43 44Quem acredita na pulsão de morte?O nascimento da psicanálise: das influências de Charcot e Breuer à autonomia 
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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Quem acredita em pulsão de morte? Cem anos de investigação psicanalítica

 

Who believes in the death instinct? One hundred years of psychoanalytic research

 

 

Luís Claudio Figueiredo*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Respondendo a pergunta proposta "quem acredita em pulsão de morte?" é feita uma consideração sobre o texto Além do princípio de prazer separando duas hipóteses: a de que o psiquismo pode operar fora do princípio de prazer e a de um dualismo pulsional opondo pulsões de vida e pulsões de morte. São discutidos então separadamente a crença em ambas e o uso de cada uma delas.

Palavras-chave: Princípio de prazer, Segundo dualismo pulsional, Pulsão de morte.


ABSTRACT

Answering the proposed question "who believes in the death instinct?" a consideration is made about the text "Beyond the pleasure principle" by differentiating two hypotheses: that the psyche can operate outside the pleasure principle and that of an instinctual dualism opposing life and death drives. The belief in both and the use of each of them are discussed separately.

Keywords: Pleasure principle, Second instinctual dualism, Death instinct.


 

 

Na comemoração dos 100 anos da publicação de Além do princípio de prazer, penso que valeria a pena distinguir dois aspectos dessa obra extraordinária: a proposta de um funcionamento psíquico diferente do que a psicanálise até então admitia (o subordinado ao princípio de prazer-desprazer), e a hipótese altamente especulativa de um novo dualismo pulsional: pulsões de vida versus pulsões de morte.

Eu acredito... ou melhor, eu me sinto confortável na clínica com a ideia de um funcionamento psíquico "além do princípio de prazer", tal como proposto especulativamente por Freud em 1920 e incorporado aos seus pressupostos teóricos metapsicológicos em obras posteriores. Ao mesmo tempo não me sinto tão confortável com a ideia de uma "pulsão de morte", ou "pulsões de morte", embora não consiga dispensar esse conceito que me parece um tanto paradoxal e espalhafatoso.

Cabe um pequeno esclarecimento: como relacionar a noção de "conforto" as teorias da psicanálise e a seus usos? Acreditamos que a "verdade" da psicanálise está em outro lugar, não em suas teorias e menos ainda nas suas teorias metapsicológicas. Mas as teorias precisam nos ser confortáveis para funcionar razoavelmente em nossa prática. Isto é, serão "confortáveis" se nos ajudarem em nossa escuta e capacidade de pensamento clínico. Caso contrário, melhor dispensá-las.

Presumir que o psiquismo possa funcionar além – ou, na verdade, aquém do princípio de prazer – e que há forças que tanto podem nos impelir para o ingresso nos domínios desse princípio – em que se procura o prazer e evita o desprazer por vias totalmente inconscientes – como nos manter na pura, simples e cega repetição da insistência pulsional me ajuda na escuta diferencial de modalidades de sofrimento psíquico.

No entanto, sabemos que a própria compulsão a repetição deixa-se interpretar segundo o princípio de prazer e também "além do princípio de prazer". A discriminação fina entre esses dois processos de repetição pode ser facilitada se contarmos com a ideia de um funcionamento além do princípio de prazer, pois nesse domínio a repetição – a pura e cega insistência pulsional – estará a serviço de uma procura de ligações (antes de ingressar no domínio do princípio de prazer) ou, ao revés, da desesperada destruição de todas as ligações intersubjetivas e intrapsíquicas, perturbadoras, nocivas e decepcionantes. Nos dois casos, o além ou aquém do princípio de prazer é o que impera no funcionamento psíquico.

