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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.42 no.42 Rio de Jeneiro jan./jun. 2020
ARTIGOS
A psicanálise com crianças em instituições de saúde multiprofissionais: uma revisão de literatura
Psychoanalysis with children in multi-professional health institutions: a systematic literature review
Karin Juliane Duvoisin Bulik*
Centro Universitário Facex - Brasil
RESUMO
O presente artigo consiste numa revisão bibliográfica acerca do lugar do psicanalista de crianças em instituições de saúde multiprofissionais. Foram pesquisadas as bases de dados: Biblioteca Virtual em Saúde, SCIELO e Google Acadêmico. Foram obtidas como resultado 15 referências. Duas temáticas são discutidas: história e política da atenção à saúde mental infantil no Brasil, e a psicanálise com crianças em instituição. As instituições de atendimento às crianças são historicamente permeadas por discursos universalizantes e normatizantes, que dificultam o acolhimento à singularidade. Ao psicanalista cabe questionar esses discursos, visando o sujeito criança em sua relação com o desejo, oferecendo lugar às construções singulares de cada um.
Palavras-chave: Psicanálise, Criança, Instituição, Saúde Pública, Equipe multiprofissional.
ABSTRACT
This paper presents a systematic review of the role of psychoanalysts working with children in multi-professional health institutions. The following databases were searched: Biblioteca Virtual em Saúde, SCIELO and Google Scholar. As a result 15 references were obtained. Two themes are discussed: history and politics of child mental healthcare in Brazil, and psychoanalysis with children in institutions. Childcare institutions are historically permeated by universalizing and normative discourses, which makes it difficult to value singularity. The psychoanalyst must challenge these discourses, aiming at the child subjectivity in his/her relation to desire, offering a place to the singular constructions of each one.
Keywords: Psychoanalysis, Child, Institution, Healthcare, Multi-professional team.
Introdução
A prática psicanalítica sustenta-se, em sua construção teórica a partir da descoberta do inconsciente, numa posição que questiona os ideais de saúde e bem-estar, assim como o saber do lado do profissional acerca das mazelas vividas pelo paciente, devolvendo este saber ao sujeito que se queixa. Nega, portanto, a possibilidade de uma universalização e tecnicismo no seu fazer, situando-se num campo que não pretende apontar regras a serem ditadas, mas apostar numa visada à subjetividade de cada um.
Para a psicanálise, a completude e a felicidade plenas são tomadas como impossíveis, demonstrando que a falta e a busca incessante pelo seu preenchimento fazem parte da constituição de cada sujeito, e são aquilo que permite o seu movimento singular no mundo (LACAN, 1986[1959]/1997). No entanto, o domínio da cultura médica atual caminha em sentido oposto, incitando na população a busca da cura rápida e solucionada pelo profissional, num ideal de plenitude a ser alcançada. "A possibilidade de conviver com falhas e faltas intrínsecas nem sempre é suportada em uma sociedade onde o imperativo de felicidade fala mais alto" (GOIDANICH, 2001, p. 30) provocando, paradoxalmente, mais sofrimento em seus sujeitos - que sofrem por não estarem inteiramente felizes e satisfeitos. Numa instituição de saúde, encontramo-nos então afetados por todas essas demandas e, assim, estabelecer um espaço onde o discurso psicanalítico possa ter lugar torna-se um trabalho que nos convoca sempre a repensar nossa posição diante da demanda institucional e social. Estar imerso continuamente nesses diferentes discursos nos exigirá clareza acerca do nosso fazer e suas implicações. Laia (2003) nos oferece alguns critérios apontados por Freud que podem nos guiar de alguma forma quanto a isso:
elucidar a causalidade inconsciente dos atos; enfrentar a resistência; usar a transferência como um campo de batalha no qual o sujeito poderá tomar novas decisões com relação ao seu sintoma; analisar o paciente decompondo seus sintomas em vários elementos, são referenciais da clínica analítica que Freud não pretende modificar (p. 70).
Goidanich (2001) enfatiza então a importância da escuta das produções do inconsciente ocorridas na relação transferencial como aspecto fundamental a se sustentar para que sejamos capazes de considerar que algo de psicanalítico pôde ser mantido numa prática de atendimento em instituições. Constata-se, destarte, que não será incomum, portanto, que o trabalho do analista siga, em alguns momentos, na contramão dos discursos que permeiam espaços envolvidos com a promoção da saúde.
Diante da inserção da autora em uma instituição filantrópica conveniada ao SUS, destinada ao tratamento multiprofissional de crianças que recebe demandas desde queixas escolares até a reabilitação para crianças com necessidades especiais (físicas ou mentais), e de sua escuta marcada pela psicanálise lacaniana, com seus pressupostos supracitados, formulou-se a seguinte indagação quanto à sua prática e que culminou na questão de pesquisa deste trabalho: Que lugar caberia ao psicanalista de crianças numa instituição de saúde multiprofissional e pública?
Buscando apreender o que os psicanalistas têm produzido a esse respeito, realizou-se uma revisão de literatura de artigos e livros publicados até dezembro de 2016, utilizando-se os seguintes descritores: psicanálise + criança ouinfantil +instituição ou saúde pública. Foram pesquisadas as seguintes bases de dados: Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia (BVS-Psi), Scientific Electronic Library Online - SCIELO - e Google Acadêmico. Os critérios de exclusão foram: textos que não estivessem sob o escopo teórico da psicanálise lacaniana; artigos com base em instituições fora do campo da saúde, como, por exemplo, as do campo jurídico; e estudos envolvendo a prática com bebês, por apresentarem especificidades muito particulares dessa clínica de intervenção precoce. Após escaneamento dos títulos e leitura dos resumos, foram obtidas como resultado 15 referências; destas, 12 artigos publicados em periódicos e três livros, que tratavam da temática pesquisada como seu objetivo principal, e não apenas de maneira transversal. Desse total, não foi possível o acesso a um artigo1.
