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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.41 Rio de Jeneiro jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

História, narrativa, resistência e utopia em Georges Perec

 

History, narrative, resistance and utopia in Georges Perec

 

 

Inajara Erthal AmaralI*; Edson Luiz André de SousaII, III**

IAssociação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil
IIILaboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política - LAPPAP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo pretende trabalhar a articulação entre história e resistência na obra de Georges Perec, para pensar a potência utópica de seus textos. O autor submete a si e ao leitor às contraintes, que vão construindo um caminho individual numa jornada percorrida conjuntamente, escritor e leitor. Caminho que nos aproxima da leitura psicanalítica sobre o tempo e a história para pensarmos construções de narrativas. Perec transita no limite entre o Real da letra e o Simbólico do nome. Letra que faz operar um não-lugar, possibilidade de narrar, ou seja, através de a escrita da ficção poder se contar, o que implica acessar uma memória que também é coletiva, problematizando, assim, a relação com a história.

Palavras-chave: História, Psicanálise, Narrativa, Utopia, Georges Perec.


ABSTRACT

This article intends to work the relationship between history and resistance in the work of Georges Perec to think about the utopian power of his texts. The author submits himself and the reader to contraintes, constructing an individual pathway in a journey journeyed together of writer and reader. This is a road that brings us closer to the psychoanalytical reading about time and history to think of the narratives construction. Perec moves in the boundaries between the Real of the letter and the Symbolic of the name. A letter that makes a non-place work, the possibility of narrating, i.e. through the writing of fiction to be able to tell, which implies accessing a memory that is also collective, thus questioning the relationship with history.

Keywords: History, Psychoanalysis, Narrative, Utopia, Georges Perec.


 

 

"Quando uso uma palavra" - disse Humpty Dumpty num tom zangado - "ela significa exatamente o que eu quero que ela signifique - nem mais nem menos" "A questão", disse Alice, "é se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes". "A questão" - disse Humpty Dumpty - "é saber qual o significado mais importante - isso é tudo". Alice estava muito intrigada para poder dizer qualquer coisa.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

A narrativa tenta dar conta do que nos concerne como cultura num determinado meio social. Ao construir uma narrativa, o narrador expressa algo que vai além, entrelaçando singular e coletivo. Na obra de Perec, podemos encontrar elementos literários, através de suas contraintes,1 que possibilitam abordar a relação entre experiência e ficção a partir de argumentos psicanalíticos para pensar a relação entre real, realidade e memória.

Perec, ao trabalhar com regras matemáticas e jogos linguísticos, coloca restrições a si e ao leitor. Quais os efeitos dessa relação com a escrita? Ao produzir sua ficção, Perec se separa da realidade ou se aproxima do real? Essa interrogação se refere ao Real lacaniano (o que não cessa de não se inscrever). A ideia de representação inclui a de criação. A linguagem, entendida do ponto de vista estrutural, é um conjunto de significações que são provocadas pela diferença de significantes, de modo que cada significante engendra o seu significado na relação com os outros, e faz com que esse movimento de significação crie uma identificação e uma não identificação, ao mesmo tempo. A primeira restrição que o homem encontra na sua relação com o mundo é ter que se submeter às regras da língua. Assim, algo se desprende e não cessa de não se escrever.

Como já mencionado, Perec, na proposta de sua escrita, submete a si e ao leitor às contraintes2 que vão construindo um caminho individual num caminho percorrido conjuntamente, escritor e leitor.

Giorgio Agamben, no livro Infância e história, trabalha a articulação de Benveniste com relação à interrogação saussuriana sobre o que separa o discurso da língua, e o que, em determinado momento, permite dizer que a língua entra em ação como discurso. Vai dizer que o signo e a frase estão separados por um hiato. Tal hiato entre semiótico e semântico, entre língua pura e discurso, faz Saussure questionar por que existe uma dupla significação. E, segundo Agamben, é a este problema que a teoria da infância possibilita dar uma resposta coerente:

[...] é o fato de que o homem tenha uma infância, ou seja, que para falar ele tenha de expropriar-se da infância para constituir-se como sujeito da linguagem [...]. Na medida em que possui uma infância, em que não é sempre já falante, o homem não pode entrar na língua como sistema de signos sem transformá-la radicalmente, sem constituí-la como discurso [...]. O humano propriamente nada mais é que esta passagem da pura língua ao discurso; porém este trânsito, este instante, é a história (AGAMBEN, 1979/2005, p. 67-68).

Ao pronunciarmos "eu", inauguramos um ato individual que coloca a língua em funcionamento, e é, justamente, um ato de enunciação. Daí procede a instauração da categoria do presente e dela nasce a categoria do tempo (BENVENISTE, 1989, p. 82). O presente é essa presença no mundo que só a enunciação torna possível, "porque o homem não dispõe de nenhum outro meio de viver o 'agora' e de torná-lo atual senão realizando-o pela inserção do discurso no mundo" (Id., ibid., p. 85), empregando a língua, enunciando. Esse presente extensivo à presença do eu se delimita "entre o que vai se tornar presente e o que já não é mais" (BENVENISTE, 1989, p. 86).

E qual é a categoria do lembrar? Quando lembramos, afirmamos o que não quer calar? Seria esse o núcleo do livro de Perec, considerado uma autobiografia por alguns, W ou a memória da infância? Guardar intactas as lembranças na repetição das fotos, dos lugares e das coisas?

Agamben denomina a infância como "in-fância" (experiência ainda muda). Tal experiência coloca em evidência o nascer da língua, a origem, presente na relação com o corpo. No extremo da experiência, na radicalidade da vivência, resta-nos a língua, assim podemos narrar. Ou seja, todos nós temos algo do corpo excluído, por essa razão a palavra assume uma literalidade, podemos dizer originária, possibilitando ao sujeito fazer corpo disso que é excluído. É preciso que algo do corpo caia para que a linguagem possa servir como mediadora entre língua e discurso ou, segundo diz Ana Costa no livro Litorais da psicanálise (2015), entre língua instrumental e endereçamento de fala.

Nessa ideia Agamben situa o sujeito da linguagem como o fundamento da experiência e do conhecimento.

Experienciar significa necessariamente, neste sentido, reentrar na infância como pátria transcendental da história. O mistério que a infância institui para o homem pode de fato ser solucionado somente na história, assim como a experiência, enquanto infância e pátria do homem, é algo de onde ele desde sempre se encontra no ato de cair na linguagem e na palavra. Por isso a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo, descontinuidade, epoché.3 Aquilo que tem na infância a sua pátria originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em viagem (AGAMBEN, 1979/2005, p. 65).