Evidentemente, nesse segundo caso, a compulsão a repetição se aproxima da ideia de destrutividade e autodestrutividade, caracterizando o que André Green denominou de desligamento e desobjetalização. Isso não impede que em muitos casos precise-se também interpretar a destrutividade segundo o princípio de prazer. É quando a agressividade se dirige a maus objetos para afastá-los ou destruí-los e recuperar o bem-estar. Sob o império de um além do princípio de prazer, a destruição se dirige a todos os objetos, inclusive os bons e muito bons, como no caso da inveja primária, tal como será mencionada adiante. Novamente, a discriminação fina entre os dois fenômenos só pode ser feita porque contamos com a ideia de um além do princípio de prazer ao qual está associada a ideia de uma pulsão de morte com elevado potencial de desligamento. Aliás, sabemos que o próprio Freud a partir de certo ponto de sua obra denominará a pulsão de morte de pulsão de destruição, o que não quer dizer que todos os processos psíquicos que comportam raiva, ódio e agressividade devam ser interpretados como estando fora dos domínios do princípio de prazer.

Assim sendo, a famosa "reação terapeutica negativa" (e as resistências, em geral) tanto podem ser fortes exemplos das chamadas "pulsões de morte", ou destruição, como interpretadas de acordo com o princípio de prazer.

O mesmo se aplica a compreensão do superego (inclusive o superego severo e o superego arcaico): ele tanto pode operar segundo o princípio de prazer quanto além do princípio de prazer, caso em que, naturalmente, ele será um "inimigo íntimo" muito mais difícil de ser enfrentado. É o caso, por exemplo, do "superego invejoso" (uma ideia kleiniana), um tipo de superego que compromete a capacidade egoica de obter prazer.

Enfim, também todas as regressões podem operar segundo o princípio de prazer e além do princípio de prazer.

Retornando a noção de "conforto", diria que a ideia de um além do princípio de prazer nos permite fazer diagnósticos diferenciais que ajudam no acompanhamento clínico de pacientes, contando com maior discernimento sobre os sofrimentos dominantes em cada caso.

Quanto ao desconforto com a ideia de uma "pulsão de morte", embora compreendendo as razões do nome, isso diz respeito a alguns riscos que o conceito nos faz correr.

Em primeiro lugar, temo a pseudossolução "verbalista" (como as "virtudes dormitivas" do ópio no Doente imaginário de Moliere). Dizer que os seres vivos morrem por causa de sua pulsão de morte, que a pulsão de morte mata os processos analíticos, que a pulsão destrutiva está na origem das destruições dos elos intersubjetivos e intrapsíquicos é redundância e falsa sabedoria, como a do doutor Thomas Desáforus do imortal francês. Essas falsas explicações produzem efeitos nefastos: em primeiro lugar, o encobrimento dos fracassos clínicos. Ao invés de propiciar e incentivar uma análise apurada dos processos de cura e seus extravios e impasses – alguns dos quais, efetivamente intransponíveis – atribuir as mortes a pulsão de morte corta a pesquisa clínica pela raiz. Mas o pior é que se dá o encobrimento das resistências do analista que se protege pela crença em uma pulsão de morte totalmente fora de nosso alcance embora, paradoxalmente, muito fácil de ser alcançada em termos intelectuais. Sermos derrotados pela pulsão de morte é tão fácil de "compreender" quanto admitir que no futuro todos estaremos mortos. Mas a medicina não avançaria um passo se essa verdade inegável tomasse conta do cenário.

Esses usos defensivos do conceito de pulsão de morte não me deixam nada confortável com seus "usos e abusos". Mas poderíamos dispensá-lo?

Um além do princípio de prazer-desprazer foi buscado por diversos analistas na relação precária e malograda do sujeito com os objetos e suas respostas. Ou seja, no lugar da crença em uma pulsão de morte, o além do princípio de prazer nos levaria a questão do traumático. Tanto os traumas por "excesso" (com as falhas do objeto, por exemplo, um objeto invasor, abusador), como os traumas por quebra de confiança no ambiente e nos objetos primários (falhas por abandono, negligência, indiferença) deixariam o sujeito aquém do princípio de prazer, lutando pela vida, melhor, pela sobrevivência com sua insistência pulsional "a ver navios", sem produzir respostas empáticas do ambiente e dos objetos primários ou, devido a isso, em franco desespero, com sua repetição já então voltada para a destruição do mundo e de si: pura desobjetalização, como diz André Green e nos recordou Claudia Garcia em seu texto neste encontro (GARCIA, 2021).

