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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.42 no.43 Rio de Jeneiro jul./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

A autoridade à revelia do autoritarismo?123

 

Authority in spite of authoritarianism?

 

 

Marília Etienne Arreguy*

Universidade Federal Fluminense - UFF - Brasil
Université Paris Diderot - França
Fondation Européenne pour la Psychanalyse - Itália
Asociación de Psicoanálisis Lapus de Toledo - Espanha
Association Internacionale des Interactions de la Psychanalyse - França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente ensaio versa sobre a noção de autoridade a partir de uma concepção psicanalítica estendida. O cerne da argumentação vai contra a tentativa de pensar o conceito de autoridade de modo essencialista, uma vez que essa leitura se mostra opaca e limitada para compreender a autoridade enquanto fato encarnado, determinado tanto culturalmente quanto pela experiência. A estrutura autoritária, verticalizada, contraditoriamente combinada ao imperativo do gozo, idealizado pela sociedade, impede o exercício político e pré -político de uma autoridade mais horizontal e efetiva. Levando em conta a noção de compuls ão à repetição, todo exercício da autoridadeé originalmente contaminado, ou seja,é passível de ser afetado por uma autoridade arcaica, tirânica e superegoica.

Palavras-chave: Autoridade, Supereu, Mal-estar, Psicanálise, Educação.


ABSTRACT

The present essay deals with the notion of authority from an extended psychoanalytical conception. The heart of the argument goes against the attempt to think about the concept of authority in an essentialist approach, since it appears opaque and limited to understand authority as an incarnated fact determined both culturally and by experience. The authoritarian, vertical structure, contradictorily combined with the imperative of jouissance, idealized by society, upsets the political and pre-political exercise of a more horizontal and effective authority. Taking into account the notion of compulsion to repeat, every exercise of authority is originally contaminated, that is, it is liable to be affected by an archaic, tyrannical and superegoic authority.

Keywords: Authority, Superego, Discontents, Psychoanalysis, Education.


RÉSUMÉ

Cet essai traite de la notion d'autorité à partir d'une demarche psychanalytiqueélargie. L'argument va contre la tentative de penser le concept d'autorité de façon essentieliste, celle-ci portant une certaine opacité, une fois que cela limite la compréhension de l'autorité comme un fait incarné, dé terminé aussi bien par l'expérience comme par la culture. La structure autoritaire, verticalisée, combinée de faç on contradictoire avec l'impé ratif de jouissance, idé alisé par la socié té, bouleverse l'exercice politique et pré -politique d'une autorité plus horizontale et efficace. Compte tenu de la compulsion de répétition, tout exercice d'autorité est à l'origine contaminé,é tant susceptible d'être affecté par une autorité tyrannique et surmoïque.

Mots-clés: Autorité, Surmoi, Malaise, Psychanalyse, Éducation.


 

 

A questão da autoridade foi intensamente estudada por grandes autores, desde a filosofia, sociologia, pedagogia até a psicanálise. O conceito de autoridade é tomado essencialmente como dependente de uma associação assimétrica e vertical entre dois polos de uma relação. A etimologia desta palavra aponta para alguns aspectos subliminares importantes: a raiz indo-europeia aweg, em grego auxo e em latim aug, cujo principal significado é "aumentar, fazer crescer" e, em auctor, augur e auxilium, dá conta de ideias nobres como "aumentar a confiança", "progredir", potencializar os "bons presságios", apoiar o outro oferecendo-lhe uma "ajuda", produzir "o aumento de forças".

A origem latina - auctor/auctoritas - foi explorada por Hannah Arendt como a mais clara condição de autoridade, ou seja: a capacidade de inspirar o outro, potencializando sua força e permitindo uma ação cidadã, como aquela produzida no Império Romano, apoiada na religião e na tradição. Entre suas definições ditas inevitáveis, destaca-se a máxima: "A autoridade implica uma obediência na qual os homens retêm sua liberdade" (ARENDT, 1972, p. 144). Esta concepção tornou-se célebre e a autora também nos mostra, em uma espécie de ontologia negativa, que a autoridade não pode ser determinada nem pelo uso da força, nem pelo uso da argumentação, extremos dos quais provêm, respectivamente, seus piores sintomas: por um lado, violência e autoritarismo; por outro, arrogância e sedução.

Quando o sujeito que possui a autoridade é desprovido de atração narcísica pelo poder, sua ação incita o outro a tomar seu próprio lugar nessa mesma posição, mais igualitária, em vez de se impor e se manter protegido das mudanças. Idealmente, nessa situação, da verticalidade implícita à autoridade tradicional, adviria uma horizontalidade amigável.

No sentido de uma pedagogia institucional, inspirada no trabalho de Jean Oury e posta em prática por François Imbert (1994), pode-se considerar que a autoridade deve ser atribuída aos que podem levar o outro pela mão e ajudá-lo a crescer, a levantar-se, cedendo-lhe o lugar aos poucos. A autoridade pessoal estrutura-se a partir de uma posição simbolicamente legitimada, no sentido de uma experiência de vida orientada pela consciência de si mesmo, ou ainda, de certa entronização do axioma: "a educação é impossível" (FREUD, 1932-3/1984; MANNONI, 1973; LAJONQUIÈRE, 1985, 2013). O próprio "mestre" abdica de sua posição "superior". De fato, a pessoa que ocupa uma posição de autoridade não pode fazer nada no lugar da outra: isto é, mesmo que o adulto assuma a autoridade de uma forma "liberadora", cabe também ao outro "se soltar", no sentido de aumentar seu poder e autonomia. A única condição para transferir a potência de um autor é através do desejo de estimular o aprendiz, mesmo à distância, e, ainda, consciente de sua própria impotência, sem nenhuma garantia de sucesso. De acordo com Imbert (1994), o adulto é responsável por dar cabo às questões imaginárias entre ele e a criança, para que se possa estabelecer uma "função terceira", eliminando os reflexos intersubjetivos que porventura os ceguem.

 

A autoridade como "objeto interno" ao psiquismo

No nível psíquico (intra e intersubjetivo), as instâncias ideais - eu ideal, ideal do eu e supereu - são essenciais à compreensão dos processos de idealização e interdição, cuja autoridade é, primeiramente, o polo externo, representando diferentes aspectos da ameaça do outro; em seguida, a autoridade do supereu constitui uma autoridade de regulação, mas também de ataque interno em relação ao eu (FREUD, 1929/1934), cuja culpabilidade é a principal manifestação. As análises destas instâncias foram estabelecidas por importantes autores do campo psicanalítico, considerando a posição do líder, seu declínio, o fascínio da multidão nos grupos altamente hierarquizados (Ibid., 1921/2012), mas também a construção de grupos com relações mais horizontais (LACAN, 1947; IMBERT, 2004).

