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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro jan./jun. 2021
ARTIGOS
O nascimento da psicanálise: das influências de Charcot e Breuer à autonomia
The birth of psychoanalysis: from influences of Charcot and Breuer to autonomy
Guilherme Magnoler Guedes de Azevedo*; Henrique Uva do Amaral**
RESUMO
A criação da psicanálise não ocorreu de forma imediata nem sem dificuldades, tendo sido fruto de diversos avanços teórico-clínicos. Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é analisar, brevemente, a bibliografia referente ao período considerado pré-psicanalítico no pensamento freudiano, a fim de demonstrar como o distanciamento científico de Freud com relação a Charcot e Breuer, tanto quanto suas aproximações, foram essenciais para o seu desenvolvimento. No caso de Charcot, após 1892 Freud intensificou seu interesse pelos mecanismos psíquicos envolvidos na etiologia da neurose; no que se refere a Breuer, ao se afastar das teorias sobre os estados hipnoides, Freud pôde descobrir o inconsciente reprimido, criando, assim, a psicanálise.
Palavras-chave: Nascimento da psicanálise, Freud, Charcot, Breuer.
ABSTRACT
The creation of psychoanalysis did not occur immediately or without difficulty, having been fruit of several theoretical-clinical advances. In this context, the objective of this present article is to analyze, briefly, the bibliography regarding the period considered pre-psychoanalytical in Freudian thought, in order to demonstrate how the scientific detachment of Freud in relation to Charcot and Breuer, as well as his proximity to them, were essential to his development. As regards to Charcot, after 1892 Freud intensified his interest in the psychic mechanisms involved in the etiology of the neurosis; regarding Breuer, as he got away from the theories about the hypnoid states, Freud could discover the repressed unconscious, thus creating psychoanalysis.
Keywords: Birth of psychoanalysis, Freud, Charcot, Breuer.
Introdução
A criação da psicanálise não ocorreu de forma imediata nem sem dificuldades, tendo sido fruto de diversos avanços teórico-clínicos. Nesse sentido, a nosso ver, mostra-se importante analisar alguns aspectos da bibliografia referente aos períodos considerados pré-psicanalíticos no pensamento freudiano, assim como algumas formulações do livro Estudos sobre a histeria (BREUER; FREUD, 1895/1996), a fim de investigar o nascimento dessa disciplina.
Assim, podemos nos indagar: quais foram as condições necessárias para que Freud pudesse percorrer um caminho independente e inovador? Existiria algum momento específico no qual a psicanálise teria sido fundada? O objetivo do presente artigo é demonstrar como o distanciamento científico de Freud com relação a Charcot e Breuer, tanto quanto suas aproximações a estes, foram essenciais para a fundação da psicanálise. Neste caso, embora possam existir diversas outras influências no pensamento freudiano, limitar-nos-emos apenas a esses dois autores.
No primeiro tópico, Charcot, o grande homem, apresentaremos de que forma este influenciara Freud em seus estudos sobre a histeria. No segundo, Dos estados hipnoides ao conceito de repressão: rumo à criação da psicanálise, descreveremos algumas aproximações e distanciamentos entre Freud e Breuer - utilizando como referência principal os Estudos sobre a histeria -, e tentaremos demonstrar por que a descoberta do conceito de repressão marca a criação da psicanálise, possibilitando a Freud um percurso independente.
Charcot, o grande homem
De acordo com Ernest Jones (1953/1989), até cerca de 1890, Freud pouco se interessava pela neurologia clínica - tendo começado a trabalhar nesta área, provavelmente, apenas para se manter financeiramente. Desde 1883 suas investigações se voltavam para a histologia e anatomia do sistema nervoso. Para Jones, isso se devia ao fato de que Freud não considerava a neurologia clínica como "científica" na elucidação da natureza humana e da relação entre mente e corpo.
Entretanto, tendo em vista que grande parte de seus pacientes tinham doenças neuróticas (em especial, a histeria), os problemas clínicos despertaram cada vez mais sua atenção, principalmente aqueles referentes à psicopatologia. Em contraposição, as questões relativas à fisiologia e à anatomia foram perdendo consideravelmente importância para ele. Devido à sua insatisfação para com o conhecimento médico das neuroses, posteriormente Freud não apenas buscaria construir uma teoria geral sobre elas, mas também adquirir um vislumbre sobre a estrutura e funcionamento mental normal a partir daquilo que seria considerado "anormal" ou doença. Segundo Jones (1953/1989, p. 275), "a psicopatologia, percebeu ele, se tornaria uma via de aproximação para a psicologia geral e talvez a mais exequível".
Uma figura importante para o estudo sobre a histeria foi o neurologista francês Jean-Martin Charcot (1825-1893). Para Freud (1956[1886]/1996), antes de Charcot a histeria (do grego ὑστέρα, que significa "útero") era entendida pela ciência como uma forma de simulação de pessoas do sexo feminino ou, ainda, uma perturbação uterina e uma doença relacionada à irritação genital - que poderia ser tratada através da extração do clitóris (JONES, 1953/1989). Além disso, na Idade Média era frequentemente descrita como "possessão demoníaca". Embora compreendesse que a sua etiologia se relacionasse a uma degeneração congênita do sistema nervoso, Charcot teve sua contribuição ao possibilitar a realização de um estudo sério dessa psicopatologia, além de assinalar sua relação com conteúdos psíquicos.
Em seu Relatório sobre meus estudos em Paris e Berlim, referente ao período de outubro de 1885 a fevereiro de 1886, Freud descreve um pouco acerca de seu encontro com Charcot, no Hospital da Salpêtrière, em Paris. A partir dele podemos observar o início de uma importante transição no interesse científico de Freud, isto é, de suas investigações sobre a pesquisa experimental para aquelas no âmbito da psicopatologia e da atividade terapêutica.
Um dos pontos destacados por Freud (1956[1886]/1996) é de que Charcot, através de seu estudo sobre o hipnotismo, pôde formular uma "espécie de teoria da sintomatologia histérica" (p. 45), segundo a qual os sintomas histéricos seriam considerados "reais", e não simulados. Partindo da sintomatologia de casos considerados típicos, Charcot compreendia ser possível estabelecer um diagnóstico mais correto da histeria, assim como diferenciá-la das demais neuroses de modo que, nas palavras de Freud (1956[1886]/1996, p. 45), "tornava impossível duvidar de que imperassem nela uma lei e uma ordem". Além disso, Freud assinala que Charcot criticava a hipótese de que a histeria tinha estreita relação com a excitação dos genitais femininos, tendo em vista que também era possível constatar casos de histeria masculina.
Ainda nesse relatório, Freud escreve que teve discussões com Charcot que o instigaram a preparar um artigo que tratava da comparação entre a sintomatologia histérica e a orgânica, o qual foi publicado somente em 1893, sob o título de Considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas. De acordo com o autor, os sintomas histéricos não corresponderiam à anatomia do sistema nervoso. Na verdade, "nas suas paralisias e em outras manifestações, a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta" (FREUD, 1893a/1996, p. 212, grifo do autor).
