Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro jan./jun. 2021
ARTIGOS
Sobre o machismo nas primeiras teorias da etiologia das neuroses
About the sexism on the first theories of the etiology of neuroses
Ana Cláudia Lima HolandaI*; Marcelo Amorim ChecchiaII**
IPontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - Brasil
IIUniversidade de São Paulo - USP - Brasil
RESUMO
O artigo compara a forma como Sigmund Freud, Otto Gross e Sabina Spielrein se referem às mulheres e aos homens, ao feminino e ao masculino e ao binômio sadismo e masoquismo. O objetivo é localizar determinações machistas e patriarcais, condicionadas historicamente nas primeiras teorias sobre a etiologia das neuroses, e sua sobrevivência em utilizações e atualizações mais recentes. A releitura de psicanalistas contemporâneos a Freud que foram silenciados e esquecidos - mas que recentemente retornaram do recalque histórico dentro da "história oficial da psicanálise" - nos permite considerar de que forma a lógica patriarcal influenciou a vida e as teorias dos primeiros psicanalistas.
Palavras-chave: Machismo, Masoquismo, Psicanálise, Sadismo.
ABSTRACT
The article compares how Sigmund Freud, Otto Gross, and Sabina Spielrein refer to women and men, the feminine and the masculine, and the binomial opposition of sadism and masochism. The objective is to locate historically conditioned sexist and patriarchal determinations in the early theories of the etiology of neuroses; and their survival in more recent uses and updates. The rereading of psychoanalysts contemporary to Freud who have been silenced and forgotten - but who recently returned from historical repression within the "official history of psychoanalysis" - allows us to consider how a patriarchal logic influenced the life and theories of early psychoanalysts.
Keywords: Masochism, Psychoanalysis, Sadism, Sexism.
Circulou nas redes sociais a imagem de uma seguidora de Olavo de Carvalho na qual ela dizia ter chegado aos 28 anos "sem fazer uso de alucinógenos [...], sem chamar o próprio pai de machista, [...] sem flertar com o marxismo", e por aí vai. A cena, a que nos adaptamos ao longo do pleito eleitoral de 2018, chama atenção pelo debate gestado nos comentários. Um senhor de meia-idade comenta: "Queria ter uma filha como essa garota. Linda e inteligente. Mas Deus só quis mandar marmanjos, que eu amo muito por sinal, mas sinto falta de uma menina para me dar carinho". Rapidamente, a militância on-line aponta o óbvio e denuncia: pedófilo! A cena que anos antes seria considerada "elegância paterna" agora não mais consegue ser lida fora da chave da discriminação de gênero: o machismo.
O debate levanta a questão sobre a urgência de atualização de certos discursos, especialmente no que diz respeito à representação da mulher. Este seria um comentário "inocente", de admiração deste senhor ao perfil conservador da jovem? Ou seria esse o achado arqueológico relevante que atestaria a permanência de discursos machistas e de objetificação da mulher em tempos atuais? Por que não seriam os filhos deste senhor capazes de lhe dirigirem carinho? Seria a confissão de ciência deste senhor sobre a origem sempre pulsional dos afetos, na qual a ele não seria indiferente ao fato de que um filho seu ainda é um homem, alguém do gênero masculino, e, portanto, a relação entre os dois seria uma relação homossexual? Ao que tudo indica, o recalque permanece mais forte, nesse exemplo, sobre a condenação da homossexualidade do que sobre a proibição do incesto. Em Problemas de gênero (2020), a estadunidense Judith Butler discute alguns desses tabus - do incesto, da homossexualidade - e encontra também a mesma evidência da anterioridade do segundo em uma cultura marcada pela normatividade heterossexual e, justamente, destaca onde é possível localizar algumas dessas fixações em textos psicanalíticos clássicos, como Luto e melancolia (1915/2010) e O eu e o id (1923/2011). Mas será que essas questões já não haviam sido levantadas por outros autores, inclusive contemporâneos a Freud?