Sabemos que o supereu encarna a lei moral que regula a castração simbólica. Suas gradações são extremamente hierarquizadas desde a constituição do narcisismo primário. A subjetividade é baseada no investimento libidinal dos pais sobre his Majesty the baby (FREUD, 1914/1970), donde surge o primeiro esboço do objeto interno, oeu ideal (Idealich). A capacidade de possuir uma "autoridade entronizada" na vida adulta depende da qualidade do processo de instituição deste objeto interno em seus estágios iniciais. Ao passo que o supereu é o herdeiro do complexo de Édipo, oideal do eu é o herdeiro do narcisismo infantil; ambos condicionam a desalienação e a separação da mãe. No início, onipotente, pois as fronteiras do eu (WINNICOTT, 1951/1989) ainda não existem claramente, o bebê alucina o objeto, que deve ser percebido como sua criação. Aos poucos, a mãe boa o suficiente desempenha um papel de negligência ativa (Id., 1949/1989), para que o bebê saia do estado de dependência primária.

A figura paterna - ou quem a substitui, ou seja, a função representada por um terceiro, que se interpõe entre o bebê e a pessoa que ocupa a função materna - assume, em primeiro lugar, o papel de proibir afetos incestuosos, tornando-se um rival intransponível, porventura vetor do medo. Em seguida, devido ao declínio do complexo de Édipo, o terceiro é percebido também como castrado, porém amado em sua incompletude. No modelo freudiano, a criança sai do complexo de Édipo porque o "pai" foi igualmente submetido à castração. Além disso, a criança aceita o "não do pai" por medo de perder o amor (FREUD, 1924/1992, 1929/1934). Esta autoridade, a princípio invejada e odiada, pois vista como onipotente, deve se apresentar "cheia de lacunas" da mesma forma que a mãe. De fato, o adulto que cuida da criança deve ter essa abertura à triangulação do desejo, desde o complexo de Édipo precoce, como proposto por Melanie Klein (1928/2005). Isto significa que o sexo dos pais não é necessariamente o fator mais importante ou determinante, uma vez que as funções paterna e materna são intercambiáveis, na medida em que cada figura parental pode ficar entre a criança e o outro, transmitindo a interdição, sinal de diferença e separação, ou a permissão, como sinal de ternura e acolhimento.

Todavia, os impactos vividos com as figuras parentais serão internalizados no jogo das fantasias de destruição, que às vezes são projetadas por defesas maníacas ou mesmo antissociais. Os adultos lutam para que a criança abandone seu ímpeto pulsional e, assim, aceite a autoridade parental.

Nas palavras de Winnicott (2004), o próprio sujeito assume essa luta interna para afirmar uma autoridade em si:

Sem querer pesquisar a origem profunda das forças que lutam pelo poder no interior da personalidade, diria que, quando as forças cruéis ou destrutivas ameaçam dominar as forças do amor, o indivíduo é obrigado a encontrar uma maneira de se defender: se virar pelo avesso, encenar seu mundo interno no exterior, desempenhar ele mesmo o papel destrutivo e fazer com que uma autoridade externa aceite o controle (p. 22).

Em evidente referência à criança freudiana que se dá a bater, Winnicott (1956/1989) afirma que as atitudes destrutivas na primeira infância podem se tornar defesas antissociais dependendo da provisão ambiental. A princípio, essas atitudes destrutivas expressam apenas a necessidade de uma autoridade externa para limitar a ansiedade infantil. É preciso que a autoridade dos pais aceite ser atacada e possa sobreviver à destruição do bebê sem lhe dar uma resposta desproporcional. Assim, para que possam exercer sua autoridade, os pais devem suportar a agressividade da criança, considerando que ela representa uma condição para a criação do mundo próprio e para a conquista da alteridade.

Infelizmente, a autoridade do adulto é frequentemente contaminada por uma posição de gozo que faz exatamente o contrário: rejeita, humilha, abandona e retalia violentamente a agressividade infantil. A criança é colocada em uma situação de passividade, quando é excessivamente idealizada por exigências inadequadas para sua idade, ritmo ou momento de vida. O tom, o volume da voz, a sinceridade do olhar, a atenção benevolente, a força da presença, a potência da orientação justa, mas, principalmente, a parte de verdade contida na demanda dos adultos em relação às crianças, são características necessárias para o reconhecimento da ascendência e dosavoir faire do outro. Nada é possível se o próprio adulto não for capaz de lidar com sua própria castração e, portanto, com os limites a serem interpostos entre seu desejo e o que a criança pode lhe retribuir. Se o ódio surge na contratransferência (WINNICOTT, 1947/1969), isso deve ser assumido pelo adulto em algum momento posterior, calmamente, diante da criança e jamais ser escondido, escamoteado. A postura madura da autoridade transforma assim o ódio ou a frustração em discurso e acata as limitações do outro.

Façamos uma digressão ao pensamento de Ferenczi (1908/1968), onde a questão da autoridade é percebida de forma bastante crítica, especialmente quando ele considera a educação repressiva:

As regras de defesa e intimidação da educação moral, baseadas na repressão de ideias, podem ser comparadas às sugestões alucinógenas negativas pós-hipnóticas (...). Mas, o homem assim educado, como o hipnotizado, retira muita energia psíquica da parte consciente de sua personalidade;ele mutila, então, consideravelmente sua capacidade de funcionamento. (...) o senso de dever, honestidade, modéstia, o respeito às leis e autoridades, etc., ou seja, todas as noções morais que nos levam a considerar os direitos do outro e a reprimir nossos desejos de poder e gozo, ou seja, nosso egoísmo (FERENCZI, 1908/1968, p. 53, tradução livre, grifo da autora).