Assim, retomando um conceito de Charcot, Freud afirma que na histeria haveria uma lesão funcional ou dinâmica, o que significa dizer que não poderia ser estudada empiricamente, de maneira observável. O que está colocado em questão na paralisia histérica é a representação de determinada parte do corpo, ou seja, "a lesão será uma modificação da concepção, da idéia de braço, por exemplo" (FREUD, 1893a/1996, p. 213, grifo do autor). Dessa forma, a grande contribuição de Charcot a Freud teria sido a demonstração de que os sintomas histéricos também possuem uma base psíquica, embora tenha sempre priorizado sua etiologia orgânica.
Essa tendência de Charcot a priorizar os aspectos orgânicos pode ser vista no modo como o autor explica a etiologia da histeria. De acordo com Ola Andersson (1962/2000), ele assinalaria dois fatores: o hereditário e o traumático, sendo o primeiro a condição necessária para que o segundo ocorra. Isso significa que, embora os fatores traumáticos sejam levados em consideração, Charcot os compreendia apenas como "disparadores" de uma disposição hereditária.
No artigo Histeria - que se trata de um verbete publicado por Freud na enciclopédia de Villaret -, de 1888, podemos observar o quanto ele ainda está aliado a essa visão de Charcot. Neste momento, ele concorda com a concepção de que a etiologia da histeria depende inteiramente da hereditariedade, mesmo que considere a existência de outras causas que possam desencadear essa psicopatologia. Em suas palavras, "comparados com o fator da hereditariedade, todos os outros fatores situam-se em lugar secundário e assumem o papel de causas incidentais, cuja importância quase sempre é superestimada na prática" (FREUD, 1888/1996, p. 86).
Entre essas causas, Freud (1888/1996) afirma, por exemplo, que a disposição histérica pode se desenvolver a partir de experiências infantis e influências educacionais - como "a criação cheia de mimos (histeria em filhos únicos), o despertar prematuro da atividade mental nas crianças, excitamentos frequentes e violentos" (FREUD, 1888/1996, p. 87) -, sem que, no entanto, sejam essenciais para a etiologia da histeria, já que poderiam também "produzir" outros tipos de neuroses, de acordo com a disposição hereditária. Além disso, outros fatores poderiam fazer irromper uma doença histérica, tais como "trauma, intoxicação (chumbo, álcool), luto, emoção consumptiva - tudo, enfim, capaz de exercer um efeito de natureza prejudicial", ainda que, prossegue, "em outras ocasiões, os estados histéricos muitas vezes são gerados por causas banais ou obscuras" (FREUD, 1888/1996, p. 87).
No que diz respeito à noção de trauma, Freud estaria, aqui, inteiramente de acordo com Charcot. Como "causa incidental", o trauma poderia desencadear a histeria de duas formas: a primeira, "por ocasião de um trauma físico intenso, que se acompanha de medo e perda momentânea da consciência; em segundo lugar, porque a parte do corpo afetada pelo trauma se torna sede de uma histeria local" (FREUD, 1888/1996, p. 87). Por exemplo, uma doença ou lesão física na mão poderia levar a desenvolver, posteriormente, uma paralisia histérica na mesma região.
Por outro lado, Andersson (1962/2000) considera que Freud também introduz novos temas no artigo Histeria. De acordo com o autor, "é a primeira vez que surge em seus escritos a idéia de que as condições sexuais possam ter um papel significativo na etiologia das neuroses" (ANDERSSON, 1962/2000, p. 89). Apesar de Freud afirmar que a importância dada às "anormalidades" sexuais no desenvolvimento da histeria seja "supervalorizada", isso fica claro no seguinte trecho: "entretanto, tem-se que admitir que as funções funcionalmente relacionadas à vida sexual desempenham importante papel na etiologia da histeria (assim como na de todas as neuroses)" (FREUD, 1888/1996, p. 87, grifo do autor).
Um outro ponto destacado por Freud neste artigo é sobre o tratamento da histeria. Além dos métodos alternativos - como massagem, ginástica, hidroterapia, repouso etc. -, o que é relevante comentar é o seu crescente interesse pelo hipnotismo. Apesar de não considerar, em 1888, que seja possível a cura de uma "disposição histérica", ele é otimista com relação ao tratamento de sintomas histéricos isolados pela hipnose, especialmente, através da sugestão. Dessa forma, descreve a importância dos métodos utilizados por Breuer e Bernheim, o que influenciará seu entendimento acerca da relação entre a origem da histeria e a hipnose - conjuntamente com o fenômeno da sugestão e da autossugestão.
O tratamento direto consiste na remoção das fontes psíquicas que estimulam os sintomas histéricos, e isto se torna compreensível se buscarmos as causas da histeria na vida ideativa inconsciente1. Consiste em dar ao paciente sob hipnose uma sugestão que contém a eliminação do distúrbio em causa. [...] O efeito até se torna maior se adotarmos um método posto em prática, pela primeira vez, por Joseph Breuer, em Viena, e fizermos o paciente, sob hipnose, remontar à pré-história psíquica da doença, compelindo-o a reconhecer a ocasião psíquica em que se originou o referido distúrbio. Esse método de tratamento é novo, mas produz curas bem-sucedidas, que, por outros meios, não são alcançadas. É o método mais apropriado para a histeria, justamente porque imita o mecanismo da origem e da cessação desses distúrbios histéricos. [...] O tratamento psíquico direto dos sintomas histéricos ainda será considerado o melhor no dia em que o entendimento da sugestão tiver penetrado mais profundamente nos círculos médicos (Bernheim - Nancy) (FREUD, 1888/1996, p. 93, grifo do autor).
O artigo Histeria é interessante pois, ao mesmo tempo em que, de início, Freud procura destacar alguns aspectos biológicos da histeria, ao final, ele dirige mais a sua atenção para os mecanismos psíquicos envolvidos em sua origem, assim como da "pré-história psíquica da doença". Essa transição também pode ser observada quando o autor discorre sobre os fenômenos de sugestão e autossugestão, cuja compreensão se estabelece entre as concepções de Charcot e Bernheim.
Em seu Prefácio à tradução de De la Suggestion, de Bernheim, Freud (1888-1889/1996) comenta sobre a importância do trabalho do neurologista francês Hippolyte Bernheim, da escola de Nancy. Ainda que, neste prefácio, Freud esteja inclinado a apoiar as teorias de Charcot e a escola de Salpêtrière, a nosso ver Bernheim tem certa influência em seu trabalho ao postular que: 1) o problema da hipnose deveria ser procurado no âmbito da psicologia, e não da fisiologia; 2) os estados e fenômenos hipnóticos não são encontrados apenas nos pacientes histéricos e "neuropáticos", mas também em pessoas saudáveis e durante o sono; 3) o tratamento por sugestão poderia ser aplicado à grande maioria das pessoas, devendo ser levado a sério pelos estudos científicos. Nas palavras de Freud (1888-1889/1996, p. 111), Bernheim procura "despojar as manifestações do hipnotismo de seu mistério, correlacionando-as com fenômenos conhecidos da vida psicológica normal e do sono".