Dentre as instituições que embasaram os trabalhos dos autores selecionados nesta revisão, quando foi possível identificá-las, tivemos: os Centros de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) e outras instituições públicas de atenção intensiva a crianças autistas e psicóticas, como o Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica, no Rio de Janeiro, o Le Courtil, na Bélgica e a Clínica de Buttes-Chaumont, em Paris; ambulatórios de saúde mental infantil; unidades básicas de saúde; Centros de Reabilitação Infantil (CRI); Organizações Não-Governamentais (ONG); instituições psicanalíticas como o Lugar de Vida, em São Paulo, e a clínica do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, em Recife.
A partir da leitura dos artigos selecionados, uma análise temática das produções foi realizada e dois temas se destacaram: história e política da atenção à saúde mental infantil no Brasil e a psicanálise com crianças em instituição. O que foi debatido pelos autores dentro desses temas é apresentado e discutido a seguir.
Considerações sobre a história e política da atenção à saúde mental infantil no Brasil
O lugar destinado às crianças em cada momento da história tem definido o que será ofertado às mesmas no campo da saúde, da educação ou da família. A inclusão da criança como objeto de conhecimento foi resultado de um processo afirmado com o advento da ciência moderna. Nesse movimento, os discursos universalizantes passaram a ter papel privilegiado e a consideração do sujeito em suas particularidades perdeu destaque diante daquilo que seria definido pelo lastro científico. Assim, construiu-se um ideal de que as melhores práticas seriam aquelas efetivas para o maior número de pessoas (BRITO, 2004; FERREIRA, 2004; SCHMID, 2004). Nos tempos atuais temos como resultado culminante desse processo o que veio a se denominar medicina baseada em evidências, para a qual toda prática médica deve estar calcada em evidências científicas, instaurando o saber todo do lado da figura do médico, representante da ciência.
Entretanto, os primeiros profissionais a se ocuparem do desenvolvimento de um trabalho específico com as crianças envolvendo os aspectos mentais e cognitivos não foram os médicos, mas os educadores, no início do século XVIII. Eles estavam preocupados com a reeducação das crianças excluídas que, na época, eram aquelas portadoras de alguma deficiência. Foram eles os responsáveis pelo surgimento de instituições com ensino especial para atendê-las. Essas instituições nasceram, assim, sustentadas pelo saber pedagógico, com a criação de classes especiais, métodos de avaliação da inteligência, internatos médico-pedagógicos e ações psicopedagógicas. É no século XX, juntamente com a psicologia do desenvolvimento, que a medicina, na especialidade da psiquiatria, se insere e influencia esse império da clínica dos déficits, com ressonâncias ainda hoje na política de assistência. Por essa via, as crianças eram encaminhadas aos cuidados de instituições ligadas à educação especial, como as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), os Institutos Pestalozzi e outras entidades filantrópicas conveniadas ao poder público (BATISTA, 2013; BRITO, 2004; FERREIRA, 2004; SCHMID, 2004).
A instituição que suscitou esta pesquisa carrega em sua história essa evolução no tratamento às pessoas com necessidades especiais. Por ter sido fundada em 1955, vivenciou o período das intervenções pedagógicas àqueles que não conseguiam aprender na escola regular, como principal recurso de tratamento. Hoje mantém a denominação de "clínica-escola" por realizar tanto atendimentos clínicos de saúde e pedagógicos, quanto por oferecer aulas de educação infantil. É uma escola primária e uma clínica multiprofissional em um mesmo espaço. Entretanto, nos usuários que ali circulam, vemos o resquício da intervenção pela educação especial para as pessoas com algum tipo de deficiência ainda se manter. As crianças do passado tornaram-se adultos e continuam frequentando o espaço, revelando certa dificuldade de localizar a que público essa instituição se destina.
O cuidado à infância possui, portanto, uma forte marca do campo da educação verificável ainda hoje. Foi apenas a partir da psicanálise que o olhar da psiquiatria passou a direcionar-se também para essa faixa etária, diferentemente do que ocorreu com a psiquiatria de adultos, solidamente instituída antes da descoberta freudiana (STEVENS, 1996). Com o psiquiatra Leo Kanner, em seus estudos sobre o autismo, os aspectos sociais e emocionais da criança passam a ser considerados e avaliados durante o atendimento, para além do orgânico. "O advento da psicanálise revolucionou esta clínica ao introduzir a questão subjetiva como mais uma causa nos quadros psiquiátricos" (BATISTA, 2013, p. 48).
Como reflexo desse percurso histórico os tratamentos dos transtornos psíquicos infantis e o campo da saúde mental ficaram marcados por certo atraso. Atualmente, se traçarmos um paralelo com o que já se avançou no cuidado do adulto, constataremos o quanto os tratamentos oferecidos para as crianças evoluíram muito pouco. Antes da implementação de uma política de assistência, destacava-se a marca da segregação, exclusão e descaso. A promulgação de um atendimento especializado para crianças na saúde mental, regimentado pelo Ministério da Saúde, é, inclusive, bastante recente. Até 2002 as orientações políticas seguidas eram as mesmas vigentes na saúde mental dos adultos. Somente a partir da Portaria MS 336/02 é previsto um modelo de intervenção específico ao público infanto-juvenil (COUTO, 2004; FERREIRA, 2004; GUERRA, 2005).
Era nessas lacunas que instituições filantrópicas, como a de atuação da autora, se constituíam e funcionavam de maneira própria, sem vinculação a uma política pública mais sistematizada. Por isso, atendiam crianças, adultos, sem uma definição precisa do seu público, faziam pouca articulação com a rede de saúde, de educação etc., promovendo, ainda hoje, formas de intervenção que algumas vezes se opõem ao que vem sendo preconizado pela política de saúde mental. Como os serviços ainda são insuficientes, temos adultos que ali permanecem sendo atendidos, realizando atividades, mesmo que na política estejam previstos outros dispositivos de tratamento mais adequados a esse público, como os CAPS, por exemplo.
