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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Sobre a potência do grupo para lidar com crises: Fotoexpressão como possibilidade contenedora de transbordamentos violentos em uma enfermaria de saúde mental

 

On the power of the group when dealing with crisis: Fotoexpression as a containing resource in face of overwhelming violent elements in a mental health ward

 

 

Karla Carolina de Sousa OliveiraI*; Pablo Castanho**

IUniversidade de São Paulo - USP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste texto é pensar como um dispositivo de grupo com mediações terapêuticas pode exercer função contenedora em contexto de crise psíquica, tanto para os membros do grupo como para o contexto institucional onde o grupo ocorre. Abordaremos concepções psicanalíticas sobre a crise que indicam a importância central da categoria continência como função intersubjetiva. O grupo de Fotoexpressão é então apresentado como possível recurso clínico no contexto de uma enfermaria de saúde mental, destinada ao tratamento de crise psíquica grave, em um hospital geral. A partir da experiência clínica relatada, entendemos que o dispositivo proposto atua como uma prótese de continência não só para os participantes do grupo, mas também para a instituição.

Palavras-chave: Psicanálise de grupo, Intervenção na crise, Mediações terapêuticas, Serviços de saúde mental, Fotolinguagem®, Fotoexpressão.


ABSTRACT

This article aims to discuss how a group device with therapeutic mediations can act as a containment device in a psychic crisis for both the group members and for the institution where the group occurs. This will be done through psychoanalytic conceptions about the crisis that indicates the centrality of the continence category as an intersubjective function. The group of Fotoexpression is then presented as a possible clinical resource at a mental health ward in a general hospital, intended for the treatment of severe psychic crisis. Based on the reported clinical experience, we understand that the proposed device acts as a continence prosthesis not only for the group participants but also for the institution.

Keywords: Group psychoanalysis, Crisis intervention, Therapeutic mediations, Mental health services, Photolanguage®, Fotoexpression.


 

 

Em um contexto de ruptura, transbordamento e instabilidade como esse em que vivemos, é possível, apoiados em Guillaumin (1979) e Kaës (1979), dizer que estamos em uma situação de crise, com suas múltiplas camadas (social, intersubjetiva e intrapsíquica), que se entrelaçam e vão se apresentando das mais variadas formas. Entendemos a crise como aquilo que não encontra vínculos de contenedores capazes de suportar conteúdos mortíferos (a violência, a agressividade a transgressão e até mesmo a indiferença). A clínica que realizamos não está imune a tal conjuntura crítica e em crise, demandando do analista formas de cuidado e manejos capazes de criar condições contenedoras a esses transbordamentos.

Dentro desta problemática mais ampla, o objetivo deste texto é pensar como um dispositivo de grupo com mediações terapêuticas pode exercer uma função contenedora em contexto de crise psíquica, tanto para os membros do grupo como para o contexto institucional onde o grupo ocorre. Trata-se de uma reflexão teórico-clínica embasada na prática de uma das autoras com grupos de Fotoexpressão1 em uma enfermaria da saúde mental em hospital geral. Iniciaremos abordando a noção de crise em psicanálise, privilegiando o trabalho de Guillaumin (1979) e Kaës (1979) para relacioná-la com a questão da continência, com destaque para as proposições de Mano (2012) sobre este tema. Em seguida, articularemos ambas as temáticas ao dispositivo de grupo e ao uso das mediações em grupo, embasados na perspectiva de Lion, notadamente em René Kaës, René Roussilon, Anne Brunne Claudine Vacheret. Apresentaremos uma vinheta clínica que motivou as reflexões aqui presentes e que permitirá ao leitor acompanhar melhor o tema. Concluiremos sublinhando a importância dos vínculos para conter momentos de crise em sentido amplo e indicando a potência do uso de pequenos grupos com objetos mediadores como próteses da capacidade de continência dos vínculos quando a crise tende a transbordar a capacidade continente.

