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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

 ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Sobre reveries, quimeras e pensamentos paradoxais: impasses no setting analítico

 

On reveries, chimeras and paradoxal thoughts: the deadlocks in the analytical setting and the analyst's creative work

 

 

Adriana Meyer B. Gradin*1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, busca a autora garimpar subsídios sobre o tema da reverie, a fim de aprofundar a compreensão sobre os elementos motivadores do surgimento de imagens estranhas na mente do analista no curso de processos de análise, como pictogramas afetivos (ROCHA BARROS, 2000), quimeras e pensamentos paradoxais (M'UZAN, 1976). Sustenta-se que tais imagens surgem para atender a uma demanda de trabalho criativo quando são vivenciadas ameaças aos processos de simbolização, assim como a esterilidade do campo analítico em razão de impasses decorrentes de traumas primitivos, desvitalizações ou movimentos resistenciais da dupla analítica. O processo analítico, nesses casos, assume a natureza de "incubadora de símbolos" (HARTKE, 2005).

Palavras-chave: Reverie, Simbolização, Traumas precoces.


ABSTRACT

In this article, the author seeks to find subsidies on the theme of reverie, in order to deepen the understanding of the motivating elements that result in the appearance of strange images in the analyst's mind during analysis, such as affective pictograms (ROCHA BARROS, 2000), chimeras and paradoxical thoughts (M'UZAN, 1976). It is sustained that such images appear to meet a demand for creative work when threats to the symbolization processes are experienced, as well as the sterility of the analytical field due to impasses resulting from primitive traumas, devitalizations or resistive movements of the analytical duo. The analytical process, in these cases, assumes the nature of a "symbol incubator" (HARTKE, 2005).

Keywords: Reverie, Symbolization, Early traumas.


 

 

1 - Impasses e distúrbios no setting analítico

A clínica psicanalítica contemporânea vem suscitando questões relevantes e intrincadas quanto à simbolização de dores primitivas e experiências traumáticas de analisandos, o que neste artigo propõe-se enfocar sob duas vertentes. A primeira delas relaciona-se à participação do analista em processos de construção representacional, ilustrados pelos conceitos de reverie (BION, 1962a/2007), pictogramas afetivos (ROCHA BARROS, 2000, 2011), quimeras e pensamentos paradoxais do analista (M'UZAN, 1976). E a segunda vertente é atinente à posição a ser ocupada pelo analista em tais processos, quer sob a forma de um silêncio especialmente concebido para facultá-los (GREEN, 1979/2017), quer pela via de interpretações não saturadas para ensejar a abertura e a expansão das mentes da dupla analítica (FERRO, 2006), bem como pela entrega a um estado de oscilação entre identidade e despersonalização a serviço da simbolização.

De fato, diante de pacientes precocemente atingidos em sua constituição narcísica, a exemplo dos pacientes traumatizados ferenczianos, dos falsos selves winnicottianos, dos casos-limites e de outros casos outrora apreendidos como inanalisáveis, a necessidade de ampliação da capacidade de simbolização de suas dores e traumatismos coloca-se em território diverso da clínica freudiana clássica. Tal escuta abrange algo além do campo neurótico do não dito, incluindo vivências da ordem do indizível, que antecedem às vezes a própria aquisição da palavra, gravitam fora do campo das representações psíquicas, ou são da ordem da corporalidade em si mesma, derivando daquilo que não foi sequer traduzido pela narrativa e que foi silenciado psiquicamente.

Quando o campo analítico é atravessado pelo não simbolizado, há uma demanda específica de criação de condições de figurabilidade para que esse material possa vir a ser captado, depois reconhecível e interiorizável, para ser sucessivamente pensado, interpretado, nomeado e talvez transformado. Em casos clínicos nos quais predominam mecanismos como atuações maciças, clivagens narcísicas, desinvestimento libidinal incisivo e somatizações, impõe-se, por esse motivo, a meta da simbolização primária, aliada à historicização e temporalização das vivências precoces do analisando.

Autores como Thomas Ogden, Antonino Ferro, Giuseppe Civitarese, Elias e Elizabeth Rocha Barros se dedicaram à ideia de pensar, sonhar e representar a experiência emocional do analisando, cada um com suas idiossincrasias e caminhos teóricos próprios, valendo destacar que os Rocha Barros (2011) reputam que essa escolha teórico-clínica é precisamente uma forma de ressuscitar a ideia freudiana de figurabilidade (Darstellbarkeit).

Diante dessa demanda de dar forma e figura àquilo que ainda é impensável e inassimilável na vida psíquica do analisando emerge a ideia de funcionamento criativo e despersonalizado do aparato mental do analista.