Como equilibrar os efeitos da educação tradicional se, muitas vezes, a autoridade torna-se um vetor dos dogmas morais que mutilam a personalidade? A interdição de pensar, já denunciada por Freud (1927/1971), vem da impossibilidade de falar sobre sexualidade e agressividade, especialmente porque se referem a aspectos excessivamente recalcados. Atualmente, vemos dois modelos em paralelo: a educação repressiva como sintoma do retorno do recalcado coletivo, principalmente nas reivindicações de disciplina e autoridade punitiva em toda parte (escolas, sistema judiciário e política); e, a educação libertadora, construtivista e afetivamente permeada, mas que às vezes é confundida com certa permissividade. A capacidade de transmitir conhecimento e estabelecer respeito entre o adulto e a criança depende necessariamente da legitimidade da atitude do adulto em relação a um grande projeto educacional e vice-versa. O reconhecimento da autoridade de um professor, por exemplo, depende ainda da congruência entre seu desejo e suas ações, entre o suporte institucional e aquilo para que é efetivamente capacitado. Sobremaneira, no plano institucional, deve haver coerência entre o que se escreve, diz e faz. Mas como lidar com isso em tempos de pós-verdades?

Se tudo é proibido, o impossível se torna transgressão. Se tudo é permitido, nada é desejado. Essas posições revelam um excesso experimentado em dois extremos: da hipernormatividade, que leva à rigidez, ao caos, em que as escolhas não têm pontos de referência. Respectivamente, seria como passar do ideal da ultra disciplina à confusão de papéis. Quando a posição do adulto não é confiável, a exigência de reconhecimento da autoridade não tem fundamento para a criança e para os jovens. A demanda por atenção perde efeito caso seja baseada em uma atitude de severidade, quando o adulto quer controlar tudo. A autoridade também é esvaziada se o adulto permanece em uma posição infantil, dependente, sedutora e insegura, permitindo tudo. A mais grave circunstância de perda de legitimidade da autoridade é quando há desprezo e indiferença em relação às incapacidades e ao sofrimento da criança. Dessa forma, os adultos tornam-se obsoletos e não conseguem despertar a admiração e o amor necessários para que sua autoridade seja reconhecida.

Percebidos como falta de autoridade, os sintomas de hiperatividade nas crianças andam de mãos dadas com o déficit de atenção dos pais em relação a elas mesmas. As barreiras psíquicas necessárias para o estabelecimento da autoridade interna, fruto da culpabilidade superegoica, não se constituem de modo suficiente. O supereu então se investe de crueldade como reação à indiferença dos adultos, quando a criança é incapaz de identificar limites no próprio adulto. Uma agressividade sem paragem pode ser projetada sobre figuras de suposta autoridade, pois a criança procura estabelecer contornos que faltam no exterior. Caso contrário, uma intrusão excessivamente erógena ou punitiva leva a criança a repetir a agressão vinda do outro, ou pior, vinga-se de si mesma. Assim, emergem os sintomas de rejeição à educação e de desconfiança em relação a um mundo adulto visto como desprezível. A autoridade do supereu torna-se assim completamente corrompida pelas falhas das figuras parentais e, às vezes, por contiguidade transferencial ou mesmo factual, também das figuras educacionais.

Freud, no Mal-estar na cultura (1929/1934), definiu claramente o duplo limite que compõe esse processo de entronização: uma borda interna que enfrenta a autoridade externa, e outra também interna, que faz fronteira entre o eu e o supereu. Esta última representa a assimilação da culpa que implica a responsabilidade do sujeito no processo de renúncia pulsional. Quando a autoridade é suficientemente interiorizada, ou seja, quando os limites estabelecidos pelo outro correspondem a uma autoimposição em um enquadre inconsciente, o sujeito não precisa mais "obedecer" ou "revoltar-se contra" o outro, mas o faz em relação a si mesmo. Eis a origem do pudor, da expressão corporal do rubor facial e da sensação psicológica de vergonha. O sujeito torna-se responsável por se proibir e, consequentemente, por acessar suas próprias escolhas, podendo optar pela obediência ou criar outro caminho autônomo, assumindo suas responsabilidades.

Historicamente, a autoridade parental tem sido tirana em várias ocasiões, provocando que figuras de autoridade sejam repetidamente atacadas e destituídas. O pai todo-poderoso é fadado a ser morto, seja em um nível real, imaginário ou simbólico, como no mito da horda primitiva (FREUD, 1913/1993).

Um exemplo dessa fusão entre uma autoridade paterna que afirma ser protetora e o retorno de uma posição coercitiva é o movimento "Escola sem partido"4 surgido esfera religiosa americana e defendido por certos segmentos no Brasil. Esse movimento exige a proibição do discurso dos professores sobre temas como a diversidade sexual e o pensamento crítico (teorias inspiradas por Karl Marx, Theodor Adorno e tantos outros), sob a rubrica de que seriam "ideologias". Assim, os ditos conservadores tentam dar conta de uma cultura desobediente, posto que libertária, vingando-se de uma sociedade plural, rebelada contra as moralidades tradicionais. Este projeto foi apelidado por pensadores críticos como "Escola da Mordaça", reforçando uma crítica ao poder familiar que deseja elevar-se acima do campo dos saberes e do acordo republicano. De fato, este projeto implica a interdição do pensar da criança, do falar da autoridade docente e, ademais, um ataque ao laicismo do Estado. Esta onda de conservadorismo espalhou seus ramos por todo o mundo, sinalizando a contaminação da autoridade por um autoritarismo crescente, que exclui pensamentos e pessoas.

 

Paradoxos de uma autoridade purificada

A noção de "declínio da autoridade paterna" (LACAN, 1938/2001, 1973/1974, 1953-1963/2005) foi muito estudada e tornou-se um "jargão" nos círculos psicanalíticos, ou seja, uma "chave de leitura" respondendo a todo o mal-estar relativo à falácia da autoridade, considerada como o problema por excelência nas relações educacionais. No entanto, a figura do pai todo-poderoso é em si humilhada há muito tempo, pelo menos desde o cristianismo. Não se trata de exumá-lo para reavivar uma espécie de paraíso perdido. O fato de o pai ter sido morto e humilhado, por exemplo, na metáfora da crucificação (crucificação-crucificção), é justamente a genialidade do cristianismo que permite ao sujeito adquirir a própria autoridade, ou seja, assumir o mal inerente aos seres humanos, o "pecado capital", sem muita culpa pelo fato de o pai ter sido simbolicamente morto. A dívida simbólica é o preço a ser pago por todos. Assim, a decadência do pai é eficaz e não representa necessariamente um dano. O mito do pai como figura de autoridade só funciona quando está ligado a um deus morto; do contrário, o pai torna-se um tirano. Cristo caminha em direção à sua crucificação, não a contesta. O Pai, de fato, todos os pais e cada um de nós deve aceitar a perda de autoridade, ou seja, esta perda de poder que sempre nos remete à morte e à castração. Avatar das interdições primordiais, a proibição do parricídio e do incesto são assim balizas para se pensar na constituição da lei na vida subjetiva, incluindo a renúncia pulsional necessária para a manutenção do vínculo social. Isto não é dado por decreto, mas através do que foi vivido, fantasiado e elaborado.