O sujeito contemporâneo se interroga sobre quem é. Nem sempre foi assim. Anteriormente o sujeito estava situado a priori, pela família à qual pertencia, pela sociedade. Estamos diante de um novo indivíduo. Vivemos novas formas de estar no mundo. O que faz do ser um sujeito? A resposta está sempre exigindo uma reelaboração e nos faz interrogar constantemente o que adquire estatuto de experiência. Nos diz Agamben (1979/2005, p. 64):

É a infância a experiência transcendental da diferença entre língua e fala porque o homem, na medida em que tem uma infância, em que não é já sempre falante, cinde esta língua una e apresenta-se como aquele que, para falar, deve constituir-se como sujeito da linguagem, deve dizer eu.

Considerando a experiência na diferença entre humano e linguístico, Agamben ainda afirma: "Que o homem não seja sempre já falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fante, isto é a experiência" (p. 62).

Georges Perec nasceu em 7 de março de 1936, na cidade de Paris, onde viveu a maior parte de sua vida, e morreu em Ivry, aos 46 anos. Perdeu seu pai quando este lutava na Segunda Guerra Mundial e sua mãe um ano depois, em Auschwitz. Então, aos 6 anos, ficou órfão e foi levado para viver na casa de parentes. Evento marcante na vida de uma criança. Podemos nos colocar diversas questões: O quanto essa vivência constituiu a experiência que influenciou os escritos do homem Perec? Mais que um texto em busca de uma história individual, Perec parece produzir enlaces com a história de uma sociedade.

Escrever é uma forma de representar o irrepresentável? Em O sumiço,4 Perec escreve um livro inteiro sem usar a letra "e", a mais frequente no francês e a mais presente em seu nome.5 Podemos dizer, fazendo-o transitar no limite entre o Real da letra e o Simbólico do nome. Letra que faz operar um não-lugar onde podemos situar o infantil e a utopia. Possibilidade de narrar, ou seja, através da escrita da ficção poder se contar, o que implica acessar uma memória que também é coletiva. Também em W ou a memória da infância, através de uma autobiografia ficcional, o autor discorre sobre a condição de sua vida, como órfão em decorrência do nazismo, e um mundo imaginado que permitiu a existência da Shoah,6 introduzindo assim a condição social de seu escrito. Sua técnica, principalmente em O sumiço, é de não revelar a condição testemunhal do texto, pois o desaparecimento da letra fala de uma ausência que situa, para Perec, seus pais, mas também um signo de privação que faz a borda do furo de um saber que priva também o leitor, que fica sabendo do desaparecimento da letra tempos depois da primeira publicação do livro. Lacan (1953/1998) mostra a importância da linguagem e nela deduz a condição de existência do inconsciente. O inconsciente é algo que se articula na fala e não algo que vem a priori, que a antecede. Através da prática analítica, pode-se verificar e reconhecer a atuação no campo daquilo que é metafórico, do deslocamento daquilo que é simbólico e empregado no próprio sintoma. Dessa forma, Lacan mostra que não há uma realidade pré-discursiva, privilegia o campo da palavra e afirma que é o significante que dá existência às coisas, oferecendo, assim, ao analisante, a possibilidade de se inscrever na sua singularidade, no seu fracasso, no lugar que ocupa, na sua posição de não saber. Isso leva não a uma pedagogia, conscientização, autoconhecimento ou uma subjetividade imposta, mas a uma mudança de posição, de fazer, do retificar, onde o importante é que o saber se constitua com o ato de tomar a palavra. Narrar é um dizer que situa o sujeito num contexto onde também ele pode encontrar seu lugar compartilhado com outros. Perec, com o desaparecimento da letra, inclui o leitor na história no que ele não sabe não existir.

 

1. Autobiografia: um ruído de fundo

Estou destinado a perder-me, definitivamente, e só um ou outro instante de mim poderá sobreviver no outro.
Jorge Luis Borges, O fazedor

Na busca por mais informações sobre o escritor Georges Perec, tomo como base para pesquisa principalmente as seguintes obras: Georges Perec, de Claude Burgelin (1988/2002); Je suis né, de Georges Perec (1990); A ficção da escrita, de Cláudia Amigo Pino (2004); e Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo, de Jacques Fux (2016).

Aqui neste trabalho gostaria de trazer mais do que pontos sobre a vida de Perec, quero discutir o estilo de sua escritura, suas escolhas literárias, para vislumbrar fagulhas utópicas em sua obra.

No percurso pela obra, mesmo que alguma interpretação se faça presente, meu objetivo ao abordar alguns pontos é colocá-los entre a escuta e a interpretação. Portanto, não pretendo ler o que está por trás da obra e muito menos fazer da interpretação do autor um princípio. Lanço algumas conexões a partir da leitura, referindo a escrita de Georges Perec num escrito, em pinceladas.

Na medida em que um universo de ficção nos conta a história de algumas poucas personagens em tempo e local bem definidos, podemos vê-lo como um pequeno mundo infinitamente mais limitado que o mundo real. Por outro lado, na medida em que acrescenta indivíduos, atributos e acontecimentos ao conjunto do universo real (que lhe serve de pano de fundo), podemos considerá-lo maior que o mundo de nossa experiência. Desse ponto de vista, um universo ficcional não termina com a história, mas se estende indefinidamente [...] mas quanto ao mundo real, com a infinidade de cópias que é possível fazer dele, não sabemos ao certo se é infinito e limitado ou finito e ilimitado. Contudo, há outro motivo pelo qual nos sentimos metafisicamente mais à vontade na ficção do que na realidade. Existe uma regra de ouro em que os criptoanalistas confiam - a saber, que toda mensagem secreta pode ser decifrada, desde que se saiba que é uma mensagem. O problema com o mundo real é que, desde o começo dos tempos, os seres humanos vêm se perguntando se há uma mensagem e, em havendo, se essa mensagem faz sentido (ECO, 2002, p. 222).

Em A viagem de inverno Perec trabalha uma abordagem que os integrantes do Oulipo definem como sendo de "plagiadores por antecipação". Essa definição implica que uma estrutura ou regra criada pelos oulipianos pode ser descoberta posteriormente na obra de algum escritor ou poeta que os precedeu, o qual receberá o nome de "plagiador por antecipação" por ter trabalhado com uma contrainte criada a posteriori pelo Oulipo. Evocam, assim, os livros que os precederam: "está repleto de textos, verdadeiros pedaços de outros livros - o livro está dentro do livro, onipresente" (TELLIER, 2006, p. 178). Interessa-me, aqui, esta ideia do livro dentro do livro, para pensar a construção autobiográfica de Perec.