O argumento é bom: aspectos importantes do funcionamento psíquico além do princípio de prazer deixam-se compreender como reações ao traumático, dispensando o recurso a crença na pulsão de morte. Contudo, o que se perde com a descrença na "pulsão de morte"? No meu entender, algo bem importante, razão pela qual ainda conservo o conceito, mesmo ficando parcialmente desconfortável com ele.

Há um aspecto do chamado segundo dualismo pulsional que me parece indispensável. Refiro-me ao problema da ambivalência de base e de seus destinos e produtos. A partir da ambivalência de base no próprio funcionamento psíquico, anterior, portanto, a constituição do eu e as ambivalências nas relações do eu com seus objetos (incluindo o próprio self ), entende-se a presença de mecanismos para evitá-la liminarmente (como as cisões e seus derivados e coadjuvantes), e para atenuá-la em sua figura de conflitos (como a repressão, seus derivados e coadjuvantes) no campo da constituição psíquica "normal" e da psicopatologia. Na verdade, o eu já se constitui no contexto da ambivalência de base que o precede, e traz as sequelas das defesas contra a ambivalência em sua estrutura e dinâmica.

Ninguém focalizou melhor que Melanie Klein, e os pensadores que a seguiram, os destinos normais e psicopatológicos da ambivalência de base, uma decorrência direta do segundo dualismo pulsional: amor e ódio sempre conjugados. O conceito kleiniano de inveja primária é o ápice da elaboração dessa ideia: o mais amado é o maior alvo da inveja, do ressentimento, dos afetos hostis, de desejos de vingança e da destruição. Não conseguiria praticar psicanálise me esquecendo disso. E isso é verdade não apenas quando predominam os processos e figuras da defusão pulsional no campo da psicopatologia, momento marcado por sérias cisões capazes de secretar e gerar entes fantasmagóricos de idealização positiva e negativa, os grandes salvadores e os grandes perseguidores. A ambivalência é desde sempre e para todo o sempre o problema dos problemas, o mais difícil de ser encarado sem o recurso a defesas extremas.

Nessa medida, a pulsão de morte me parece uma ideia muito pouco confortável e mesmo perigosa, justamente por parecer "confortável demais", mas ainda assim necessária. Ou haveria também para essa questão uma alternativa equivalente ao que o traumático ofereceu a alguns psicanalistas – como Ferenczi e Winnicott – para entender o funcionamento além – ou aquém – do princípio de prazer?

Não sei.

Certamente o tema da ambivalência precedeu a hipótese da pulsão de morte e pode ser mantido sem ela. Freud desde muito cedo percebia a presença de amor e hostilidade nas relações dos sujeitos com as figuras parentais e James Strachey (STRACHEY, 1930, p. 79) recapitula em detalhes essa questão em sua apresentação de O mal-estar na civilização de 1930, mas afirma: "Até que Freud estabelecesse a hipótese de uma 'pulsão de morte', não veio a luz uma pulsão agressiva realmente independente".

Até entao, a ideia de um amor voraz ou sádico, como em Freud e Melanie Klein, ou do "amor sem consideração", em Winnicott, ou do amor primário em Michael Balint, e antes deles, a ambivalência como tema forte nos escritos de Karl Abraham atestam o que disse acima: reconhecer a ambivalência parece não exigir a crença na pulsão de morte. Cabe assinalar que essas ideias não são equivalentes, pois no "amor sádico" já se verifica uma separação entre sujeito e objeto, enquanto no "amor primário" e no "amor sem consideração" pressupõe-se um estado de indiferenciação. Balint em um texto de 1951 focaliza essa estreita ligação entre amor e ódio em uma forma primitiva de amor infiltrada pela fantasia de onipotência do sujeito, sua dependência extrema e pelo caráter narcisista de sua relação com o objeto amado e odiado, um ódio que desponta mais nitidamente quando se inicia o processo de diferenciação, mas, evidentemente, já faz parte do amor primário.