Assim, o status de um Deus morto o torna ainda mais forte. Esse fato de cultura tem sido bem demonstrado pelo psicanalista brasileiro Marcelo Ricardo Pereira (2006, 2008). Segundo Pereira: "Teríamos que dizer 'o pai está morto, então vale tudo'; ao contrário, vemos uma impossibilidade: 'o pai está morto, então nada mais é permitido'" (PEREIRA, 2006, p. 94). Este paradoxo - uma vez dada a dupla leitura da herança divina - adverte aos que devem assumir um lugar de autoridade a partir de sua impotência estrutural.

No momento em que Cristo, o filho que substitui o pai na esfera terrena, morre para pagar por nossos pecados, a culpa é simbolicamente estabelecida. O pai abandona o filho à morte, apenas para elevá-lo a uma condição transcendental. Assim, a Santíssima Trindade torna-se uma amálgama: o filho não é o pai, mas representa duas partes da mesma "substância", que são em si mesmas inseparáveis, ou seja, hipostasiadas. O filho castrado é o mesmo que o pai todo-poderoso, ou, pelo menos, pode ocupar a mesma função divina. Nós, então, "iguais à imagem e semelhança do pai", somos relegados a repetir ad æternum essas questões de morte, homicídio e assassinato - ao menos no plano fantasmático - em relação às figuras familiares (MIJOLLA-MELLOR, 2014). Esses jogos mortíferos imaginários podem se virar contra nós no Real. Nossa impotência é constantemente revelada pela atração em agir de forma todo-poderosa. Após a queda de Cristo, o paradoxo mantém-se: não podemos pecar porque é proibido; mas só podemos pecar, pois esse é nosso destino, o Outro já pagou por nós e sempre perdoa, o que torna possível agir, falar, cometer erros, etc., porque de outro modo seria impossível continuar vivendo. Afora a parte inefável do Espírito que vem a iluminar essas tragédias arcaicas, resta-nos desfrutar a vida sem muita preocupação, procurando constantemente superar nossas contradições éticas. Entretanto, a condenação a um presente perpétuo, ligado a um gozo potencialmente proibido, porém a ser vivido de imediato, constitui a fraqueza de uma autoridade divina que não tem apoio lógico suficiente (CARVALHO, 2017). A lei paterna apegada ao divino é, portanto, absolutamente contraditória.

A imposição de uma lei que é percebida como ilógica pode resvalar em relações sadomasoquistas, especialmente quando se apresenta como exceção, representando, assim, uma lei tirânica que manifesta um retorno do Real, ou seja, do "que não cessa de não se inscrever" (LACAN, 1972-3/1975); logo, nunca pode ser simbolizado. Na vida prática, a autoridade pulsional (AREL, 2007, p. 63)- termo equivocado, pois seria melhor dizer "autoritarismo pulsional" - tenta, por sua vez, reverter o significado da "verdadeira" autoridade, sempre ameaçada pelas armadilhas do gozo.

Os mecanismos arcaicos que encadeiam a passagem ao ato contra as figuras de autoridade, contaminadas por autoritarismo e impostura atualizam, assim, o assassinato coletivo postulado por Freud (1913/1993) em Totem e tabu. A passagem ao ato - empurrada pelo supereu sádico - traduz o retorno do ódio contra os pais autoritários, que se expressa em acontecimentos macabros, como é o caso do terrorismo em nome de Allah. O ódio aplicado na violência desses atos é um fenômeno permanentemente em ação, pois a luta contra a autoridade é signo dessa castração estrutural que leva a humanidade ao conhecimento de sua própria finitude.

Freud (1929/1934) nos lembra da máxima de Goethe: "(...) para os que não têm a arte e a ciência, resta apenas a religião", que, portanto, sustenta uma autoridade contaminada. A busca de garantia de um poder infinito impõe-se quando a demanda de autoridade, oriunda de um passado já afastado vem a nos dirigir compulsivamente. A lei divina exige que renunciemos aos impulsos agressivos, violentos e cruéis e, ao mesmo tempo, repousa-se sobre um princípio de perfeição, deslizando em direção ao "gozo" (LACAN, 1972-3/1975), pleno de uma agressividade incontrolável. Sua forma mais severa é a da "violência divina" (ZIZEK, 2008). Devemos obedecer a um mandamento insuportável:"Ama o próximo como a ti mesmo!" Esta não é a coisa mais difícil de se fazer e a primeira a ser transgredida? A lei divina, mesmo bela e visando o bem, é cruel posto que intransponível.

A partir de sua leitura da obra de Lacan, Zizek (2008) propõe substituir a fórmula do segundo mandamento judaico-cristão: em vez de "amar ao próximo como a si mesmo", devemos "temer nossos próximos como a nós mesmos" (Ibid., p. 40). Se pudéssemos assumir nossa raiva, fúria e inevitável intolerância em relação ao outro, o diferente, não seria possível aceitá-lo, mantendo-o a certa distância? A autoridade atenta aos seus próprios sintomas não estaria mais segura do necessário reconhecimento de que os sujeitos precisam para se tornarem autores de sua própria história sem olvidar o pacto social?

A autoridade dos grandes pensadores, por sua vez, poderia estar ligada a sintomas que levam, simultaneamente, à sublimação e à criação, sinalizando ao mesmo tempo uma necessidade de reconhecimento. Mas, o alto nível de raciocínio de que a autoridade deve dar conta pode mascarar uma separação entre psique e soma. A concepção de Winnicott (1949/1989) a respeito do desenvolvimento excessivo do pensamento (mind) mostra que ofalso-self pode ser representado por uma inteligência muito elevada, mas que responde a um enorme sofrimento psíquico primitivo, talvez relacionado aos cuidados maternais insuficientes ou a um pai desprezível. Enquanto sintoma autoritário, o falso-self talvez seja também um sinal da necessidade de se colocar em uma relação de superioridade em relação ao outro para compensar toda e qualquer suposta inferioridade de si mesmo. A inteligência das pessoas em posição de autoridade, investidas de seus próprios lugares de poder, muitas vezes serve aos interesses do eu e se curva à severidade do supereu devido à busca de realização "sem furo", projetada sobre o outro de forma brutal. A autoridade interna pode então ser acompanhada da coação feroz do supereu e da ilusão de onipotência do eu ideal, produzindo tiranos. Seria por isso tamanha idealização de professores, incluindo o ódio de que que são objeto? É no registro imaginário que esses sintomas sociais conduzem a ações ultraconservadoras, demandando a reabilitação de um pai forte e autoritário.