Apesar do recente acirramento político e da guinada conservadora que aconteceu nas últimas eleições, o cenário não é absoluto, e alguns furos nessa triste e recorrente cena nos permitem ânimo para seguir apostando em uma via progressista. Nos últimos anos foram lançados dois livros de obras de psicanalistas contemporâneos a Freud que até há pouco tempo eram inéditos no Brasil. Os volumes a que me refiro são: Por uma psicanálise revolucionária (CHECCHIA; SOUZA JR; LIMA, 2017), que compreende a maior parte das obras conhecidas de Otto Gross - o volume, inclusive, é o mais completo até esta data por conter dois textos descobertos posteriormente às últimas publicações do autor em outros países; e Sabina Spielrein: uma pioneira da psicanálise (CROMBERG, 2014), primeiro volume em português, reeditado recentemente, com obras da psicanalista - que foi também a primeira paciente que Jung tratou com o método psicanalítico. Posteriormente, Sabina se tornaria uma das primeiras psicanalistas e uma pioneira na proposição de uma psicanálise dedicada às crianças.
Os dois volumes são especialmente importantes para o debate sugerido no início deste texto por cada um conter um trabalho que propõe a revisão de um ponto central da teoria freudiana: o limite do binômio sadismo e masoquismo para a sexualidade humana. No caso de Otto Gross, nos referimos a Sobre a simbologia da destruição (GROSS, 1914/2017), no qual o psicanalista austríaco se refere a outro texto que também selecionamos para este comentário, qual seja, A destruição como origem do devir, de Sabina Spielrein (1912/2014).
No texto de Gross, um recorte de casos clínicos traz dois exemplos do ambiente de misoginia existente na Europa daquela época: em um dos casos, o paciente, homem, afirma: "já que as mulheres são tão cachorras e porcas por terem filhos, quem dera eu fosse homossexual" (GROSS, 1914/2017, p. 115). No segundo caso, uma paciente, mulher, assevera: "odeio todas as mulheres. Gostaria ser homem e homossexual" (GROSS, 1914/2017, p. 116).
Segundo Gross, a explicação dada por Adler em seu "protesto masculino" não seria suficiente para explicar ambos os casos. A expressão cunhada por Adler em 1910 considerava que a concepção de homem dentro de uma cultura patriarcal é associada à força e à superioridade, enquanto a de mulher é associada à fragilidade e à inferioridade. O protesto masculino seria, nesse sentido, um movimento psíquico de busca de uma posição de superioridade, uma recusa da posição feminina em função de uma posição masculina e superior.
Vejamos como as posições dos analistas destoam na interpretação dos casos: no primeiro caso, até seria possível pensar em uma rejeição da mulher como objeto de desejo, justificada pela sua posição de inferioridade na cultura, seguindo o conceito de Adler. No segundo, poderíamos considerar que o desejo de ser homem se explicaria pela recusa a uma identificação ao papel feminino, discriminado socialmente.
Para Gross, porém, o desejo de ser homossexual relatado em ambos os casos, seria o fator que impossibilitaria a óbvia argumentação. Se a ideia do protesto masculino está relacionada à recusa em identificar-se com uma posição de inferioridade - nesse caso a feminina -, não haveria problema em ser homem e ter relações sexuais com uma mulher. Para ele, a questão se torna mais complexa à medida que ambos rejeitam o encontro sexual normativo: "é o desejo de se libertar da heterossexualidade comprometida pelo material infantil no inconsciente; ou seja, de se livrar dos tropismos da simbologia da destruição comprometidos pela heterossexualidade" (GROSS, 1914/2017, p. 117).
Ainda de acordo com Gross, muito mais do que uma recusa em ocupar uma "posição de inferioridade", o motivo do sofrimento estaria na recusa em ocupar a posição de virilidade em sua acepção mais corriqueira: a de violador de mulheres. Seria o surgimento do desejo de não violar e não ser violado - a justa razão do conflito interno advindo desses encontros com a sexualidade: "chegamos nesses dois casos - tanto para o homem quanto para a mulher - à reconstrução do mote de desejo: não querer nada da ordem do sexual com a mulher, pois a sexualidade com uma mulher significa uma violação da mulher" (GROSS, 1914/2017, p. 118).
