Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.42 no.42 Rio de Jeneiro jan./jun. 2020
ARTIGOS
Do desprazer da realidade ao encontro com o trauma: pensando em uma afirmação do desprazer
From the displeasure of the reality to the encounter with the trauma: thinking of an affirmation of displeasure
Stephanie BrumI*; Leonardo CâmaraII**; Diego SanzanaI***
INúcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade - NEPECC -Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
RESUMO
O presente artigo objetiva analisar a ideia de afirmação do desprazer. A afirmação do desprazer é uma ideia-problema que nos permite observar um movimento próprio ao aparelho psíquico que leva o sujeito a afirmar uma faceta desprazerosa da experiência. Essa proposta ferencziana, que podemos reconhecer como uma inflexão no próprio princípio do prazer, nos coloca diante de dilemas referentes à problemática do trauma, da clivagem, do movimento de autodestruição, assim como um direcionamento à vida mesmo diante da morte iminente.
Palavras-chave: Afirmação do desprazer, Trauma, Autodestruição, Clivagem.
ABSTRACT
The present article will analyze the idea of affirmation of displeasure. The affirmation of displeasure is a concept that allows us to observe a movement proper to the psychic apparatus that leads the subject to affirm an unpleasant facet of experience. This ferenczian proposal, which we can recognize as an inflection in the pleasure principle itself, brings us to dilemmas concerning the problem of trauma, cleavage, the self-destructive movement, as well as a direction to life even in the face of impending death.
Keywords: Affirmation of displeasure, Trauma, Self destruction, Cleavage.
Introdução
A afirmação do desprazer é uma ideia e um problema. Ideia, pois visa propor uma leitura sobre como somos capazes de suportar e, para além disso, assumir um posicionamento a favor de uma situação que inevitavelmente nos conduzirá ao desprazer - e, em casos mais radicais, à própria destruição. Problema porque se refere a um movimento sutil que complexifica as matrizes de organização psíquica, estabelecendo não apenas um contraponto ao princípio do prazer, mas também uma inflexão em seu próprio interior estendendo, no limite, a um paradoxo entre prazer e desprazer, destruição e criação, morte e vida.
É lícito dizer que essa ideia-problema perpassa, intermitentemente, toda a obra de Ferenczi, nos possibilitando o entendimento de que a mesma consistiu em uma preocupação constante do autor. No entanto, em seus últimos escritos adquire uma importância decisiva nas reflexões sobre trauma e clivagem - não somente no âmbito teórico, mas também clínico. Coelho Junior (2018) localiza a matriz do pensamento ferencziano, que se distinguiria de uma denominada matriz freudo-kleiniana por abordar questões provenientes de observações clínicas inerentes à quadros não referidos ao terrenos das neuroses: "Nesses casos, o adoecimento psíquico é ainda mais precoce e mais grave do que se pode observar na matriz freudo-kleiniana" (COELHO JUNIOR, 2018). Neste ínterim, a questão do trauma passa a ser trabalhada não apenas como referida à formas de adoecimento psíquico que chegam aos consultórios, mas, como transições inerentes à constituição e desenvolvimento psíquicos a partir da ideia do trauma enquanto constitutivo do aparelho psíquico (FERENCZI, 1924/2011). Vale destacar que seguindo a linha paradoxal de seu pensamento, Ferenczi apresenta também a ideia do trauma não apenas em sua faceta positiva e criativa, mas como fonte de passivação do sujeito diante do trauma sofrido1. Neste caso, embora o estado de passivação também contribuía para a própria constituição psíquica através dos jogos de imitação por exemplo, implica no surgimento de respostas passivas diante do trauma uma vez que trata-se de uma morte parcial, com a qual algumas formas de reação que carregam uma faceta própria do sujeito são perdidas. Nesse sentido o autor afirma que: "Chega-se assim a uma forma de personalidade feita unicamente de id e superego, e que por conseguinte é incapaz de afirmar-se em caso de desprazer" (FERENCZI, 1932/2011, p. 118). Apesar de reconhecermos a importância do estudo dos estados de passivação, seus efeitos e manejo clínico, não nos prenderemos à esta problemática no presente artigo. Tal escolha se deve justamente ao enfoque construído referir-se a um estudo sobre a temática da afirmação do desprazer, movimento que como o próprio Ferenczi apontou não é possível para os sujeitos que diante do trauma reagem a este com um movimento de anulação de si, aderindo à única reação que passa a lhes ser possível na relação com o meio, uma resposta passiva. Em contra partida, buscaremos apresentar justamente um lugar de atividade assumido pelos sujeitos no movimento de afirmar o desprazer.
Visto isso, o objetivo deste artigo é tão simplesmente dar vida a ideia da afirmação do desprazer, fazendo um percurso que se inicia em sua articulação com o prazer e a realidade e termina em uma investigação de sua participação nas construções a respeito do trauma. Entendemos que a relevância desta apresentação se deve a um novo leque de perspectivas que poderá ser mobilizado e incluído nos debates sobre as formas de subjetivação contemporâneas, assim como acrescentar novos elementos de reflexão sobre tópicos como a dor, a autodestruição, o sentimento de si, as adicções e os distúrbios psicossomáticos.