 

1. Crise e continência

Guillaumin assim define crise: "desde o ponto de vista psicológico, uma crise corresponde à quebra objetiva - vivida subjetivamente - das regulações de um sistema pessoal; o sistema não é capaz de regular-se a si mesmo" (1979, p. 201). Para o autor a crise pode ser interpessoal, intrapessoal ou supra/transpessoal. Esses três níveis são concomitantes e não excludentes entre si. Segundo Kaës (1979), essas diferentes camadas (as quais denomina pessoal, social e grupal) implicam temporalidades em conflito.

De Kaës (1979) é possível extrair a seguinte concepção de crise:

produzida a irrupção, a crise começa a perfilar-se em uma história passada e as lembranças reaparecem revelando suas causas, suas origens e, inclusive, suas soluções. Só então recordamos as grandes fraturas que têm marcado a sonhada e lisa superfície do mundo, das coisas e da história, e que sofremos em nosso interior variadas e múltiplas cicatrizes: traços de sucessivos sacudimentos que, através de ecos anestesiantes, temos experimentado em nosso corpo, em nossos afetos, em nossos vínculos e nossos saberes (p. 9).

Entende-se, então, a crise como algo que, ainda que disruptivo, traz em si um potencial transformador a ser desvelado. Desde essa perspectiva a crise carrega consigo esperança.

Segundo Guillaumin (1979), para os gregos crise era o momento do julgamento, da tomada de decisão frente a uma encruzilhada. Já em nossa sociedade há uma visão mais passiva; chamamos estado de crise - portanto, este estado se torna uma forma de existência -, paradoxalmente, possuindo regulação própria. São crises estacionárias, por isso desvitalizadas, das quais um exemplo é o prolongamento da adolescência. Em nossa clínica, há muitos exemplos de crises estacionárias, crises que se tornam modos de vida críticos em loopings que se repetem e defrontam o sujeito e a equipe de cuidado a situações-limite para as quais parece já não haver saída. Em contrapartida, há experiências de crise em sentido mais grego, em que o cuidado ofertado configura uma experiência que possibilita ao sujeito assumir outra posição frente ao seu sofrimento e à vida. O que, então, determinaria essas diferenças? Ou, de forma menos categórica, quais as características que o tratamento precisa assumir para que tenhamos maior chance de uma saída mais criativa da crise?

Explicitamente baseado em Kaës, Guillaumin (1979) defende que o tratamento da crise depende de uma dupla condição para que haja uma saída positiva e criativa. É necessária a vivência do estado de desregulação, de confusão e, depois, essa desregulação precisa ser contida dentro de certos limites que cumprem função de apoio, de um enquadre mudo que permita uma evolução silenciosa sem perigo de ruptura. Nesses casos é necessário retroceder até o enquadre latente, principalmente o grupal e o coletivo, das situações vividas, para assim recuperar no espaço simbólico os elementos não simbolizados ou desmobilizados que se encontram submergidos ou enquistados.

Por isso recorremos a Mano (2012) que, ao propor uma Clínica do Continente, nos permite refletir sobre a natureza da oferta de cuidado que cumpre ao analista diante de condições em que os envoltórios psíquicos se encontram comprometidos, esburacados ou mesmo esfacelados.

Mano (2012), ao desenvolver a proposta da Clínica do Continente, considera o continente como estrutura psíquica e, recorrendo a Figueiredo, indica que nesse campo cabe ao analista realizar algumas funções do trabalho de continência e metabolização que falharam em momentos arcaicos da constituição psíquica, tendo como direção a introjeção da função continente. Nesta perspectiva, ao analista cabe não apenas interpretar, intervindo no nível dos conteúdos, mas buscar instituir um continente aos pensamentos (MANO, 2012). Restringir-se à interpretação seria uma situação análoga à de se tentar retirar a água com um balde sem consertar os furos do casco de um barco que afunda.

