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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Sobre a destrutividade: o negativo e a pulsão de destruição

 

On destructiveness: the negative and the destruction drive

 

 

Cláudia Amorim Garcia*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho apresenta numa discussão sobre a relação entre o trabalho do negativo e a pulsão de morte em André Green, que se fundamenta no postulado do objeto como revelador da pulsão, eixo central do pensamento greeniano presente na crítica greeniana do caráter espontâneo e biológico do conceito de pulsão de morte freudiana e na formulação da pulsão de destruição cujo desencadear exige a ação do objeto. A relação entre pulsão de morte e trabalho do negativo se dá através do conceito de narcisismo negativo, representante do trabalho do negativo disjuntivo e expressão ímpar da pulsão de morte, na perspectiva de André Green.

Palavras-chave: Pulsão de morte, Trabalho do negativo, Narcisismo negativo, Alucinação negativa.


ABSTRACT

This article consists in a discussion about the relationship between the work of the negative and the death drive according to André Green. It is based on the assumption that the object reveals the drive which characterizes the greenian thought and it is present also in the critique of the spontaneous and biologic nature of the Freudian death drive as well as in formulation of the destructive drive that needs to be stimulated by the object to occur. The relationship between the death drive and the work of the negative depends on the concept of negative narcissism representative of the disruptive work of the negative which is the utmost expression of the death drive, according to André Green.

Keywords: Death drive, Work of the negative, Negative narcissism, Negative hallucination.


 

 

São inúmeras as controvérsias que envolvem o conceito freudiano de pulsão de morte que, certamente, não é uma unanimidade entre aqueles que praticam a psicanálise. Parece-nos, no entanto, incontestável a ação da destrutividade na clínica e na cultura contemporâneas o que, por si só, exige maior discussão sobre esta questão, tarefa a que se dedicou A. Green numa tentativa de articular a pulsão de morte freudiana com o trabalho do negativo, respeitando suas especificidades.

Em várias ocasiões, ao longo de sua obra, A. Green se debruçou sobre o conceito de pulsão de morte, em Freud, numa leitura original em que aproximações e, principalmente, diferenças com o texto freudiano foram apresentadas. O trabalho do negativo, por outro lado, categoria hegeliana, mas incorporada a psicanálise numa contribuição original greeniana, foi exaustivamente discutido como mecanismo, em relação a vários fenômenos psíquicos inclusive, mas não exclusivamente, a pulsão de morte. A relação entre eles, no entanto, não foi claramente estabelecida no texto greeniano que contém, no entanto, algumas tentativas de delimitação mais específica como aquela apresentada em 2005 no trabalho A pulsão de morte e o trabalho do negativo. De maneira geral, no entanto, é plausível afirmar que o território da pulsão de morte ou de destruição, como denominada por Green, é, sem dúvida, habitado pela ação do negativo que, no entanto, a ele não se restringe.

 

Pulsão de morte ou pulsões de destruição?

Em Pulsão de morte, narcisismo negativo e função desobjetalizante, texto de 1986, Green apresenta uma análise metapsicológica meticulosa da segunda teoria pulsional acrescentando novas categorias e divergindo de algumas premissas freudianas. Lembrando que Freud, no Esboço, se refere a uma função sexual, representante de Eros, propoe, então, que a função autodestrutiva poderia representar a pulsão de morte observando, no entanto, e diferentemente de Freud, que esta função não se expressaria automática ou espontaneamente. Esta observação aponta para uma posição emblemática do pensamento greeniano que é explicitada no desenvolvimento de seu argumento quando afirma que a teoria das pulsões é uma categoria conceitual que se deriva da experiência clínica e, portanto, mesmo considerando as pulsões como entidades primeiras, isto é, originais, tem-se que admitir que

... objeto é o revelador das pulsões. Ele não as cria – sem dúvida podemos dizer que é criado por elas, pelo menos em parte – mas é a condição do seu vir a existir. E é através desta existência que ele mesmo será criado ainda que já estando lá. É esta a explicação da ideia de Winnicott de encontrar-criar (GREEN, 1986/2010, p. 64).