A afirmação do desprazer e a realidade
Ao nos dedicarmos ao estudo das relações de prazer-desprazer, percebemos que: embora possamos reconhecer, nos primeiros escritos freudianos uma primazia do prazer na vida psíquica, esta de certo sofre uma considerável relativização ao longo da obra2. Em meio a essas relativizações postas sobre este princípio, cujo objetivo é a evitação do desprazer, nos deparamos com a proposição ferencziana de uma afirmação do desprazer. De fato, pensar em um aparelho psíquico que se direcionaria ao desprazer no contexto psicanalítico se apresenta como algo no mínimo intrigante. Então, o que estaria implicado nesta proposta de uma afirmação do desprazer?
Seguindo o apresentado por Ferenczi (1926/1993), este conceito adquire relevância no desenvolvimento subjetivo assim como um lugar de destaque no processo de ingresso à realidade compartilhada. Visto que o contato com o desprazer é inevitável, em um dado momento, o sujeito se veria diante da escolha entre aceitar o desprazer, ou se deparar com o desprazer em decorrência desta não aceitação3. Nesse sentido, a principal ideia que visamos enfatizar a respeito da noção de afirmação do desprazer se encontra referida ao fato de que, seja a construção que for que Ferenczi adote ao longo de sua obra, sobressai o movimento de afirmar, isto é, de se posicionar frente a uma situação ou contexto, mesmo que seja permeado por sofrimento ou que se revele inequivocamente desvantajoso. O movimento de afirmação, em Ferenczi, não consiste em um ato voluntário e nem exprime uma autonomia; não é uma decisão consciente e nem fruto de uma cogitação racional. Trata-se de um momento de afirmação de si e tentativa de sobrevivência, afinal, para o autor, as catástrofes (tanto estruturantes quanto desestruturantes) são inevitáveis. Ou seja, o movimento de afirmação é pura potência que prescinde dessas categorias, uma vez que uma forma prezar pela própria existência diante da morte inevitável. É incorporar um agressor insuportável e com ele toda a culpa do ocorrido como a única saída possível para dar conta do evento; é promover uma modificação de si mesmo (autoplástia) quando não é possível modificar o meio (autoplastia).
O caráter de inevitabilidade do direcionamento do sujeito ao desprazer se deve não apenas a impossibilidade de manutenção de um estado de onipotência, como também a inclusão de certa medida de desprazer no psiquismo4. Afinal, embora o aparelho psíquico se esforce para escapar ao desprazer, este é inerente ao seu próprio funcionamento, devendo então ser reconhecido pelo sujeito. "O ser humano", diz Ferenczi (1926/1993) "deve aprender que pode produzir-se mesmo em seu interior, portanto, por assim dizer, no próprio ego, algo de desagradável isto é, de mau, de que lhe é impossível desembaraçar-se por alucinações ou de qualquer outra maneira" (FERENCZI, 1926/1993, p. 438).
Se atentarmos para a potência da qual o termo afirmação, utilizado por Ferenczi é dotado, temos que esta palavra traria consigo a ideia não de um sujeito que aceita passivamente o desprazer que lhe é imposto pelo meio; ao invés disso, estaríamos perante um sujeito que se afirma diante das intempéries de seu desenvolvimento, sendo capaz de se posicionar de forma ativa ante circunstâncias infrutíferas da vida; o que culminará um posicionamento de si.
Em 19135 Ferenczi se dedica ao estudo das principais etapas pelas quais se desdobra o princípio do prazer em direção ao princípio da realidade. Visto isso, temos que, para Ferenczi, o encontro do sujeito com a realidade ocorre principalmente por dois motivos. Em primeiro lugar, torna-se insustentável manter inócua a tendência psíquica geral de evitar o desprazer. Em segundo lugar, para ele a passagem do princípio do prazer para o de realidade não se dá por um salto e nem de uma vez por todas, é, pelo contrário, um processo - demandando assim um tempo.
Neste panorama temos então o psiquismo infantil, concebido como sendo inicialmente uma mônada; o que significa que o infante não é capaz de diferir um estímulo exterior de um processo interno. Neste momento, a criança acredita ser senhora de uma onipotência incondicional, uma vez que tudo o que deseja é satisfeito. Na experiência de onipotência, não há uma diferenciação entre desejar e se satisfazer; desejo e prazer são uma só coisa (FERENCZI, 1913/1992). Não à toa, a criança não se ocupa com aquilo que Ferenczi denominou de "malícia das coisas", isto é, o fato de as coisas do mundo não se comportarem do modo desejado e esperado.