Nesses casos, muitas vezes de forma inesperada e surpreendente, surgem na mente do analista imagens estranhas ao setting. De modo geral, é relativamente comum a experimentação desse interessante fenômeno quando há vivências traumáticas ainda não simbolizadas pelo analisando, quando ocorrem ameaças à continuidade da relação transferencial, tais como pesadas doses de inércia, desvitalização e tédio em certo período do tratamento, assim como em hipóteses de hostilidade do analisando, atuações ou resistência manifesta a alguma interpretação do analista que "fecha" o intercâmbio da dupla. Alguma coisa aparece como obstáculo, como bloqueio, como obstrução ao seguimento dos trabalhos psíquicos de simbolização e isso é percebido pelo analista como sinal de inadequação, de desconforto, de mal-estar e tensão, o que enseja uma possível abertura para estímulos que invadem a cena.

Isso nos faz pensar em uma significativa questão: qual o motivo de advirem subitamente tais imagens incomuns durante a escuta?

Giuseppe Civitarese (2013, p. 222) defende que os traumas pré-verbais do inconsciente inacessível "forçam caminho" no processo analítico em direção a um estágio de "pré-representabilidade através da identificação projetiva, ação e enactment" e que podem produzir "distúrbios no setting". Esses distúrbios podem aparecer de modo ativado, como enactments e ações, mas também com a dimensão do vazio e de privações, como nos casos de pobreza simbólica do analisando em expressar suas emoções, o que faria o analista se sentir em uma análise "sombria e sem esperança", com um paciente que apresenta apenas palavras esvaziadas de significado, poucos sonhos e personagens, ou seja, elementos "sem brilho, em tons vazios de significado afetivo" (Ibidem, p. 225).

Para iniciarmos a averiguação proposta, cabe usar a metáfora de André Green (1979/2017, p. 304) que alude a um analista que deve concentrar seus esforços em "utilizar os restos dos farrapos do discurso do paciente deixados ao longo da sessão" com a meta de reuni-los em um novo espaço potencial, que assumirá uma forma muitas vezes paradoxal. Como o discurso do analisando desperta no analista um "enxame de representações" (Ibid., p. 292) e nem todas têm tradução verbal, defende Green que a imaginação psicanalítica haverá de povoar tais escutas, o que nos remete ao estudo das primeiras sementes da ideia de reverie.

 

2 - As duas acepções de reverie

Sobre o termo reverie, cabe dizer preliminarmente que, apesar de serem amplamente citados como suas fontes originárias dois textos de Wilfred Bion publicados em 1962 - A teoria do pensar e Aprender com a experiência - a leitura cuidadosa de ambos nos leva à conclusão de que deriva deles um caráter lacônico e enigmático dessa noção. Isso se agrava, sobretudo, pelo fato de ter o autor silenciado sobre a reverie em textos posteriores, deixando em aberto um campo lacunoso que veio a ser preenchido profusamente por autores pós-bionianos dedicados ao tema, muitas vezes adotando direções díspares, ora mais restritas, ora mais amplas, quanto à aplicabilidade, profundidade e extensão da reverie.

Com efeito, o silêncio teórico de Bion nos textos posteriores a 1962 - Elementos da psicanálise (1963), Transformações (1965) e Atenção e interpretação (1970) - fez brotar um novo campo teórico prolífero fundado naquelas sementes iniciais, marcado pelo relevo que os pós-bionianos dão ao termo, ora erguido ao estatuto de conceito.

A atividade mental do analista já havia passado a um primeiro plano desde o momento em que a contratransferência assumiu um papel considerável na cena analítica (HEIMANN, 1949). Surgiram, então, novos estudos sobre os estados de mente do analista, cujo relaxamento e disponibilidade favoreciam, em diversos casos clínicos, o aparecimento de devaneios situados em uma área intermediária aos processos primários e secundários, como elementos mediadores entre os processos inconscientes e pré-conscientes da dupla analítica.

A etimologia da palavra reverie, na língua francesa, relaciona-se à ideia de sonho (rêve), mas corresponde hoje também a um devaneio em estado de vigília, a um estado de entrega do analista a lembranças e imagens, que favorece o aparecimento de pensamentos oníricos (OGDEN, 2013; FERRO, 2006; ROCHA BARROS, 2011; CIVITARESE, 2013).

Para Bion (1962a/2007), a reverie se relaciona à capacidade da mãe como "órgão receptor" para a tradução de sensações e percepções do filho em razão da sua consciência rudimentar. A ideia de base é a de que o bebê fica sobrecarregado intrapsiquicamente pela quantidade de sensações decorrentes do contato com o ambiente e que tal sobrecarga gera uma demanda de processamento de elementos sensoriais brutos. Como os dados sensoriais não são passíveis de absorção pelo bebê porque sua mente não tem a capacidade de processamento que Bion denomina de função alfa, ele requer uma mente suplementar: a da sua mãe. A identificação projetiva seria um mecanismo de comunicação primitiva entre o bebê e a mãe, mediante o qual o bebê evacuaria suas experiências em estado bruto, depositando na mãe a demanda de decodificação e metabolização do material evacuado a ser metabolizado e digerido por ela, convertendo-os em elementos alfa.

Bion (1962a/2007) descreve a função alfa como uma ferramenta de trabalho na análise de distúrbios do pensamento, ou seja, em falhas nos processos de simbolização; como uma forma de converter elementos sensoriais brutos em elementos alfa e, assim, fornecer ao psiquismo material para o pensamento dos sonhos e para a diferenciação entre o dormir e o acordar; entre o consciente e o inconsciente.