Afirmar que as vicissitudes pulsionais dependem exclusivamente dos mecanismos de ligação e desligamento é correto, mas insuficiente, dado que a pulsão de vida pode conter movimentos de ligação e desligamento, ou até mesmo absorver uma parte da pulsão de morte que, assim, transforma. A pulsão de morte, por sua vez, não se restringe ao desligamento. A hipótese de uma nova dualidade composta pelas funções objetalizante e desobjetalizante é então apresentada como complementar a posição original freudiana. A meta essencial da pulsão de vida passa a ser o cumprimento da função objetalizante – da qual participam ligação e desligamento – que atua na criação de objetos e transformação de estruturas em objetos, tendo como única exigência a presença de um investimento significativo, o que possibilita que qualquer atividade psíquica, até mesmo o próprio investimento, possa ser objetalizado. A meta da pulsão de morte, por outro lado, é realizada pela função desobjetalizante através do mecanismo de desligamento que, no caso da pulsão de morte, se apresenta como desinvestimento radical, podendo atingir não apenas as relações com o objeto e até mesmo o eu, mas também o próprio investimento objetalizante. Neste último caso o desinvestimento apresenta sua face mais violenta, configurando-se como narcisismo negativo, movimento pulsional em busca do zero de tensão psíquica, manifestação ímpar da função desobjetalizante e frequentemente considerado, no texto greeniano, como a própria expressão da pulsão de morte. Também os lutos insuperáveis, as angústias catastróficas e os sentimentos de desvitalização e morte psíquica, que caracterizam as estruturas não neuróticas, decorrem da ação destrutiva da função desobjetalizante que tem como um dos seus efeitos mais deletérios o prejuízo a capacidade de representação e a simbolização.

Neste trabalho de 1986 algumas contribuições inovadoras são apresentadas, em consonância com o texto freudiano, enquanto o caráter espontâneo da pulsão de morte freudiana é indiscutivelmente rejeitado, e o desligamento assume toda sua radicalidade como função desobjetalizante. É, no entanto, o trabalho de 2000, intitulado A morte dentro da vida que melhor explicita as concordâncias e discordâncias de Green em relação ao conceito de pulsão de morte em Freud. O texto se constitui numa rejeição veemente a hipótese biológica freudiana de uma volta ao estado inorgânico, indicativa do radicalismo biológico, ou até mesmo do biologismo mítico presente em 1920

No que me concerne não adiro a esta visão. Não saberia dizer se é verdadeira ou falsa e, além disso, estamos mergulhados numa obscuridade que não pode ser clareada já que Freud, com razão, nos lembra que sobre a morte nada sabemos.... Neste nível de discussão somos obrigados a concluir que o biologismo mítico de Freud domina o argumento (GREEN, 2002/2000, p. 311).

Apesar de a utilidade e a verdade inquestionável do conceito de pulsão de morte, no que se refere a destrutividade humana, serem reconhecidas, a ressonância especulativa do termo pulsão de morte é criticada, o que leva a sua substituição por pulsão de destruição de orientação externa – como reação a uma provocação de fora – e orientação interna como resultado de um movimento de expulsão da destrutividade que fracassa e retorna para o sujeito. Voltando a questionar o caráter regressivo e espontâneo da pulsão de morte freudiana, Green aponta, então, para a importância do objeto na sua dupla funcionalidade como desencadeador de manifestações destrutivas, ou como fator de prevenção de forças destrutivas, tendo como função principal possibilitar a intrincação pulsional e os investimentos objetais.

A morte dentro da vida articula questões apresentadas no âmbito da discussão sobre o narcisismo, na década de 60, no texto de 1986 sobre pulsão de morte, narcisismo negativo e função desobjetalizante e também na coletânea O trabalho do negativo de 1993. Assim, a concepção de uma destrutividade orientada para fora, agora denominada de agressão pura, aponta para a ação da função desobjetalizante responsável pela instalação de uma regressão narcísica violenta em que o eu se isola sustentado pela promessa ilusória da autossuficiência narcísica que busca o nível zero de tensão psíquica, manifestação de um narcisismo negativo. É neste campo, em que predomina a aspiração ao nada, que se situam o masoquismo, o sentimento de culpa inconsciente, a reação terapeutica negativa e também a melancolia, categorias clínicas freudianas as quais Green acrescenta a anorexia, as psicossomatoses e, de uma maneira geral, a dinâmica psíquica prevalente nas estruturas não neuróticas. Este conjunto de manifestações psíquicas se origina do trabalho do negativo desestruturante que vigora no âmbito da pulsão de destruição sem, no entanto, com ela se confundir.