A dita malícia das coisas se impõe entre o desejo e a satisfação, introduzindo um intervalo entre um e outro e relativizando o sentimento de onipotência; a criança não mais tem aquilo que deseja de imediato, ela passa a ter de esperar, e, no mesmo movimento, construir novas formas de conseguir o que quer. Em outras palavras, a criança é frustrada, e imersa na frustração, renuncia ao sentimento de onipotência; afirmada a renúncia, ela inventa meios de expressar ao próximo àquilo que deseja (FERENCZI, 1928/1992). Esse processo consiste, propriamente, no que Ferenczi nomeará como "afirmação do desprazer" (FERENCZI, 1926/1993). Da imagem inicial de uma mônada, o psiquismo se abre agora para as primeiras diferenciações entre o que é percebido objetivamente e o que é vivido subjetivamente. Duas experiências ausentes na pretérita vida monádica e onipotente começam a marcar presença aí: o desprazer e o "reconhecimento" de algo que não eu. Nestes termos, o sujeito se depara não apenas com a existência de algo desprazeroso, mas com a impossibilidade de livrar-se dele por completo, tendo para isso, de assumir uma parcela de desprazer em seu próprio psiquismo (FERENCZI, 1909/2011). Nesta linha, temos que, quando ainda referido à um estado monâdico, de indiferenciação com o mundo, o processo de projeção primitiva permitiria que a criança expulsasse tudo que lhe fosse desprazeroso; além de poder transformar os afetos subjetivos em sensações objetivas. No entanto, será dado o momento em que uma parte maior ou menor de desprazer não se deixará expulsar tão facilmente, e o Eu se renderá a este desafio; introjetando esta parcela desagradável do mundo e dando origem ao processo de "introjeção primitiva". (FERENCZI, 1909/2011).Vale destacar que este movimento não se expressa meramente como uma "desvantagem" para o sujeito; muito pelo contrário, é a partir dele que o aparelho pode dar início a uma relação com a externalidade e adquirir desta os sentidos contidos nos objetos. Processo que será pertinente para seu desenvolvimento e para a complexificação de seus processos psíquicos.
Deste modo, consideramos que a questão a qual nos atentamos na argumentação de Ferenczi é: como a criança é capaz de afirmar o desprazer? Por meio de que mecanismo se torna possível o abandono da onipotência e reconhecimento da realidade? Das diversas hipóteses que são lançadas por Ferenczi para responder a essas questões, uma sobressai, vez que, por um lado, vai ser retomada em alguns escritos posteriores e, por outro, representa um dos mais interessantes "anexos" à teoria freudiana do aparelho psíquico. Nos referimos aqui à hipótese da máquina de calcular (Rechenmaschine ) (FERENCZI, 1926/1993).
A Rechenmaschine
No decorrer de sua vida, a criança se depara com um problema "sem saída": ela nega a realidade como forma de tentar preservar sua onipotência e, assim, não sentir desprazer. Entretanto, este projeto malogra visto que a satisfação de seus desejos fica, progressivamente, condicionada a um maior reconhecimento da existência do outro que a alimenta; e assim, passa a inventar formas pelas quais consiga apresentar a este o que deseja. Se isso não ocorre, ela se frustra e, consequentemente, é assaltada pelo desprazer. Em suma, seja se fechando em sua própria onipotência, seja se abrindo ao outro, o desprazer é um fato ao qual nós, seres humanos, não conseguimos nos furtar por muito tempo6. E assim, a única solução que apresenta como possível muitas vezes, é sustentar a experiência de desprazer, ou melhor, afirmar o desprazer.
A afirmação do desprazer é tanto a condição que fundamenta a possibilidade de escolha da criança quanto àquilo que lhe permite manter sua escolha. De um cenário sem saída, ela passa a um outro: afirmado o desprazer, ela deve escolher qual das situações irá tolerar. Longe de este ser um procedimento consciente, fruto de uma deliberação racional, Ferenczi propõe que a afirmação do desprazer se trata de um movimento inconsciente que tem lugar não apenas na experiência infantil como também nas estruturas orgânicas mais simples, processando-se de uma forma quase, diríamos, computacional. Com efeito, ele postula que esse processo se dá por meio de uma miríade de "operações matemáticas inconscientes onde intervêm provavelmente todas as simplificações da aritmética (álgebra, cálculo diferencial)" (FERENCZI, 1926/1993, p. 403).
Continuando com analogias provenientes da matemática, Ferenczi compreende que: diante de uma situação sem saída - na qual o sofrimento é o único horizonte possível -, entra em funcionamento um órgão psíquico (ou orgânico) análogo a uma máquina de calcular. Sua função é projetar os cenários que irão ocorrer no futuro, estipular a intensidade de desprazer que cada um produzirá caso sejam vividos, compará-los entre si e, finalmente, definir qual deles será menos penoso. Uma vez realizada essa projeção e esse cálculo, o que é menos desprazeroso passa a ser considerado relativamente prazeroso (na medida que, o é mais que a outra situação). A criança se torna, enfim, capaz de afirmar o desprazer frente àquela situação específica.