Convém assinalar que as explicações de Charcot e Bernheim sobre o hipnotismo se opõem, tais como são discutidas por Freud. Enquanto em Charcot o fenômeno da hipnose deveria ser entendido em termos físicos e fisiológicos - isto é, em "modificações fisiológicas" ou "deslocamentos da excitabilidade no sistema nervoso, que ocorrem sem a participação das partes que operam com a consciência" (FREUD, 1888-1889/1996, p. 113) -, para Bernheim, este mesmo fenômeno se relacionaria a mecanismos psíquicos, ocasionados por "sugestões", o que Freud (1888-1889/1996) compreende como "uma idéia consciente, que foi introduzida, mediante influência externa, no cérebro da pessoa hipnotizada e por esta aceita como se tivesse surgido espontaneamente" (p. 113).
A partir dessas concepções, Freud examina algumas relações presentes entre a histeria e a sugestão hipnótica, o que envolveria fenômenos psíquicos e fisiológicos. Inicialmente, ele critica Bernheim quando este afirma que tudo seria sugestionado de fora, tendo em vista que, se fosse desse modo, não existiriam estágios típicos (universais) na sintomatologia da histeria, conforme defendia Charcot. Além disso, embora seja verdade que, na normalidade, a manifestação de determinados sintomas possa ser originada através de uma "sugestão diretamente psíquica", como é destacado por Bernheim, Freud chama a atenção para o fato de que, na histeria, isso pode ocorrer de maneira indireta, sem que o médico dê uma ordem ou introduza uma ideia. Como ilustração, ele descreve que alguns pacientes de Charcot desencadearam uma paralisia histérica apenas com um toque, antes mesmo que qualquer palavra fosse dita. Desta forma, a "sugestão indireta" seria entendida em termos fisiológicos, e não psíquicos.
Na verdade, Freud reconhece que, mesmo em sugestões indiretas, os fenômenos fisiológicos podem estar relacionados a processos psíquicos (no sentido de que os primeiros também revelariam conexões e associações entre si). Neste caso, todavia, a sugestão despertaria estados psíquicos que "não estão mais expostos à plena luz da consciência" (FREUD, 1888-1889/1996, p. 119). Assim, no Prefácio à tradução de De la Suggestion, de Bernheim, podemos notar que, ao diferenciar os fenômenos psíquicos dos fisiológicos, o autor também está preocupado em esclarecer que na histeria operam mecanismos internos que não decorrem da intenção de um sujeito, ou de sua atenção.
Freud conclui que os sintomas histéricos seriam resultantes de autossugestões, e não diretamente de agentes externos ou de ideias conscientes. Em suas palavras, "são as auto-sugestões dessa natureza que levam à produção de paralisias histéricas espontâneas, e é uma tendência para tais auto-sugestões, mais do que a sugestionabilidade em relação ao médico, que caracteriza a histeria" (FREUD, 1888-1889/1996, p. 119). Para ele, mesmo que uma paralisia possa ser ocasionada e estimulada por uma sugestão diretamente psíquica, existiria "uma série de elos intermediários, originários da própria atividade da pessoa, [que] são inseridos entre o estímulo e o resultado" (p. 119).
Entretanto, embora o autor tenha descartado a hipótese de que os sintomas histéricos pudessem ser encontrados na anatomia do sistema nervoso, aqui ele ainda os analisa em seu sentido fisiológico, considerando que "é improvável que uma modificação funcional tão profunda no córtex cerebral possa ocorrer sem ser acompanhada por mudanças importantes na excitabilidade das demais partes do cérebro" (FREUD, 1888-1889/1996, p. 120, grifo nosso). Em outras palavras, apesar de a influência de Bernheim ter colaborado com o distanciamento de Freud em relação às ideias de Charcot, esse afastamento ainda é parcial, principalmente no que diz respeito à importância dada ao fator fisiológico.
A partir de 1890, ele intensifica sua busca em compreender os mecanismos psíquicos envolvidos na etiologia da histeria. No artigo Um caso de cura pelo hipnotismo, de 1892, por exemplo, Freud fornece algumas explicações psicológicas sobre a origem dos sintomas histéricos, através do conflito entre intenções conscientes e uma contravontade, ou ainda, do que ele chamou de "ideias antitéticas". O que é interessante destacar é que o autor reconhece que existe uma "dissociação da consciência na histeria" (FREUD, 1892-1893/1996, p. 164), na qual essas ideias antitéticas aflitivas, mesmo quando desconectadas e não percebidas, continuariam atuantes no psiquismo. Além disso, ele afirma que quando uma intenção é contrabalançada por uma contravontade, a "idéia antitética inibida consegue atualizar-se através da inervação do corpo" (FREUD, 1892-1893/1996, p. 164). Por outro lado, ele ainda não faz qualquer menção sobre a natureza dessas ideias ou por que precisaria existir algo como uma contravontade - embora saibamos que são essas questões que o levarão à descoberta do inconsciente.
Esse parece ser um ponto de transição em que Freud começa a se afastar das teorias de Charcot para se aproximar de Josef Breuer. Entre 1892 e 1894, em seu Prefácio e notas de rodapé à tradução das conferências das terças-feiras, de Charcot, Freud deixa explícitas suas críticas a Charcot. Uma delas é de que a histeria não pode ser examinada apenas por um método descritivo - e muito menos através de "fases" -, mas deve-se também levar em conta seus mecanismos psíquicos, considerando que o sintoma histérico seria desencadeado por um conteúdo da lembrança ligado a algum trauma. Este, por sua vez, seria definido como "um acréscimo de excitação no sistema nervoso, que este é incapaz de fazer dissipar-se adequadamente pela reação motora", sendo que "um ataque histérico talvez deva ser considerado como uma tentativa de completar a reação ao trauma" (FREUD, 1892-1894/1996, p. 179, grifo do autor). Além disso, Freud diminui a importância dada ao fator hereditário na etiologia das neuroses - ainda que nunca o exclua totalmente -, levando também em consideração os aspectos puramente adquiridos, muitos dos quais se relacionariam a questões sexuais. É neste contexto, juntamente com a insatisfação com o tratamento por sugestão, que o trabalho de Breuer passa a ser mais reconhecido.