A ideia de consciência e a apreensão de si decorrem da função alfa e, por isso, os extravios no processo de comunicação entre mãe e bebê quanto ao material bruto evacuado prejudicam o desenvolvimento dessa função do bebê e podem gerar "terrores inomináveis". Para o autor, os efeitos da identificação projetiva não podem ser desprezados e se estendem, por analogia, ao analista e ao seu paciente. Assim, haverá uma evacuação mais intensa de elementos beta por parte do bebê ou do analisando quanto maior for a falha da capacidade de reverie da mãe ou do analista.

A reverie abrange, então, duas acepções: uma delas, como um estado de mente e outra, como um fenômeno.

A primeira delas relaciona-se a um estado de receptividade e disponibilidade para o outro, a exemplo de uma mãe ou de um analista que faz reserva de si, abrindo espaço para metabolização de experiências emocionais do outro, bebê ou analisando. Como estado de mente, a reverie representaria uma condição para o sonhar e o devanear e teria uma aproximação com a atenção livremente flutuante de Freud, conectando-se diretamente à noção bioniana de dever o analista atuar na escuta sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia. Nessa acepção, a função alfa da mãe tomada de empréstimo pelo bebê, ou a do analista, tomada pelo paciente, seria um instrumento a complementar a produção de sentido, fazendo um circuito positivo e virtuoso em que a mente de um projeta aquilo que não consegue ser pensado e sonhado por ele mesmo e a mente do outro recebe aquilo como um continente e o complementa, trazendo sentido.

No texto Transformations, Bion (1965/2014) veicula a noção de que um encontro analítico envolve transformações simultâneas tanto do analista quanto do paciente. Segundo ele, são necessárias transformações das emoções para que elas possam ser processadas e compartilhadas, o que se dá tanto no domínio do sentido, quanto no domínio do mito e da paixão (BION, 1963/2014).

Por outro lado, há uma segunda forma de conceber a reverie baseada em textos de autores pós-bionianos dedicados à temática, como uma forma de suplementação da atividade mental do analisando, caracterizada por uma atividade criativa que emerge no campo analítico devido à interação da dupla: como algo que se passa na mente do analista e que acresce à cena alguma coisa que ali não se encontrava. Esta atividade do analista não apenas organiza o campo do sentido do analisando, mas cria, gera, produz um novo elemento que serve como instrumento que auxilia a mente de quem está emitindo as identificações projetivas a fazer o trabalho de dar sentido.

Essa outra acepção da reverie compreendida como fenômeno é profusamente retratada por Thomas Ogden (2013) ao discorrer em diversos textos sobre o uso das imagens que lhe ocorrem à mente durante as suas sessões com seus pacientes, lembranças e memórias que acrescentam algo à experiência emocional do paciente e que, como um suplemento, conseguem produzir sentido na relação transferencial e no campo da simbolização das experiências emocionais do analisando.

Ogden (Ibid., p. 146) defende que as reveries dizem respeito ao terceiro analítico, uma entidade nova composta como uma conjugação das mentes de analista e analisando no próprio campo intersubjetivo, incluindo dentre elas "ruminações, devaneios, fantasias, sensações corporais, percepções fugazes, imagens emergindo dos estados de dormências", melodias e frases que atravessam a mente do analista. Seria enganoso, portanto, que o analista acreditasse que se trata apenas de construções privadas, visto que elas são, para ele, também construções intersubjetivas inconscientes decorrentes de identificações projetivas do analisando que são depositadas no campo analítico, e não apenas na mente do analista.

Para Ogden (Ibid., p. 15), o analista deve fazer bom uso da experiência contratransferencial no processo de criação de significados em um espaço onírico intersubjetivo, devendo "criar a psicanálise para cada paciente". Além disso, ele deve também cuidar do senso de vitalidade e de desvitalização do terceiro analítico, o que o autor elenca como "talvez o índice mais importante do processo analítico", cujo fim é tornar o analisando mais humano e mais genuíno naquilo que é. Há um caso clínico, por exemplo, no qual Ogden (Ibid., p. 42) experimentava claustrofobia nas sessões com sua paciente e sentia a perda de sua capacidade mental, o que o fazia contar seus batimentos cardíacos ao escutá-la. A partir de tais vivências, ele foi transformando uma coisa-em-si impensável em uma experiência viva a ser compartilhada com a analisanda.

Tanto os escritos de Ogden (2013), quanto os de Antonino Ferro (2006) se notabilizaram por essa produção semionírica por meio de imagens, memórias, devaneios e narrativas que desembocam na ideia de criação, de construção de personagens, enredos e mitos que têm por imperativo ajudar o analista e o analisando a pensarem melhor a experiência vivida e a aumentarem a capacidade de processamento de ambos.

 

3 - A reverie além da contratransferência

Apesar de a reverie ser equiparada à contratransferência em alguns textos de Ogden, fica claro que ela ultrapassa essa noção, assumindo contornos próprios.