Ainda teríamos em todos esses casos vicissitudes da libido e das pulsões do eu, de autoconservação. Por mais ambivalentes que sejam as relações amorosas de objeto (sempre prontas a se transformarem em ódio diante de qualquer frustração), ainda estamos longe da ideia de que em toda relação do sujeito com seus objetos de amor uma corrente de ódio se faz presente e "corre por fora", paralelamente, mas com independência. É o que nos confirma Melanie Klein:

Retrospectivamente... [tais avanços] são baseados na descoberta por Freud dos instintos de vida e de morte, que fundamentalmente incrementaram nossa compreensão das origens da ambivalência. Já que os instintos de vida e de morte, e assim, amor e ódio, jazem nos fundamentos e em estrita interação, a transferência positiva e a negativa estão basicamente interligadas. (KLEIN, 1952, p. 54).

Ou seja, amor e ódio simultâneos na transferência pertencem ao campo das ambivalências do eu, mas as origens dessa ambivalência residem justamente na ambivalência de base, tal como a estou denominando, e que Melanie Klein atribui claramente ao dualismo pulsional proposto em Além do princípio de prazer (FREUD, 1920/2010).

Talvez quem mais tenha se aproximado disso, independentemente da ideia da pulsão de morte, tenha sido o próprio Freud ao sugerir que o ódio seria nossa primeira relação com um objeto que recém se separou de nós e se tornou autônomo. Mas parece que apenas o dualismo pulsional tal como formulado em 1920 e ligeiramente reformulado em obras posteriores pôde dar pleno assento ao ódio e ao desejo de destruição em si mesmos, vale dizer, um assento a ambivalência básica, tal como apresentada no texto kleiniano.

Antes disso, aparentemente, apenas um texto de Sabina Spielrein, em 1912, havia levantado a hipótese de que a sexualidade comporta um componente destrutivo "independente". Ela avança a proposta de que a destrutividade precede e cria condições para a criação do novo e para o estabelecimento de relações amorosas com os novos objetos. Trata-se da sexualidade, mas nela o movimento destrutivo seria anterior a própria procura do prazer. Isso, antes de 1920, mas sabemos que esse texto de certa forma antecipa a ideia da pulsão de morte, tal como admite Freud: "Sabina Spielrein, em um trabalho com muita substância e rico em ideias, ainda que por infelicidade não de todo compreensível por mim, antecipou um grande fragmento da presente especulação" (FREUD, 1920/2010, p. 227, nota 31), vale dizer que Freud está coberto de razão: o texto é bastante confuso e obscuro em certas partes. Ou seja, embora a autora não fale explicitamente em pulsão de morte, está tão próxima desse conceito que nos autoriza a dizer que apenas o segundo dualismo pulsional deu pleno acolhimento as ambivalências.1

Mas eu continuo não sabendo se uma concepção forte da ambivalência poderia subsistir se renunciássemos de fato ao segundo dualismo pulsional.

 

 

Referências

BALINT, M. On love and hate. In: BALINT, M. Primary love and psycho-analytic technique. London: Karnac, 1951.         [ Links ]

FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 14).         [ Links ]

KLEIN, M. The origins of transference. In: KLEIN, M. Envy and gratitude and other works (1946-1963). N. Y.: The Free Press, 1952.         [ Links ]

SPIELREIN, S. A destruição como origem do devir. Porto Alegre: Artes & Ecos, 1912. (Série Escrita Psicanalítica).         [ Links ]

STRACHEY, J. (1930). Nota do editor inglês. In: FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 79. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 06/04/2021
Aprovado para publicação em: 09/04/2021

Endereço para correspondência
Luís Claudio Figueiredo
E-mail: lclaudio.tablet@gmail.com

 

 

*Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, SP, Brasil.
1Ao ler esse trecho, Nelson Coelho Junior fez o seguinte comentário que aqui transcrevo: "há também, me parece, a defesa de Adler em 1908 nas reuniões das 4as feiras – sessão de 3 de junho de 1908 – de uma pulsão de agressão autônoma e, no mesmo contexto, o uso por W. Stekel da Todestrieb, em conflito, mas complementar a Eros. ... Seja como for, você tem razão, o tema está na mesa ao menos desde 1908... e a questão essencial, a meu ver, é a da ambivalência...".

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