Antes de prosseguir com a discussão, cabe fazer um interessante adendo. É muito comum que se entenda que Freud conheceu o trabalho de Breuer somente após Charcot, mas isso não é verdade. De acordo com Jones (1953/1989), Freud e Breuer se conheceram no final da década de 1870, no Instituto de Fisiologia de Brücke (em Viena), onde se tornaram amigos. Nesse sentido, já em 1882, Freud também se informara sobre o tratamento de Anna O. (caso clássico de histeria, atendido por Breuer). Nas palavras de Jones (1953/1989, p. 233):
Freud estava muito interessado em tomar conhecimento do famoso caso de Anna O., o que ele fez logo depois de seu término em junho de 1882; para ser exato, em 18 de novembro. Estava tão distante de sua experiência que lhe causou profunda impressão, e discutiria os detalhes dele com Breuer repetidas vezes. Quando foi para Paris e teve oportunidade de conversar com Charcot, falou-lhe sobre a notável descoberta, mas como comentou comigo, "os pensamentos de Charcot pareciam estar voltados para outras coisas", e não conseguiu despertar seu interesse. Por algum tempo isso parece ter obstruído seu próprio entusiasmo quanto à descoberta.
Poderíamos nos indagar: por que Freud não adotou, desde o início, um caminho que parecia ser mais satisfatório? Para Jones, é provável que isso tenha ocorrido por conta da "fé" de Freud nas autoridades - tanto na neurologia e pesquisa experimental quanto, propriamente, em Charcot, por quem tinha profunda admiração. Por conta disso, Freud teria tido um desenvolvimento mais lento e gradual até cerca de 1892. Em seguida, por outro lado, quando já havia adquirido uma posição mais segura e coerente sobre os fatos analisados, Jones (1953/1989) comenta que ele progrediu rapidamente - inclusive em termos de mudança na personalidade -, sendo que "os estados de espírito e a intuição se acrescentavam a um árduo trabalho e a um sólido raciocínio, tornando-se até mais importantes do que estes" (p. 248). Vejamos agora de que modo o trabalho de Breuer o influenciara.
Dos estados hipnoides ao conceito de repressão: rumo à criação da psicanálise
É difícil mensurar qual foi a contribuição de Breuer a Freud e à psicanálise. Nas conferências feitas na Universidade de Clark (que foram transcritas posteriormente com o título de Cinco lições de psicanálise), em 1910, Freud se refere a ele como sendo o verdadeiro fundador da psicanálise. Contudo, na História do movimento psicanalítico, de 1914, em um dos momentos mais enfáticos de sua obra, Freud se apropria de forma definitiva de sua descoberta e declara que a psicanálise é uma criação sua, retirando o que havia dito anteriormente.
De acordo com Jones (1953/1989), a influência de Breuer não pode ser nem superestimada e tampouco menosprezada; no entanto, ele esclarece que não há dúvidas de que Freud merece todo o crédito pela criação da psicanálise, tanto nas bases teóricas quanto no método de tratamento. Na verdade, o autor adota a posição de que "Breuer teve considerável importância para Freud em termos pessoais, por intermédio do necessário incentivo que ele propiciou em um período crítico, mas a de que suas contribuições intelectuais foram de menor importância" (JONES, 1953/1989, p. 230).
Essa afirmação de Jones parece, em certa medida, gerar dúvidas. É verdade que, como nota o autor, Freud e Breuer haviam sido igualmente influenciados por alguns pressupostos sobre a teoria da histeria no Instituto de Brücke, "de modo que agora nem sempre é possível afirmar de quem partiu determinada idéia" (JONES, 1953/1989, p. 230), entretanto, isso não explicaria por que Freud (1910/1996) considera Breuer como o responsável pela criação da psicanálise, em 1910. A única resposta de Jones (1953/1989) sobre isso é que "quando algumas vezes se referiu a Breuer como o Fundador da Psicanálise, estava por alguma razão transferindo, modestamente, esse título de si próprio para ele" (p. 229).
A nosso ver, como pode ser visto em Cinco lições de psicanálise (FREUD, 1910/1996), a contribuição principal de Breuer para as "origens" da psicanálise, talvez seja a de ter desenvolvido um método de investigação de ideias inconscientes e, mais do que isso, de atribuir ao sintoma histérico uma causa psicológica. Mais adiante, veremos de que modo a compreensão sobre estes pontos se aproximam ou se afastam, em ambos os autores. De qualquer forma, certamente, podemos afirmar que o conhecimento de Freud sobre o tratamento de Anna O. foi decisivo para seu desenvolvimento.
Bertha Pappenheim, também conhecida como Anna O., aos 21 anos, foi tratada por Breuer entre dezembro de 1880 e junho de 1882. Foi descrita por ele como sendo extremamente inteligente, além de ter boa capacidade imaginativa, intuição e forte senso crítico2. Nesse sentido, Breuer (1895a/1996) destaca que "ela era inteiramente não sugestionável" (p. 57, grifo do autor), o que dificultava a aplicação do método hipnótico por sugestão.
Durante o período em que esteve doente, a paciente apresentava dois estados de consciência (double conscience): em um deles, era muito gentil e amável, e, embora sentisse certa tristeza e angústia, reconhecia o ambiente onde estava; no outro, era agressiva e irritável, atirava objetos em outras pessoas e tinha alucinações - sendo que esse segundo estado era sentido como uma "lacuna" na memória, isto é, não era recordado. Na explicação de Breuer, como Anna O. tinha uma grande "vitalidade intelectual" e vivia em um ambiente monótono, que pouco incentivava seu potencial, ela se entregava inúmeras vezes a devaneios - mesmo quando realizava outras atividades -, nos quais imaginava estar em contos de fadas. Essa "tendência" aos devaneios, a "dupla consciência" e os estados de ausência (absence) de Anna O. auxiliarão Breuer a construir sua teoria.
Os sintomas histéricos de Anna O. apareceram na mesma época em que o pai adoeceu de um abscesso peripleurítico grave, em julho de 1880, e pioraram com a morte dele, em abril de 1881. Ela apresentava uma série de paralisias, perturbações da fala e da visão, tosse nervosa, recusa para se alimentar, sonambulismo e alucinações. Além disso, persistia um estado de auto-hipnose todas as noites, no qual narrava diversos acontecimentos e alucinações intensamente desagradáveis e aterrorizantes.