Na saúde mental, um dos avanços conquistados - e marca da psicanálise - tem sido a inclusão da dimensão clínica no direcionamento do atendimento, através de uma proposta de organização da assistência que articule subjetividade (o "cada um") e esfera política (o "para todos"). Tal entrelaçamento depende do atravessamento da política por um fazer que dê espaço à invenção de cada um (FERREIRA, 2004; GUERRA, 2005). Assim temos, por exemplo, o projeto terapêutico singular, construído para cada sujeito presente nas instituições de saúde mental, e o profissional de referência, que valoriza o vínculo particular criado entre a criança e um profissional da instituição. Mesmo assim, deve-se destacar que os discursos que sustentam um ideal de universalização, de saúde e de bem-estar não estão apartados dessa esfera e que diretrizes inflexíveis que definem normas sobre local e modelos de atendimento a determinadas patologias acabam por funcionar na contramão da escuta à dimensão clínica pensada pela psicanálise (MEYER; BERLINCK, 2011).
A saúde mental também apresenta, por um lado, resquícios da crença de que os sintomas infantis são passageiros e não precisam ser tratados, isentando-a de responder politicamente pelo cuidado ético dessa faixa-etária de maneira mais contundente (COUTO, 2004; FERREIRA, 2004). Por outro, a Organização Mundial de Saúde propaga a ideia da prevenção de adoecimento como uma das estratégias da saúde pública para evitar futuros agravos na sua população. Juntando-se a isso a excessiva categorização de todo sofrimento da criança como uma patologia, temos uma busca ansiosa nos serviços de saúde por atendimentos diante de qualquer dificuldade apresentada pela criança. Há casos de pais que solicitam tratamento para todos os filhos com receio de que os mesmos venham a desenvolver algum tipo de transtorno mental futuro (LAMY, 2003). Experiência verificada também em minha atuação em diversos episódios, como quando uma mãe, com um filho autista, demandava atendimento a sua outra filha para "evitar que a menina ficasse igual ao irmão", mesmo que atualmente tudo estivesse aparentemente bem com ela; ou o casal que levou o filho para o atendimento, pois o menino iria começar a frequentar a escola e os pais queriam prevenir qualquer dificuldade psicológica que a criança pudesse apresentar nesse início, mesmo, novamente, sem nenhuma questão já instalada na criança - para citar alguns. Em ambos os casos o trabalho necessário se demonstrou muito mais do lado dos pais do que alguma problemática já presente nas crianças em questão.
Outro ponto de debate acerca disso é a necessidade de que, para receber um tratamento, a queixa trazida pelos pais precisa se enquadrar em um diagnóstico definido pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) ou pela Classificação Internacional de Doenças (CID). Caso contrário, a esses pais será dado o veredicto de que seu filho não tem nada, e aos mesmos será dito que a criança não precisa de tratamento algum, sem uma reflexão sobre o sofrimento instalado, como se sem diagnóstico o sofrimento se anulasse (MEYER; BERLINCK, 2011). Lembro-me de uma mãe aflita, com diversas dificuldades na relação com o filho em casa e dificuldades da criança de relacionamento com os colegas da escola. A mãe levou seu filho ao psiquiatra com o receio de que a criança poderia ser autista. Na avaliação, o psiquiatra foi enfático ao dizer "seu filho não tem nada, ele não é autista " e, segundo a mãe, nenhum outro encaminhamento ou acolhimento do sofrimento foi-lhe ofertado. Apenas quando soube que naquela clínica, perto da sua casa, havia atendimento psicológico, resolveu fazer uma nova tentativa (demonstrando que o mal-estar permanecia).
Por outro lado, caso haja um diagnóstico possível, ele não é problematizado e se torna o norteador do tratamento prescrito com pouca consideração acerca das questões individuais daquela criança (MEYER; BERLINCK, 2011). Assim, a clientela infantil recebe facilmente os diagnósticos de distúrbio de aprendizagem ou de conduta para ser incluída nos programas de saúde mental e apaziguar a angústia dos pais e profissionais que precisam desses definidores para orientar suas práticas. Os serviços tornam-se superlotados, e tais diagnósticos se multiplicam, criando um sistema de retroalimentação infinito. A psicologização e psiquiatrização das queixas escolares são os principais reforçadores desse sistema, transferindo para a saúde problemáticas que poderiam ser divididas com o campo da educação (BRITO, 2004; COUTO, 2004).
Dessa forma, a saúde mental não consegue atender a todos e as crianças com transtornos graves, principais destinatárias desses serviços, procuram por tratamento especializado e não o encontram, recorrendo a atendimentos em outros espaços nem sempre adequados. Tornam-se "peregrinos de lugar nenhum, frequentemente [...] submetidos a métodos pedagógicos de controle de sua conduta bizarra ou, ainda, a uma medicação excessiva, com consequências devastadoras para a sua existência" (COUTO, 2004, p. 62). Os atendimentos que deveriam acontecer numa rede de assistência são executados, então, de forma fragmentada, nas numerosas clínicas filantrópicas e conveniadas, dificultando a construção de uma ética coerente e de uma regulamentação, por parte do Estado, no nível técnico, político e administrativo (BATISTA, 2013; BRITO, 2004; SCHMID, 2004).
Ieda Silva (2003) e Batista (2013) demonstram como a enorme demanda de tratamento frente à insuficiente quantidade de vagas ofertadas gera impasse vivido na instituição pública: as listas de espera pressionam o trabalho clínico, fazendo com que algumas adotem estratégias como a duração do tratamento pré-estipulada e atendimentos apenas em grupo, por exemplo. Lamy (2003) acrescenta o fato de que uma escuta que vise à singularidade e permita a localização do sujeito diante de sua queixa demanda certo tempo, não calculável em um número pré-fixado de sessões. Na clínica, conseguíamos espaço para atendimentos individuais e tentávamos fazer com que os trabalhos em grupo não perdessem o viés da escuta subjetiva e que se constituíssem dentro de uma proposta terapêutica que incluísse as questões singulares de cada um e não apenas uma resposta à demanda das filas de espera.