Entre alienar-se em sua própria onipotência ou abrir-se ao reconhecimento do outro, o que provoca menos desprazer é a segunda alternativa. Isto porque ainda que a criança tenha de abrir mão de sua onipotência, ela conquistará, ao final do processo, a satisfação que anseia. Nota-se como Ferenczi sustenta o primado do princípio do prazer, ainda que no seu interior haja, paradoxalmente, a necessidade da experiência de desprazer. A ideia de afirmação do desprazer é, nestes termos, uma formulação mais robusta e complexa do desenvolvimento do sentido de realidade e seu consequente impacto sobre o princípio do prazer. Visto isso, a afirmação do desprazer mostra que o limiar entre o prazer e desprazer é pouco nítido e, mais que isso, que ambos se misturam em um movimento dinâmico, em que cada qual adquire maior protagonismo, mas o perde de uma hora para outra. Da mesma forma, a inter-relação entre duas vertentes opostas, como prazer e desprazer, prazer e dor, vida e morte, também foi defendida por Freud em (1924/2011), quando o autor afirma que embora tratemos de Eros e Thanatos como duas forças distintas na teoria, ambas se encontrariam amalgamadas no psiquismo. Esta ideia se apresenta como de extrema importância em nossa temática, uma vez que além de relativizar o princípio do prazer também nos leva a compreender o quão tênue a separação entre prazer e desprazer pode se enunciar.
Objetividade e memória
A afirmação do desprazer possui ainda outra consequência quando alteramos o nosso ângulo de visão da relação entre prazer e desprazer para a relação particular entre pulsões de vida e de morte na obra ferencziana. Gondar (2017) afirma que, para Ferenczi, as tendências de vida e de morte não são opostas; a vida é o elemento primordial do qual o inorgânico - a dissolução de tudo que é uno - se derivaria. É a partir desse entendimento de que tendências de morte estariam presentes também na vida, que, segundo a autora, levaria a uma concepção do universo orgânico e inorgânico como uma variação constante entre as tendências no sentido de vida e de morte, de modo que nenhuma se estabeleça como hegemônica. Esta perspectiva, segundo a qual vislumbramos o intenso entrelaçamento entre tendências de vida e morte, garante ao sujeito o reconhecimento do objeto - e assim o abandono de um estado de onipotência a fim de ingressar na realidade - e a gênese da memória.
No que concerne ao reconhecimento do objeto - isto é, algo que não é eu -, não haveria possibilidade de fazê-lo se somente o amasse ou somente o odiasse. Se somente o amasse, o objeto não seria nada mais que uma extensão do eu, estando envolvido no campo de onipotência da criança. Se, por outro lado, o objeto fosse odiado, ele seria simplesmente recalcado ou rejeitado, passando a inexistir no mundo. Apenas quando se ama e se odeia o mesmo objeto é que ele começa a ser reconhecido como estando fora do campo de onipotência. Ama-se o objeto porque se precisa dele; odeia-se porque, mais uma vez, se precisa dele, mas ele - o objeto - não está disponível ao bel-prazer da criança. Utilizando-nos da imagem do bebê e do próximo que o alimenta: o bebê ama o seio porque o nutre, mas o odeia porque nem sempre está lá quando o deseja e, não obstante, precisa dele para se nutrir. Se o seio sempre estivesse lá, não seria nada mais que uma extensão da criança, não carecendo ser reconhecido como algo que está fora de si. Percebe-se aí como retornamos ao problema da afirmação do desprazer: em vez de preservar sua onipotência, a criança precisará renunciá-la a fim de reconhecer a existência do objeto. Essa renúncia só se dará caso ela ame e odeie o objeto ao mesmo tempo, entrando em cena suas pulsões de vida e de destruição. Amar e odiar o objeto, renunciando à sua onipotência, é um processo que se dá pela afirmação do desprazer, isto é, pela tomada de uma posição em que se afirma a impossibilidade de se manter preservado em um abrigo de prazer e onipotência.
A teoria sobre a gênese da memória se inscreve em uma lógica semelhante, pois, afinal de contas, ela somente é o outro lado da moeda do movimento de encontro com o objeto. Sua função é, sobretudo, descrever as repercussões que o Eu sofre nesse encontro. A memória será definida por Ferenczi como uma "cicatriz traumática" proveniente da relação com o objeto, na justa medida em que este é, conforme sua formulação, reconhecido na mistura das pulsões de vida e de morte. A definição da memória como cicatriz traumática é reveladora por dois motivos. Em primeiro lugar, estabelece que toda memória, no aparelho conceitual ferencziano, tem uma origem traumática. Em segundo lugar, a imagem da cicatriz não apenas traz a ideia de uma ferida, como também a resposta do organismo/psiquismo a qual consiste em "fechar" essa ferida, regenerá-la; restando apenas a marca permanente de sua incidência.