Breuer percebeu que era apenas quando expressava verbalmente todos os seus produtos imaginativos, em seu estado hipnótico, que Anna O. obtinha algum alívio de sua angústia e podia se acalmar. Ela descrevia esse processo como talking cure ("cura pela fala") e, também, chimney-sweeping ("limpeza da chaminé"). Em certo momento, ao final de 1881, sentia como se estivesse revivendo certos eventos relativos ao ano anterior, quando o pai ainda estava enfermo, de modo que relatava as imagens e sentimentos dessa época. Dessa forma, ela pôde perceber as circunstâncias nas quais surgiu um de seus sintomas específicos e, assim que tomou consciência, ao expressar-se verbalmente, este desapareceu completamente. O mesmo aconteceu com vários outros sintomas. Nas palavras de Breuer (1895a/1996, p. 70):
Vários outros caprichos extremamente obstinados foram eliminados de forma semelhante, depois de ela haver descrito as experiências que os tinham ocasionado. A paciente deu um grande passo à frente quando o primeiro de seus sintomas crônicos desapareceu da mesma maneira - a contratura da perna direita, que, é verdade, já havia diminuído muito. Esses achados - de que, no caso dessa paciente, os fenômenos histéricos desapareciam tão logo o fato que os havia provocado era reproduzido em sua hipnose - tornaram possível chegar-se a uma técnica terapêutica que nada deixava a desejar em sua coerência lógica e sua aplicação sistemática. Cada sintoma individual nesse caso complicado era considerado de forma isolada; todas as ocasiões em que tinha surgido eram descritas na ordem inversa, começando pela época em que a paciente ficara acamada e retrocedendo até o fato que levara à sua primeira aparição. Quando este era descrito, o sintoma era eliminado de maneira permanente.
Breuer denominou essa forma de tratamento de método catártico que, como pôde ser visto no caso de Anna O., consistia em fazer com que ideias inacessíveis à consciência do indivíduo viessem à tona por meio da hipnose, incentivando-o, também, a "descarregar" o afeto ligado a elas por meio da fala. Dessa forma, o afeto que estava suprimido poderia ser ab-reagido - isto é, o afeto correspondente ao trauma seria "reagido" energeticamente ou descarregado por meio da motricidade ou da linguagem - e os sintomas, eliminados.
Desse modo, como podemos perceber, Breuer estava ciente de que existiam ideias apartadas da consciência na histeria, considerando, ainda, que estas geravam os sintomas histéricos. Entretanto, a explicação do motivo pelo qual existiriam essas ideias viria a ser uma das principais divergências entre Breuer e Freud.
Qual era, então, a teoria de Breuer para explicar a existência dessas ideias apartadas da consciência? Essa questão pode ser esclarecida através do livro Estudos sobre a histeria (BREUER; FREUD, 1895/1996), tanto no capítulo Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar - escrito em conjunto por Freud e Breuer - quanto em Considerações teóricas - de autoria de Breuer.
Analisemos, primeiro, alguns aspectos de concordância entre os autores. Na Comunicação preliminar (BREUER; FREUD, 1895/1996), parece ser consenso entre eles que o sintoma histérico tem uma "conexão causal" (Ibid., p. 39) com um trauma psíquico (ou um grupo de "traumas parciais") - que pode ter ocorrido muitos anos antes de o sintoma ter sido desencadeado novamente no presente. Neste ponto, eles relatam que "com grande frequência, é algum fato da infância que estabelece um sintoma mais ou menos grave, que persiste durante os anos subsequentes" (Ibid., p. 40). A nosso ver, o destaque dado à infância para o problema da histeria deve-se mais a Freud do que a Breuer, especialmente considerando a negligência com a qual o assunto é tratado em suas Considerações teóricas.
De qualquer modo, o fato é que a ideia, ou representação, ligada ao trauma continua atuante no psiquismo - "da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado no estado consciente de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito tempo depois de ocorrido o fato" (Ibid., p. 43) -, mesmo quando ela é esquecida ou deixa de estar ligada às representações conscientes. Na verdade, é possível afirmar que, invariavelmente, na histeria, essa lembrança é esquecida, indicando que "os histéricos sofrem principalmente de reminiscências" (Ibid., p. 43, grifo do autor).
Um dos fatores que podem causar um trauma psíquico é que o indivíduo esteja com um excesso de excitação, ou "carga afetiva", que não pôde ser adequadamente descarregado (ab-reagido). Conforme dissemos, a ab-reação pode ocorrer tanto por meio da ação (chorar, gritar, bater etc.) quanto pela linguagem (relato de uma vivência, confissão etc.). Caso esse afeto não tenha expressão, a experiência continuará a ser atuante no psiquismo ou, em outras palavras, "quando não há uma reação desse tipo, seja em ações ou palavras, ou, nos casos mais benignos, por meio de lágrimas, qualquer lembrança do fato preserva sua tonalidade afetiva" (BREUER; FREUD, 1893/1996, p. 44). Ademais, além da ab-reação, o processo de desgaste desse afeto pode se dar através da associação com outras representações, isto é, quando a lembrança traumática é inserida na cadeia de representações conscientes, em que pode ser confrontada, corrigida ou retificada por outros fatos, promovendo sua ressignificação.
No entanto, essa explicação não é suficiente para compreender a etiologia da histeria. Por que esse afeto não pôde ser ab-reagido adequadamente e a ideia relacionada a ele se encontra isolada das outras representações conscientes? Na Comunicação preliminar, os autores apresentam duas possíveis explicações que, de início, não parecem se contradizer: uma delas se dá a partir do conceito de defesa - desenvolvido por Freud -; a outra, através do entendimento sobre os estados hipnoides - cunhado por Breuer.
Analisemos o raciocínio de Breuer. Anteriormente, observamos que Anna O., durante sua doença, apresentava dois estados de consciência (double conscience), além de ter propensão a desenvolver devaneios. Também vimos que seus sintomas histéricos apareceram a partir desses estados de ausência, gerados por seus devaneios (estados hipnoides). De início, os sintomas eram isolados e ocorriam nos períodos de ausência apenas. Entretanto, com o tempo e aumento desses períodos, esses estados hipnoides foram se solidificando até se estruturarem em uma verdadeira "dupla consciência", a partir dos quais os sintomas se cronificaram e sua doença se tornou clara. Breuer conclui, então, que é por conta da predominância dos estados hipnoides que a "excitabilidade anormal do sistema nervoso" não pode ser descarregada adequadamente.
Nos estados hipnoides, assim como no sono, haveria um rebaixamento do nível de lucidez e do estado de vigília, o que, consequentemente, provocaria uma inibição do fluxo de representações. Assim, segundo o autor, as ideias originadas nesses estados não poderiam se associar ou ser corrigidas pelo pensamento de vigília e, dessa forma, também não poderiam ser recordadas - ainda que continuassem atuantes no psiquismo. A representação patogênica se tornaria, dessa forma, apartada da consciência. Por outro lado, conforme veremos, Breuer (1895b/1996) afirma que a histeria só pode se manifestar se essas ideias apartadas formarem um grupo psíquico solidificado e independente, isto é, quando houver uma divisão da consciência, considerando que "o grande complexo dos fenômenos histéricos [de Anna O.] organizou-se num estado de completa latência e veio a revelar-se quando seu estado hipnóide se tornou permanente" (p. 237).