 

Trabalho do negativo: alucinação negativa e estrutura enquadrante

O interesse de A. Green pelo negativo se apresentou, ainda na década de 60, nos seus primeiros trabalhos sobre o narcisismo, resultantes de sua prática clínica com casos que, já naquela época, apresentavam forte dificuldade de usufruir de um processo analítico dentro do modelo clássico.

No artigo Narcisismo primário: estado ou estrutura (1967/1988) Green se refere a expressão freudiana narcisismo primário absoluto, contida no Esboço (FREUD, 1940 ), a qual atribui dupla significação: como estado e como estrutura. A hipótese de um narcisismo como estado, definido a partir da qualidade do investimento (eufórico, grandioso, etc...), resultaria da unificação das pulsões autoeróticas numa primeira totalidade egoica, território dos dois destinos pulsionais mais primitivos: transformação no oposto e volta sobre si mesmo. Este seria o narcisismo do sonho, apresentado por Freud em 1914, que se daria no âmbito da primeira tópica e funcionaria de acordo com o princípio do prazer, possibilitando a produção onírica. O narcisismo como estrutura, por sua vez, presente no sono, seria o investimento original da mônada eu-isso indiferenciada, sem referência a unidade egoica, e definido não mais por sua qualidade, mas pela orientação do investimento pulsional que, neste caso, tenderia ao zero de tensão psíquica. O modelo da primeira experiência de satisfação é então utilizado como parâmetro na determinação dos destinos do narcisismo primário como estrutura, isto é, como orientação do investimento pulsional, definição com a qual Green trabalha. Os desfechos de uma primeira experiência de satisfação – bem ou malsucedida – seriam decisivos na constituição do narcisismo positivo, de vida, ou narcisismo negativo, de morte, na busca do zero de tensão psíquica. É neste trabalho, portanto, que o negativo é mencionado pela primeira vez, como qualificativo do narcisismo, designando o movimento da pulsão em busca do zero de tensão, em obediência ao princípio de Nirvana, efeito de uma experiência de satisfação malsucedida, o que mais uma vez aponta para o papel crucial do objeto nas vicissitudes dos investimentos pulsionais ainda que, neste contexto, estivesse sendo apresentada uma discussão sobre o narcisismo.

O tema do trabalho do negativo, pela primeira vez identificado na formulação no narcisismo negativo, em 1967, é exaustivamente destrinchado na coletânea homônima de 1993 onde, na justificativa da necessidade de estudar o tema, Green afirma que incontestavelmente a psicanálise é uma prática em que, mais do que em qualquer outra se torna visível a ação do negativo, o que explica sua presença na formulação da psicanálise, desde seus primórdios. Sugere, então, considerar o texto freudiano como uma construção que se dá em grande parte entre o postulado da neurose, como negativo da perversão, e a identificação da reação terapeutica negativa que deslancha a virada teórica de 1920, o que, indiscutivelmente, atesta a presença do negativo ao longo da construção freudiana.

Na coletânea Trabalho do negativo, de 1993, após a apresentação da categoria do negativo no âmbito da filosofia hegeliana e da psicanálise freudiana é oferecida uma definição polissemica do negativo que engloba vários significados. Em psicanálise o negativo tanto pode estar presente numa relação de oposição polemica com o positivo ou numa relação simétrica em que negativo e positivo são termos intercambiáveis que podem vir a ocupar posições invertidas. O negativo em psicanálise também diz respeito ao latente, que continua a existir sem ser percebido, numa perspectiva neutra onde a ausência é o oposto simétrico da presença, ou indicativa do recalcado e, finalmente, pode remeter ao nada, aquilo que não se opoe nem ao antagônico, nem ao simétrico nem ao perceptível. Estes diferentes significados do negativo podem se articular, como no caso da ação do negativo no conflito consciente/inconsciente o que aponta para um jogo de forças em funcionamento na ação do negativo.