Em um movimento desesperado - mesmo estando este impulso relacionado à esperança típica das defesas antissociais (WINNICOTT, 1956/1985) - o intenso apego à figura paterna aparece como solução mágica, pois a "(...) imagem do pai concentra as funções de repressão, recusa e sublimação" (LACAN, 1938/2001, p. 56). A repressão, uma das faces da autoridade externa, gera uma frustração, mas proporciona igualmente uma capacidade de sentir prazer, pela identificação à e repetição da lei paterna. Já a sublimação é a derivação desejada de uma relação de autoridade legítima. A capacidade de exercer a autoridade depende então de uma espécie de "duplo efeito (não maniqueísta)" para cada um: trata-se de regular a tendência de oscilar em direção à tirania ou ao cansaço, para encontrar um equilíbrio na maneira de indicar as "ordens" ao outro. Assim, é preciso estar sempre alerta para conter a contaminação da autoridade por um regime de gozo em que haveria a expectativa de ser acatada sem falhas.

 

Entre o fracasso e o excesso de uma autoridade sem escoras

Ao contrário de uma prática pedagógica orientada pela psicanálise, os fatos culturais revelam um movimento coletivo insistente no sentido oposto ao da instauração da função simbólica. Uma combinação mórbida entre mercado, marketing e democracia representativa (que não representa nem um pouco a maioria das pessoas), desencadeia fortes reações subjetivas, em vez de garantir a instauração de uma autoridade criativa que promova a sublimação.

A sociedade tecnocientífica, influenciada pelo positivismo lógico e pelo empirismo naturalista, tende a atribuir as causas do mal-estar cultural (tanto quanto as do sucesso pessoal) à esfera individual. O princípio da "divisão" de certo problema em partes menores, base da concepção do método cartesiano, apaga com frequência a concepção do todo. O que pode ser bom para o desenvolvimento científico, não é suficiente para a compreensão humana. Então, a análise fragmentada do ser humano, através de suas partes constitutivas, leva a uma visão reducionista das influências e relações subjetivas na constituição de uma gestalt complexa.

Em um contexto altamente individualista (MARTIN, 2016), fragmentário, competitivo e de meritocracia, a autoridade tende a se impor sem questionamentos. Isso se dá na medida em que os lugares de autoridade são pré-estabelecidos por condições pouco acessíveis à maioria, pois a falta de oportunidade e a tendência a perpetuar algumas poucas famílias privilegiadas no poder constituem aspecto notável de uma sociedade que se estrutura de maneira piramidal, em que pouquíssimos indivíduos chegam a um lugar de comando.

Sem deixar lado esses impedimentos sociais, o exercício de autoridade, livre de suas fantasias arcaicas, parece depender da uma figura que tenha capacidade de dirigir e inspirar a conduta de outrem no sentido de promover a igualdade e não uma hierarquia intocável. Trata-se da arte de ocupar uma posição "vertical" mostrando uma diferença, mas se apresentando de maneira "horizontal", em que aquele do qual supostamente se esperaria obediência, possa decidir seu caminho de maneira autônoma, segundo a definição "teórica" de Hannah Arendt (1972).

Em uma sociedade hiper individualista, segundo as propagandas sedutoras do marketing, dependeríamos dos conselhos de pessoas notáveis para agir: experts, famosos e "seguidos", às vezes, incondicionalmente. Isso indica uma maneira tradicional de agir e de se situar no mundo. Devemos exaltar, imitar e obedecer aos ídolos sem considerar sua realidade própria e singular. Observamos a heteronomia (PIAGET, 1992/1995) como base do individualismo devotado a uma autoridade idealizada. Apesar do declínio das sociedades tribais, em que os ritos de individuação e de passagem à vida adulta eram mais claros, existe ainda essa necessidade de passagem à independência por parte dos adolescentes, o que é tributário do questionamento acerca da autoridade. O adolescente confronta-se ao outro para poder se autorizar a agir a partir de seus próprios recursos. Isso implica uma necessidade de testar, ultrapassar e destituir todo tipo de autoridade para poder adquirir a sua própria independência e autonomia.

Principalmente nas grandes cidades, mas também um pouco em todo lugar, por não haver uma autoridade coerente com a qual o adolescente possa se confrontar - de acordo com "ritos" ou "regras" mais ou menos específicas - o adolescente não encontra barreiras consistentes no nível do conflito de gerações, pois a diferença tende a ser apagada em uma sociedade obcecada pelo culto à juventude e ao prazer perpétuos. Quando os pais e professores não são admirados, nem capazes de lidar com sua própria castração, as crianças não conseguem reconhecê-los como entidades suficientes para orientá-los. Somente a obediência livremente escolhida, portanto implícita a certa "verdadeira autoridade" (GAUCHET, 2010), levaria o sujeito a buscar seu lugar no mundo. Caso contrário, a subjetividade fica enrijecida, presa a um olhar mortífero, em que os adultos se postam claramente com inveja das gerações mais jovens (WINNICOTT, 1971).

No plano coletivo, a turba fica cega pela identificação com a figura de um mestre todopoderoso (FREUD, 1921/2012), que exerce sua sedução. Na psicologia freudiana das massas (Ibid.), a figura do líder ocupa o lugar do Eu Ideal na fantasia do povo; é o grande "Outro", distinto da massa, que incita a identificação "por contágio" entre os indivíduos. É a partir dessa triangulação hierárquica, pelo fascínio ao mestre, que o grupo pode se manter coeso. Imbert (1994) especifica que essa influência obrigatória da autoridade tem base na detenção do poder, evocando os ideais. Para esse autor: "(...) há duas coisas que garantem a coesão de uma comunidade: a coerção da violência e os laços afetivos entre seus membros - a que chamamos identificações (...)" (trad. livre, p. 208). No entanto, certas figuras vistas como essenciais e dignas deste lugar - principalmente os pais e professores - são humilhados continuamente no cotidiano. Isso abre um desafio em relação às regras que a sociedade tem dificuldade de impor sem evocar uma espécie de nostalgia do passado. Os tipos de violência, cada vez mais bizarros, desde agressões entre alunos, ou entre alunos e professores, até o radicalismo5 e os assassinatos em série em instituições educacionais, são registrados e difundidos pela internet e meios de comunicação de maneira assustadora. Nenhuma autoridade parece capaz de lidar com a loucura instaurada por certa juventude dita narcisista, cheia de caprichos, sem limites e, em muitos casos, violenta. Agora, ademais, totalmente siderada pelos dispositivos de controle: smartphones talvez até mais espertos que seus donos. O fetiche pelas armas de fogo põe em ato uma angústia saturada quando alguns estudantes entram em escolas, cinemas e parques para cometer assassinatos em massa. Tudo isso compõe um cenário que vai da falta de civilidade a um horror trágico. Mas qual é o erro dos pais e professores (MEIRIEU, 2016)? Esta "juventude radical" responde a quê? Há um excesso de delinquência hoje em dia? Precisamos aumentar e reforçar as punições e o uso da força? Como restabelecer a autoridade "perdida"? Atualmente, existe um movimento em discussão no Congresso Brasileiro para o aumento das penas e diminuição da idade penal dos jovens. Essa posição é bem presente nos setores mais conservadores da sociedade civil6. Mas isso seria capaz de remediar o problema da falta geral de autoridade?