"A verdade que procuro não está dentro do livro, mas entre livros" (PEREC, 1989, apud FUX, 2016, p. 243). Assim, podemos entender, segundo afirma Jacques Fux no seu estudo sobre a obra de Perec e o Oulipo, que os livros de Perec, tanto os que escreveu quanto os muitos que leu e que são referência em sua obra, são livros que utilizam matemática, intertextualidade, estruturas complexas, narrativas, citações, plágios. Livros cujas ilustrações distam duas mil páginas umas das outras, mas que são, paradoxalmente, infinitos. "Infinitos pela rede de informação, cultura e conhecimento que possibilitam" (FUX, 2016, p. 243). Fux segue dizendo que Perec retoma e dialoga com suas próprias obras, suas próprias contraintes, suas próprias limitações, mas também retoma e homenageia outras obras, outras culturas, outros jogos, outros escritores, outros textos.

Perec modifica seu próprio texto, altera passado e futuro e aumenta a rede de implicações intertextuais possibilitada por sua obra. A letra, a escritura, a universalidade, as possibilidades de leitura e a posição do leitor são, assim, problemas centrais trabalhados (FUX, 2016, p. 246).

Verdade entre os livros. Essa busca entre livros indica um movimento de Perec na construção de sua biografia, construção que está presente em praticamente toda a sua obra. Também, podemos pensar, indica a posição do leitor, que tem posição central na construção de sua escritura. E escritura tomada aqui no sentido da relação temporal escrita/leitura que está implicada na relação entre inscrição e ato - tal como trabalhada por Lacan no seu texto Lituraterra. Ana Costa comenta, no livro Litorais da psicanálise, que Lacan rompe com o suposto freudiano de dois registros de recalque - originário e secundário - por indicarem um suposto temporal progressivo.

Desde o início Lacan vai romper com esse suposto. De sua produção podemos deduzir que o ato somente se inscreve na transposição de registros, como no encontro Simbólico/Real, e não como sendo dois tempos de um mesmo registro. É por essa dependência do ato como inscrição - na transposição de registros heterogêneos, que, por outro lado, somente se mostram heterogêneos na produção mesma desse ato - que a psicanálise imprime sua especificidade na relação necessária a outros campos do saber. Isso porque é na relação aos outros campos que se produzem os efeitos de seu discurso. É a leitura que inscreve um sujeito no lugar de seu ato, a posteriori (COSTA, 2015, p. 40).

A verdade situada no entre livros aponta para a necessária relação de leitura para que se inscreva um sujeito. Não está no livro, mas no movimento da leitura, no entre o livro e o leitor. Assim, uma verdade não é absoluta porque é uma construção, produzida entre.

Os escritos de Perec incluem o leitor, produzindo uma construção semelhante à do chiste, no sentido das considerações de Freud sobre a sua estrutura. Freud o diferencia do cômico, diz que no chiste o cômico não está na via de rir do outro, mas sim em brincar com o outro a respeito dos equívocos da língua, o "terceiro ausente", que diz respeito a não localizar no outro o objeto do gozo, e sim nos jogos de linguagem. Pelas vias da ficção e dos jogos de linguagem, Perec incorporava conceitos matemáticos diversos, apreciava a lógica combinatória, a arte do puzzle e os rigores das contraintes no processo de composição do texto. Esse estilo produz, num entre livros, um jogo chistoso que coloca o leitor a criar junto. Segundo Perec, "a escritura é um jogo que se joga a dois" (PEREC, 1997, p. 6, tradução nossa). Podemos dizer, inclui o terceiro. E vários livros de Perec mostram que nesse jogo com o livro o leitor é ativo. É a leitura que fará as relações entre as histórias, como em W ou a memória da infância, em que cabe ao leitor conectar a escrita mais autobiográfica à escrita ficcional, pois o livro é dividido em um conto e um texto autobiográfico.

W ou a memória da infância é um livro, pode-se dizer, enigmático; com esse livro Perec explicita dados biográficos. Através de fotografias de infância, vai contando fatos de sua vida. Mas Perec incluía em suas obras, de uma forma geral, elementos de sua própria biografia de forma consciente, como deixava claro em suas declarações. Era inclusive um de seus objetivos: "O projeto de escrever minha história se formou ao mesmo tempo que o meu projeto de escrever" (PEREC, 1975/1995, p. 36).

Ao mesmo tempo em que Perec considera a importância das contraintes, usadas por ele e pelo Oulipo, também reforça a linguagem como uma contrainte e critica aqueles que ignoram a escritura como prática, como trabalho e como jogo, sendo exatamente o que ele faz em sua obra:

Essa ignorância lexicográfica acompanha um desconhecimento crítico também tenaz e negligenciado. Unicamente preocupado por suas grandes maiúsculas (a Obra, o Estilo, a Inspiração, a Visão do Mundo, as Opções Fundamentais, a Genialidade, a Criação etc.) a história literária parece deliberadamente ignorar a escrita como uma prática, como trabalho, como jogo [...]. As contraintes são tratadas como aberrações, monstruosidades patológicas da linguagem e da escritura; as obras que suscitam não têm o direito do status de obra: doentes, de uma vez por todas, em sua proeza e sua habilidade, tornam-se monstros para-literários justificados somente por uma semiologia em que a enumeração e a fadiga ordenam um dicionário da loucura literária [...]. Não pretendemos que os artifícios sistemáticos se confundam com a escritura, mas somente que eles se constituam como uma dimensão não negligenciável (PEREC, 1973, apud FUX, 2011, p. 34-35).

Podemos interpretar nessa fala de Perec um ponto de resistência, uma utopia, no sentido de que, ao resistir, possibilita que seu escrito encontre um reconhecimento e faça tradição. Quando aponta para a regra de eliminação de uma letra como sendo o ponto zero das contraintes, podemos aproximar sua literatura ao trabalho da psicanálise em torno da discussão do lugar da falta na constituição subjetiva. E quando aposta numa escritura, construída a partir de uma restrição, Perec coloca o leitor num lugar ativo, ampliando as possibilidades de interpretação do escrito - como também a psicanálise, ao constatar que a condição para a construção da experiência é de que algo caia, falte ao sujeito. Mostrando que não basta um campo definido de pertença, de crenças, para que se constitua uma experiência.