Sendo assim, caberia ao analista aproximar-se de algumas funções originalmente atribuídas ao objeto primário (a mãe ou elementos do ambiente que exerceram a função de cuidado inicial) a fim de promover algo de restauração, ou mesmo instauração de um continente para os pensamentos. Visaríamos exercer funções que pudessem propiciar a restauração de um dinamismo psíquico capaz de transformar as experiências emocionais turbulentas em elementos psíquicos, exercendo a função de pensar ali onde esta não se instituiu. Em outras palavras: "acolher, digerir, transformar, mitigar os excessos insuportáveis, e devolver, com adequação, estabelecendo um vínculo intersubjetivo de duas faces" (MANO, 2012, p. 241).

Kaës (1979), a partir da temática "crise", traz também importante reflexão sobre o trabalho analítico neste contexto, enunciando o conceito de função contenedora nos seguintes termos:

corresponde ao restabelecimento do processo psíquico graças ao trabalho de transformação de conteúdos destrutivos mediante um continente humano capaz de fazer possível essa metabolização (KAËS, 1979, p. 64).

O contenedor deve ser um suporte ativo, capaz de receber e tolerar as projeções imaginárias, seja do bebê no caso da mãe, seja do paciente no caso do analista. "Deve ser capaz de recebê-las, elaborá-las e, se o caso exigir, restituí-las" (KAËS, 1979, p. 69).

Foi no trabalho em instituições psiquiátricas que Kaës encontrou as fontes clínicas para o desenvolvimento do conceito de função contenedora, o qual visa associar duas funções essenciais no processo do trabalho psicanalítico: conter e transformar (KAËS, 2012). O que intrigou o autor foram as vicissitudes do espaço transfero-contratransferencial, sua capacidade de conter - ou não - e viabilizar - ou não - transformações. Entretanto, se a função contenedora for simplesmente um local de depósito, não será suficiente ao trabalho transformacional: faz-se necessário que seja ativa. O espaço de depósito é uma condição inicial indispensável, pois acolhe o que não encontrou um lugar, mas é importante que seja estabelecido um dispositivo que suporte o trabalho de simbolização (KAËS, 2016).

Passemos, pois às reflexões a respeito das vias pelas quais o analista pode favorecer a instauração de um contenedor frente a situações de crise.

 

2. Grupo, Mediações Terapêuticas e Instituição

Há 100 anos Freud (1921/2010) identificou a força (sobretudo negativa) dos grupos, em especial em sua potência catalisadora das pulsões, principalmente destrutivas. Tendo dado um passo muito importante na compreensão desse fenômeno humano a partir da psicanálise, o que o autor ainda não aventara naquele momento foi a possibilidade de ser o grupo, justamente por essa potência regressiva que encerra, também uma via que poderia vir a compor o cuidado em psicanálise.

Kaës (2010) dialoga com a problemática freudiana do narcisismo (FREUD, 1914/2011) em sua concepção do duplo estatuto do sujeito, compreendendo que, dada uma cisão inerente, o sujeito se constitui em duplo apoio: corporal e intersubjetivo, isto é, o sujeito ao mesmo passo que tem um fim em si mesmo, é também elo de uma corrente. Retomado por Käes, esse duplo estatuto traz à tona a concepção de um sujeito singular plural, paradoxo que promove importante incursão e permite a Kaës sustentar a hipótese de que o sujeito do inconsciente é o sujeito do vínculo. No que tange a especificidade do presente texto, sublinhamos que a concepção do sujeito do vínculo aponta a necessidade, para o sujeito em crise, de procurar no grupo aquilo que fora perdido dentro de si, ou seja, a experiência de continuidade, integridade, a permanência, a coerência e a segurança.

O grupo é utilizado pelos sujeitos como continente (W. R. Bion) de seus conteúdos psíquicos transformados em representações, fantasias pensadas ou não transformadas e expulsas por eles para o grupo, onde podem ser objeto de transformações nos processos do grupo. O grupo é, em consequência, utilizado como um contentor, quer dizer, um aparelho de transformação: um aparelho pluripsíquico organizado pelo processo de grupo, e um aparelho intersubjetivo no qual perlaboram conteúdos e processos abrigados e metabolizados na psique dos outros (KAËS, 1997, p. 194).