Seria possível afirmar, então, que sempre que estivermos distraídos ou devaneando - ou seja, "ausentes mentalmente" -, as representações geradas neste estado se converterão em sintomas histéricos? Breuer (1895b/1996) esclarece essa questão: "nem a ‘ausência de mente’ durante o trabalho intenso, nem os estados crepusculares destituídos de emoção são patogênicos; por outro lado, os devaneios carregados de emoção e os estados de fadiga decorrentes de afetos prolongados são patogênicos" (p. 238, grifo do autor). Desse modo, seriam as representações afetivas intensas, surgidas nos estados hipnoides, que desempenhariam um papel essencial na etiologia da histeria.
À medida que essa alternância entre os estados hipnoides e de vigília se repete frequentemente, ocorre, segundo Breuer, uma divisão da mente, em que representações inadmissíveis à consciência coexistiriam com as representações conscientes, de maneira independente. Em outras palavras, quando essas representações apartadas da consciência - que surgiriam nos estados hipnoides - começam a se associar em complexos, elas podem "atingir um grau mais ou menos elevado de organização psíquica" (BREUER; FREUD, 1893/1996, p. 48), o que faz com que o indivíduo desenvolva uma "dupla consciência". Tendo em vista que a "mente inconsciente" acumula e se apropria de grande quantidade de excitação (energia) - que seria convertida, na histeria, sob a forma de uma inervação motora -, essa parte tenderia a se manifestar mais constantemente, em detrimento de uma "mente consciente" mais enfraquecida e empobrecida, inclusive intelectualmente - considerando que "sua atividade intelectual propriamente dita, sua função associativa, é reduzida, porque apenas parte de sua energia psíquica se acha à disposição de seu pensamento de vigília, em virtude da cisão de um ‘inconsciente’" (BREUER, 1895b/1996, p. 257).
Por outro lado, conforme afirmamos anteriormente, essa não era a única interpretação utilizada na Comunicação preliminar para explicar de que modo as lembranças traumáticas seriam esquecidas e isoladas das representações conscientes. Enquanto na primeira interpretação (defendida principalmente por Breuer), os sintomas histéricos teriam sua causa nas experiências ocorridas dentro de determinados estados psíquicos (hipnoides), na segunda, Freud ressalta a importância de certos conteúdos das representações, o que o levou a criar o conceito de defesa.
Este conceito é explorado mais detalhadamente no artigo As neuropsicoses de defesa, de 1894, no qual Freud examina os casos de neuroses psiquicamente adquiridas, propondo um mecanismo de defesa comum para as histerias, obsessões e psicoses. Nele, o autor defende que a "divisão da consciência", da qual falava Breuer, resultaria de um "ato voluntário do paciente; ou seja, é promovido por um esforço de vontade cujo motivo pode ser especificado" (FREUD, 1894/1996, p. 54). Em outras palavras, a noção de defesa implicaria afirmar que algumas representações de conteúdo aflitivo são ativamente retiradas e expulsas da consciência, sobre as quais o indivíduo nada quer saber. Na Comunicação preliminar, esse ponto é destacado quando os autores afirmam que alguns traumas psíquicos não são suficientemente ab-reagidos "porque se tratava de coisas que o paciente desejava esquecer, e portanto, recalcara intencionalmente do pensamento consciente, inibindo-as e suprimindo-as" (BREUER; FREUD, 1893/1996, p. 46).
Um dos pontos destacados por Freud (1894/1996) para entender por que essas representações seriam suprimidas é sua incompatibilidade com o eu do sujeito, sendo que este "não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu por meio da atividade do pensamento" (p. 55). De acordo com o autor, todas essas representações teriam "natureza aflitiva, capazes de despertar afetos de vergonha, de autocensura e de dor psíquica, além do sentimento de estar sendo prejudicado" (FREUD, 1895/1996, p. 283). Ou, se quisermos ser mais específicos, as sensações e experiências sexuais seriam um dos conteúdos mais frequentes que os pacientes tenderiam a retirar da consciência, provocando reações patológicas.
Para compreender de que modo as representações não seriam mais lembradas, Freud procura oferecer, assim como Breuer, uma explicação em termos energéticos. Em sua concepção, embora não pudesse eliminar nem o traço mnêmico nem o afeto, o eu poderia retirar a energia que está fortemente investida na representação ou, em outras palavras, "o eu transforma essa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto - a soma de excitação - do qual está carregada. A representação fraca não tem então praticamente nenhuma exigência a fazer ao trabalho da associação" (FREUD, 1894/1996, p. 56, grifo do autor). Entretanto, o autor esclarece que a energia (aqui, assemelhada a uma energia elétrica) retirada da representação incompatível com o eu ainda deve ser descarregada, mesmo que de outra maneira, isto é, deslocada. Na histeria, essa energia seria deslocada da esfera psíquica para o âmbito físico, ocasionando uma inervação somática. Nas obsessões, o afeto se ligaria a uma representação substituta (de algum modo, próxima simbolicamente à primeira, embora não incompatível), sendo realizada uma "falsa ligação". Na psicose, o sujeito rejeitaria totalmente a representação e o afeto relacionado, de modo que o eu "se desliga, total e parcialmente, da realidade" (FREUD, 1894/1996, p. 65).
Neste ponto, também convém dizer que Breuer (1895b/1996), em suas Considerações teóricas, reconhecia o papel da sexualidade para a etiologia da histeria, tanto no sentido representacional quanto por seu fator de intensidade de excitação (como, propriamente, na puberdade, nas relações sexuais e no orgasmo) - embora dê preferência para a questão energética da sexualidade, e não ao conflito moral por ela gerado, como fazia Freud. Além disso, não descarta a hipótese de que essa psicopatologia poderia ser ocasionada por meio da denominada defesa, ou seja, "a supressão deliberada de representações aflitivas que parecem ameaçar a felicidade ou a auto-estima do indivíduo" (BREUER, 1895b/1996, p. 234), independentemente dos estados hipnoides. No entanto, ele comenta que "ao aceitar essa ressalva, ainda sou de opinião que os estados hipnoides são a causa e a condição necessária de muitas, na realidade da maioria, das histerias grandes e complexas" (Ibid., p. 236). Em outro momento, ainda, ele compreende que, para haver realmente uma divisão da mente, seria necessário que a defesa tivesse o "auxílio do estado hipnóide" (Ibid., p. 254), sem o qual as representações suprimidas continuariam a retornar à consciência. Por fim, ele afirma que alguns conteúdos podem ser "rechaçados e recalcados da consciência, mas não suprimidos" (Ibid., p. 267) - isto é, nem sempre seriam esquecidos intencionalmente -, levantando uma crítica a Freud, esta que não será tratada no presente artigo.
Dessa forma, percebemos que embora tenham realizado um trabalho em conjunto, cada autor enfatiza diferentes formas de compreensão sobre a histeria. A discordância entre ambos ainda não é explícita nos Estudos sobre a histeria, mas é importante ressaltar que em 1894 Freud relata a Fliess que já não mantinha "contato científico" com Breuer (MASSON, 1985/1986, p. 83).