Uma releitura contemporânea da primeira experiência de satisfação (FREUD, 1895) identifica traços da ação do trabalho do negativo na construção de um registro inaugural do psiquismo, que possibilita o movimento desejante, assim como também no conceito de inconsciente na sua relação com o consciente. É a identificação do negativo nas defesas primárias (recalque, recusa, rejeição, negação), no entanto, que leva Green a adicionar o termo “trabalho” ao negativo considerando que toda defesa implica um trabalho, neste caso específico um trabalho negativante. O trabalho do sonho seria o primeiro trabalho do negativo presente no texto freudiano, representado pelos mecanismos de condensação e deslocamento. Ainda no âmbito da primeira tópica o trabalho do luto é uma atividade psíquica onde o trabalho do negativo atua intensamente principalmente na versão melancólica, onde se dá dupla apresentação do negativo no não saber o que se perdeu, e na amputação de uma parte de si mesmo pela identificação inconsciente com o objeto perdido. Mas é nas atividades psíquicas que se dão no campo da segunda teoria pulsional que a negatividade se manifesta de maneira mais destrutiva, muitas vezes como agressividade pura, desvinculada, justificando o entendimento do trabalho do negativo desestruturante como expressão da pulsão de morte na figura do narcisismo negativo. De uma maneira geral, o trabalho do negativo se apresenta, no âmbito da primeira tópica, principalmente, como território do inconsciente e, na segunda tópica, principalmente, mas não exclusivamente, como expressão da pulsão de morte, na figura do narcisismo negativo.

Referindo-se a ação do negativo na clínica Green lembra que no caso do negativo do recalque a relação com o objeto é preservada e o trabalho na transferência permite o acesso ao desejo recalcado e a busca da satisfação possível. Por outro lado, nas situações em que predomina o negativo da reação negativa nos deparamos, no espaço analítico, com movimentos de hetero e autodestruição que indicam a prevalência do narcisismo negativo.

É de uma análise exaustiva da Negativa, de 1925, a qual recorre várias vezes, que Green deriva a postulação do conceito de trabalho do negativo, e demonstra o papel crucial do objeto na determinação de seu efeito positivo ou negativo. Naquele texto Freud, mostrando a relação entre a negativa, no plano da linguagem e o movimento das moções pulsionais, que se apresentam como sim e não, afirma que o Não, do paciente, em análise, é representativo da ação negativante do recalque que Green entende como presente, de uma maneira geral, nas defesas primárias como um conjunto de mecanismos psíquicos que exercem a função do negativo no âmbito do funcionamento egoico, e do qual a recusa e a rejeição também fazem parte. Mas a Negativa também contém uma indicação crucial do trabalho do negativo, desta vez no âmbito pulsional, no movimento de expulsão, próprio do julgamento de atribuição, que excorpora o que é sentido como mau enquanto o que é sentido como bom/prazeroso é preservado, e possibilita a constituição do eu do prazer original, primeiro esboço egoico. A leitura da Negativa aponta assim para o amplo raio de ação do negativo que inclui não apenas as defesas primárias na sua relação com o eu, mas também a ação da pulsão de morte como uma de suas manifestações mais pungentes, mas não exclusiva.

A ação negativante do trabalho do negativo pode ter efeitos estruturantes ou conjuntivos e desestruturantes ou disjuntivos dependendo da resposta do objeto as reivindicações do sujeito. Na sua vertente disjuntiva aparece no masoquismo, no sentimento inconsciente de culpa e na reação terapeutica negativa, categorias freudianas que trazem a marca da pulsão de morte, mas também nas psicossomatoses, na anorexia, nas estruturas não neuróticas, quadros clínicos exaustivamente trabalhados por Green e nos quais a aniquilação do sujeito se apresenta como possibilidade. Na sua versão conjuntiva, por outro lado, o trabalho do negativo pode ser identificado na sublimação, na identificação, e também na alucinação negativa, que se constitui em conceito central para o entendimento da postulação greeniana sobre o destino do objeto primário e a construção da estrutura enquadrante.

