ou sociedade a qual ele pertence. O que diferencia cada sociedade é a tendência para uma predominância sincrônica ou uma predominância diacrônica do tempo. Logo, a história não pode ser nem absolutamente sincrônica, nem absolutamente diacrônica, mas deve comportar em si uma tensão constante entre esses dois polos. E o que fará, segundo Agamben (2012), essa passagem de um para o outro é a relação que há entre ritos e jogos.
Os ritos e jogos são, segundo o autor, operações que agem sobre os significantes da sincronia e da diacronia. Os ritos são responsáveis por transformar a diacronia em sincronia, ao passo que os jogos transformam sincronia em diacronia. No entanto, existem significantes que não pertencem a nenhuma das temporalidades. São chamados significantes instáveis que, por indicar uma ameaça à linearidade das coisas, causam sentimentos de perturbação. Como exemplo de tais significantes, Agamben recorre aos ritos fúnebres, que, como tais, deveriam transformar traços de diacronia em traços de sincronia. No entanto, as duas temporalidades se fazem presentes em um mesmo significante, pois ao morrer não nos tornamos imediatamente mortos, mas transformamo-nos em fantasma - do phásma em grego, ou larva, na origem latina. O fantasma/larva não representa ainda um antepassado. Como larva, essa figura é imprevisível e assustadora. Algo que retorna a vagar pelos mesmos lugares que frequentava quando vivo. Assim, a larva é um significante instável, pois não faz parte do mundo dos vivos, onde há diacronia, mas também não faz parte do mundo dos mortos, onde só encontramos sincronia. Ele está morto, mas habita o mundo dos vivos. Os ritos fúnebres apresentam, portanto, o objetivo de "assegurar a transformação deste ser incômodo e incerto em antepassado amigo e potente, que vive em um mundo separado e com o qual são mantidas relações ritualmente definidas" (AGAMBEN, 2012, p. 99). Esses ritos representam então uma transformação da larva, significante instável, em morte, significante estável.
A morte, segundo o autor, representa, portanto, uma ameaça à eterna oposição entre sincronia e diacronia que sustenta a historicidade do homem. No entanto, por mais ameaçadora ou perturbadora que seja a ação dos significantes instáveis, nenhuma sociedade pode abrir mão deles. O que não pode ser interrompido não é - como somos levados a crer - a oposição entre sincronia e diacronia, mas sim a troca de significantes promovida pelos ritos e jogos. Ou seja, de significantes instáveis para significantes estáveis e vice-versa.
É nessa relação intercambiável entre rito e jogo que podemos situar o problema da transmissão. Numa importante nota de rodapé, Agamben (2012) apresenta o conceito de transmissão a partir do rito de iniciação dos índios Pueblos - o que nos proporciona tecer uma relação direta com o sentido de transmissão aqui discutido. Segundo o autor, o processo de iniciação dessa tribo não implica a revelação de nenhuma doutrina ou sistema de verdade, mas revela somente que as imagens assustadoras e sobrenaturais que assustavam as crianças durante as cerimônias anuais eram, na verdade, os próprios adultos com máscaras da kactina. E ao tomar conhecimento disso, os jovens iniciados deveriam guardar o segredo para assumir a kactina, personificando-as nas cerimônias. Assim, "o conteúdo do rito, o segredo a ser transmitido é, portanto, de que não há nada a transmitir, exceto a própria transmissão, a função significante em si" (AGAMBEN, 2012, p. 104). Logo, não existe nenhum conteúdo a ser passado aos mais novos, mas ao transmitir esse segredo, agem também colocando em cena um sentido. Para Agamben (2012), a função do significante em si, é a própria história.
Em contraposição à ideia de transmissão como continuidade de um conteúdo e reafirmação da tradição, o que se apresenta é, com efeito, a transmissão de uma descontinuidade, ou seja, a transmissão de um significante que representa o próprio tempo, a própria história. Mais importante do que identificar quais significantes são transmitidos no processo de transmissão, é pensar o significante da troca e da transmissão, ou seja, o ponto de descontinuidade que permite essa troca. Portanto, na relação geracional, a pergunta fundamental não pode ser direcionada àquilo que cada geração produz de novo ao superar a geração anterior, mas como os pais transmitem aos filhos o ponto de sua própria superação. A transmissão como saber, e não conteúdo, é a transmissão da própria transmissão, passada de geração a geração. Infelizmente, a impressão que temos é que hoje a transmissão se preocupa apenas com o acúmulo de conhecimento como mera mercadoria de troca, tornando os jovens cada vez mais inertes, incapazes de superar a geração anterior, e demasiadamente próximos de uma temporalidade infernal e diacrônica. Em última análise, a temporalidade infernal representa a perda da memória pensada como tempo e história. Vivemos no inferno cíclico do tempo, sem passado e sem futuro, salvos dos tormentos da memória, como disse García Márquez (1993).
Em suma, o que falta na relação entre as gerações atuais é a troca do significante vazio da temporalidade que permite a produção de sentido e, consequentemente, o desejo de viver, a crença utópica num universo significativo por meio do qual a vida seja potencialmente afirmada. Numa sociedade como a nossa, consumista e acumulativa, a pergunta sobre o suicídio relacionado à ausência de sentido torna-se, como já disse Camus (2013), o problema filosófico par excellence. Diante desse tema, todos os outros problemas filosóficos tornam-se irrelevantes. Como ele mesmo disse: "só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia" (p. 19). Eis a razão pela qual não devemos nos desviar desse tema.
Referências
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Artigo recebido em: 23/04/2019
Aprovado para publicação em: 25/09/2019
Endereço para correspondência
Débora Passos de Oliveira
E-mail: deborapassosoliveira@gmail.com
Maria Celina Peixoto Lima
E-mail: celina.lima@unifor.br
Carolina Carrah Colares
E-mail: carrahcarolina@gmail.com
*Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Fortaleza, CE, Brasil.
**Doutora em Psicologia pela Universidade Paris XIII. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Fortaleza, CE, Brasil.
***Graduanda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Bolsista pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Fortaleza, CE, Brasil.
1Referência direta à obra O homem sem gravidade, de Charles Melman, que exprime com perfeição essa ideia da perda irredutível da referência e do Significante-Mestre em nossa sociedade.