De fato, os pais e professores são também submetidos a esse imperativo: nesse caso, pela falta de limites, visto que são impelidos a se igualarem aos adolescentes, presos ao ícone do "consumidor absoluto" e da perfeição estética. A autoridade tradicional, perante a qual todos se curvavam, foi substituída pela do "divino mercado" (DUFOUR, 2010), em que exibicionismo, ostentação e vida turística são classificados como a realização suprema do indivíduo. Na "pós-modernidade", segundo Bauman (1999), somos renegados à condição de turistas ou vagabundos e, para ficar em primeiro lugar, é preferível adaptar-se à lógica de consumo, sem grandes preocupações éticas. O importante parece ser o fato de poder participar do jet set global. É evidente que esse modelo convém apenas a um seleto grupo - mesmo que se mostrem relativamente numerosos, compondo a minoria da população mundial. No entanto, quase todos são fixados de maneira especular a esse ideal delirante. Pepe Mujica seria uma exceção à regra.

Se antes a cultura era regida por políticas repressivas, tendo como referência o puritanismo vitoriano e toda a influência religiosa no ocidente, desde o surgimento do liberalismo e, de maneira mais intensa, a partir do crash da bolsa de Nova York em 1929 (DUFOUR, 2009) e dos eventos da contracultura entre 1960 e 1970, conseguimos ter muito mais liberdade. No entanto, o resultado desses eventos não é assim tão nobre, pois quase sempre a subjetividade é um pouco mais determinada pelo imperativo do gozo. Trata-se de um processo de subjetivação, que contradiz o que é esperado dos detentores de micropoderes - pais e professores. A autoridade coloca-se assim na realidade como um grande Outro não castrado, transformando-se num autoritarismo persuadido pela predominância do Capital, que desregula todas as referências institucionais, levando o sujeito a uma procura infinita pela plenitude, através da busca por sucesso, notoriedade e uma vida cheia de prazeres, vendidos pelo marketing, como um "pacote" ilimitado.

Nesse contexto, a posição de autoridade é constantemente misturada às questões narcísicas postas em relações duais, de modo que a atração exercida pelo poder perverte as restrições simbólicas. Considerando esses desvios sistemáticos de demandas que nos impulsionam, constatamos que a composição de uma cultura altamente hierarquizada estimula o inchaço narcísico, a competição extrema, a falta de solidariedade, o abuso de poder e o uso da força, ainda que isso apareça no Brasil de formas dissimuladas, clivadas e foracluídas. Assim, os sinais de uma sociedade dedicada ao enriquecimento extraordinário de alguns, representados por um engodo ideológico, acabam por desencadear o eterno retorno do ódio contra as autoridades. Aliás, é absolutamente comum que as pessoas cegas pela posse de um lugar de autoridade, ocupem de maneira corrompida e arbitrária esse lugar, um risco em potencial para quem quer que seja, num contexto em que prevalece a prerrogativa capenga do "sei que não pode, mas mesmo assim...".

A autoridade sustentada pelo discurso do mestre (LACAN, 1969-70/1992), tendo consciência de sua "impostura" (PEREIRA, 2008), oscila entre um lugar vazio, sem valor fixo, e uma presunção orgulhosa de si, sarcástica e desdenhosa. Esses extremos são representados pelos perdedores-depressivos, de um lado, e os vencedores-perversos (BIRMAN, 1999, 2012), do outro: polarização típica de uma cultura caótica, totalmente desregulada pela lei tirânica do mercado. Enfim, quando há a adoção hegemônica do discurso do mestre, não há uma regra legítima, pois há apenas "mestres da humanidade" (CHOMSKY, 2015), que desconhecem o resto do mundo. Mas como encontrar certa autoridade perante tantas mentiras estabelecidas? A hierarquia inspirada em uma tradição colonial e paternalista impõe-se como uma farsa em uma sociedade supostamente fluida, em que todos teriam oportunidade à ascensão social. Eis aí a grande falácia, pois independentemente do que o cidadão médio faça, as chances de viver um modelo de realização e riqueza plenas são absolutamente reduzidas, ou até inacessíveis.

Longe de nós afirmarmos que o exercício de autoridade é totalmente indesejável. Mas não é razoável esperar um reconhecimento dos jovens, dizendo-lhes simplesmente, por exemplo, que devem estudar para alcançar um status social atraente e mais confortável. As políticas da subjetividade supõem que todo mundo ou cada um possa chegar a um posto de comando, poder ou estrelato, mas isso corresponde à antítese das necessidades (ou até das condições materiais) de um povo. A autoridade, nesse sentido hierárquico sintomático, é um lugar absolutamente impossível. Os que a detêm permanecem, em geral, agarrados a certo autoritarismo, reforçando e garantindo uma posição suprema forjada "acima da massa".

Inspirando-se no trabalho de Bion (2011) sobre a guerra dos nervos representada por um estado real de guerra, Lacan (1947/2001) já denunciara a inutilidade da imposição hierárquica: "Em todo caso, sabe-se que a posição tradicional de comando não vai no sentido da iniciativa inteligente" (trad. livre, p. 104). Lacan, assim, corrobora a função subversiva da psicanálise em relação aos efeitos perversos da cultura. Nesse sentido, tentamos compreender aqui a noção de autoridade, para finalmente, desconstruí-la.