A rigor, a extensão demasiada do conceito de reverie, para nele incluir sintomas somáticos e reações contratransferenciais, assim como vivências de mal-estar do analista durante a sessão, pode gerar confusão conceitual. Como os sintomas somáticos evidenciam a ausência de pensamento sobre a experiência emocional e um desarranjo do campo simbólico, a pura experiência somática seria uma evidência da falta de simbolização do vivido, por isso pensamos que seria questionável incluir dores e sensações corporais do analista como reveries somáticas, como defende, por exemplo, Civitarese (2016).

Em tais casos, entendemos que tais vivências contratransferenciais não devem ser interpretadas como informação já formatada, mas sim como um ruído a ser decifrado, como sinal, barulho, indício e expressão de um impacto inconsciente no analista que traz à cena uma exigência de trabalho. Tais experiências convocam a atuação do analista para a construção de processos terciários (GREEN, 1987/2017) juntamente com o paciente para dar lugar a um pensamento criativo, com a meta de conservar a virtualidade e o sentido potencial do discurso de uma forma transicional.

Assim como Freud define a pulsão como uma exigência de trabalho, o protomental (protoemoções, impressões e pensamentos) também manifesta essa exigência, já que ele pode ser evacuado, mas também trazer à cena muita turbulência e destruição.

Ferro (2006) trabalha detidamente o conceito de interpretação não saturada do analista como aquela que propicia a expansão de sentido do vivido, ao lançar enigmas ao analisando que sinalizam a importância do afeto à procura do conhecimento. Para ele, sem descartar as interpretações saturadas quanto à transferência, as intervenções não saturadas atuam como enzimas que facilitam o processo metabólico para acelerar a simbolização das experiências antes impensáveis, fazendo evoluir o próprio campo psicanalítico.

Já para Elias Rocha Barros (2000), as representações das experiências emocionais de um indivíduo derivam de um processo de criação e elaboração de significados na sua vida mental, que é esboçado, inicialmente, sob a forma de imagens por ele nomeadas de pictogramas afetivos. Trata-se de imagens carregadas de conteúdo afetivo que traduzem experiências ainda não simbolizadas e que se relacionam à função alfa descrita por Bion. Tais imagens, segundo Rocha Barros (Ibidem), carregam formas diferentes de significados (ocultos, ausentes e potenciais), e quando produzidas no curso de uma análise, podem proporcionar uma síntese entre passado e presente, assim como a expansão do processo representacional e o desenvolvimento emocional do analisando.

Os pictogramas afetivos assumem, pois, uma primeira forma de representação mental e contêm significações em estado de suspensão que funcionam, para o autor, como um primeiro passo para o processo de pensamento. Ao surgirem na cena analítica, geram uma demanda de trabalho da dupla analista-analisando para construir essa conexão entre passado e presente, bem como entre experiências primitivas e novas representações. Isso depende, porém, de um processo interpretativo e elaborativo (working out e working through) que permite tornar visíveis planos simbólicos antes ausentes ou silenciados, sobre algo que ainda está sem forma pré-determinada.

Partindo da teoria bioniana, Rocha Barros (2000, p. 57) ressalta que os elementos beta são proto ideias que emergem para o bebê "na fronteira do somático" e, por isso, "a emoção adquire a qualidade da pensabilidade, sem contudo se constituir ainda em pensamento". Tais elementos beta podem então seguir uma rota adquirindo a qualidade da pensabilidade, mas também, em direção oposta, podem vir a ser expelidos, via evacuação ou, em um destino menos favorável, podem se converter em sintomas somáticos.

O casal Elias e Elisabeth Rocha Barros (2011) trabalha as ideias de expressividade e evocação das experiências emocionais do paciente. Partindo do conceito de identificação projetiva de Melanie Klein (1946) e da ampliação de sua acepção feita por Bion no sentido de considerá-la uma forma primitiva de comunicação, tais autores defendem que as condutas evacuativas dos elementos beta de um sujeito geram efeitos expressivos que podem ecoar no polo receptor da comunicação. Assim, tais autores acabam por inscrever a reverie em um espaço que ultrapassa o campo contratransferencial, dando ênfase aos trabalhos psíquicos envolvidos nessa comunicação.

A formação de imagens na mente do analista seria então uma resposta àquilo que foi apresentado como símbolo pelo analisando, via identificação projetiva, com a consequente evocação de um trabalho quanto ao seu conteúdo. Essas imagens, os pictogramas afetivos, podem ser apreendidas como agrupamentos de significações, como um condensado de sentidos imagéticos, afetivos e emocionais que são injetados na mente do analista pela comunicação primitiva do analisando.

 

4 - A construção de símbolos no processo de análise e o silêncio do analista

O casal Rocha Barros (2011) destaca a relevância desse processo de construção dos símbolos na psicanálise contemporânea. Para tanto, eles veiculam a ideia de processo analítico como um berço da simbolização, invocando a ideia de Raul Hartke (2005, apud ROCHA BARROS, 2000, p. 882), que propõe o enquadre analítico como uma "incubadora de símbolos". Os autores tratam a mente como uma máquina de simbolizar que vai crescendo, organizando-se e se expandindo à medida que são decifradas, metabolizadas e integradas as experiências emocionais ao longo da vida do sujeito. Os pictogramas afetivos impulsionam o trabalho psíquico entre analista e analisando e atuam como fatores de expansão das mentes da dupla.