Os tempos para um sujeito se contar são bem mais complexos do que somente o instante de ver. Em psicanálise sabemos a importância da constituição ficcional na sustentação da verdade do sujeito, muito bem exemplificada na ficção de Perec. Este ponto é trabalhado por Ana Costa no livro Litorais da psicanálise. Segundo a autora, essa referência temporal a ser considerada diz respeito à construção ficcional. É paradoxal a relação com a verdade porque uma verdade é um exercício de construção, depende de uma ficção compartilhada para ser sustentada. Assim, estamos no campo da falta, do não todo. No que diz respeito à problemática do objeto na psicanálise, a questão da falta é central, pois a falta do objeto, segundo Lacan, não impede, por si só, que ela seja interpretada do ponto de vista da perda do objeto. Esta ideia do objeto perdido associa o desejo à busca da reedição de uma experiência em que tal objeto foi tido, ficando a falta referida tão somente ao fracasso de tal busca. A falta do objeto não deixa de estar associada a uma origem empírica do desejo. Lacan sustenta a ideia de que a falta remete não à empiricidade da coisa (das Ding) perdida, mas sim à condição de possibilidade do desejo. Nesse sentido, aí pode surgir uma posição ética, na medida em que o sujeito, ao construir uma ficção para sustentar uma ética para sua vida, implica o desejo, instituindo uma direção à sua experiência. Seguindo Ana Costa, na construção desse campo ficcional, para sustentação do desejo, o sujeito se posiciona na verdade com estrutura de ficção, tal como sugere Lacan, no sentido de que a verdade é sempre "não toda", fica dependente da constituição de uma narrativa ficcional. "Narrativa, esta, que também pode sustentar o sujeito nas construções históricas. Isso implica a constituição mesma do laço social: dizendo respeito tanto ao que precede o sujeito como também ao que o sucede" (COSTA, 2015, p. 57).

Complexifica-se, assim, a relação ao saber. O que vai interferir e fazer toda a diferença na relação do sujeito com a experiência, já que a psicanálise propõe tomar o saber como o "insabido" do inconsciente. E é esse o processo de uma análise - o sujeito se depara com uma falta "a saber", como se alguma coisa pudesse ser apresentada como saber positivado no futuro, mesmo que no momento o sujeito não saiba.

Ao propor o saber inconsciente como insabido, coloca em causa um furo no saber. É o encontro desse furo que diz respeito à necessidade de o sujeito se situar por relação ao laço instituído, na construção ficcional que implica esse laço. Nesse sentido, a posição do analista diz respeito à produção desse furo no saber, que contradiz, ou mesmo destitui, toda a relação com o que é evidente (COSTA, 2015, p. 57).

A escrita de Perec e do Oulipo vem corroborar essa relação com a verdade e o saber, produzindo uma torção utópica na relação com a literatura. A utopia surge aqui no sentido em que Edson de Sousa a trabalha no texto "A potência iconoclasta do objeto a: psicanálise e utopia" (SOUSA, 2009a), onde aborda a ideia lacaniana de que o objeto a resiste à significantização e, escapando à imagem, podendo ser considerado como utopia. Essa argumentação, neste momento, interessa apenas para situar o sentido do utópico que quero apontar na escrita de Perec. Principalmente quando estabelece a necessidade das contraintes para, justamente, produzir furo no excesso de significado. Porque na obrigação de lembrar o sujeito fica preso num tempo em suspenso, impossibilitando uma passagem, podendo impedir que o trabalho de um luto possa se realizar.

O luto implica poder perder e, nesse sentido, esquecer. Assim, o não ter memória, colocado por Perec no livro W ou a memória da infância, diz respeito não a um esquecimento, mas a uma reação à "obrigação de lembrar", segundo Ana Costa (2015). Reação que resulta em uma obra. Pois podemos perceber em vários de seus escritos essa relação com a construção de memória, sempre num sentido da relação paradoxal com o excessivo. Na obsessão em descrever lugares, objetos e produzir uma literatura abrangente, Perec marca o limite e o inacabamento, bem como produz uma deformação do acontecimento, que é, precisamente, o movimento que poderá produzir sujeito da experiência. Com isso, Perec produz resistência ao que o interpela como sobrevivente, produz com sua obra cortes, lacunas, desafios ou obstáculos, enfim, contraintes que nos remetem a uma incompletude ou um percurso que em lugar de textos vistos como completos, sacralizados num cânone, faz da literatura um contínuo, com textos nunca acabados, inclusive nos seus textos ditos autobiográficos.

Paralelamente às narrativas oulipianas, Perec desenvolvia uma espécie de projeto autobiográfico, O resultado desse processo biográfico revisado é uma das obras mais comentadas de Perec, W ou a memória da infância.

Claude Burgelin, no seu livro Georges Perec (1988), no capitulo intitulado "Perec l'écrivain" ("Perec, o escritor"), comenta que a história de Georges Perec como escritor começa depois de um aniquilamento, depois das cinzas de Auschwitz. Ele se construiria pouco a pouco, autor de sua vida, a partir do apoio e do suporte das letras. "Construindo arquiteturas tão rigorosas quanto fantasiosas, Perec renovou os dados de tudo isso, no sentido amplo da palavra, mudou a ordem das letras" (BURGELIN, 1988/2002, p. 7, tradução nossa). Na maioria das vezes, ele o fez jogando conosco, enquanto jogava armadilhas de palavras, prendendo-as com jogos. Mas também deixando o jogo e colocando-se em jogo, escrevendo como um meio de salvação. Em W ou a memória da infância, a imagem das fotografias de infância serviram como um resgate da história de Georges Perec. "Para este filho de imigrantes (poloneses e judeus) a História com seu grande machado corta imediatamente um destino" (BURGELIN, 1988/2002, p. 8, tradução nossa). W ou a memória da infância dirá como.

Graças aos sinais, às letras, à leitura, a criança se não pôde dar sentido a esse desaparecimento, pôde colocar sobre eles, em torno deles uma montagem de rastros quantificando, decifrando o inimaginável. Ele encontrou assim os pontos de apego e suspensão que o impediram de cair no vazio (BURGELIN, 1988/2002, p. 8, tradução nossa).

Os sinais podem dizer tudo, e dizer tudo ao mesmo tempo: a vida e a morte, a opressão e a liberdade, a partida e a chegada. Eles podem representar o irrepresentável sem, no entanto, representá-lo; dizer e não dizer, sem, contudo, dizê-lo. São as imaginações, os devaneios da criança em torno do poder dos sinais - por exemplo, a montagem dos mesmos seis traços que podem resultar em cruz suástica, estrela de Davi ou um "w".

Esses sinais moldaram em Perec um escriba imaginário, manipulador de sinais, montador de letras. E os pequenos entalhes de gráficos e letras vão dar espaço para os cortes do grande machado. Com essas formas, os contornos estranhos e enigmáticos, ele vai moldar sua vida, o mundo. As peças dos seus puzzles, essas parcelas esculpidas, essas figuras irregulares, vão ajudá-lo a sair do despedaçamento. Os grandes puzzles de madeira, números e letras podem oferecer um número infinito de montagens onde os menus fazem sentido para serem associados uns com os outros, retomados em estruturas gerais. Ao mesmo tempo, são apenas montagens e ninhos, as peças podem ser descartadas ou perdidas, o vazio as rodeia. As letras/signos lhe permitirão deixar o status passivo do órfão-vítima, para tornar-se autor de sua vida (escritor) e construtor de vidas (romancista). (BURGELIN, 1988/2002, p. 10, tradução nossa).