Couto (2004) e Batista (2013) defendem, como saída, a construção de uma direção pública que vise, para o atendimento em saúde mental, a criação de uma rede social, com entrecruzamento das outras esferas, como a da educação, da assistência social, jurídica entre outras, para que, assim, os discursos que as permeiam possam ser postos em debate, abrindo espaço para que as crianças não sejam o elo-problema como aquelas que não se encaixam, mas para que o sistema mesmo possa ser questionado em sua capacidade inclusiva. Essa rede precisa passar por delineamentos éticos, clínico-assistenciais, políticos, de produção de conhecimento, formação de recursos humanos e de planejamento. Nessa proposta faz-se necessária a inclusão também de todas as instituições com alguma vinculação ao SUS e que oferecem atendimento às crianças, sejam ONGs, serviços filantrópicos, particulares, para que tenham seus discursos, papéis e funcionamento questionados, problematizados e alinhados à proposta da saúde mental.
A psicanálise com crianças em instituições de saúde - uma aposta
A psicanálise com crianças na instituição é apresentada pelos autores como possível se orientada pelos mesmos princípios éticos que regem a psicanálise tradicional em consultório. Brito (2004), Hachet (2006), Lamy (2003), Meyer e Berlinck (2011), Schmid (2004), Silva (2003) e Volnovich (2001) não destacam diferença marcante entre a prática institucional e aquela em consultório a não ser a de ter que lidar mais de perto com demandas institucionais, da equipe ou do meio social, como a demanda por ajustamento, por exemplo. Batista (2013), Cavalcanti (2006), Ferreira (2004), Freire e Bastos (2004), Guerra (2005), Machado (2016), Oliveira (2006), Pernambuco (2006), Rocha e colaboradores (2006), Silva (2006), Stevens (1996) e Vorcaro (1999) irão traçar alguns parâmetros que precisam ser considerados na atuação do psicanalista na instituição que pode ser bem diferente daquela em consultório. Freire e Bastos (2004), Guerra (2005) e Machado (2016) utilizam, para definir tal prática, o termo psicanálise aplicada, enquanto Silva (2006) e Machado acrescentam a denominação de prática entre vários para o que pode ser feito pelo psicanalista de crianças nas instituições. Seguem-se as considerações colhidas nos artigos supracitados.
Todos os autores são unânimes quanto ao que fazer na instituição; para ser considerado uma prática analítica, precisa estar atravessado pela ética da psicanálise. A ética psicanalítica aponta, de antemão, para um deslocamento do lugar de saber - do saber do profissional, que estaria em uma suposta posição de mestre especialista, para o saber do sujeito que ali se encontra. Esse é um dos principais aspectos que se opõem quando pensamos no modo de funcionamento e na relação com o saber nas instituições de saúde, compostas por equipes multiprofissionais em que a especialidade de cada técnico comporia uma gama de saberes que daria conta da queixa de seus usuários. Entretanto, mesmo diante dessa aparente adversidade, o psicanalista encontra seu espaço como aquele que dará lugar à palavra que traz consigo, como cada paciente é tocado pela falta que lhe constitui, pelo inconsciente e pelo desejo que lhe move na vida, questionando, assim, essa completude, pela ética do singular (FREIRE; BASTOS, 2004; LAMY, 2003; MACHADO, 2016; MEYER; BERLINCK, 2011; VORCARO, 1999).
A psicanálise, como prática institucional, considera a potencialidade da clínica como provocadora de interrogações às teorias, e intima os diversos especialistas a se colocarem entre a teoria e o paciente. Longe da democracia multidisciplinar, a psicanálise assume, nessa prática, lugar privilegiado de apontamento da diferença, na medida em que há um sujeito implicado em toda experiência clínica, mesmo numa fugaz insistência que não permite estabelecer sua equivalência, mas que se manifesta. É na aposta de escuta que essa clínica se sustenta (VORCARO, 1999, p. 111).
Quando pensamos nessa aplicação da psicanálise e especificamos a clínica com crianças, algumas peculiaridades se apresentam: a necessidade de incluir indispensavelmente a família; o trabalho através de uma linguagem diferenciada (o brincar); e a forte presença de outros saberes - especialmente o da educação - numa implicação mais direta no trabalho clínico (GUERRA, 2005). Se estamos na clínica dos transtornos graves, essa interface com os setores educacional, médico, jurídico, da assistência social e da cultura se faz ainda mais presente por tornar-se imprescindível que coloquemos em questão a imagem social deficitária atribuída a essas crianças. A expectativa de reinserção ou reabilitação psicossocial precisa ser manejada para que não ganhe formas de um ideal socializante, postura que poderia ser tomada da mesma maneira que aquela frente a uma falha a ser corrigida, oposta ao que se espera de um psicanalista. Quando um psicanalista se afasta do trabalho com as questões próprias de cada sujeito e passa a responder primeiramente às demandas externas, o sujeito deixa de ser o foco do tratamento e o ajustamento da criança toma seu lugar. Explicitar que demanda é essa em relação à criança torna-se, para a psicanálise, uma premissa ética (FERREIRA, 2004; GUERRA, 2005; MEYER; BERLINCK, 2011).
Nesse campo da clínica com crianças, a escuta aos pais fundamenta-se, para além da necessidade de situar a história dos seus filhos, no fato de serem eles que chegam com a demanda de tratamento. Grande parte desses pedidos (provenientes também da escola) não consiste num desejo de cura psicanalítica, mas de adaptação da criança ao meio familiar, escolar, do abrigo etc. - que a criança se encaixe ao que é esperado dela, como no caso citado anteriormente do menino levado para atendimento para prevenir qualquer situação mal-adaptativa nesse processo de início da escolarização.