Além do mais:

O grupo exerce uma função de intérprete, quer dizer de tradução, de transformação dos atos ou de sinais mensageiros de um sofrimento que não pode ser enunciado, e que necessita de uma metabolização (VACHERET; GIMENEZ; ABUD, 2013, p. 165).

Kaës (1979, 2016) propõe ser o grupo um aparato de transformação não apenas para o sujeito, indicando também a relação entre este, o grupo e a instituição. Deste modo, é possível constatar que os grupos mobilizam certos aspectos da vida psíquica não acessíveis de outras formas, bem como promovem transformações nas instituições em que ocorrem.

Para Castanho (2014) quando os grupos guardam coerência entre sua tarefa e a tarefa primária da instituição, estes são lugares de metabolização dos restos que circulam nos contextos institucionais. O conceito de tarefa primária surgiu em 1958, inicialmente definido como a "[...] tarefa para a qual ela [a instituição] é criada para realizar."; em um segundo momento, "a tarefa que ela [instituição] precisa realizar para poder sobreviver" (DARTINGTON, 1998, p. 1478, tradução nossa).

Kaës (1989) correlaciona os conceitos de tarefa primária e contrato narcísico, valendo-se de um exemplo clínico justamente de uma instituição psiquiátrica, em que falhando a instituição na sustentação do narcisismo dos membros da equipe, se produziram ataques contra a instituição e contra o próprio trabalho de tratamento. E, ainda valendo-se de sua experiência nesse tipo de instituição, menciona a relação entre o enquadre terapêutico e o institucional, indicando que em muitos casos o tratamento do sofrimento institucional passa por reconhecer e restabelecer a reciprocidade entre estes enquadres de forma a minorar o antagonismo e a destrutividade que possa haver se dado entre eles (KAËS, 2007/2010).

A vida institucional, quando analisada a partir dos pequenos grupos que nela ocorrem, pode ser entendida como um metaenquadre do grupo. O metaenquadre tem a função de fiador do enquadre do dispositivo terapêutico realizado na instituição, isto é, o metaenquadre contém o enquadre e os processos psíquicos que nele ocorrem, podendo sustentá-lo ou atrapalhá-lo.

Nesta perspectiva, pode ocorrer que o sintoma de um grupo venha a ser a encenação do sintoma de outro grupo da instituição. O dispositivo de grupo conduzido por um analista teria então uma finalidade por si mesmo e, quando tudo vai suficientemente bem, também para a instituição na qual está inserido, promovendo transformações dos restos que circulam em busca de depósito e transformação na instituição (ROUSSILLON, 1987/1989). Consideramos que o dispositivo de grupo pode tanto retroceder sobre o sujeito que o compõe, quanto sobre a instituição na qual acontece, ativando passagens entre enquadres contidos e continentes.

Partindo de Bleger, Kaës (2007/2010) compreende que o enquadre é o depositário dos elementos arcaicos da psique, ou seja, da parte psicótica da personalidade. Vale destacar que aqui há importante diferenciação entre a psicose clínica e aquilo que há de mais rudimentar no psiquismo (o arcaico e o originário), sendo essa última a acepção de que trata o autor neste contexto. A função primeira do enquadre é, portanto, gerar estabilidade para que o processo aconteça de forma criativa; todavia, não é possível uma estabilidade perfeita, estando sempre sujeita a transformações. Há que se ressaltar que para Kaës (1979), partindo dos ensinamentos de Bleger, o enquadre é mudo e só aparece, ou seja, torna-se consciente, quando falta. Assim "toda crise revela a existência do enquadre e constitui uma ameaça a ele" (KAËS, 1979, p. 65).