W ou a memória da infância é um livro dividido em duas narrativas alternadas: o relato das lembranças de infância do próprio Perec e a história de um país dedicado aos esportes, "W". A parte autobiográfica não segue um relato cronológico e as lembranças se repetem várias vezes, sempre com alguma diferença em relação à versão anterior, fazendo com que o leitor precise percorrer os erros das lembranças e compará-los à fantasia (o país W), em um processo muito semelhante, podemos dizer, ao de uma análise, como desenvolve Pino (2004) a partir de Philippe Lejeune em La mémoire et l'oblique: Georges Perec autobiografe (1991). Uma lista de lembranças quotidianas, entre outras, também faz parte do programa autobiográfico seguido por Perec. De certa maneira, todos os seus textos, mesmo aqueles que partem de outros objetivos, fazem referência a um ou mais aspectos de sua vida pessoal. Por exemplo, O sumiço faz referência à morte de sua mãe. Em As coisas, o casal de personagens se dedica às pesquisas de mercado e viaja à Tunisia, como Perec e sua mulher, Paulete. A personagem de Un homme qui dort tinha uma cicatriz na parte superior do lábio, como Perec. Cécile, personagem de A vida modo de usar é inspirada na mãe do autor. Poderíamos citar uma série de outros exemplos, mas gostaria de trazer apenas mais um, comentado por Rodrigo Ferraz de Camargo (2008). Encontro em seu trabalho argumentos que confluem à minha questão sobre leitura. E é possível afirmar que minha leitura da obra de Perec se faz a partir de um direcionamento, uma contrainte - encontrar nessa leitura argumentos para a afirmação de que o infantil é um operador utópico.

Rodrigo Ferraz de Camargo traz um exemplo que ajuda a pensar o lugar do analista como o que lê - ou seja, na sua escuta é a leitura que está implicada. Na prática clínica a operatória sobre o inconsciente exige, por parte do analista, leitura, e não escuta. Mas quando estamos lendo a obra de um autor, na condição de "análise" de sua escritura, incluímos o entendimento de uma passagem do significante à letra, na qual, da mesma forma que numa transferência, está implicado o inconsciente do analista. O recorte a seguir, encontrado na dissertação de Camargo, dá conta disso:

Pierre me descrevia as ruas onde vivera, os quartos onde dormira, o desenho do papel de parede, precisava-me as dimensões do leito, da janela, a localização de cada móvel, a forma do fecho da porta, e eis que nesse inventário maníaco, dessa recensão infinita que não poderia ter deixado nada de fora, nascia em mim o pensamento pungente da ausência. Os quartos de Pierre: quanto mais eu os via se encherem de objetos, mais eles me pareciam vazios; quanto mais precisa era a topografia, mais vasto o deserto; quanto mais o mapa se povoava de nomes, mais mudo ele era. Ali só havia relíquias, não havia ninguém. E estranhamente era em mim, que o buraco se abria (PONTALIS, 1988, apud CAMARGO, 2008, p. 148).

Pierre é o pseudônimo de um dos casos clínicos mais famosos do psicanalista Jean-Bertrand Lefebvre-Pontalis, que foi aluno e analisante de Jacques Lacan nos anos 1950 e 1960. Pontalis foi analista de Georges Perec entre maio de 1971 e junho de 1975. E em vários momentos, inclusive com outros pseudônimos, escreveu relatos clínicos sobre seu famoso caso. Trazemos esse recorte porque diz da relação transferencial desde o analista, mas, principalmente, da transferência com uma leitura a partir de uma análise. O buraco que os textos perequianos fazem abrir é o indicativo da relação dos sujeitos com a nomeação, logo, da relação letra e corpo. Não é meu objetivo trabalhar tão complexa relação, mas se faz necessário marcar que a pista da letra está, como diz Lacan, onde ela nos despista, ou seja, existe uma relação intrínseca entre nome e lugar, encontro do simbólico com o real. Por essa razão, segundo Lacan, o nome pode ser um grande aliado da letra. A escrita cria outro real, responsável pela produção de bordas que de alguma maneira inscrevem a letra no buraco de um saber, situando cada sujeito; da mesma forma, inscreve e situa o sujeito em diferentes campos do saber. Perec, no livro O sumiço, escreve um lipograma em "e", conforme já foi comentado. O desaparecimento dessa letra é tematizado na história, e o único lugar onde a letra aparece é no nome do autor. E só se sabe no après-coup que se trata de um texto sobre a ausência da letra "e". É o leitor, na medida em que lê a letra, na sua ausência, quem a inscreve.

Proponho, neste trabalho, manobrar alguns textos da obra perequiana, e o farei tentando seguir a pista de uma letra, uma presença que se inverte e se desvela, inclusive, através da ausência. Farei esse caminho apoiando-me, sobretudo, em uma letra, "W". Veremos que nesse percurso de uma letra que corre atrás da verdade da descoberta freudiana chega-se a um buraco fundamental, que nos coloca diante de uma topologia, um nó. E é como um quiasma que se impõe da psicanálise com a literatura que poderemos perceber um entrecruzamento que apregoa a relação transferencial do leitor com o texto, semelhante à transferência numa análise.

A letra, para Lacan (1971/2003), é o que o significante tem de marca, é rasura que nada representa. Diferentemente do significante que representa, que faz cadeia e que ajuda a tecer o simbólico, a letra se detém, delineia um litoral entre o simbólico e o real, desenhando a borda do furo no saber. É litoral que vira literal. Litoral este que se encontra entre centro e ausência, entre saber e gozo. A letra, portanto, se encontra fora do jogo representativo, não representa; pelo contrário, detém-se em sua própria materialidade. Não forma cadeia, marca. Não engendra um sentido, faz furo. O texto de Perec parece transitar nesse litoral entre o simbólico da representação e a possibilidade da lógica matemática.

No percurso que se faz a partir de uma letra ("w") que atravessa, digamos assim, a fronteira de duas ficções diferentes, podemos reconhecer algo entre elas da ordem de uma inscrição. Esta, paradoxalmente, não cessa de não se inscrever. Ao escrever W ou a memória da infância, Perec mistura ficção, memória, infância e autobiografia, o que resulta num livro que permite analisar os efeitos de uma construção ficcional que conjuga individual e social. O título do livro superpõe uma letra ("w") e o tema das memórias de infância. Ana Costa (2015) entende a correspondência que haveria entre dois termos - a história ficcional e a autobiografia - como uma mútua exclusão constante na partícula ou do título: "W ou...". Segundo Ana Costa, podemos aqui evocar as proposições lacanianas a respeito da alienação/separação:

As partículas que constroem "pontes" nas frases (e, ou) são as mesmas que nos dão notícias da relação do sujeito ao campo do Outro. Assim "w" é indissociável da memória da infância, ao mesmo tempo em que é aquilo que impede o trabalho de luto dessa mesma memória (COSTA, 2015, p. 48-49).