Ao mesmo tempo em que a criança desencadeia uma vontade de destruir o seio que não se encaixa em sua onipotência, ela própria sofre com isso. Há uma destruição de si própria, cuja consequência mais clara é a deterioração da sua onipotência e a retração do território no qual se expande o seu eu. Ferenczi vai mais longe e sugere que o próprio corpo7 da criança sofre e é destruído com a crescente dissincronia entre o desejo e sua satisfação. É neste ponto que entra a ideia de trauma. Na obra ferencziana a ideia de trauma adquire grande complexidade, recebendo uma importante função na própria constituição psíquica. Neste sentido, o aparelho psíquico e seu desenvolvimento derivaria de uma série de traumas sofridos ao longo da vida (FERENCZI, 1924/1993). O grande salto apontado por Ferenczi é a apresentação de duas modalidades de trauma, o trauma estruturante e o trauma desestruturante. Em poucas linhas, trauma estruturante promove um desenvolvimento do aparelho e dinâmica psíquicas; já o trauma desestruturante instaura uma quebra no aparelho, a partir da qual este deve se reorganizar, modificar, e consequentemente se desenvolver de uma maneira distinta. Nesta linha, temos que o processo de cicatrização se dá pela afirmação do desprazer, uma vez que após ter seu desejo frustrado, a criança consegue senti-lo satisfeito pelo ambiente, depois de um tempo que escapa à instantaneidade que ela exigia. Em outras palavras, através desse processo, a criança "entende" de alguma maneira que deve suportar desprazer até conseguir conquistar o seu prazer. Ora, além da dilação temporal, a afirmação do desprazer adquire, segundo esse último aspecto, um outro sentido: o de afirmar a própria destruição como movimento inevitável para o desdobramento da vida, refletindo aí toda a complexidade da relação entre pulsão de vida e de morte ; e neste sentido "Não existe vida sem participação da tendência de morte" (GONDAR, 2017, p. 171).
A memória enquanto cicatriz traumática tem como consequência a ideia de que a afirmação do desprazer é um processo que produz efetivamente marcas no psiquismo e no corpo. A posição desta ideia no aparelho teórico ferencziano não deve, pois, ser subestimado. No que tange aos propósitos deste artigo, devemos salientar que a máquina de calcular vai se utilizar justamente dessas cicatrizes - desse manancial de memórias - para construir e estipular cenários futuros e calcular a intensidade de desprazer que cada evento pode vir a desencadear. Portanto, a máquina de calcular - esse órgão ou função que Ferenczi propõe - não possui a priori um "estoque" de informações a partir das quais ele se balizaria para realizar seus cálculos; pelo contrário, é na experiência de estar no mundo - a qual é repetidamente traumática - que vai se formando a matéria que permitirá a complexificação de suas operações.
A afirmação do desprazer e o encontro com o traumático
No que foi exposto até aqui, observamos que o conceito de afirmação do desprazer comporta uma multiplicidade de elementos que não se restringem apenas à experiência de prazer-desprazer per se. A partir da ideia da memória como cicatriz traumática, a afirmação do desprazer passa a abranger, dentro das amplitudes de que dispõe, movimentos de ódio e de amor, de destruição e de criação. Nesse sentido, a ideia expressa pelo movimento de "afirmação do desprazer" se manifesta claramente em algumas anotações de Ferenczi nas quais desenvolve o conceito de clivagem. A clivagem seria justamente o movimento de quebra, ruptura de uma parte do aparelho psíquico8.
É interessante notarmos que o conceito de clivagem é trazido por diversas vezes em paralelo com a problemática do trauma; tal se deve ao fato de que diante da impossibilidade de uma adaptação do mundo (aloplástica), o sujeito realiza uma transformação de si mesmo. Ferenczi (1934/1992) afirma que este movimento de autodestruição se encontra referido à esfera psíquica, posto que o mais fácil de se destruir é a consciência - um sentimento de integridade psíquica -, responsável por promover a coesão das formações subjetivas sob uma unidade; já a unidade corporal não responderia tão prontamente a autodestruição. Desta forma, Ferenczi traz a adaptação autoplástica (FERENCZI, 1930a/1992) como uma defesa que acarretaria em um movimento de ruptura interna - possibilitado pela amputação de uma parte de si. Este recurso defensivo cujo resultado é da ordem de uma autodestruição se anuncia ao mesmo tempo como uma forma de sobrevivência, na qual se renuncia uma parte de si para manter a sobrevivência do todo.
A autodestruição promovida pela clivagem coloca então a fragmentação como recurso defensivo, pois, face ao traumático, surge um sujeito fragmentado que apresenta suas cicatrizes e amputações como indícios de uma guerra já travada. Devemos reconhecer, no entanto, que este movimento de quebra e descolamento de uma parte de si, de certo não é um caminho fácil a ser trilhado: do mesmo modo que a fratura sofrida na integridade narcísica em decorrência de uma obliteração de si, se anuncia como um desprazer para o sujeito, encontra-se nessa saída uma maneira de alcançar a "(...) continuação da existência nos fragmentos (...)" (FERENCZI, 1930d/1992, p. 282) inscrevendo tal relação na dinâmica da afirmação do desprazer.