Dada a importância do enquadre para o cuidado da crise devido à sua capacidade contenedora, bem como ao risco do seu iminente esfacelamento nesse contexto, a mediação terapêutica adquire relevância, como forma de robustecê-lo. O uso de materiais em grupos de atenção à saúde mental é bastante comum; entretanto, não raro apresenta-se mais orientado por certa intuição e percepção prática de sua eficácia do que propriamente por um repertório teórico que o subsidie.

Pesquisadores de distintas gerações e ligados à Universidade Lumière Lyon II, na França, vem-se dedicando há algumas décadas a desenvolver uma teorização referida à epistemologia psicanalítica, à luz da metapsicologia freudiana, no que toca essas práticas de cuidado que se dão, sobretudo, com grupos em situações institucionais (KAËS, 2005; VACHERET, 2002; LO PICCOLLO, 2015; BRUN; CHOUVIER; ROUSSILLON, 2013). As psicopatologias narcísico-identitárias e as situações-extremas convocaram os analistas a desenvolverem práticas variantes da cura-tipo; o desenvolvimento de tais práticas permitiu aprofundar a compreensão desses estados psicopatológicos, além de levar os pesquisadores a compreenderem aquilo que pode ser figurado, bem como os processos de simbolização que o uso dos objetos mediadores favorece. Tais estudos apontam que a sensorialidade do meio importa, mas sua maleabilidade depende também de outros elementos do enquadre e da atenção aos aspectos transfero-contratransferenciais que se colocam, inclusive da mente do analista que, a partir dessa perspectiva pode estabelecer novas formas de escuta (BRUN, 2013).

A Fotolinguagem®, uma mediação pautada no uso de fotografia, já bastante consagrada na França e em diversas partes do mundo, passa a ser difundida e utilizada no Brasil a partir de 2009, quando da primeira formação de coordenadores nessa mediação, que foi oferecida por Claudine Vacheret a um grupo de cerca de 15 brasileiros que já desenvolviam sua prática clínica orientada pela psicanálise. Segundo Vacheret (2008) o dispositivo Fotolinguagem®, que se dá por meio da pergunta enunciada pelo coordenador e a escolha das fotos pelo grupo, estabelece verdadeira área de jogo que, por meio da reativação da sensorialidade disparada pelo visual e comumente ampliada aos outros sentidos, favorece o enlaçamento da representação-coisa à representação-palavra, estabelecendo verdadeira área de jogo em que certos afetos são mobilizados, em que a violência pode ser contida, onde o processo de simbolização pode se dar de forma a religar a dimensão intrapsíquica e intersubjetiva, bem como as pulsões de vida e de morte.

Segundo Vacheret, Gimenez e Abud (2013), a continência provida pelo grupo e pelo objeto mediador constituem uma situação terapêutica sólida e resistente. Difratada a transferência entre o terapeuta, o objeto e o grupo, todos ficam protegidos do risco destrutivo das projeções.

Tudo pode ser dito sobre uma foto no grupo, a violência não está endereçada ao outro, ela é depositada sobre o objeto, o que poupa o grupo, quer dizer o conjunto e cada um, cada participante do grupo igualmente. O terapeuta que garante o espaço e seus limites pode contar com a capacidade do enquadre que é formado, conjuntamente, pela função continente do grupo e a do objeto mediador (VACHERET; GIMENEZ. ABUD, 2013, p. 14).

 

3. O caso ou o caos

Como viemos indicando até aqui, observamos em nossa prática clínica certas correspondências entre o que ocorre na instituição e no pequeno grupo de cuidado que nela se realiza. Assim, observamos também que o grupo de Fotoexpressão por vezes pode metabolizar situações de conflito e impasses da equipe de cuidado, além de permitir aos participantes a possibilidade de simbolizar a própria experiência da internação e, eventualmente, alguns eventos traumáticos da sua história. Nesta perspectiva é que apresentaremos uma vinheta a ser analisada à luz das teorias até aqui apresentadas, procurando ressaltar a potência terapêutica das intervenções grupais e a possibilidade de fazê-lo a partir do saber psicanalítico. Destacamos que os sujeitos aqui mencionados estão sendo tratados por nomes fictícios.