Nos textos em que se ocupa da etiologia das neuroses, especialmente da neurose histérica, é comum que Freud se refira a uma dinâmica que colocaria em jogo a convivência coletiva ou, ainda, a cultura. Segundo ele, a grande maioria dos sofrimentos psíquicos poderia ser explicada pelo fato de que a "renúncia às satisfações sexuais" seria o preço a ser pago pela coesão social e pela estruturação da cultura (FREUD, 1930/2010). Nesse sentido, a satisfação sexual desejada seria substituída pela fantasia de sua realização, produzida endogenamente pelo aparelho psíquico. Lembramos que o termo fantasia em Freud não pode ser confundido com suas acepções mais banais - disfarce, ficção, mentira - mas que conta com rigorosa localização conceitual, como exposto no artigo da psicanalista Léa Silveira Sales: Fantasia e teorias da sedução em Freud e em Laplanche (SALES, 2002). Retomando a discussão em Freud, especialmente no tardio O mal-estar na civilização (FREUD, 1930/2010), vemos uma condução da teoria da psicanálise orientada pela castração e em função da cultura - compreendida como algo estanque, e não continuamente construído e atualizado. O que se pode apreender de tal argumentação é que a convivência em sociedade seria "naturalmente" frustrante, e o desenvolvimento de satisfações substitutivas seria a justa alternativa a essa determinação.
Nesse sentido é possível perceber que uma explicação mais generalista - no caso, a de Freud - poderia estar escondendo uma resistência em lidar com os pontos obscuros da cultura e seus limites morais. Para Gross, contrariamente à posição de Freud, a etiologia das neuroses seria o conflito interno estabelecido pelos termos propostos na cultura, especialmente a determinação da sexualidade pelo binômio subjugação e submissão. Em ambos os sexos, a determinação da sexualidade nesses limites seria violenta e destrutiva. No que diz respeito aos homens, haveria a resistência, curiosamente, nos casos considerados patológicos, em aceitar a posição de "violadores de mulheres". Para as mulheres, haveria a resistência em admitir sua posição na relação sexual necessariamente como "vítima de violação".
Iremos justapor as duas principais teses desses autores para o sofrimento psíquico: de um lado, a tese freudiana de que a impossibilidade da fruição da sexualidade, imposta pela cultura, levaria à construção de uma fantasia que permitiria o desenvolvimento, pelo menos inconsciente, da pulsão; do outro lado, a tese de que o conflito interno estaria mais bem representado pela resistência em admitir os papéis sociais cristalizados - a fantasia, assim, ensejaria a imaginação de uma alternativa ao limite da cultura.
No texto de Gross a que me referi anteriormente, ele se dedica longamente a explicar que, para além de uma percepção, já no início do século, a representação da posição masculina de virilidade e positividade - no sentido de uma ação ativa no mundo - se propunha como vantajosa em relação à representação da posição feminina, marcada por passividade, fragilidade e, também, ingenuidade. Haveria, para a condição patológica identificada às neuroses, uma outra recusa, mais ligada à resistência em ocupar um papel ativo de subjugação de um outro.
Gross, portanto, assevera que a condição patológica que identificava em seus pacientes estava associada à recusa em admitir e naturalizar a posição de subjugação do outro no binômio sadismo e masoquismo. Dessa forma, considera que as únicas posições possíveis em uma relação sexual - e nas relações sociais - não eram a violação do outro ou a permissão de ser violado pelo outro. Antes, essas eram as regras consolidadas culturalmente, às quais os pacientes buscavam resistir.
Nesse mesmo texto ele recupera, influenciado por literatura anarquista, a origem dos casamentos daquela época na tradição de rapto de mulheres e, consequentemente, a distorção do papel da mulher na sociedade para a sua restrição à posição de objeto de um outro e ao seu destino biológico como reprodutora. Além disso, podemos argumentar que o texto de Gross idealiza a posição feminina ao supor uma ideia de matriarcado no qual naturalmente seria superada a dessimetria de forças a que ele atribuía a origem do sofrimento psíquico e no qual o destino da mulher como reprodutora permanecia inalterado. Ainda assim, vale pensar se a superação do binômio, que em Freud seria limite, poderia nos ajudar a desnaturalizar a cristalização de papéis sociais.
Para dar melhores contornos ao ponto em que estava o debate sobre a diferenciação sexual no início do século, retomamos o romance O supermacho, de autoria de Alfred Jarry (1902/2016), autointitulado "romance moderno". Nele, podemos encontrar algo sobre o imaginário do mito da virilidade. A partir do trecho que segue, percebemos como as discussões a respeito da sobreposição do ato sexual e da necessidade de subjugação eram frequentes no início do século passado. Na cena que reproduziremos a seguir, a personagem André Marcueil, o supermacho, ao encontrar a amante desfalecida ao seu lado e supô-la morta, é finalmente capaz de compreender a existência de uma alteridade:
Beijou-as - coisa que nunca tinha lhe passado pela cabeça, imaginando que era provar uma impotência momentânea das carícias mais viris -, beijou-as para recompensá-las do fato de tê-las descoberto, ele quase se disse: tê-las inventado.