Embora Freud tenha se utilizado da hipnose e do método catártico de Breuer em sua prática clínica, em A psicoterapia da histeria (FREUD, 1895/1996), ele aponta a existência de alguns obstáculos. Por exemplo, o autor afirma que nem todos os pacientes eram hipnotizáveis, o que lhe causava grande problema, já que indicava limitações do método. Além disso, a hipnose não permitia conhecer o mecanismo da histeria, ou a sua diferença para outros tipos de psicopatologia, nem o motivo pelo qual os sintomas apareciam, tornando o trabalho totalmente obscuro.
Teoricamente, o médico acessava a ideia que havia sido gerada naquele estado hipnoide e esta era reinserida na cadeia de associações, promovendo a liberação do afeto e a remoção do sintoma. Entretanto, o tratamento parecia ocorrer em torno de uma superfície que pouco atingia a estrutura que gerava os sintomas - tanto é que a remoção destes mostrava certa fragilidade: muitos pacientes voltavam a ter os mesmos sintomas, ou outros semelhantes, com muita facilidade. Nas palavras de Freud (1895/1996, p. 272), "ocorreu então algumas vezes que, apesar do diagnóstico de histeria, os resultados terapêuticos se revelaram muito escassos e nem mesmo a análise trazia à luz nada de significativo". O autor passa a buscar uma técnica alternativa ao método hipnótico, que pudesse fazer com que as histéricas se lembrassem das ideias que estavam esquecidas. Para tanto, apoia-se em um experimento feito por Bernheim.
Bernheim demonstra que as pacientes que tinham sido hipnotizadas conseguiriam lembrar sozinhas daquilo que vivenciaram sob hipnose, sem que o médico precisasse informá-las. De acordo com Freud (1895/1996), Bernheim considera que, na verdade, "as lembranças dos acontecimentos ocorridos durante o sonambulismo são apenas aparentemente esquecidas no estado de vigília" (p. 137, grifo do autor), de modo que bastaria o médico pressioná-la para que ela pudesse resgatar a lembrança. Baseando-se nesses pressupostos, Bernheim desenvolve a seguinte técnica: faz uma leve pressão na testa da paciente e, em seguida, lhe sugere que, assim que essa pressão for retirada, ela conseguirá lembrar-se das ideias que haviam sido ditas no estado hipnótico.
Freud presencia e vê o sucesso desse experimento em algumas situações, o que o leva a fazer algo semelhante em sua clínica. Partindo do princípio de que as pacientes histéricas sabiam das ideias patogênicas (ainda que "não soubessem que sabiam") e que a rememoração poderia ocorrer sob certa pressão, ele modifica ligeiramente o método de Bernheim e cria a chamada técnica da concentração: da mesma forma que Bernheim, ele faz uma pressão na testa das pacientes e procura solicitar que elas se lembrem dessas ideias a partir do momento em que retirar a pressão. Entretanto, diferentemente de Bernheim, não será mais feito qualquer uso do hipnotismo. De acordo com Freud (1895/1996, p. 137)
Essa surpreendente e instrutiva experiência [de Bernheim] me serviu de modelo. Resolvi partir do pressuposto de que meus pacientes sabiam de tudo o que tinha qualquer significado patogênico e que se tratava apenas de uma questão de obrigá-los a comunicá-lo. Assim, quando alcançava um ponto em que, depois de formular ao paciente uma pergunta como "Há quanto tempo tem esse sintoma?" ou "Qual foi sua origem?", recebia como resposta "Realmente não sei", eu prosseguia da seguinte maneira. Colocava a mão na testa do paciente ou lhe tomava a cabeça entre as mãos e dizia: "Você pensará nisso sob a pressão da minha mão. No momento em que eu relaxar a pressão, verá algo à sua frente, ou algo aparecerá em sua cabeça. Agarre-o. Será o que estamos procurando. - E então, o que foi que viu ou o que lhe ocorreu?
Ao "insistir" que os pacientes se lembrassem dos grupos de representações patogênicos, Freud nota que lhe era exigido um grande esforço até que o paciente pudesse acessar a lembrança rechaçada da consciência. Dito de outro modo, o autor compreende que havia uma resistência no paciente, isto é, "por meio do trabalho psíquico, eu tinha de superar uma força psíquica nos pacientes que se opunha a que as representações patogênicas se tornassem conscientes (fossem lembradas)" (FREUD, 1895/1996, p. 283, grifo do autor). A partir disso, ele conclui que existiria um processo ativo, uma repulsão do paciente no sentido do não lembrar, considerando ser a mesma força psíquica que "desempenhara um papel na geração do sintoma histérico e que, na época, impedira que a representação patogênica se tornasse consciente" (p. 283), o que o fez criar o conceito de defesa e de repressão3.
Dessa forma, observamos que, baseado em sua prática clínica, Freud começa cada vez mais a se distanciar de Breuer. Embora em A psicoterapia da histeria Freud reconheça que poderia existir também uma "histeria hipnoide" (como o caso de Anna O.), na qual não seria necessária uma força psíquica para manter a representação patogênica afastada do ego, assim como nenhuma resistência para a recuperação da lembrança traumática, ele afirma que "estranhamente, em minha própria experiência, nunca deparei com uma histeria hipnoide autêntica" (FREUD, 1895/1996, p. 298). Além disso, o autor parece deixar claro que, caso haja algo semelhante a um estado hipnoide na histeria, este seria secundário ao mecanismo da defesa, isto é, "em suma, é-me impossível reprimir a suspeita de que em algum ponto as raízes da histeria hipnoide e da histeria de defesa se reúnem, e que seu fator primário é a defesa" (FREUD, 1895/1996, p. 299).
É difícil exagerar a importância das passagens acima. Freud comenta que a histeria hipnoide existe, mas que nunca a viu (algo semelhante ao que Breuer havia feito em relação à histeria de defesa, ao dizer que "concordava" com sua existência, mas que, no fundo, ela dependia dos estados hipnoides). A nosso ver, essa é uma forma de abordar o assunto que mostra, ao mesmo tempo, um lado de Freud disposto a discordar de seu predecessor, e outro ainda não preparado para um confronto direto.
Mas esse distanciamento era essencial para a inovação e desenvolvimento freudianos, considerando que o trabalho conjunto entre ambos era cercado de conflitos e "batalhas". Novamente, as cartas a Fliess nos auxiliam a clarear essa questão. Em 21 de outubro de 1892, Freud demonstra seu desconforto: "No mais, há muito pouco a dizer hoje. Na noite de sábado, tenho um seminário... ao qual, infelizmente para mim, Breuer também comparecerá" (p. 34). Na carta de 29 de setembro de 1893, isso não poderia ficar mais explícito:
Continuo ainda muito insuficientemente ocupado e correspondentemente mal-humorado. Breuer é um obstáculo a meu progresso profissional em Viena. Domina precisamente os círculos com que eu havia contado. Sua amizade por mim, da qual deu provas indubitáveis, manifesta-se muito menos do que eu esperaria na "preparação do terreno" para minha clínica (MASSON, 1985/1986, p. 56).