Ao apresentar-se na mente do analista, no curso da sessão, como uma imagem condensada e esquemática que traz em si um potencial significante, o pictograma afetivo requer uma atividade equiparável ao trabalho do sonho, marcado pela elaboração e pelas perlaborações, pelo atravessamento daqueles símbolos, formas e conteúdos representacionais em busca de novas ligações. Nessa trilha, as várias camadas do trabalho de simbolização vão fazendo eco umas nas outras, ampliando a capacidade de representação da dupla em uma ressonância que se expande a cada nova interpretação e associação, gerando um incremento da capacidade de pensar a experiência emocional e as questões primitivas do analisando.

A ideia de interpretação deixa de ter uma conotação pontual e passa a vigorar como processo, visto que o analista parte da escuta de um conteúdo manifesto, mas precisa manter-se em um estado de mente receptivo e fazer silêncio para facultar que o discurso faça ressonância e comece a esboçar um pensamento clínico que desemboque em um trabalho de construção de personagens, enredos, histórias, roteiros, com a introdução da dimensão simbolizante.

Green (1979/2017, p. 295) fala em um silêncio do analista que não deixa de ser vivo, por ser povoado pelas suas associações. Deve ser compreendido como o lugar do apagamento do manifesto para que se revele o latente, como uma parte do enquadre analítico que possui função estruturante e constitui, para o autor, uma "tela de fundo sobre a qual irão se mover (e se emocionar), se desenhar, se escrever, se compor, as figuras projetivas do paciente".

O silêncio do analista, como conceito metapsicológico de Green (1979/2017), tem uma relação direta com o silêncio fundamental conceituado por Michel de M'Uzan (1989). Tal noção, porém, não se refere à ausência concreta da voz do analista na cena, mas, sim, à criação de um espaço de enquadre que tenha o potencial interno de favorecer a representação, nele incluídos também os trabalhos psíquicos do analista, como uma alucinação ou capacidade negativa.

Elias e Elizabeth Rocha Barros (2011, p. 883) mencionam, por outro lado, situações de pacientes que produzem inúmeros sonhos, porém não se mostram aptos a associar tais relatos oníricos a experiências emocionais a partir dos símbolos que ali aparecem. Eles não têm acesso ao sentido mais subjetivo do sonho e prendem-se ao sentido denotativo e objetivo, fazendo equações simbólicas empobrecidas e concretas que deixam escapar a expressividade dos símbolos sonhados. Usam tais símbolos sob a forma de analogias e raramente como metáforas. Tais autores, em razão disso, chamam atenção para a necessidade de observarmos em tais casos "a natureza do ataque que esses pacientes executam aos seus canais simbólicos de comunicação consigo próprios".

Em situações de esterilidade das sementes simbolizantes nos casos de pacientes que têm comprometida sua capacidade de expressividade do vivido, o analista acabará experimentando contratransferencialmente essa aridez e, por isso, surgirá uma demanda de trabalho marcada por uma maior implicação, vitalização, curiosidade e também por uma atividade de criação.

 

5 - O pensamento paradoxal do analista e as quimeras

Michel de M'Uzan (1976), apesar de não pertencer à linhagem dos autores kleino-bionianos, sendo mais proeminente a sua inserção no campo dos adoecimentos psicossomáticos, estudou a fundo a temática dos estados da mente do analista. Como cofundador do Instituto de Psicossomática de Paris, dedicou-se a casos clínicos marcados por adoecimentos graves decorrentes de falhas na capacidade de simbolização e mentalização, ocupando-se de muitos pacientes terminais que lhe suscitaram um interesse teórico-clínico também sobre processos criativos e simbolizantes, bem como sobre o "trabalho do morrer".

O autor francês não menciona especificamente o uso bioniano do termo reverie, e postula a apreciação do campo das contratransferências do analista em um sentido mais amplo. Ele defende que não lhe convém fazer um uso restritivo desse conceito, circunscrito às reações inconscientes negativas do analista perante as questões transferenciais, e tenta afastar essa conotação para incluir em seus estudos o caráter instrumental da contratransferência (HEIMANN, 1949), isto é, para inserir seu valor como veículo de compreensão dos processos mentais do paciente. Para esse fim, ele inclui no arsenal de atributos do aparato mental do analista também a sua livre sensibilidade emocional e estende tal compreensão a uma dimensão ainda mais ampla, para falar também em uma ressonância afetiva entre as mentes de analista e analisando.