Outra consideração importante apresentada pelo autor é a ideia de que "(...) o suicídio seria um prazer relativo" (FERENCZI, 1931/1992). Diante da destruição iminente, ou de elevado desprazer, a escolha ativa pela própria destruição se enuncia como uma forma de afirmar o desprazer; o que possibilitaria ao sujeito uma tomada de posição - ativa - sobre si, sobre a sua existência, sobre sua vida e sobre sua morte. "(...) a autodestruição é a única forma pela qual a vida ainda resiste. O sujeito não escolhe a sobrevivência se o seu preço for a completa passividade. Autodestruir-se é ainda uma forma de ser ativo, preferível à submissão absoluta e ao sofrimento mudo" (GONDAR, 2017, p. 173).
Neste sentido, Ferenczi apresenta a imagem de um pequeno pássaro que voa em direção ao fim certo nas garras de uma ave de rapina, para ilustrar este movimento de caminhar do sujeito rumo à destruição iminente. Esta imagem desenhada em nossa mente a partir das instruções de Ferenczi traz para a cena a tomada das rédeas da vida pelo próprio sujeito, que na tentativa de evitar a angústia de uma morte inesperada recorre ao suicídio. Afinal, diante da incidência inevitável do desprazer, "(...) o menos desagradável torna-se, portanto, relativamente agradável e pode ser afirmado como tal" (FERENCZI, 1926/1992, p. 434); nos possibilitando então compreender a afirmativa sobre a qual: "O ser humano pode assim ter prazer até na sua própria fragmentação" (FERENCZI, 1930c/1992, p. 280); o que acaba por nos conduzir à faceta paradoxal que o traumatismo pode adquirir. Este paradoxo próprio da incidência do traumático se encontra remetido não apenas à ideia de que o caminhar rumo à destruição se configura como uma saída possível, ou a melhor possível, mas também a própria ideia de que este pode, ao mesmo tempo, acarretar em um prazer de outra ordem.
Atentando para o que foi trabalhado anteriormente, em relação a existência de um mecanismo psíquico capaz de calcular - com base em experiências anteriores - a intensidade do prazer e desprazer em jogo em cada escolha a disposição do sujeito; teríamos que os cálculos realizados por essa Rechenmaschine tornam possível o direcionamento do organismo a um fim potencialmente desprazeroso - como o movimento de clivagem, por exemplo.
Considerando ainda que a afirmação de um desprazer só é possível se for encontrado, em um segundo momento, um prazer proporcionalmente maior do que o desprazer enfrentado, podemos depreender que seriam os cálculos realizados pelo que Ferenczi reconhece como inteligência do aparelho psíquico, os responsáveis por permitir um reconhecimento de qual saída acarretaria maior prazer - ou menor desprazer. Além disso, esta capacidade matemática própria ao aparelho psíquico possibilitaria identificar até que ponto o movimento de destruição pode se dar sem acarretar uma morte do organismo.
Mas afinal, o que possibilita que o caminho para a destruição se enuncie como a alternativa menos desprazerosa? Seria possível realmente propor um prazer em decorrência de um movimento de autodestruição? A que poderíamos remeter o caráter prazeroso desta amputação de uma parte de si?
Tomados por estes questionamentos, nos direcionamos à possibilidade, levantada por Ferenczi, de lançarmos um olhar diferenciado sobre a autodestruição; vislumbrando os escombros restantes deste processo não apenas enquanto a expressão da destruição provocada onde antes havia uma unidade. O autor propõe certa positivação destes fragmentos, que passam a ser vistos como uma forma de existência em si. Neste panorama, esta forma de existir ganha um colorido especial, se inscrevendo não apenas enquanto resistência à aniquilação, mas como vida ; regida por uma dinâmica diferenciada, a partir da qual se torna possível também a vivência do prazer. "Nova formação no sentido de uma realização de desejo no nível do princípio do prazer a partir dos fragmentos " (FERENCZI, 1931a/1992, p. 294, grifo do autor).
Tomados por essas considerações nos direcionamos ao movimento de obliteração de si enquanto forma de adaptação do organismo diante das adversidades do meio. A concepção de que uma ruptura - um trauma - poderia assumir uma faceta estruturante, abrindo espaço para o estabelecimento de uma nova organização já havia sido afirmada pelo autor em Thalassa (1924), texto no qual é postulada a existência de uma "(...) tendência para a unificação que reina, de um modo geral, no psiquismo e também, manifestamente, no mundo orgânico (...)" (FERENCZI, 1924, p. 329). Nestes termos a ruptura se apresenta não apenas como uma quebra, mas enquanto uma potencialidade adaptativa necessária ao organismo. A partir desta perspectiva nos deparamos com um movimento destrutivo que também se apresenta enquanto abertura de novas possibilidades de construção e reinvenção do aparelho psíquico e de suas dinâmicas subjacentes (BRUM, 2018a). É justamente aqui que nos deparamos com a faceta criadora deste movimento destrutivo, possibilitado pela afirmação do desprazer; afinal, é "Em consequência de uma mudança desfavorável do meio ambiente, [que] o mecanismo desintegra-se, a ponto (...) em que a maior simplicidade e, por esse fato, a maior plasticidade dos elementos tornam possível a nova adaptação" (FERENCZI, 1930/1992, p. 271-272).