Esta sessão se deu após uma grave cena de violência em uma enfermaria de saúde mental, que envolveu Amélie (profissional de saúde que atuava como coterapeuta nos grupos de Fotoexpressão) e outros 3 pacientes, inclusive Thales que está na sessão que será descrita. Ocorreu que Vitor, paciente que acabara de ser internado, muito desorganizado psiquicamente, agrediu Amélie a ponto de quebrar-lhe um dente. Thales, que estabelecia uma transferência deveras erotizada com a profissional, aliou-se a outro paciente e, juntos, agrediram Vitor, precisando este último ser transferido para outra instituição pelo receio da equipe de haver novas agressões.

Posteriormente a este evento, tivemos uma sessão de Fotoexpressão orientada pela seguinte pergunta: "eleja duas fotos, uma que evoque agir e outra que evoque reagir".

No momento de escolha das fotos Amélie e Thales fazem movimentos corporais de avanço e retrocesso em direção às fotos, como se um esperasse pela ação do outro. No curso da sessão se mantêm trocas de olhares.

A primeira e a última foto da sessão fazem referência a encontro amoroso/sexual, sendo que a primeira contém um casal de borboletas em cópula e a última a silhueta de um homem e uma mulher se beijando, tendo como fundo uma paisagem de praia ao anoitecer.

No meio da sessão é apresentada uma foto que contém homens negros abraçando-se a um poste buscando erguê-lo, conotando intenso trabalho físico. A imagem foi nomeada por um paciente como "um jogo proibido" (sic). E na sequência emerge a palavra violência associada à imagem de um vaqueiro montado em um cavalo, laçando um boi.

Mais adiante Amélie apresenta uma foto em que há a cabeça de uma criança apoiada na mão de um adulto, e associa a imagem a "dar carinho" (sic). Thales diz ter escolhido a mesma imagem, mas depois mudado. A coordenadora relembra que a regra do jogo é não mudar de foto. Amélie apresenta outra foto que contém uma escultura de um rosto disforme e colorido e diz: "costumo achar bonito o que a maioria considera feio" (sic).

Mais adiante Thales apresenta suas fotos, sendo que uma contém uma cena de uma grande queimada com a silhueta de duas pessoas à frente e associa: "reação é a natureza queimar" (sic). O grupo começa a considerar se o incêndio foi acidental ou provocado.

Após a sessão, no momento da discussão da equipe coordenadora, é possível que Amélie perceba o quanto estava presa em "um jogo proibido" com Thales e a problemática transferencial entre eles que estava causando grandes impasses na equipe, que foi o desencadeante do episódio de violência, pôde ser simbolizada. Cabe ressaltar que esta discussão é um recurso técnico nomeado como Análise da Intertransferência por René Kaës. Compreendemos este como o espaço em que os analistas que trabalham em coterapia podem elaborar as resistências decorrentes deste trabalho, refletir sobre o vivido no grupo e elaborar as transferências recebidas, mostrando-se uma estratégia muito importante para viabilizar o trabalho conjunto, especialmente com grupos (CASTANHO, 2015).

Tomando as imagens que abrem e fecham a sessão, que indicam relações amorosas, somos levados a hipotetizar que houve ali a possibilidade de figurar esse aspecto transferencial que estava sendo atuado de forma problemática nas relações entre paciente e profissional, o que vinha dificultando significativamente os processos de cuidado. Esta percepção também pôde ser compartilhada no momento da Análise da Intertransferência, bem como informalmente entre profissionais da equipe ao se referirem ao grupo nos espaços intersticiais.

Retomando o material, parece-nos que a experiência de contenção mecânica, ato que ocorre em momentos de heteroagressividade em enfermaria de saúde mental, também pôde ser figurada pela imagem do vaqueiro que poderia ser vista como representando tanto a violência que gera a contenção, quanto a que esta própria técnica implica.