E pôs-se a dormir docemente ao lado de sua companheira adormecida no absoluto, como o primeiro homem acordou ao lado de Eva e a supôs saída de sua costela porque ela estava a seu lado, em uma surpresa muito natural de encontrar a primeira mulher, esgotada de amor, ali onde havia se deitado alguma fêmea ainda antropoide (JARRY, 1902/2016, p. 139).
Por meio do estilo irônico de Jarry, percebemos no recorte apresentado que a ideia de que as mulheres seriam, elas também, passíveis de subjetividade era algo novo naquele momento, possivelmente escandaloso. Ao que tudo indica - pelo menos nesta ficção -, ao perceber que as mulheres também eram passíveis da finitude e do gozo, o homem moderno ainda tentava reduzi-las a uma de suas descobertas, nessa comparação com a ideia cristã de que a mulher havia sido originada da costela do primeiro homem. Nesse trecho do Gênesis, a que se refere Jarry, muitos identificam a origem da mulher; contudo será que não seria mais preciso dizer que essa seria a origem da submissão da mulher dentro da cultura judaica? A crítica que vemos em Invenção da histeria, de Didi-Huberman (2015) - de que a construção do discurso da patologia servia também para tentar isolar e controlar o fenômeno apresentado pelos discursos interrompidos dessas mulheres que então se apresentavam como sintomas -, é pertinente também para atestar o desejo reiterado dos homens daquela época de seguir controlando as mulheres em sua entrada na vida social, nem que fosse como sendo seus interlocutores, ou mesmo, como parece insinuar Jarry, como seus criadores.
Em um texto posterior, intitulado Três ensaios sobre o conflito interno, Gross (1920/2017) avança sobre o tema do masoquismo, mas delimitando-o como uma posição infantil, surgida da necessidade de resolução para o conflito entre "solidão e sacrifício da personalidade". Segundo ele, seriam as ameaças de isolamento que determinariam a aceitação da posição passiva e a cessão de características próprias em função do contato sexual e social. A alternância para a posição sádica - nesse texto não exclusivamente masculina, mas acessível à mulher na posição homossexual - seria a alternativa para a realização do desejo ou, ainda, a possibilidade de "forçar a sexualidade em seu favor" (GROSS, 1920/2017, p. 196), em uma sociedade marcada pelo autoritarismo paterno.
Claramente, no texto citado, Gross apresenta esses limites sociais como obstáculos a serem transpostos por um movimento revolucionário capaz de refundar a sociedade em respeito a uma pulsão de contato originária, a qual tornaria possível a ambos os sexos a fruição de suas características próprias, que estariam menos ameaçadas pela repressão - tais características eram percebidas pelos sujeitos, naquela época, como influências estrangeiras e ameaçadoras ao Eu. O Eu seria, nesse caso, uma instância conservadora, solidária à coesão social e, por isso, obediente às determinações morais da época. Se pensarmos o texto freudiano de 1930, O mal-estar na civilização (FREUD, 1930/2010), percebemos que se trata também do reconhecimento de uma hipossuficiência diante de uma ordem patriarcal e repressora. Apesar de os diagnósticos, nesse sentido, não divergirem inteiramente, no sentido de que Freud e Gross reconheciam que o senso comum da época era redutor no que diz respeito às possibilidades de performance das características próprias e, possivelmente, dissidentes, os psicanalistas discordam no curso político decorrente dessa constatação. Enquanto Freud parece conformado e impotente, Gross apresenta alternativas e reconhece os limites sociais como obstáculos parciais e não finais. Talvez pela radicalidade das experiências que conheceu: tanto pelos limites que lhe eram frequentemente impostos com o pretexto de sua "frágil" condição psíquica, como também pelas experiências anarquistas a que teve acesso em Ascona, na colônia utopista "Monte Verità".
Dessa maneira, poderíamos entender que, diante do limite social imposto às mulheres, não haveria alternativa a não ser a posição masoquista, e que por isso ela estaria o tempo todo sendo submetida a ocupar um lugar infantilizado e dependente. Seria também constantemente sujeitada a uma tutela, portanto dificilmente seria capaz de conquistar os meios até para ocupar uma posição sádica socialmente. Estaria obrigada a aceitar sua incapacidade para fazer valer o seu desejo e recorreria frequentemente ao imaginário como alternativa à sua posição social.