Uma primeira definição greeniana da alucinação negativa, apresentada em 1977, como representação da ausência de representação é mais tarde considerada ambígua, sob a alegação de que possibilitaria a confusão entre percepção e representação. Em 2002, concordando com a definição freudiana de alucinação negativa como a não percepção de um objeto ou fenômeno psíquico perceptível, Green lembra que percepção, em Freud, não se limita a sensorialidade, mas implica sempre um processo interno concomitante. Tratar-se-ia, então, de um mecanismo de apagamento do que deveria estar sendo percebido e, portanto, de uma ação do trabalho do negativo que envolve a percepção e a representação que pode ter efeitos patológicos ou estruturantes.

Na análise a alucinação negativa pode por vezes assumir um caráter defensivo acirrado que interfere no processo analítico e parece dizer respeito ao que Freud denominou de recalque da realidade, sintoma encontrado na psicose. Expressões como o branco do pensamento, cabeça oca que os pacientes utilizam para se referir a uma dificuldade de pensar podem apontar para a presença da alucinação negativa assim como também as situações em que as interpretações do analista não são percebidas, mesmo quando são escutadas, como se houvesse dissociação entre a sonoridade das palavras e seu sentido. Nestes casos acontece a alucinação negativa do pensamento, frequente na análise das estruturas não neuróticas que apresentam graves transtornos no processo de representação e na construção do pensar.

Foi principalmente sua experiência com a clínica das estruturas não neuróticas e do seu entendimento da alucinação negativa como manifestação do trabalho do negativo, nas suas potêncialidades positivas e negativas, que levaram Green a atribuir a alucinação negativa papel central no apagamento do objeto primário, processo indispensável a constituição do psiquismo, e cujo fracasso interfere drasticamente na construção da estrutura enquadrante, solo psíquico, espaço representacional. O apagamento do objeto primário, que a alucinação negativa possibilita e a construção introjetiva de uma estrutura enquadrante a partir da apropriação dos cuidados maternos, são processos concomitantes que resultam na construção de um espaço interno que pode, então, ser habitado por investimentos eróticos e agressivos sob a forma de representações de objetos substitutos. “A mãe é presa na moldura vazia da alucinação negativa e se torna estrutura enquadrante para o próprio sujeito. O sujeito se constrói lá onde a investidura do objeto foi consagrada no lugar do seu investimento.” (GREEN, 2002, p. 293, tradução nossa). A ação do objeto é, evidentemente, crucial no desfecho deste processo em que tanto pode se apresentar como confiável, amoroso e falível, suportando o apagamento e a separação, mas também como um empecilho no processo de seu apagamento, tornando-se fator desencadeante de forças hetero e autodestrutivas, expressão de um narcisismo negativo.

O exemplo paradigmático do fracasso da alucinação negativa, como trabalho do negativo estruturante no processo de apagamento do objeto e suas dramáticas consequências subjetivas, é apresentado no trabalho A mãe morta, de 1980. Nele Green relata o caso de uma paciente a merce de uma mãe gravemente deprimida, presente fisicamente, mas ausente subjetivamente, o que impediu seu apagamento necessário a estruturação do psiquismo de sua filha e a separação entre elas. É neste sentido que François Duparc lembra que é a partir do envelope vazio deixado pelo objeto negativamente alucinado, portanto, de uma ausência, sobre um fundo de presença, que se constitui a estrutura enquadrante (DUPARC, 1996) processo que, neste caso, fracassou dando origem ao complexo da mãe morta que a depressão se dá na presença do objeto.

 

Finalizando...