Na sessão acima relatada, entendemos que era demasiado arriscado para o grupo dizer diretamente que Amélie e Thales estavam em um jogo perigoso, rompendo as regras. Tampouco questionar frontalmente se fora acidental ou provocada a situação "incendiária" que causaram na enfermaria. Assim, o dispositivo grupal mediado por fotos favoreceu um deslocamento que tornasse possível nomear estes temas e assim ajudar a conter a experiência de violência vivida, figurá-la, transformá-la. Em termos kaesianos, temos aqui um exemplo da efetivação da função contenedora do enquadre, tendo efeitos sobre o pequeno grupo ali reunido para a sessão e, também, no metaquadro da enfermaria em que ocorreu, permitindo pôr em trabalho questões concernentes a problemáticas transfero-contratransferenciais, tão presentes nas práticas de cuidado em saúde mental e por tantas vezes sem lugar para serem trabalhadas. Notou-se que, por algum tempo após esse trabalho, o tema das transferências erotizadas, que era tão recorrente nos interstícios da instituição e gerava importante desconforto, parece ter-se colocado menos como impasse, já não ocupando tanto o espaço dos diálogos.

 

Considerações Finais

Desta feita, observamos o quanto um grupo mediado por fotos pôde se prestar a exercer a função contenedora necessária a situações de transbordamento violento. Ali onde a capacidade de pensar está impossibilitada, onde os vínculos foram fraturados ou eventualmente rompidos, onde nos deparamos com as diversas camadas da crise: a intrapsíquica - do sujeito adoecido -, a grupal - de uma equipe de cuidado em conflito - e social - em um contexto em que os metaenquadres estão ameaçados - encontramos nos grupos com a mediação terapêutica de fotos uma possibilidade de prótese da capacidade contenedora dos vínculos. E assim como, ao pensar e metabolizar os conteúdos do bebê, devolvendo-os digeridos, a mãe também introjeta no bebê a própria capacidade de pensar (BION, 1962/1991), consideramos que este processo também pôde se dar neste dispositivo, onde metabolizamos os conteúdos mortíferos e destrutivos por meio do grupo (valendo-se do enquadre, do objeto mediador e da cadeia associativa grupal) ao mesmo passo que introjetamos na equipe e, quiçá na instituição, algo dessa capacidade transformacional.

 

 

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Artigo recebido em: 12/05/2021
Aprovado para publicação em: 03/07/2021

Endereço para correspondência
Karla Carolina de Sousa Oliveira
E-mail: karlacsousa@gmail.com
Pablo Castanho
E-mail: pablo.castanho@usp.br

 

 

*Mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil.
**Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil.
1A Fotoexpressão é herdeira direta do dispositivo Fotolinguagem® desenvolvido por Alain Batiste e Clair Belise, ao qual Claudine Vacheret integrou uma compreensão psicanalítica, que o levou ao estatuto de mediação terapêutica. Consiste na proposição de uma pergunta ao grupo que deve ser respondida por meio de uma das fotos que lhes são apresentadas. Desde 2018 circula entre os brasileiros com formação em Fotolinguagem® uma compilação de imagens nacionais, feita por Cristiane Curi Abud e Luiza Sigulem. Atualmente contamos com um conjunto de 203 fotos brasileiras; entretanto, este material ainda não passou pelo processo de pesquisa específico para que pudesse derivar em conjuntos menores de fotos, formados por temas (dossiês), como no caso francês e no uruguaio. Ainda assim, as fotos brasileiras têm possibilitado a nós interessantes intervenções, o que se evidencia na minha experiência clínica, assim como na das próprias autoras do material, conforme relatam no artigo intitulado "O racismo entre a cultura e o sujeito". Temos empregado o termo Fotoexpressão ao tratarmos do uso do dispositivo Fotolinguagem® quando da inclusão de fotos brasileiras por uma questão de direito de propriedade no uso do termo Fotolinguagem®.

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