Durante as primeiras entrevistas não se sabe ainda quem é que sofre - o filho? os pais? a escola? - O sofrimento de cada um pode ser um pedido de tratamento das suas próprias angústias e isso não se apresenta bem definido na primeira elaboração de uma demanda. Cabe então ao psicanalista lidar, acolher, ouvir e intervir diante de todos aqueles que pedem pelo tratamento daquela criança, deixando-se interrogar pela pergunta O que querem, afinal? Saindo da superfície do pedido inicial, poderá entrar nas dinâmicas subjetivas que se operam no cerne das famílias, ou que tocam a mãe ou ao pai em específico, ou àquele professor que não sabe mais o que fazer com seu aluno e/ou também à própria criança em pauta. Através de uma escuta ofertada, pode-se colocar a demanda em trabalho, abrindo lugar para a palavra livre dos sujeitos. A leitura do sintoma e dos significantes envolvidos na história da criança em sua rede familiar, escolar ou outras já se inicia desde então. Dessa maneira, de antemão devolve-se aos pais, aos professores e à criança a construção de um saber sobre a queixa inicial, para que eles possam dizer o que lhes incomoda, que sentido dão a isso, de onde acham que isso vem e qual a implicação de cada um na desordem da qual se queixam. Invertendo então a expectativa de que o profissional daria a resposta acerca do que tem essa criança e do que é necessário fazer - irão descobrir juntos, de acordo com o que for sendo mobilizado em cada um (BRITO, 2004; MEYER; BERLINCK, 2011; SCHMID, 2004; SILVA, I., 2003; STEVENS, 1996; VORCARO, 1999).
Um dos atendimentos realizados na clínica foi exemplar quanto ao trabalho que precisa ser realizado com os pais e com a criança em relação a essa demanda inicial e de que cada caso seguirá à sua maneira, ao seu tempo. Uma mãe, que pedia por atendimento para sua filha com atraso escolar atribuído a um quadro de anóxia ao nascimento, vinha às sessões reservadas para escutá-la, e as questões envolvendo sua filha logo davam lugar à sua própria história, seus relacionamentos, separação do pai da menina... Enquanto do lado da criança, pouco se produzia. Havia dificuldade da leitura, mas nada acentuada - revelando mais uma angústia da mãe em relação à situação do nascimento e que agora parecia se demonstrar, do que algo propriamente do lado da criança. A mãe fazia tratamento psicoterapêutico em outro espaço, mas, mesmo assim, os atendimentos com ela eram cheios de conteúdos próprios. Foi um ano de trabalho com as duas para se evidenciar a demanda e tomar uma posição quanto a quem se destinava a análise e este momento culminou quando a mãe, durante a sessão comentou "eu falo aqui coisas que nunca falei para ninguém antes". A partir de então o atendimento da criança se encerrou, não sendo verificada necessidade de encaminhamento, e a análise da mãe prosseguiu. Portanto, quando a demanda inicial nos chega, é imprevisível no que irá se desdobrar, mesmo que a criança venha com um diagnóstico e encaminhamento médicos definidos.
Em relação a isso, Pernambuco (2006), que trabalha em uma instituição psicanalítica para atendimento de crianças em Recife, destaca o fato de atender famílias para as quais a patologia, o diagnóstico e a classificação da deficiência passam a definir o sujeito, recobrindo e reduzindo suas potencialidades, transmitindo-lhes marcas que podem produzir significações para toda a vida. Tem sido percebido o quão mais fácil parece ser para os pais falar e dirigir as atenções aos defeitos e aos sintomas esquisitos dos filhos do que falar da dor do confronto com os limites das suas crianças. Trabalhar permitindo que estes sujeitos - pais e crianças - possam construir algo juntos, dentro das possibilidades apresentadas pela criança, poderá ser um caminho viável para transformar o ideal e constituir soluções possíveis no campo das relações familiares. Ao deixar-se surpreender e valorizar o que de singular na forma de ser da criança emerge no encontro, pode ser um caminho para construir um novo olhar sobre esse filho (BATISTA, 2013; MEYER; BERLINCK, 2011; OLIVEIRA, 2006; PERNAMBUCO, 2006).
Outro manejo importante é a tarefa de pensar o sintoma da criança sem cair numa vitimização, presente em diversos discursos como: são vítimas do desenvolvimento e do tempo (quando as manifestações de sofrimento que apresentam são justificadas unicamente pela fase de desenvolvimento em que se encontram, por questões hormonais, do crescimento etc.), vítimas da imaturidade e da falta de defesas, dos pais e da família, da sociedade, da escola, da instituição, entre outros (FERREIRA, 2004). Assim situá-las, impede-nos de pensar a posição que cada uma toma diante do que a determina, e de escutar o que o sintoma relatado pode estar comunicando de singular daquela criança e da sua implicação com o que é dito sobre ela (MEYER; BERLINCK, 2011; VORCARO, 1999). Para Batista (2013), é preciso cuidar também para não se cair na esfera da culpa, procurando quem seria o culpado por determinada problemática. É importante não perder de foco o modo como a criança é tocada por aquilo de que os outros acham que ela precisa se livrar. Nem sempre o que causa incômodo ao outro incomoda a criança, e às vezes o que causa incômodo à criança pode ser totalmente diferente do que incomoda aqueles que pedem por ela (BRITO, 2004; FERREIRA, 2004).