No "w" desse livro de Perec encontramos, seguindo os apontamentos de Ana Costa, uma referência específica do tema da letra em psicanálise. Essa questão é desdobrada por Perec de uma forma que possibilita estabelecer, nas relações que faz com o "w", a conexão "imagem, letra e significante". Ele relaciona a letra "w" aos desenhos que fazia no período em que escrevia uma história ficcional, aos 12 anos: vem do desenho de um homem serrando lenha num cavalete montado em duas bases formando a letra "x"; esse "x" se desdobra em dois "v's", compondo o "w" da ilha no texto ficcional - uma imagem, portanto, que, podemos dizer, interliga letra e signo.

Com toda a complexidade que porta algo que se fixa num elemento, e que a escrita veicula como cifrado. Assim o "x" imagem se associa a uma letra-palavra - como se diz o "xis da questão", cuja imagem se desdobra em dois Vs - compondo o W da ilha. Também na cruz gamada nazista, ou mesmo na estrela judaica. Perec situa a relação com essa letra de quando seus desenhos não faziam enlaces (imagens "sem chão"). Nesse sentido, o W da narrativa não é articulador (como os "e... ou...", que antes destacamos, característicos da condição necessária de apropriação do sujeito no seu trabalho de alienação/separação ao campo do Outro) [...]. É possível situar esta falta de enlace num último elemento a destacar da história de W: a relação com o nome próprio (COSTA, 2015, p. 49).

O início da narrativa traz essa questão do nome próprio. Um desertor da guerra busca por documentos falsos, que vem a descobrir serem de outro que possivelmente ainda vive. O sistema de nomeação da ilha W, por sua vez, consiste no seguinte: W é uma ilha do esporte onde o nome de cada atleta é o que designa o nome da vitória na prova olímpica da qual o atleta participava, ou seja, todos que ganhassem uma prova passariam a ser chamados pelo mesmo nome. Portanto, conforme Ana Costa nos diz, "o que perderia num tal sistema é o que é 'próprio' do nome próprio: sua capacidade de nomear, enlaçar o sujeito a uma genealogia, implicando uma descendência: passado e futuro" (Id., ibid., p. 49).

Lacan, como Freud, toma o "literário" para pensar o humano e os conceitos psicanalíticos. Inclusive naquilo que intitulou "a razão desde Freud", em um texto seminal em que se dedica à instância (autoridade, insistência) da letra: "Também o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio" (LACAN, 1957/1998, p. 498).

Perec, no ato de sua escrita, busca uma memória que o situe numa transmissão que ultrapassa o familiar. O ato aqui como o que situa o sujeito para além de uma produção de linguagem, numa reprodução incessante do instante de ruptura, numa repetição estéril da tentativa de cerzir o desmembramento provocado, de suturar uma origem, para que a produção da linguagem volte a se organizar. O ato, portanto, recoloca uma relação à memória, o que implica o sujeito nas diferentes formas de expressão desse acontecimento. A noção de ato que interessa indagar a partir da obra de Perec é da sua especificidade na psicanálise.

A transmissão depende da inter-relação entre inscrição, memória e identificação. Irei trabalhar a intersecção inscrição e memória. Perec fala, na ficção W..., de um acontecimento histórico, gerador de trauma social. Na sua obra tenta dar conta do que se repete com relação ao seu movimento para inscrever esse acontecimento singularmente. E ao lê-lo percebemos que estamos incluídos aí. Um fator decisivo nos textos de Perec é que eles não deixam outra saída ao leitor senão uma entrada. É preciso colocar algo de si nessa empreitada da sutil relação da linguagem com o corpo.

Existe uma relação paradoxal entre memória e esquecimento. Relação que Perec explicita em seus textos, em sua utilização de artifícios linguísticos e matemáticos. Inclusive, é por meio desse paradoxo que resgatamos cada fragmento da vida que subitamente nos retorna, seja ela qual for. Aliás, a questão da memória é inseparável da questão da narração. E a literatura permite fixar algo através de uma ficção, a ficção da escritura. "A memória não se equivale ao acontecido, mas se apoia nele" (COSTA, 2015, p. 55).

As lembranças da infância decorrem muitas vezes de uma fantasia que se cria quando a infância já acabou. Elas surgem mais tarde como uma história do passado num processo quase onírico de condensação e deslocamento e ressurgem modificadas, colocadas a serviço de tendências posteriores. A lembrança, assim, tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da memória. Podemos dizer que o "w" é uma tentativa de preencher uma lacuna da história pregressa de Perec, tal como Freud trabalha ao analisar a biografia de Leonardo da Vinci, no seu texto Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci (1910), tentando pesquisar sua fantasia mais tenra. Sua tentativa é de traduzir a expressão dessa fantasia, a partir da famosa história do "melro", um pássaro preto que Freud trata como sendo um abutre, que visitou Leonardo ainda bebê, no seu berço, e lhe tocou a boca com a cauda. As lembranças começam a se embaralhar. Mas o que nos interessa desse estudo é como Freud, a fim de dar conta do que está entre o "fictício da fantasia" e o "real da lembrança", recorre a um outro sentido, fazendo a seguinte abordagem:

Talvez não possamos esclarecer melhor sua natureza, a não ser se pensarmos no meio e na maneira pela qual a historiografia surgiu nos povos antigos. Enquanto o povo era pequeno e fraco, não se pensava em escrever sua história; preparava-se a terra do país, defendia-se a existência contra os vizinhos, procurava-se conquistar um país e começar a enriquecer. Era uma época heroica e não-histórica. Então, começou uma outra época, na qual começou-se a refletir, a se sentir ricos e poderosos, surgindo então a necessidade de saber de onde se chegou até aqui e como isso aconteceu. A historiografia, que começara anotando as vivências fugidias do agora, também lançou o olhar para trás, para o passado, reuniu tradições e sagas, interpretou os primitivos de todas as épocas, por meio de seus hábitos e costumes e criou assim uma história dos tempos primitivos. Foi inevitável que essa história tenha sido, antes de tudo, mais uma expressão das ideias e desejos do presente do que uma reprodução do passado, pois muito da memória dos povos já tinha sido posto de lado, outras coisas já tinham sido distorcidas, muitos rastros do passado tinham sido equivocamente interpretados no sentido do presente e, sobretudo, a história não mais era escrita a partir de um motivo de um desejo de saber mais objetivo, e sim porque se queria causar impacto entre seus contemporâneos, estimulando-os, elevando-os, querendo mostrar-se como um espelho. A memória consciente de uma pessoa sobre as suas vivências da maturidade é então inteiramente comparável a esta historiografia, e suas lembranças infantis correspondem, realmente, segundo sua proveniência e preocupações, com a história posterior e tendencialmente arranjada da história dos tempos primitivos de um povo (FREUD, 1910/2015, p. 96-97).