É possível argumentar que Freud oscilava, em seus escritos, entre uma determinação biológica da diferença sexual e um limite cultural, estabelecido historicamente. Em umas das Novas conferências introdutórias à psicanálise, de 1933, especificamente no texto intitulado A feminilidade, ele avança e recua no tema:
A supressão da agressividade, prescrita constitucionalmente e imposta socialmente à mulher, favorece o desenvolvimento de fortes impulsos masoquistas, que, como sabemos, têm êxito em ligar-se eroticamente a inclinações destrutivas voltadas para dentro. De modo que o masoquismo é, como se diz, realmente feminino (FREUD, 1933/2010, p. 268).
Aqui mesmo nos perguntamos: Freud delimita a posição da mulher como biologicamente determinada pelo masoquismo ou somente evidencia que as construções simbólicas, socialmente determinadas que ele também experimentava àquela época restringiam a percepção e a experiência da mulher a esse limite? Ele, porém, segue em sua caracterização da mulher reforçando outros estereótipos - carência, docilidade e dependência - até quase concluir o texto com a sua infame criação, imaginada para descrever a sexualidade feminina como determinada pela "inveja do pênis".
Para ele, a única alternativa a essa limitação seria a possibilidade de gestar e parir um filho homem, o que, então, restituiria à mulher o órgão perdido. Isso justificaria, além disso, o amor "naturalmente" mais intenso da mulher pelo filho homem do que pela filha mulher. Ainda insatisfeito com o desserviço ao esforço de comunicação de suas pacientes de uma inadequação a essas representações, ele acusa as mulheres de uma fraqueza moral, representada por sua maior inclinação à inveja, justamente desenvolvida a partir desse complexo determinado pelo sentimento de inferioridade diante dos homens, possuidores do membro "todo poderoso". Por fim, nesse texto, conclui com a reiteração da ideia de que às mulheres era natural uma frigidez inexplicável pela ciência e cujo indício mais forte seria algum tipo de restrição anatômica.
Grande parte desses fantasmas da representação da mulher, contra os quais os movimentos feministas têm lutado ao longo dos anos, não só ainda permanecem vivos na reiteração do binômio sadismo e masoquismo como limite para a sexualidade humana como também parecem muito animados em mentes como a do senhor citado inicialmente, que comenta o post da admiradora do mentor na "nova direita brasileira". Parece-nos urgente a necessidade de desconstrução dos limites que ainda determinam a leitura das experiências apresentadas nos consultórios psicanalíticos.
Ainda no texto citado, Freud dedica-se à descrição dos motivos da rivalidade feminina, gestada na relação de mãe e filha. O seu argumento parece naturalizar que seria mais adequado à mãe amar o filho homem, e ao pai restaria o papel de amar sua filha mulher e demandar a retribuição de seu afeto também a ela, reproduzindo a posição do comentarista citado acima. Ignorante, talvez, do fato de que uma explicação possível para essa distância e para o sentimento de ressentimento que marcava essas relações àquela época poderia ser o constrangimento cultural de demonstração de afeto homossexual. Ele, nesse texto, negligencia os possíveis efeitos nocivos, na vida afetiva da mulher, de uma precoce rejeição pela mãe, motivada pela reprodução de preconceitos sobre a justa dedicação de afeto como exclusivamente heterossexual. Por medo de tomar parte na determinação da futura escolha sexual das filhas, as mães refreariam desde cedo seus impulsos perante suas filhas pelo temor de as incentivarem ao vínculo homossexual reprimido socialmente.
Além do mais, Freud, mesmo ciente do texto de Gross, reitera a justificativa da frigidez das mulheres que atendia em seu consultório a limitações morfológicas. Em nenhuma hipótese admite como uma das explicações possíveis a recusa da posição masoquista e, consequentemente, a recusa ao ato sexual como caracterizado pela violência e pelo abuso.