Com efeito, se uma atitude transgressiva anterior denunciava os excessos da repressão, hoje é preciso ir no sentido contrário e considerar a impossibilidade de viver na ausência completa de referências simbólicas, no que diz respeito à construção coletiva do bem comum. Diante da falta de legitimidade, questão fundamental para assegurar o lugar da autoridade, seu exercício oscila entre os extremos do fracasso paralisante e da potência todo-poderosa, esses dois polos constituindo a dificuldade de se dar conta da castração como fato criador do desejo. A autoridade teria essa função de se interpor à alienação do sujeito no reino dos impulsos e à interpelação de uma lei criadora. Quando a palavra de um terceiro não se coloca de maneira confiável, pois é contraditória e falsa, a lei falta no Real. De acordo com Imbert (1994): "Tal é a exigência ética: a do dom de uma palavra que interprete e mobilize uma aplicação prática da lei. Essa palavra não é a de um autor, não se coloca como posição de autoridade ou saber, não capitaliza nada, não assegura controle algum, nem posse alguma. Ela é baseada em separação e perda" (trad. livre, p. 127). Assim, é através da necessária triangulação do desejo, que a autoridade simbólica se instaura no campo do suposto saber e enfrenta, assim, a confusão da dualidade especular.

Não obstante, uma das figuras atuais da autoridade mais invocada, a autoridade científica, parece tomar o espaço do vazio sem o qual o sujeito não pode existir de modo autêntico. Salienta-se que toda autoridade deve ser tomada como barrada. No entanto, os interesses da indústria psicofarmacológica associados à pretensão médica de suprir a falta e negar a morte apresentam-se como se fossem a solução para todas as dificuldades. Há muitos autores que já alertaram contra este fenômeno da medicalização da vida (LIMA, 2005; LANDMAN, 2015), em que a responsabilidade esperada para cada um é substituída pelo uso de medicamentos e drogas supostamente mágicos. Os professores, então, devem retomar seu lugar "roubado" por uma pseudoautoridade médica que não tem nenhum interesse senão o financeiro com os processos de medicalização da aprendizagem. De acordo com Imbert (1994):

(...) o medicamento coloca a criança como uma criança doente, a ser cercada de cuidados, uma criança que devemos proteger, por todos os meios, da separação. Como tal, o Gardenal é o nome deste corte impossível, entendido como expressão de uma autoridade médica, discurso cuja função é bloquear todo surgimento de uma palavra, de um processo de diferenciação-separação (p. 127).

Que isso tenha relação com o Gardenal do passado, com a Ritalina de hoje em dia, ou com qualquer outra novidade bioquímica que venha tomar o lugar da "autoridade educadora" (ROBBES, 2006a, 2006b, 2012, 2017), é preciso manter uma distância crítica em relação a uma "autoridade médica", vista como principal solução para os problemas subjetivos. Ao contrário, a legitimidade da palavra não pode ser substituída por um discurso científico que se desenvolve no desprezo em relação à psicanálise (LEBRUN, 1999/2000; AOUILLÉ et al., 2010)7, pois o sujeito não pode reparar sua condição de ser castrado. Assistimos a uma diluição das responsabilidades no imaginário coletivo, quando se imputa à materialidade dos genes ou à fisiologia do cérebro, a culpabilidade por todos os erros humanos, algo que vai de par com a ausência de autonomia subjetiva (MARCELLI, 2016). Esta espécie de reducionismo científico impõe-se no nível das políticas educacionais e da saúde. Vemos ainda "novas" diretrizes a cada mudança de governo, interferindo no exercício da profissão do educador (POMMIER, 2018), mas também na práxis psicanalítica. Os professores são cada vez mais treinados e habituados a diagnosticar os supostos "problemas de aprendizagem" e a recomendar cuidados médicos, seja lá qual for a dificuldade de atenção e comportamento das crianças ou jovens. O que antes fazia parte do desenvolvimento infantil, ou seja, o comportamento oposicionista com seu desafio a toda forma de autoridade, sua falta de aptidão aos estudos, torna-se uma doença a ser combatida e neutralizada.

Embora se possa constatar a ausência de regras no mundo dos adultos, é frequentemente esperada dos jovens a submissão sem falhas à lei. A questão da normalização das condutas (FOUCAULT, 1974-5/1999) é substituída, agora, pelo aumento da exigência de perfeição; como se todos pudessem ascender a uma posição de excelência. Se a autoridade médica manipula a capacidade dos indivíduos, principalmente de crianças e adolescentes, estigmatizando suas diferenças, então a luta contra formas autoritárias, portanto, ilusórias de autoridade, surge como resistência necessária.

 

A hierarquia indispensável à neurose familiar

Lacan (1938/2001) mostra que os traços psicológicos da família são essencialmente baseados em uma estrutura desigual que se reproduz sistematicamente:

(...) a estrutura hierárquica da família, e reconhecendo nela o organismo privilegiado desta coação do adulto sobre a criança (...). Mas outros traços objetivos: os modos de organização desta autoridade familiar, as leis de sua transmissão, os conceitos da descendência e do parentesco, as leis de herança e sucessão que se combinam, por fim suas relações íntimas com as leis do casamento - obscurecem ao emaranhar as relações psicológicas (p. 24).

De fato, alguns aspectos arcaicos da autoridade (e sua semente autoritária) são trazidos à luz em uma cultura hierarquizada, altamente paternalista desde suas bases familiares. A dominação da criança pelo adulto, com toda série de regras precedentes, corre o risco de cair em relações sintomáticas, tendendo muitas vezes à neurose senão às clivagens diversas. A rigidez da lei confunde-se com a intimidade dos "modos de organização da autoridade familiar", produzindo pontos obscuros dificilmente suportáveis para seus membros, divididos e/ou excluídos. Segundo Lacan (1938/2001):

As formas primitivas de família têm os traços essenciais de suas formas concluídas: autoridade, senão concentrada no tipo patriarcal, ao menos representada por um conselho, por um matriarcado ou seus representantes masculinos; modo de parentesco, herança, sucessão, transmitido, às vezes distintamente, de acordo com uma linhagem paternal ou maternal (p. 25-26).