Em 2005, uma apresentação curta intitulada O trabalho do negativo e a pulsão de morte – cujo título promete uma discussão sobre a relação sobre as duas categorias – se constitui, na verdade, numa discussão exclusivamente sobre o trabalho do negativo. O texto retoma a discussão do negativo em Freud nos conceitos de inconsciente e isso, mas também na expressão inaugural da neurose como negativo da perversão e na identificação. A representação como negativo da percepção, mas também como efeito do recalque, leva a discussão da clivagem e da forclusão, ou rejeição radical, como expoentes do trabalho do negativo disjuntivo. É aqui que encontramos, então, uma curta e única, mas bastante elucidativa, referência a pulsão de morte e sua relação com o trabalho do negativo – cuja expressão ímpar é o narcisismo negativo – que parece esclarecer a relação entre pulsão de morte e trabalho de negativo de uma maneira mais clara:

Tudo isto nos conduz a reconsiderar a pulsão de morte freudiana. Propus renomear este conceito de narcisismo negativo que é narcisismo que não busca a Unidade – como é o caso do narcisismo em Freud – mas que aspira ao nível zero. Por consequência, não é compreendido como o inverso do positivo, mas como uma aspiração ao nada (GREEN, 2011, p. 108, tradução nossa, grifo nosso)

A renomeação da pulsão de morte por narcisismo negativo, expressão princeps do trabalho do negativo desestruturante, não se limita, evidentemente apenas ao aspecto terminológico, mas introduz uma nova e crucial visada sobre a questão. Assim. o ponto central desta formulação é a inclusão do objeto como fator desencadeante e essêncial da dinâmica destrutiva, contribuição greeniana da década de 60 apresentada na discussão sobre os destinos do narcisismo na constituição subjetiva.

Dando seguimento a formulação do narcisismo negativo como expressão da pulsão de morte Green retoma sua formulação de uma função desobjetalizante que pode desfazer a ação objetalizante de tal forma que os objetos são desprovidos de sua singularidade e passam a ser facilmente destruídos ou substituídos. Esta expressão do trabalho do negativo radical pode se apresentar na clínica como reação terapeutica negativa e masoquismo primário que interferem fortemente no processo analítico.

É, no entanto, a faceta conjuntiva do trabalho do negativo, embora já tivesse sido discutida em outros trabalhos, que é realçada, no final texto, de forma significativa o que parece se constituir numa tentativa de delimitar a ação do negativo estruturante e, assim, ressaltar a diferença em relação ao trabalho do negativo como narcisismo negativo, expressão da pulsão de morte. Assim, o papel crucial das representações pulsionais como trabalho do negativo estruturante na contenção do excesso pulsional que nos habita e sua transmutação em criações culturais é discutida. Este processo pelo qual a sublimação é responsável justifica sua inclusão no conjunto de fenômenos psíquicos que representam o trabalho do negativo estruturante, que se efetua pela negação do natural que passa a ser cultural, na concepção de A. Green, posição reiterada em outros trabalhos.

É, portanto, necessário ligar estas forças a fim de transformá-las e lhes dar uma forma favorável aos objetivos atribuídos ao espírito – o que implica reduzir as forças pela defesa (GREEN, 2005/2011, p 107).

E, mais adiante

Mas nós podemos também observar que a transformação do meio ambiente pelas criações culturais implica o sentido da negação do seu caráter natural (GREEN, 2005/2011, p 107).

Também a ação da alucinação negativa no apagamento do objeto é discutida como condição para a construção da estrutura enquadrante nos casos em que houve investimento suficientemente bom pelo objeto primário que, então, se deixa esquecer. Nas situações onde isto não acontece, a análise pode testemunhar a alucinação negativa do pensamento que denuncia o fracasso dos cuidados maternos essenciais.

Se este texto de 2005 inclui uma reflexão sobre o trabalho de negativo estruturante e sua relação com a cultura é preciso, no entanto, lembrar que em trabalhos tardios Green discute a violência e destruição causadas pelo trabalho do negativo desestruturante que extrapola o espaço da clínica e, como função desobjetalizante, passa a vigorar no âmbito do social transformando o outro, semelhante, em objeto da indiferença, cuja alteridade não reconhece, o que possibilita sua eliminação, sem culpa, situação que presenciamos com muita frequência no mundo contemporâneo.

 

 

Referências

DUPARC, F. André Green. Paris: PUF, 1996.         [ Links ]

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Artigo recebido em: 27/06/2021
Aprovado para publicação em: 30/06/2021

Endereço para correspondência
Cláudia Amorim Garcia
E-mail: clauag46@gmail.com

 

 

*Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Professora aposentada do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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