Nesse contexto, é importante ressaltar que era um risco para Freud se afastar de Breuer, já que, segundo Jones (1953/1989, p. 230), este "não foi simplesmente um conhecido médico de Viena, como às vezes é apresentado, mas também um cientista de considerável reputação". Portanto, foi um movimento árduo e gradual até a suplantação de seu mestre - tanto que só encontraremos este desfecho em 1914, quando Freud afirma, enfaticamente, que a psicanálise é uma invenção sua. É por isso que as passagens em que Freud rejeita sutilmente a teoria sobre os estados hipnoides possuem um lado belo e profundo. Está contido nelas o nascimento da psicanálise, tendo em vista que esse abandono é condição essencial para conceituação do inconsciente como um sistema.
A partir da descoberta da resistência e da repressão, Freud acessa, então, um novo mundo: o inconsciente reprimido. É verdade que o conceito de inconsciente já havia sido inferido e intuído por diversos escritores e filósofos, como Johan Friedrich Herbart, cujo trabalho, provavelmente, influenciara Freud (JONES, 1953/1989). No entanto, a ciência nunca havia penetrado nesse mundo mental escondido com a força e ênfase com a qual Freud se debruçou sobre o assunto, especialmente considerando seus desdobramentos na prática clínica. A importância de seu achado só pode ser equiparada às grandes conquistas do pensamento científico humano. Nas palavras de Freud (1916-1917/1996, p. 292):
Ao enfatizar desta maneira o inconsciente na vida mental, contudo, conjuramos a maior parte dos maus espíritos da crítica contrária à psicanálise. Não se surpreendam com isso, e não suponham que a resistência contra nós se baseia tão-somente na compreensível dificuldade que constitui o inconsciente ou na relativa inacessibilidade das experiências que proporcionam provas do mesmo. A origem dessa resistência, segundo penso, situa-se em algo mais profundo. No transcorrer dos séculos, o ingênuo amor-próprio dos homens teve de submeter-se a dois grandes golpes desferidos pela ciência. O primeiro foi quando souberam que a nossa Terra não era o centro do universo, mas o diminuto fragmento de um sistema cósmico de uma vastidão que mal se pode imaginar. Isto estabelece conexão, em nossas mentes, com o nome Copérnico, embora algo semelhante já tivesse sido afirmado pela ciência de Alexandria. O segundo golpe foi dado quando a investigação biológica destruiu o lugar supostamente privilegiado do homem na criação, e provou sua descendência do reino animal e sua inextirpável natureza animal. Esta nova avaliação foi realizada em nossos dias, por Darwin, Wallace e seus predecessores, embora não sem a mais violenta oposição contemporânea. Mas a megalomania humana terá sofrido seu terceiro golpe, o mais violento, a partir da pesquisa psicológica da época atual, que procura provar que o ego não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente.
Ao descobrir o inconsciente reprimido, Freud funda a psicanálise. O nascimento desta ciência ocorre, portanto, juntamente com os conceitos de defesa e repressão. Antes deste momento, poderíamos falar de uma pré-história da psicanálise, ou de um período pré-psicanalítico. É nesse sentido que em seu trabalho A história do movimento psicanalítico, de 1914, Freud afirma que "a teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise" (p. 26). Essa ideia também parece ser sustentada quando observamos que a palavra "psicanálise", no termo em alemão, aparece pela primeira vez no artigo Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, em 1896, isto é, após o distanciamento em relação a Charcot e Breuer, e antes da descoberta das fantasias inconscientes e da sexualidade infantil (ambas em 1897).
Considerações Finais
Ao longo do artigo, vimos o quanto o distanciamento de Freud com relação a Charcot e Breuer foi essencial para a criação da psicanálise e de um pensamento inovador. No período em que houve um afastamento de Charcot, ele passou a intensificar seu interesse pelos mecanismos psíquicos envolvidos na etiologia da neurose, e não tanto por seus aspectos hereditários e anátomo-fisiológicos.
Posteriormente, Freud iniciou uma maior proximidade científica com Breuer - ainda que ambos tenham se conhecido muito tempo antes de Charcot. Baseado no caso de Anna O., Breuer pôde formular sua teoria sobre os estados hipnoides para explicar a existência de ideias apartadas da consciência. Freud, por outro lado, deu um passo a mais quando criou o conceito de defesa e repressão, enfatizando que existiria um processo ativo no ato de não lembrar, o que provavelmente estaria relacionado a experiências sexuais. A partir do momento em que ele se afasta das ideias de Breuer, e da noção de estados hipnoides, começa a surgir a psicanálise. Assim, poderíamos afirmar que esta ciência teria sido fundada com o conceito de repressão, o que nos leva diretamente à noção de inconsciente reprimido.
Nesse contexto, o estudo dos períodos considerados pré-psicanalíticos no pensamento freudiano é promissor, especialmente nos Estudos sobre a Histeria. Por exemplo, Freud desenvolve de forma incipiente outros conceitos que seriam fundamentais para a psicanálise, como o de transferência, a regra da associação-livre e a técnica da interpretação, entre outros. Além disso, se considerarmos que o nascimento da psicanálise ocorreu nesta época, e que o primeiro modelo de aparelho psíquico (primeira tópica) fora apresentado em 1900, como seriam concebidas por Freud as relações entre consciente e inconsciente em 1895? Estas são discussões que pretendemos desenvolver em trabalhos futuros.
Referências
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Artigo recebido em: 22/04/2020
Aprovado para publicação em: 03/03/2021
Endereço para correspondência
Guilherme Magnoler Guedes de Azevedo
E-mail: guilherme.mga@hotmail.com
Henrique Uva do Amaral
E-mail: henrique.uvaa@gmail.com
*Psicólogo pelo Centro Universitário Sagrado Coração (USC). Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Saúde pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Membro Filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Bauru, SP, Brasil.
**Psicólogo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Bauru, SP, Brasil.
1É importante ressaltar que, ao se referir à "vida ideativa inconsciente", Freud ainda está distante do conceito de inconsciente reprimido. Aqui, a palavra "inconsciente" parece estar mais próxima do sentido que Breuer dá ao termo, isto é, de que existem ideias apartadas da consciência.
2De fato, Bertha tornou-se uma das primeiras assistentes sociais da Alemanha e também do mundo, além de ter fundado um periódico e vários institutos de formação. Segundo Jones (1953/1996, p. 233), "uma parte substancial de seu trabalho foi dedicada às causas e às emancipações das mulheres, mas seu trabalho com crianças também teve grande importância".
3A partir de 1895 é possível observar que Freud passa a se utilizar alternadamente dos conceitos de defesa e repressão, sendo que, ao longo do tempo, dará prioridade ao último, por ser mais específico.