M'Uzan (1976, p. 158) postula abandonar os cânones daqueles "limites da contratransferência clássica" para assimilar essas interferências imprevistas e aparentemente incompreensíveis que emergem na relação analítica não apenas sob o seu aspecto pejorativo, mas sim e principalmente, em seu caráter favorável à rota de simbolização das experiências emocionais do analisando. Ele fala em eventos e imagens que vêm à mente do analista ou do analisando como uma surpresa durante a sessão, "representações estranhas, frases inesperadas e gramaticalmente construídas, fórmulas abstratas, uma imagética diversificada, fantasias mais ou menos elaboradas" que trazem à cena um enigma sobre a sua proveniência e sobre a sua função.

De onde viriam tais imagens inusitadas, e elas estariam a serviço de quê? Ao apreciar de onde vêm esses pensamentos, imagens e palavras que dão margem a uma experiência de alienação momentânea do analista e certos estados de despersonalização, M'Uzan se posiciona no sentido de que elas derivam da evacuação do que existe "de mais pessoal" no analisando (1976, p. 159), como processos mentais ainda brutos, nem sequer por ele detectados.

M'Uzan (Ibid.) menciona, portanto, algo que "advém" no aparelho psíquico do analista como imagens que transitam no âmbito intermediário ao estar dormindo e ao estar meio acordado em decorrência da posse momentânea desse aparelho pelo paciente, que dele "faz uso" para digerir seus processos primitivos. Trata-se de um processo que vai além da contratransferência e que faz o analista experimentar uma sutil mudança de estado, sob a forma de uma ligeira flutuação, vivenciando uma despersonalização leve que lhe traz uma alteração do sentimento de sua própria identidade em razão da inoculação de elementos evacuados pelo analisando. Para tanto, o analista deveria se entregar a um estado prévio de permeabilidade e receptividade a tal material ainda em estado não simbolizado.

Essas imagens de formatos múltiplos seriam portadoras de fragmentos do mundo inconsciente do analisando, apresentando-se dinamicamente na transferência como uma ponte entre os seus processos primários e secundários ou, melhor dizendo, como se o analista estivesse naquele momento pensando aquilo que o analisando não pode pensar.

Apesar de não se utilizar diretamente dos conceitos de Bion e dos citados autores pós-bionianos sobre a reverie, o autor francês deparou-se, portanto, na sua prática clínica com o mesmo fenômeno, assim descrito: "num nível definido de seu funcionamento o aparelho psíquico do analista tornou-se literalmente o aparelho psíquico do analisando" (1976, p. 165). Ele batiza esse estado de retirada do analista de sua individualidade de pensamento paradoxal em razão da lógica do pensamento que passa a vigorar - uma pessoa pensando no lugar da outra - como se o analista estivesse a serviço das demandas simbolizantes do paciente. Essa forma de pensar compõe, segundo ele, um sistema paradoxal que abrange experiências arcaicas sem representação, mas o analista não vivencia tal estado como uma invasão ou como algo persecutório projetado pelo analisando, do que se extrai que estaríamos diante de um fenômeno que não poderia ser qualificado apenas como uma reação contratransferencial do analista.

M'Uzan (1976) emprega duas metáforas oriundas da biologia para fundamentar a sua teoria envolvendo a despersonalização do analista no curso desse processo: a tolerância de um organismo vivo a células malignas e a tolerância do corpo de uma mãe ao seu feto sem que defesas imunitárias contra a intrusão sejam ativadas em ambas as hipóteses. Assim como ocorre nesses dois casos, o autor afirma que o analista, ao emprestar o seu aparato psíquico e permitir que ele seja invadido pelas representações do paciente, não percebe o material objeto de identificação projetiva do analisando como uma alteridade absoluta, por isso não o ataca como a um corpo estranho. Ao contrário, dada a relação transferencial, o sistema paradoxal funciona com base na inibição provisória desses mecanismos imunitários.

Fica clara, assim, uma conexão entre as ideias de sistema paradoxal e de despersonalização do analista, o qual acaba submetido a uma "incerteza relativa do sentimento de identidade" quando o pensamento paradoxal advém à sua mente. Para M'Uzan (1976, p. 170), a libido narcisista do analista circula em um "espectro de identidade", do mundo interno ao mundo externo, "que coincide com a imagem do outro", porque há uma disposição especial do analista à identificação primária, já que ele deposita uma parte de sua libido narcísica na representação do seu paciente. A identidade não teria uma conotação estável e encontraria um ajuste "sob medida" às demandas primárias do analisando, viabilizando, após essa vivência, uma forma de acesso ao material enquistado no seu psiquismo. A ideia de espectro de identidade, por isso, não corresponde exatamente a uma identificação projetiva, mas sim, a uma mescla ou confusão na qual a mente de um "fala" na mente do outro, permitindo o fluxo de ideias, pensamentos e sensações.

Em texto posterior, M'Uzan (1978) formula a rica metáfora de um analista que deve ser capaz de funcionar como "a boca do inconsciente", haja vista que precisará "falar" pelo analisando aquilo que ainda não pôde sequer ser pensando. O analista precisa, então, fazer contato empaticamente com a experiência emocional do outro, tendo a sua mente invadida, fagocitada, o que gera uma vacilação das fronteiras da identidade do analista.