Assim, segundo Hachet (2006), o papel do analista baseia-se em "restituir ao sujeito sua verdade" (p. 28), permitindo que o sofrimento que se esconde por trás do sintoma possa ser escutado. Este é o desafio de uma articulação do discurso psicanalítico ao discurso médico, pedagógico e assistencial, em que as crianças chegam, muitas vezes, com "um diagnóstico já pronto, fechado, com palavras de desesperança e de pouco investimento e aposta em sua subjetividade" (MEYER; BERLINCK, 2011, p. 157). Ou, como contrapõe Lamy (2003), somos acionados quando palavra nenhuma dá conta de responder pelo que tem essa criança, quando nada dá certo, ou quando nada é diagnosticado: "essa criança não tem nada". "Ficamos assim (...) com o que foge à regra, com o que escapa à informação, às normas, aos tratamentos médicos, às orientações de saúde" (LAMY, 2003, p. 175). Desse modo encontramos habitualmente duas respostas dadas pelo discurso médico: ou o sintoma da criança encontra resposta num saber que o enquadra, sem espaço para que o sujeito se apresente ou, por não encontrar resposta em manuais pré-estabelecidos, esse sintoma é descartado como desimportante, não havendo sentido no sofrimento relatado pelos pais e pela criança. Como no caso citado no tópico anterior, da mãe que não pôde ser ouvida nas dificuldades vivenciadas com o filho que ela supunha ser autista, diagnóstico descartado pelo médico e, portanto, sem necessidade de tratamento segundo o mesmo. Seus medos e fantasias em relação ao primeiro filho, sua expectativa que era de ter uma criança extrovertida, com muitos amigos, que viesse para resolver suas próprias questões infantis do quanto fora difícil o período escolar para ela, além de situações conjugais em que a criança era usada como objeto de chantagens e ameaças pelo esposo, não teriam tido espaço de escuta, acolhimento e trabalho, não fosse pela própria insistência e descrença da mãe no diagnóstico anterior. Além do encontro com um profissional disposto a ouvi-la.
Acrescenta-se a essa discussão a expectativa social comumente presente diante do psicanalista de crianças de que realize a normalização daquele ser à custa da sua subjetividade. Formatar a criança conforme um ideal pedagógico e de saúde em vigor, respondendo ao apelo social de localizar o sujeito na impotência ou falha a ser corrigida vai, como já demonstrado, de encontro ao tratamento proposto pela psicanálise. A escuta à subjetividade da criança implica acompanhá-la na construção radicalmente singular de símbolos que lhe forneçam um estar no mundo mais desejante e menos penoso, distanciando-se do ideal de homogeneização desses sujeitos, propondo-se a um trabalho com a desarmonia, onde o fora de sentido pode encontrar lugar (BATISTA, 2013; GUERRA, 2005; HACHET, 2006; LAMY, 2003; MACHADO, 2016; VOLNOVICH, 2001).
Batista (2013) lembra ainda que na infância se supõe um sujeito em construção, portanto, os diagnósticos podem ainda sofrer modificações e nem todos os sintomas representam déficits insuperáveis. Brito (2004) indica, como recurso, problematizar o que se espera da criança para além da preocupação com a aprendizagem, com o psiquismo e com o funcionamento físico, pois não é possível prever, após um trabalho analítico, que saídas serão encontradas por aquele sujeito e a tentativa de normalizá-lo estaria de encontro à ética psicanalítica, esta guiada pelo desejo. Volnovich (2001) traz um lindo exemplo desse lugar que a análise pôde ocupar no tratamento de uma criança: Tomás, menino atendido pelo autor, fez das sessões um lugar onde se autorizou a desenvolver os seus aspectos mais loucos e inaceitáveis perante os outros, assim como onde pôde construir uma superfície capaz de contê-los, um suporte para o insuportável. Uma pré-adolescente atendida por mim, em suas sessões podia demonstrar seu interesse por coisas infantis de que ainda gostava tanto e que causava muito incômodo ao seu pai - "uma menina de 13 anos gostando dos Backyardigans!" -, e também seu interesse pelas músicas de Marisa Monte e por namorados. O pai pôde assim começar a construir uma nova visão sobre a filha, da qual só conseguia ver o lado infantilizado ao qual ele atribuía a possibilidade de algum déficit cognitivo na menina - receio superado no trabalho de escuta.
Stevens (1996) ressalta que esse papel da psicanálise na instituição não é unívoco nem entre os próprios psicanalistas. Para ele, o problema estaria em tentar praticar o atendimento psicanalítico de consultório dentro do espaço institucional, deixando de lado as especificidades do local e tornando-se um profissional apartado da equipe. Considera o psicanalista como promotor, no espaço onde trabalha, desse olhar que visa a subjetividade de cada criança, de forma que os profissionais se sintam tocados por essa perspectiva da singularidade. É aquele, portanto, que semeia a ética da psicanálise nos outros profissionais com quem divide o cuidado da criança na instituição. Pernambuco (2006), Batista (2013) e Machado (2016) acrescentam que, para o psicanalista, todo o espaço institucional deve ser tomado como espaço terapêutico. Uma palavra dita no corredor, uma conversa na sala de espera, podem ter efeitos inesperados sobre os sujeitos e fazer parte do trabalho terapêutico com a criança, e isso é importante que a equipe reconheça para que possa estar atenta inclusive ao que se produz fora da sala de atendimento.
Distinguindo-se do atendimento clínico individual, outra forma de atendimento apresentada pelos autores consiste no atravessamento da psicanálise nos trabalhos com grupos. Cavalcanti (2006) procura extrair as consequências desse modo de operar, enfocando a construção do espaço do grupo e os matizes que tomam aí a transferência e a escuta psicanalítica. A partir do fazer compartilhado, essa abordagem supõe um olhar diferenciado sobre a relação da criança com o outro, num
cenário da experimentação e da criação, onde seus participantes podem se experimentar outros, múltiplos, reinventando-se e recriando-se através da ação - aqui representada pelo brincar compartilhado - e da palavra, cujo poder criador e transformador é implementado nesse espaço ilusional (Id., ibid., p. 139).