Essas organizações têm por objetivo "manter as coisas como elas são", ou seja, segundo a tradição, em que a autoridade, em geral, é considerada indiscutível, imutável, insuperável. A família patriarcal é, portanto, inclinada a uma espécie de neurose de competição e a colagens especulares entre os fortes e estigmatização dos fracos, relegados à indignidade de serem comandados pelos outros. Em contrapartida, o espírito de uma família harmoniosa que se sucede perpetuamente na aquisição de posições de poder de seus membros, segue um modelo fantasioso. Para Lacan (1938/2001), isso faz parte das "nostalgias da humanidade", refletindo uma: "(...) miragem metafísica de harmonia universal, abismo místico da fusão afetiva, utopia social de uma tutela totalitária, todas saídas da obsessão pelo paraíso perdido anterior ao nascimento, e da mais obscura aspiração à morte" (p. 36). Nesse sentido, a família seria condicionada pela utopia da autoridade impecável e autossuficiente. Existe no inconsciente coletivo todo tipo de fantasia sádica e até mesmo certa demanda masoquista por uma autoridade que nos libere de nossa responsabilidade. A prioridade da constituição hierárquica da família tradicional conservadora coloca-se então como um perigo. E isso é cultivado no seio da estrutura educacional. Lacan (1938/2001) alerta para: "(...) a realidade aparente desse perigo, unida ao fato de que a ameaça disso é realmente formulada por uma tradição educativa" (p. 48). A fantasia da imagem de um pai forte e idealizado atualiza-se apesar de todos os fenômenos libertadores (desde os movimentos de contracultura dos anos 1960 até os Gilets Jaunes de hoje em dia). Infelizmente, existe um eterno retorno do conservadorismo recalcado, reforçando uma sociedade falocêntrica. Como o falo foi separado da figura específica do homem, é a necessidade de poder a operadora da neurose e das perversões atuais. O falo constitui-se por algo que o sujeito porta e que lhe confere poder (ZIZEK, 2003). Em Lacan (1938/2001): "A imagem do pai, na medida em que domina, polariza nos dois sexos as formas mais perfeitas do ideal do eu, algo suficiente para indicar que elas realizam o ideal viril no menino e na menina o ideal virginal" (p. 56). E esses "ideais de perfeição" não seriam os condicionadores de nossos mais nefastos sofrimentos, ou ao menos aqueles dos jovens, sobretudo os "não normativos"? Precisaríamos criar uma nova gramática, não-toda, para a psicanálise? A operação psíquica ligada à fragilidade na instauração de uma autoridade paterna legítima pode atrofiar assim o potencial subjetivo de modo a "(...) desviar a energia da sublimação de sua direção criativa e favorecer sua reclusão em algum ideal de integridade narcísica" (LACAN, 1938/2001, p. 56).

Todos os integrantes da família "tradicional" (em especial as mulheres) são submetidos a uma "autoridade paternalista" esmagadora que, no modelo conservador ainda bastante presente, tende a impedir os processos sublimatórios, deixando a posição inferior aos que não são: homem, forte, branco, pai, proprietário, dominante. Este poder fálico é igualmente atribuído ao narcisismo. Nas palavras de Lacan (1938/2001, trad. livre):

Ora, se, por experiência, o psicanalista como o sociólogo pode reconhecer na interdição da mãe a forma concreta da obrigação primordial, da mesma maneira podem demonstrar um processo real de "abertura" do vínculo social na autoridade paternalista e dizer que, pelo conflito funcional de Édipo, ela introduz na repressão um ideal de promessa. Se eles se referem aos ritos de sacrifícios em que as culturas primitivas, mesmo que tenham atingido uma concentração social elevada, o fazem com o mais cruel rigor - vítimas humanas desmembradas ou enterradas vivas - as fantasias da relação primordial com a mãe, eles lerão, em mais de um mito, que ao advento da autoridade paterna corresponde um temperamento da primitiva repressão social (LACAN, 1938/2001, p. 57-58).

Essa crueldade arcaica é, portanto, integrada ao modelo de autoridade ainda predominante. A autoridade, a mais purificada no nível conceitual, a mais elaborada no nível prático, é sempre contaminada pelo fantasma da onipotência paterna primitiva. É uma questão de poder, narcisismo, autoritarismo que pode atingir também mulheres ou qualquer um cuja autoridade está à revelia do desejo, logo impregnada do gozo autoritário. Assim, cabe ao analista notar e trabalhar os vestígios inconscientes do autoritarismo na posição de autoridade.

 

 

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Endereço para correspondência
Marília Etienne Arreguy
E-mail: mariliaetienne@id.uff.br

 

 

*Psicanalista. Professora Associada II do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora Associada do Centre de Recherches Médecine Psychanalyse et Société da Université Paris Diderot. Membro da Fondation Européenne pour la Psychanalyse - Roma; Membro da Asociación de Psicoanálisis Lapus de Toledo - Espanha; Membro da Association Internacionale des Interactions de la Psychanalyse - Paris. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1Tradução reelaborada de dois artigos contíguos: Arreguy, M. E. L'autorité contaminé. Analyse Freudienne Presse. Paris: Érès, 2019/1, n. 26, p. 127-138. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-analyse-freudienne-presse-2019-1-page-127.htm >. Arreguy, M. E. Entre l'échec et l'excès d'une autorité sans repères. APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação, Vitória da Conquista, Ano XII, n. 22, p. 11-21, jul-dez 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.22481/aprender.v0i22.6060>.
2Tradução de Matheus Vianna Ferreira, Mônica Fiuza BF e Rita Nogueira. Revisão e adaptação da tradução por Marília Etienne Arreguy.
3Trabalho resultado de bolsa CAPES de Pós-Doutorado na Université Paris 8, de março de 2017 à julho de 2018.
4O Projeto Escola sem Partido preconiza a desautorização dos professores enquanto tenta aprovar uma lei de criminalização da profissão em caso de incitação ideológica dos estudantes. Esta criminalização está ligada à proibição do ensino de teorias marxistas e de gênero e diversidade nas escolas.
5Adolescentes franceses que se convertem ao islamismo e mesmo jovens de origem islâmica em segunda ou terceira geração na França, que se radicalizam em atitudes ditas terroristas.
6Há um projeto de emenda constitucional sendo analisado no Congresso Nacional Brasileiro (PEC 171/03) desde 1993, que prevê mudanças na Constituição Federal tendo por objetivo diminuir a idade da responsabilidade penal de 18 para 16 anos. Há outros movimentos no Estado de São Paulo que pedem a diminuição para 14 anos e o agravamento das penas, com base na legislação de países "mais desenvolvidos". Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Reforma_da_maioridade_penal_no_Brasil >. Acesso em: 08 mar. 2019.
7A luta contra as práticas reducionistas baseadas no fetiche das neurociências e comportamentalistas é denunciada como uma espécie de reserva de mercado que tenta excluir a clínica psicanalítica do campo de terapêuticas ligadas à Educação Nacional francesa (POMMIER, 2018).

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