Para o francês, essa combinação entre analista e analisando forma uma quimera, "um organismo novo, em certo modo, um monstro ou uma quimera psicológica, com suas próprias modalidades de funcionamento" (M'UZAN, 1978 p. 41), o que nos traz à memória o terceiro analítico de Ogden (2013). Essas imagens mentais situam-se entre o inconsciente e o pré-consciente e, nesse estado, o analista suportará uma incerteza quanto às fronteiras entre o eu e o não-eu.

Em decorrência da despersonalização e do pensamento paradoxal, o analista temerá se perder na mente do outro. Por isso, ele deverá fazer uso do que o autor francês chama da função "antena-escudo", segundo a qual o analista deve estar sensível como uma antena para captar o que vem do inconsciente do analisando, mas, ao mesmo tempo, proteger-se de uma folie-à-deux (loucura a dois) para manter a sua capacidade de pensar.

M'Uzan (1978, p. 42) defende que a energia do sistema paradoxal emana do analista, mas que a sua matéria-prima "pertence à quimera".

Qual seria a motivação para que essa "energia do analista" se converta em um processo dinâmico de criação a ponto de trazer a lume essas imagens surpreendentes, quer as chamemos de pensamentos paradoxais, quimeras psicológicas ou reveries?

Para tentar responder a essa indagação quanto ao fato gerador do aparecimento de tais imagens, cabe apreciar os ensinamentos do próprio M'Uzan sobre os atos criativos.

 

6 - Os trabalhos criativos no curso da análise

Qual seria a grande força propulsora a impulsionar os trabalhos de criação? Quais são os elementos e afetos que aparecem antes, durante e depois da efetivação de atos criativos compartilhados, seja no campo da arte, da literatura, da música ou da psicanálise?

M'Uzan, em 1964, define a noção de "saisissement" (arrebatamento) como uma captura ou um impacto de fora para dentro, decorrente de um evento do mundo externo que invade o sujeito, inunda-o e o desafia a lidar com a nova realidade que se abate sobre ele. Na acepção de "saisissement" usada pelo autor francês, todo processo criativo decorre de um encontro do indivíduo com uma situação traumática, que o coloca em uma atividade de representação ante eventos que trazem estranhamento, angústia e despersonalização, É como se o indivíduo ficasse despossuído e se pusesse a criar para lidar com os aspectos duros e críticos da sua realidade.

No caso de uma relação transferencial, seria possível falar, por equiparação, em uma experiência traumática se impondo ao curso da escuta analítica? Se alguns aspectos cindidos do analisando ameaçam vir à tona, interrompendo os trabalhos de elaboração e de pensamento da dupla analista-analisando, esse poderia ser um fundamento a ensejar a aparição de tais imagens surpreendentes, as reveries, quimeras ou os pensamentos paradoxais?

Para M'Uzan (1964), indivíduos que passam da criatividade aos atos criativos estariam tentando compensar falhas em sua capacidade de simbolização e em sua dificuldade de fazer ligações entre suas representações. Em sua concepção, exatamente porque não há símbolo, cria-se e a criação, portanto, seria uma realidade suplementar ao vivido, ainda impensável e indizível.

Ao mencionar o ato de escrever, o autor cita o exemplo de um escritor em potencial que se vê assolado de tensões e conflitos os quais não consegue integrar ao seu psiquismo e acaba por paralisar a sua escrita. Em razão da proliferação de imagens e fantasias que lhe invadem a mente em decorrência dessa paralisação ele teria dois caminhos: abandonar o projeto de escrita ou partir em busca de uma "nova operação que vai mobilizar de uma maneira completamente diferente as forças do seu imaginário" (M'UZAN, 1964, p. 15).

Entendemos que o mesmo se dá na cena analítica nos casos aqui tratados.

Para a criação e a composição de uma obra, assim como, por analogia, em nosso trabalho analítico com tais pacientes traumatizados, de difícil acesso, vivenciamos vez por outra uma situação adversa ou traumática exógena, experimentada como saisissement, na acepção de captura, impacto e arrebatamento. Há a experimentação de estranhamento ou angústia decorrente desses "distúrbios no setting " (CIVITARESE, 2013), tanto sob a forma de paralisias e vazio, quanto sob a forma de invasões e excessos que criam obstáculos ao pensamento representacional. Esses aspectos podem ser sentidos no próprio corpo no analista, assim como podem se irradiar em suas produções mentais em razão das comunicações primitivas do analisando, pela via da identificação projetiva. Como tais afetos são vividos de forma partilhada e eles se aliam à atualização de outros traumas do analisando, passados e presentes, abre-se espaço para uma nova elaboração da experiência. Em razão disso, estados de não integração e despersonalização podem ser acessados pelo analista, até que, por fim, possam ir sendo usados os fios dessas representações, com o auxílio das chamadas "enzimas" (FERRO, 2006) para tecer uma simbolização primária do material cindido do paciente. As imagens inusitadas, súbitas e incomuns com a formatação de reveries, pictogramas afetivos ou quimeras surgem então como um produto da despersonalização, como um fruto da atividade criativa e de ligação que vai encontrando espaço na mente do analista ante o material projetado no setting pelo analisando.