Rocha e colaboradores (2006) acrescentam, no ambiente institucional, a importância da reunião de equipe como estratégia para promover a escuta à singularidade, através da discussão de caso. As reuniões de equipe funcionam como suporte e sustentação do trabalho psicanalítico e como um espaço para o acolhimento das angústias dos próprios profissionais, para que essas não os paralisem e, ao serem compartilhadas, possam ajudar cada técnico a refletir acerca da sua posição diante do caso. Quando iniciei o trabalho na clínica que suscitou esta pesquisa, não havia reunião de equipe. Cada profissional realizava seu atendimento e os diálogos sobre os casos aconteciam apenas quando sentiam a necessidade de encaminhar seus pacientes, o que tornava o trabalho muito mais compartimentalizado. Em conversa com cada um foi sendo possível uma mobilização para que constituíssemos as reuniões de equipe. Apesar de algumas resistências especialmente porque significaria alguns horários de atendimento a menos, conseguimos instituir uma reunião mensal multiprofissional em que não apenas casos eram discutidos, mas as dificuldades de cada um também podiam ser partilhadas. Considero que tais reuniões precisariam acontecer com mais frequência, mas foram um avanço em relação ao funcionamento anterior e todos os profissionais passaram a atestar a importância desse momento e seus efeitos no fazer diário de cada um.
Machado (2016) e Ieda Silva (2003) apontam que o tripé análise-supervisão-ensino teórico é o principal sustentador do trabalho analítico também na psicanálise aplicada. Stevens (1996) nos lembra da necessidade de elaboração teórica da clínica que se produz nesse trabalho, na perspectiva de construção de um saber sobre a mesma, implicando a difusão dessa prática e contribuição com a própria teoria psicanalítica. Essa construção visa transmitir a pesquisa do fio da verdade que cada caso testemunha.
Guerra (2005), Freire e Bastos (2004), Kelly Silva (2006) e Machado (2016) citam uma estratégia de equipe multiprofissional marcada pela psicanálise e aplicada à prática institucional especialmente com psicóticos: a prática feita por vários2 ou prática entre vários, um conceito da psicanálise lacaniana. São instituições, já em seu funcionamento, organizadas pela lógica psicanalítica, distintas daquelas em que a psicanálise aparece apenas na presença de um dos membros da equipe, como naquela em que atuei. Nessa perspectiva, os técnicos das várias especialidades não se completam para formar o todo das disciplinas, assim como nenhum membro da equipe detém a palavra final sobre o caso - o que constituiria um saber acerca da criança tomada como objeto. Assim, é ofertada ao sujeito a possibilidade de produzir um saber sobre si que será apreendido pelos profissionais que dele se ocupam. Caberá à criança a escolha de com quem irá trabalhar, como será o trabalho com cada um - o que acontecerá a partir dos vínculos que o sujeito construir e dos lugares que atribuir a cada um dos presentes na equipe. Entretanto, todos os profissionais estarão ali para escutar o que é colocado por aquele sujeito, suas manifestações inconscientes e os tipos de relações construídas com os técnicos e com as outras crianças.
Kelly Silva (2006) e Machado (2016) referem-se ao psicanalista Antônio Di Ciaccia (2005) na proposição de que a prática entre vários estrutura-se segundo quatro eixos: a parceria de cada membro da equipe com a criança, que deve apresentar-se frente a ela despido de sua especialidade, mas como um parceiro na sua construção frente ao sofrimento; a reunião de equipe, momento em que os olhares sobre a criança serão compartilhados e a posição de cada técnico relativa ao caso poderá ser trabalhada; a função do diretor terapêutico, responsável para que o trabalho em relação a uma determinada criança avance; e a referência teórico-clínica à psicanálise freudo-lacaniana, em que, juntos, os profissionais discutem e fazem a teoria avançar.
Freire e Bastos (2004) acrescentam que muitas vezes tal prática ultrapassa os limites do serviço, envolvendo profissionais de uma rede maior, incluindo a escola, o Conselho Tutelar, advogados, sociólogos etc. Machado (2016) concorda com essa extrapolação, mostrando como, no Le Courtil, as crianças habitam e circulam nos espaços próximos à instituição como parte do tratamento que recebem ali e o quanto os atores sociais, como a funcionária do supermercado, por exemplo, são tocados por essa prática e produzem efeitos nas crianças.
Portanto, seja numa equipe que funcione na proposta da prática entre vários, seja numa equipe tradicional de saúde, o fazer do psicanalista constitui-se numa experiência cotidiana de escolhas sem garantias, ato que exigirá de cada analista sempre uma aposta, abrindo espaço para o desejo ao apontar para o real em jogo em cada queixa, em cada caso, não sendo cúmplice de demandas institucionais que transformem a criança em seu objeto e anulem o olhar ao sujeito em questão (LAMY, 2003). Assim,
a clínica psicanalítica de crianças é artesanal, faz-se e refaz-se a cada dia, a cada caso, a cada nova situação com que nos deparamos. Não há regras estabelecidas. Há uma práxis terapêutica que é a do trabalho em transferência, nos vários atravessamentos que se entrecruzam: criança, família, escola, outros profissionais e instituições - sustentada por uma formação analítica de um lado, e de outro por um trabalho interdisciplinar (SILVA, I., 2003, p. 37).
Conclusão
A revisão bibliográfica empreendida demonstrou que a presença de discursos universalizantes e normalizantes nas instituições de atendimento às crianças foi historicamente construída, proveniente, principalmente, do saber da pedagogia e da medicina. Uma interseção que se faz fortemente presente ainda nos dias de hoje no que diz respeito a esse público. Apesar da contribuição da psicanálise para o advento da psiquiatria infantil, o ideal de adequação dos indivíduos com algum tipo de transtorno mental, impulsionado pelas demandas escolares, instalou-se também na prática médica. Isso explica muitas das queixas com as quais o psicanalista de crianças se depara tanto nas instituições quanto no consultório. Realidade inquestionável na clínica-escola que suscitou o presente trabalho.