A lembrança infantil se liga ao presente do sujeito, ao que ele pode fazer a partir da lembrança que tornou uma vivência da infância uma marca; e apesar das distorções e equívocos, a realidade do passado está inteiramente representada nelas. Freud comenta que é digno de nota que acreditemos lembrar de nossa infância: "de fato, por trás desses restos de lembranças, que nós mesmos não compreendemos, estão escondidos testemunhos inestimáveis de traços significativos de nosso desenvolvimento psíquico" (FREUD, 1910/2015, p. 97). Aqui temos indicativo do interesse de Freud em buscar as raízes infantis no processo de construção de uma obra. Contudo, este infantil não se revela diretamente. Ele surge de forma tortuosa e obscura, como uma imagem não disponível, e que só pode ser parcialmente recuperada. "Isso porque a intenção do artista nunca se realiza completamente, pois é atravessada pelos ruídos impostos pelo trabalho do recalque" (SOUSA, 2015a, p. 319). Portanto, problematiza-se a viabilidade de uma tradução direta do psiquismo do artista na obra que ele realiza.

Freud nos sinaliza que não é possível estabelecer um método de leitura da obra de arte sem levar em conta a diferença entre a intenção e a expressão do artista. Podemos dizer que é no que falha entre a intenção e a expressão que um campo rico de estudos se abre para a Psicanálise. Neste ponto, vemos em obra a divisão do sujeito, inaugurada por Freud quando propõe o conceito de inconsciente, indicando-nos que não há coincidência entre aquilo que o sujeito pensa e o que diz, entre o que diz e o que faz, entre o que intenciona e o que expressa. Assim, o que interessa em uma obra de arte é muito mais sua dimensão de rasura. Em outras palavras, é insuficiente recorrer às intenções do artista para decifrar os significados de suas produções. (SOUSA, 2015a, p. 319-320)

Parece ser dessa relação do artista com sua obra que Perec dá testemunho, quando faz do seu escrito um inacabamento.

W ou a memória da infância tem a seguinte epígrafe de Raymond Queneau: "Essa bruma insensata em que se agitam sombras, como eu poderia clareá-las?" Portanto, Perec inicia seu projeto autobiográfico buscando clarear as sombras e reviver as memórias de sua infância. Assim, escreve. Escreve para se percorrer e tentar inscrever os acontecimentos, entendendo sua ambição com a escrita do seguinte modo:

Se eu tentar definir o que eu procurei fazer depois que eu comecei escrever, a primeira ideia que me vem ao espírito é que eu jamais escrevi dois livros semelhantes. [...] Minha ambição de escrever seria a de percorrer toda a literatura do meu tempo sem jamais ter o sentimento de voltar nos meus passos ou de caminhar novamente pelos meus próprios traços e de escrever tudo o que é possível a um homem de hoje escrever: livros grandes e curtos, romances, poemas, dramas, livretos de ópera, romances policiais, romances de aventura, romances de ficção científica, folhetos, livros para crianças (PEREC, apud BURGELIN, 1988/2002, p. 11, tradução nossa).

Aqui podemos perceber sua necessidade de escrever, e seu propósito é audacioso, até megalomaníaco, com essa exigência continua de movimentação e ultrapassagem, com essa ganância criativa. Ao mesmo tempo, a imagem de orientação continua a ser a do caminhante, marcada pela simplicidade e pelo senso de proporção, conforme comentário de Burgelin (1988/2002). Se Perec, escritor, teve a ambição de desenhar tantos cursos através do espaço literário, é para que as palavras lhe oferecessem novas formas de narrar, pensar, sonhar, se contar. Talvez uma tentativa de dar conta de algo que não se apresenta constituído como memória, a não ser na dispersão de seus elementos. E aqui entramos num outro ponto que pretendo abordar com relação ao escrito de Perec, que intitulo poética do inacabável.

 

2. A poética do inacabável e o silêncio compartilhado

A escrita é um traço no qual se lê um efeito de linguagem.
Jacques Lacan, Mais, ainda

Qual é a matéria da memória? As lembranças ou reminiscências de um tempo vivido adquirem uma substância somente se se submetem às ondulações do ato que encerra o tempo pensado. Tais ondulações rítmicas com as quais operam a observação e a percepção diante das falhas do tempo são as responsáveis pela propagação de uma memória, seja individual, seja social ou ainda coletiva. Assim revela Perec nos seus escritos, como em Espèces d'espaces, quando diz que não se pode viver o passado sem o encadeamento num tema afetivo do presente, tal como também afirma Bachelard (1957/1989, p. 51, tradução nossa): "reviver o tempo desaparecido é apreender a inquietude de nossa própria morte. [...] Só nos recordamos de algo ao proceder a escolhas, ao decantar a vida turva, ao recordar fatos da corrente da vida para neles colocar razões".

No seu projeto de escrita, Perec valia-se das descrições cotidianas que fazia, como, por exemplo, quando se propõe a descrever o lugar onde viveu sua infância na França, como nas obras L'infraordinnaire (1973), Je me souviens (1978) e Tentativa de esgotamento de um local parisiense (1974). Nessas descrições, Perec constrói uma narrativa que interroga o habitual, lança um olhar ora distante, ora afetivamente próximo às ruas do bairro onde viveu, gerando escritos sistemáticos, ainda que triviais e fragmentários, sobre as fachadas das casas e dos imóveis, os calçamentos, os moradores. Interroga-se, mas a ponto de perceber desde as origens aquilo que esqueceu. Assim, personagem e cenário se fundem numa alquimia de reminiscências que fazem reinventar a cidade como interlocutora de suas memórias. Camadas de tempo se revelam no diário que identifica a cartografia das ruas, inventário do cotidiano; o infraordinário se revela e se traduz na observação das casas e ruas e no registro de paisagens sonoras. Em L'infraordinnaire, Perec lança a proposta de se fundar uma antropologia do nós, que, finalmente, falaria de nós, que procuraria em nós mesmos aquilo que foi, por longo tempo, pilhado dos outros, e se interroga: como nos darmos conta, então, da nossa vida ordinária, da nossa rotina? Como interrogar nosso cotidiano? Como descrevê-lo?

Perec (1989/2008) diz que não se trataria do exótico, mas do "endótico", ou seja, não mais do extraordinário, mas do infraordinário. Assim, parece que não é a alteridade que estrutura a metodologia do trabalho, mas o seu deslocamento na tentativa de inventariar as relações que são estabelecidas entre os homens e os lugares.