Para Civitarese (2013, p. 225), a vivacidade de tais imagens carrega a violência das emoções presentes e por sua natureza diferenciada elas deveriam ser consideradas como um produto das inscrições de traumas precoces arraigados no inconsciente inacessível.

Vimos que há, no curso de uma análise, a interação entre os inconscientes do analista e do analisando. Se o analista estiver disponível, em um estado de mente que lhe permite ser um veículo para a captação, metabolização e transformação dos elementos inconscientes do analisando, sobretudo dos elementos que habitam um espaço ainda alheio à simbolização, e se ele fizer uma cessão temporária das suas fronteiras personalizadas, abre-se espaço para que apareça na cena uma "terceira subjetividade" (OGDEN, 2013, p. 26), um campo analítico com força de atração para captar símbolos do inconsciente inacessível do analisando (CIVITARESE, 2013, p. 221), para constituir uma quimera (M'UZAN, 1989).

O aparecimento de imagens de forte conteúdo emocional na mente do analista, sob a forma de reveries, pictogramas afetivos ou quimeras será, portanto, um componente suplementar muito importante a instrumentalizar a figurabilidade e a representação de experiências antes envoltas em elementos beta. Isso gerará uma demanda de trabalho de elaborações e perlaborações (ROCHA BARROS, 2000) para que possam ser expandidas as capacidades simbólicas da dupla.

Do quanto foi exposto, fica bastante evidente e nos parece muito interessante o caminho teórico adotado pelos estudiosos do tema: na tentativa de descrever os processos de escuta de casos clínicos marcados pela falta de palavras, pelo indizível e pelo silenciamento psíquico, tais autores discorrem sobre curiosos fenômenos do pensamento onírico presentes em muitos deles e, ao fazê-lo, usam metáforas ligadas ao corpo, ao metabolismo, à digestão. M'Uzan (1978) menciona a boca, falando da atuação do analista como "a boca do inconsciente"; Ferro (2006) traz as enzimas que facilitam a "digestão" de elementos psíquicos; Ogden (2013) e Civitarese (2016) falam do próprio corpo do analista como receptáculo direto de dores, sono, calores, frios e incômodos físicos projetados pelo inconsciente do analisando; e muitos dos verbos usados por eles se referem ao evacuar, ao digerir, ao fagocitar. Tudo isso vai nos fazendo pensar em dores primitivas do analisando, sensações em estado bruto, sofrimentos não ligados à representação vividos em um tempo pré-verbal, entre o corpo e a mente, entre o somático e o psíquico, como emoções ainda sem a qualidade da pensabilidade que orbitam desligadas de símbolos e que, por isso, repetem-se e retornam como experiências clivadas em busca de ligação ao psiquismo organizado, e que podem encontrar em outra mente a suplementação de sua atividade representacional.

Destarte, depreende-se que quando um analisando tem obstruída sua capacidade de sonhar as próprias experiências emocionais, o analista sentirá automaticamente convocadas as suas capacidades de continência e de reverie. O analista poderá experimentar nessas situações uma poderosa qualidade alucinatória e sensorial e uma sobreposição entre o seu espaço onírico e o obstáculo do analisando em simbolizar a própria experiência. Nesse ponto de sobreposição aparecem as reveries, os pictogramas afetivos e as quimeras, essas misteriosas imagens súbitas. A revelação que emerge nesse instante inesperado, com a forma de uma imagem carregada de afeto, ilumina a cena analítica como uma vela ou como um farol e vem com a potencialidade de fazer ligação entre o mundo interno e o externo, entre o passado e o presente, o somático e o psíquico, preenchendo partes daquilo que era silêncio entre dois pontos da narrativa do analisando.

Como a conexão emocional da dupla favorece a vivência de algo que provém de uma origem comum, haverá, a partir disso, um incremento não apenas nos processos de pensabilidade sobre aquela vivência, mas também a expansão do próprio continente psíquico do analisando. Em tais casos, entendemos que fica indissociável a natureza criativa do trabalho de escuta do analista.

A experimentação desses fenômenos na relação analista-analisando nos remete à necessidade de que o aparato mental do analista possa sustentar uma oscilação permanente entre criatividade e técnica, suportar uma tensão entre a vela, o farol, a escuridão e o silêncio, para que possa ser construído um trabalho analítico fecundo e apto a fazer ligações em casos clínicos marcados por cesuras, lacunas ou fissuras no psiquismo do analisando.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 10/07/2020
Aprovado para publicação em: 09/03/2021

Endereço para correspondência
Adriana Meyer B. Gradin
E-mail: adygradin@terra.com.br

 

 

*Psicanalista. Doutoranda em Psicologia Clínica no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Núcleo de Método Psicanalítico e Formações de Cultura. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Núcleo de Método Psicanalítico e Formações de Cultura. São Paulo, SP, Brasil.
1Agradecimentos ao CNPq, pela bolsa de doutorado concedida, que vem auxiliando o estudo desta matéria.

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