Mesmo assim, a prática psicanalítica com crianças pode acontecer nesses espaços institucionais e carregar a marca da ética da psicanálise. Cabe, portanto, ao psicanalista escutar esses discursos e demandas que envolvem a instituição em que trabalha, para que, ao manejar com eles, possa estabelecer um giro visando, em sua prática, o sujeito criança que ali se apresenta. As peculiaridades da escuta do analista envolvem perceber a marca do inconsciente nos sintomas que se apresentam, a relação singular desse sujeito com o desejo, que quebra ideais de normalidade e enquadramento, pois aponta para uma construção muito particular em que, muitas vezes o que é tido como problema a ser sanado, é, na verdade, a amarração que foi possível para aquela criança diante dos elementos com os quais contava - muito mais resolutiva, portanto, do que deficitária. A escuta da singularidade revela que, no final das contas, ninguém pode vangloriar-se de uma normalidade: ela simplesmente não existe.
A prática psicanalítica em instituição para crianças se diferencia da prática psicanalítica com adultos ao preconizar a escuta aos pais ou a quem pede pela criança e a exigência de novos recursos de linguagem no campo da intervenção, assim como a busca, principalmente na escola (ambiente social da criança), por estratégias inclusivas e formas de acomodar a diferença, mas atento à impossibilidade de uma completude harmônica nessa relação. Demandas como as de medicalização da criança também precisam ser colocadas em questão, analisando se o que está em jogo é calar o sujeito infantil ou se visa fornecer uma intervenção que irá genuinamente ajudá-lo, oferecendo suporte ao real do corpo que pode se fazer necessário em determinados casos.
Não podemos esquecer ainda do tripé necessário a qualquer analista: a própria análise, que dará elementos para que o analista sustente a falta, a escuta ao inconsciente e a angústia muitas vezes vivenciada; a supervisão, em que os casos podem ser discutidos e a condução analisada; e o estudo teórico acerca do que constitui o psiquismo humano e norteia o tratamento psicanalítico.
Destacamos que nesta revisão de literatura chamou nossa atenção o fato de que aquele que tem interesse em se aprofundar na questão do trabalho do psicanalista com criança em instituição acaba entrando em contato com uma produção teórico-literária majoritariamente baseada na prática psicanalítica institucional com crianças autistas e psicóticas. A referência à neurose, neste campo, é minoritária. Apenas um autor, Alexandre Stevens (1996), teceu considerações acerca da distinção entre a prática institucional com crianças neuróticas e psicóticas. Para ele, o trabalho com crianças neuróticas em instituição teria o objetivo de situar a queixa apresentada e elaborá-la em sintoma, seguindo a lógica da retificação subjetiva, anterior à entrada em análise. Se uma demanda de análise se estabelecesse após esse processo, a mesma deveria ser encaminhada para atendimento em consultório (ou em ambulatório, no caso do Serviço Público). Já com as crianças psicóticas, o sujeito apresenta-se petrificado; assim, o trabalho psicanalítico gira em torno da possibilidade de subjetivação da criança. "Situamos, portanto, o trabalho em instituição com as crianças neuróticas na referência às entrevistas preliminares em psicanálise. Da mesma maneira, nós concebemos o trabalho com as crianças psicóticas como preliminar a toda cura possível" (STEVENS, 1996, p. 62).
Ficou elucidado nesses artigos que o trabalho institucional, entre vários, apresenta-se como intervenção clínica adequada à estrutura psicótica. Nessa estruturação subjetiva, a relação com o Outro se apresenta muitas vezes como ameaçadora para o sujeito. Numa intervenção institucional, esse Outro estaria diluído entre os vários técnicos que a compõem, se a quebra do saber total, a ética da singularidade e o deixar-se apreender com cada caso estiverem presentes.
Em relação à ausência dessa discussão no campo da neurose, poderíamos pensar que tal fenômeno se daria devido à falta de necessidade de atendimento institucional para essa clientela, já que essas crianças estariam frequentando a escola e suas demandas de atendimento sendo supridas pelos postos de saúde. Entretanto, como citado anteriormente, as crianças neuróticas superlotam os serviços destinados às crianças com transtornos graves - como os CAPSi’s, ambulatórios de saúde mental, clínicas especializadas etc.
Isso nos levou a um novo questionamento sobre as particularidades do atendimento psicanalítico com crianças em cada uma das estruturas (neurose e psicose) e suas implicações para o tratamento em instituição. Se na psicose temos a proposta da prática entre vários, haveria um arranjo institucional mais adequado à neurose? Ou a presença dessa demanda de tratamento nas instituições se trataria de uma questão apenas social? Dessa forma, o trabalho aqui apresentado desembocou em nova pesquisa, com os resultados a serem apresentados em breve. Percebemos também que o tempo previsto por Freud já é chegado e nos demanda, a todos os psicanalistas de crianças, um trabalho.
Mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á (...) de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose, de que, como esta, também não podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade. Quando isto acontecer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados médicos analiticamente preparados, de modo que (...) crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam tornar-se capazes, pela análise, de resistência e de trabalho eficiente. (...) No entanto, qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa (FREUD, 1919[1918])/1996, p. 181).
Referências
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Artigo recebido em: 07/05/2018
Aprovado para publicação em: 20/04/2020
Endereço para correspondência
Karin Juliane Duvoisin Bulik
E-mail: karin_bulik@yahoo.com.br
*Mestre em Saúde Mental pela Queen Mary University of London e em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialista em Saúde Pública pela Universidade Castelo Branco. Professora do Centro Universitário Facex (Natal, RN). Psicóloga e coordenadora do setor de psicologia do Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado (SESAP, RN) e psicanalista clínica. Natal, RN, Brasil.
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2Pratique à plusieurs: expressão proposta por Jacques Alain-Miller em 1992 (FREIRE; BASTOS, 2004; SILVA, K., 2006).