Neste sentido, temos que a potência criadora que aqui se encontra possibilita um movimento de reconstrução extremamente plural, que abre caminho para o nascimento de novas ligações que anteriormente não seriam possíveis. O que nos leva a desenhar em nossa mente a imagem do aparelho psíquico enquanto um emaranhado de fios, representantes não apenas de nossos desejos e fantasias, mas também de nossas relações. Neste contexto, cada quebra revela ao mesmo tempo uma nova possibilidade de ligação (FERENCZI, 1931/1992) entre linhas que antes sequer possuíam qualquer proximidade. Com isso é possível notar esses movimentos de rupturas e desconstruções a partir de um panorama ampliado, no qual o novo surge de caminhos até então não pensados. Nessa perspectiva, podemos entender a consideração de Green sobre o tema, ao dizer que: "As consequências do trauma não se limitam a seu efeito imediato e têm um papel constitutivo, pois é na sequência deste que se há de criar, dirá Freud, um núcleo psíquico de natureza particular " (GREEN, 1964/2005, p. 170). Ferenczi defende que é na comunhão de forças externas9, que atuariam em prol da integração subjetiva, que este movimento de reunião dos fragmentos se tornaria possível. Neste ponto, vale destacar o papel do outro como parte destas forças externas para este autor. Para Ferenczi o outro não é apenas aquele capaz sustentar e atuar positivamente no movimento de coerção psíquica, mas também, aquele capaz de apresentar ao sujeito a faceta desestruturante do trauma (FERENCZI, 1932/2011). Assim, na obra ferencziana nos deparamos com um outro capaz de sustentar, apaziguar e fornecer sentidos ao aparelho psíquico. Essa última função se apresenta como primordial ao pensarmos no trauma desestruturante, uma vez que, para o autor o caráter avassalador da experiência traumática surge não diante do evento em si, mas, diante da negação neste por um outro de confiança. A negação do evento impacta o psiquismo como uma negação do próprio sujeito, de sua história e experiências vividas, tudo passa a ser incerto (BRUM, 2018a).
Retomando, também nos questionamos se a pressão do mundo é a única responsável por promover a integração do psiquismo, nos levando a cogitar se forças internas também não trabalham a favor deste movimento, dado que "(...) a parte não destruída do ego apressa-se em construir com os fragmentos preservados uma nova personalidade, mas que contém em si os vestígios da luta, cujo desfecho foi vitorioso embora com pesadas perdas" (FERENCZI, 1930b/1992, p. 277)
Do que foi apresentado até aqui podemos depreender que a afirmação do desprazer, em decorrência de sua relação com o traumático, encontra-se deveras remetida a um movimento rumo não apenas à destruição e fragmentação subjetiva; mas, muito para além disso, estaríamos nos deparando com um trabalho psíquico que visa um desenvolvimento, uma abertura para o novo ou até mesmo, a possibilidade de criação de uma dinâmica de funcionamento distinta, a partir de uma vida fragmentada ou de uma posterior reunião destes fragmentos. Afinal, concordando com as palavras de Ferenczi: "(...) toda adaptação é uma morte parcial, renúncia a uma parte da individualidade; condição prévia: substância de dissolução traumática da qual uma potência externa pode retirar fragmentos ou na qual ela pode inserir elementos estranhos" (FERENCZI, 1931/1992, p. 287).
Considerações finais
A afirmação do desprazer é uma ideia/problema que se inscreve no psiquismo de forma demasiadamente ampla e complexa, permitindo que lancemos um olhar relativista no que tange o princípio do prazer; além disso, conceber um movimento de asserção do desprazer acarreta uma série de questionamentos não apenas quanto ao ingresso do sujeito a uma realidade compartilhada, mas também na relação deste com o outro - pontos que reconhecemos serem dignos de aprofundamento posteriormente.
Neste ínterim, consideramos que, para Ferenczi, o encontro do sujeito com a realidade não se inscreve como algo apenas marcado por frustrações do mais alto grau; afinal, é a partir da inserção em uma realidade que o sujeito vem a ter acesso não só a uma limitação e frustração de seus desejos - tal qual proposto por Freud -, mas também estabelecer uma forma de relação real com o objeto amado que por horas também é odiado. Ademais, é em virtude desta existência no mundo compartilhado que toda a pluralidade dos sentidos inerentes aos objetos pode ser adquirida10; corroborando enormemente para a riqueza das formações deste aparelho e também maiores possibilidades de complexificação e deslocamento da/na própria cadeia desejante.