Eu decidi fazer, a cada mês, a descrição de dois desses lugares. Uma dessas descrições se faz no próprio lugar e se pretende a mais neutra possível: sentado num café, ou caminhando na rua, com um bloco e uma caneta na mão, eu me esforço em descrever as casas, as lojas, as pessoas que encontro, as propagandas, e, de um modo geral, todos os detalhes que chamam minha atenção. A outra descrição se faz num outro espaço diferente desse lugar: eu me esforço, agora, em descrever os lugares da memória e evocar todas as lembranças que me vêm, sejam eventos que ocorreram nesse lugar, sejam as pessoas que encontrei (PEREC, 1974/2000, p. 109, tradução nossa).

Numa insistência em escrever descrevendo, Perec produz um movimento que enlaça o leitor justamente no ponto da sua dúvida. Descrevendo, faz surgir a questão sobre uma busca que resultaria em memória. Enlaça o tempo nessa dúvida sobre aonde vai chegar. Eis a sensação de inacabamento. Esse movimento nos permite discorrer ainda um pouco mais sobre a letra, tanto na relação ao significante quanto na relação ao real, pois se desdobram em tempos lógicos que fazem com que as condições de produção se modifiquem nesses diferentes tempos. O ato de nomear traz implicações para pensarmos a questão da inscrição, porque um nome não traz sentido, produz um lugar. O ato como inscrição guarda relação estreita entre sua produção e um lugar de endereço que está sempre se recolocando nas histórias singulares. E Perec, nomeando os lugares, numa descrição que o leva a construir suas memórias singulares, produz o movimento que vai do singular ao coletivo. É pela referência à inscrição que se constitui a cadeia significante, tanto suas possibilidades quanto seus limites. A memória vai se situar a partir de um ato que inscreve.

Freud, ao trabalhar as questões referentes à construção da memória, por exemplo na Carta 52, escrita para Fliess em 2 de novembro de 1896, trabalha a passagem da percepção à memória como inscrição de traços mnêmicos. Trabalho que possibilita entendermos que a percepção só faz memória desde que encontre um sistema de leitura inscrito primariamente. Ou seja, o que percebemos não se inscreve diretamente, somente produz traços que poderão ser relacionados a outros traços, na construção de um sistema. Podemos entender isso a partir da proposição freudiana da alucinação do seio. Essa alucinação é o representante primário que vai mediar sempre todas as experiências satisfatórias. Significa que o traço deixado pela ausência do objeto - nas relações primárias - é o responsável pela criação de todo um sistema de objetos, constituintes do que costumamos perceber como realidade. O que implica pensar que é responsável pela criação de representantes a partir dos quais se constitui todo um sistema de representações. A partir da leitura de Lacan, a inscrição, nesse sentido, será de significantes que possam responder como S1. Toda organização de nosso mundo é discursiva, resultante da constituição do laço social, e nossa leitura desse mundo é legada por diferentes discursos que precedem e recortam nossos sentidos. A linguagem do falante insere um saber no vazio que o signo porta. Perec, ao nomear o lugar da infância, num compartilhamento da escrita, ao percorrê-lo inscreve suas memórias, portanto, num processo de leitura.

E o paradoxal exemplo da escrita de Perec, nos oferece um exemplar indício do quanto buscamos continuidade no resgate de memórias que nos tornem sujeitos de uma história contada bem antes de existirmos, e que, assim, somos o resultado entre isso que se mostra nas formações do inconsciente, insistindo em uma enigmática repetição, e a possibilidade de sua elaboração no efeito de retorno do inconsciente. Desde Freud podemos considerar a intervenção clínica como uma operação de decifração, assim, o enigma que o texto lança faz do leitor o portador da resolução desse enigma; no entanto, na medida em que ele, leitor, faz-se portador de um enigma, passa a ser tributário de um saber, que sempre falseia, e é sempre o ato da leitura que reintroduzirá para o sujeito a questão de como retomar esses traços inscritos para produzir algo a partir deles. A ideia do plágio pode aludir ao fato de que, assim como para a psicanálise, a literatura pode possibilitar que um texto não nos fale somente dos outros, mas do outro em nós.

 

 

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Artigo recebido em: 03/05/2019
Aprovado para publicação em: 02/10/2019

Endereço para correspondência
Inajara Erthal Amaral
E-mail: inajara18@gmail.com
Edson Luiz André de Sousa
E-mail: edsonlasousa@uol.com.br

 

 

*Psicóloga e Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil.
**Professor Doutor Titular do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-Graduação de Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador do CNPQ. Coordenador do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política (LAPPAP). Porto Alegre, RS, Brasil.
1Do verbo francês contraindre: que exerce uma ação contrária a; forçar alguém a agir contra a vontade; obrigar, controlar, empurrar, condenar, reduzir. Também: coerção, intimidação, ameaça, pressão, violência. Coisa que coloca obstáculo, coisa que impede a ação. Regra, disciplina, lei. Opressão. (Adaptação do dicionário Le Petit Robert Micro). Esse dicionário não diz nada do emprego da contrainte na literatura e nas artes. Em literatura e na criação artística, usar uma contrainte é trabalhar sob limitações e regras. "Essas limitações podem ser dos mais variados tipos: na redação de um texto, pode-se eliminar o número de palavras, pode-se proibir o uso de determinado tempo verbal ou mesmo de uma letra do alfabeto" (O que é a contrainte?, 2010).
2Contrainte, segundo Vinícius Carvalho Pereira (2013), é uma restrição que o grupo Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle), criado por Raymond Queneau na década de 1960, impõe à escrita. O Oulipo é uma corrente literária que mistura regras da literatura e da matemática na criação das obras. Vai de encontro às correntes do pensamento europeu na segunda metade do século XX, especialmente o existencialismo e o surrealismo. Para os "oulipianos", está em jogo uma escrita como ato, procedimento, estratégia ou jogo. Não seria, pois, um gênio autoral ou um sujeito preexistente que dotaria a linguagem de um sentido, mas sim ela mesma, a partir de seus algoritmos e associações ou exclusões, que comporia uma mensagem. "Libertar a língua e a literatura por meio de regras restritivas: eis a tarefa paradoxal a que se lançou o Oulipo - grupo de escritores europeus da década de 60" (PEREIRA, 2013, p. 174).
3"Do verbo epéchein 'suspender'. Na filosofia cética, 'suspensão do juízo', atitude que evita afirmar ou negar, aceitar ou refutar as coisas, como forma de atingir a imperturbabilidade" (AGAMBEN, 2014, p. 173).
4Do original francês La disparition. Esse livro tem a tradução de José Roberto Andrade Féres, conhecido como Zéfere, e foi publicado pela editora Autêntica em 2016.
5É interessante que essa regra à qual Perec se submete vai ao encontro das regras do grupo Oulipo, e alude ao fato de que as regras na verdade libertam a literatura. Semelhante à ideia que a psicanálise traz da importância da interdição para constituição subjetiva.
6Termo hebraico e bíblico que significa "catástrofe", "destruição", "aniquilamento".

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