Desta forma, entendemos a afirmação ao desprazer como uma disposição ativa do sujeito, que garante, a possibilidade de se tornar o autor de sua própria trama. Nesta medida, poderíamos perceber a afirmação ao desprazer como um processo complexo e que exige do sujeito certo desenvolvimento e maturidade psíquicas. Todavia, esta concepção não se sustenta dado que observamos ao longo da presente argumentação que os próprios movimentos inerentes à criação do aparelho psíquico poderiam se inscrever enquanto uma forma de afirmar o desprazer, visto que em um primeiro momento a própria introjeção se coloca como algo desprazeroso. Assim sendo, a incidência tão precoce deste posicionamento subjetivo - trazida à tona pelo movimento de introjeção primitiva - se torna possível graças a capacidade matemática inata da qual o aparelho psíquico é dotado; esta inteligência possibilita alcance de uma maior pluralidade adaptativa diante da inevitabilidade do traumático.
Desta forma, trabalhar a afirmação do desprazer é lançar luz sobre a estrada a qual nos conduz a ideia de que toda adaptação seria uma morte parcial, ou seja, a renúncia de uma parte de si. Dito isso, se considerarmos que a faceta mais drástica da afirmação do desprazer estaria referida ao curso ativo do sujeito a sua própria destruição, o movimento de adaptação e de abertura para o novo - que emergiria como seu produto - seria justamente o prazer subsequente de maior grau que possibilita este direcionamento do sujeito à um estado de fragmentação. A afirmação do desprazer funciona como um movimento do aparelho rumo não apenas a sua sobrevivência, mas a seu desenvolvimento e complexificação.
Um último ponto ao qual não podemos nos abster de apontar com a ideia da afirmação do desprazer é problematizar os próprios mecanismos de obtenção de prazer. Portanto, consideramos que o alcance do prazer não se encontra remetido apenas ao movimento de descarga oriundo da realização de desejos inconscientes (BRUM, 2018), o que alarga o panorama segundo o qual entendemos a dinâmica psíquica do prazer. É justamente a possibilidade de novas perspectivas para a problemática do prazer - a qual influencia diretamente o aparelho psíquico e seus processos - o que torna este um tema pertinente a ser estudado, discutido e aprofundado em toda sua riqueza e complexidade.
Referências
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Artigo recebido em: 04/09/2018
Aprovado para publicação em: 25/04/2019
Endereço para correspondência
Stephanie Brum
E-mail: stephanie-brum@hotmail.com
Leonardo Câmara
E-mail: lcpcamara@gmail.com
Diego Sanzana
E-mail: diegopin.sanzana@gmail.com
*Psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
**Psicólogo formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorando do Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
***Psicólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1"Um choque inesperado, não preparador e esmagador, age por assim dizer como um anestésico. Mas como é que isso se produz? Segundo parece, pela suspensão de toda espécie de atividade psíquica, somada à instauração de um estado de passividade desprovido de toda e qualquer resistência. A paralisia total da motilidade inclui também a suspensão da percepção, simultaneamente com a do pensamento. A consequência dessa desconecção da percepção é que a personalidade fica sem nenhuma proteção. Contra uma impressão que não é percebida não há defesa possível" (FERENCZI, 1934/2011, p. 129).
2Reconhecemos dois momentos principais de relativização de uma primazia do prazer: 1) em 1911 com a proposição de um princípio de realidade; 2) em 1920 a partir das considerações sobre o Além do princípio do prazer. Contudo, não nos dedicaremos a uma análise mais específica deste ponto no presente artigo.
3Retomamos aqui a ideia de paradoxo, desta vez como duas faces da mesma moeda. Por um lado, aceitar passivamente o trauma sofrido, por outro aceitá-lo ativamente. Podemos considerar que o segundo movimento emerge como uma de afirmação de si.
4A incapacidade de se livrar de tudo que lhe seria desprazeroso se deve ao fato do desprazer em si também fazer parte do próprio sujeito.
5O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios (FERENCZI, 1913/1992).
6Como foi citado algumas vezes ao longo do presente texto, o desprazer se enuncia enquanto algo inevitável na medida em que este também faz parte do próprio sujeito.
7As marcas dos processos traumáticos - tanto estruturantes quanto desestruturantes - não se restringem apenas ao âmbito do psíquico, se estendendo também ao corporal. Isso implica em modificações corporais, sintomas expressos no corpo ou pelo corpo ou formas de apresentação deste que denunciam as marcas dos traumatismos sofridos ao longo da vida.
8Esta também pode ocorrer em sua faceta estruturante ou desestruturante.
9Para Ferenczi (1930/1992), a integridade do aparelho psíquico se dá em decorrência das pressões externas da qual é alvo, e que visam sua coerção.
10Seguindo as considerações expostas em Transferência e introjeção (FERENCZI, 1909/2011) devemos ter em mente que a multiplicidade de sentidos da qual o aparelho psíquico é dotado é derivada do movimento de introjeção. Tal movimento é o responsável por introjetar não o objeto com o qual o sujeito se relaciona em si, mas os sentidos a ele atribuídos. Este processo permite uma maior complexificação das interpretações das experiências vivenciadas.