Por fim, nos parece que seria impossível concluir este texto sem apresentar a posição de Sabina Spielrein neste debate. Justamente ela teria influenciado Gross a escrever Sobre a simbologia da destruição (GROSS, 1914/2017) e trazido, em A destruição como origem do devir (SPIELREIN, 1912/2014), contribuições teóricas importantes ao desenvolvimento do conceito de pulsão de morte, cujo discreto reconhecimento por Freud pode ser verificado em uma nota de rodapé em Além do princípio do prazer (FREUD, 1920/2010). No texto de 1912, percebemos que Sabina resolve habilmente a questão da dicotomia sadismo e masoquismo e apresenta a questão de fundo sobre o imaginário da destruição:
Segundo o componente destrutivo contido no instinto sexual, o homem que tende a ser mais ativo também tem mais desejos sádicos, ele quer destruir a amada. A mulher, que se representa mais como um objeto do amor, quer ser destruída. Naturalmente, esse limiar não pode ser determinado com muita precisão, pois todo ser humano é bissexual, além do que, na mulher também há representações do sujeito, e no homem, representações do objeto. Por isso a mulher também é sádica, e o homem também masoquista. Se as representações do objeto se tornam mais intensas quando o sujeito se coloca no lugar do indivíduo amado, então o amor voltando a si mesmo leva à autodestruição, como por exemplo, ao autoflagelo, ao martírio, sim, à aniquilação total da própria sexualidade, como na castração. Essas são apenas diferentes formas e graus de autodestruição (SPIELREIN, 1912/2014, p. 254).
No trecho citado, impressiona a clareza com que ela resolve a questão da determinação de posições fixas diante do suposto limite representado pelas posições sádica e masoquista. A resposta é óbvia e, para Spielrein, já estaria em Freud: "todo ser humano é bissexual". Para ela, claramente não é uma posição ou outra que determina a sensação de desprazer, mas sim a forma como o encontro com o amor - vivenciado histórica e socialmente dessa maneira àquela época - representa angústia para ambos os sexos na medida em que desaloja as representações do Eu. Além do mais, já vemos nessa proposição uma clara concepção do aparelho psíquico, onde se trata de "representações do eu" e "representações do objeto" (dessa forma, no plural).
É claro que, em alguns de seus textos, Sabina reitera certos estereótipos sobre a mulher. Em A sogra (SPIELREIN, 1913/2014), ela retoma uma certa ideia de que a mulher seria sempre "mais empática" do que o homem, porém a justificativa é de origem cultural. A mulher, por ser historicamente privada da possibilidade de vivenciar seus desejos, desenvolveria uma melhor capacidade de vivenciar experiências através dos outros. Ela também descreve a relação entre mãe e filho como "mais erótica e menos íntima" (SPIELREIN, 1913/2014, p. 356). Diferentemente dos textos onde Freud se dedica à questão e opta por resolvê-la com saídas como "o mistério da frigidez feminina", Spielrein dedica-se a investigar os efeitos das representações do feminino e da sexualidade na vida de suas pacientes.
Seguramente, nos interessaria indagar o que teria levado Freud a retroceder tanto nessa questão no texto A feminilidade (FREUD, 1933/2010), porém isso seria infrutífero, uma vez que necessitaríamos de qualquer tipo de material sobre o assunto para solucionar essa questão - seria necessário encontrar uma carta em que se dedicasse à questão, ou uma nota em um diário. Melhor do que isso, parece-nos, é investigar as consequências da reiteração dessas imagens no ensino da psicanálise e na própria clínica psicanalítica. Não analisar as interferências da mentalidade machista na construção da psicanálise indica que somos igualmente responsáveis por sua propagação? E como barrar tal propagação sem olharmos para a reiteração da cultura machista na construção conceitual e na supressão de ideias de psicanalistas na própria história da psicanálise, como Spielrein e Gross, que justamente denunciavam os efeitos subjetivos devastadores do machismo?
Considerações finais
É preciso considerar que o machismo presente nas elaborações freudianas também é fruto de sua formação e dos valores morais que o cercaram e que, mesmo com tal machismo, Freud revolucionou os estudos sobre a sexualidade e teve papel importante, por exemplo, na luta contra a patologização da homossexualidade. No entanto, parece que nós psicanalistas, ao longo dos anos, nos acostumamos a contar a anedota do surgimento da histeria como devida à observação de Freud de que ou Viena estaria cheia de perversos, ou haveria algo a mais que denominara como "fantasia de sedução", o que explicaria o sofrimento das mulheres que o procuravam. Sem negligenciar o fato de que essa fantasia pode ter permitido a fala e o lento e gradual levantamento do recalque sobre a sexualidade feminina desde o início do século XIX, não é hora de nos perguntarmos novamente sobre isso e investigarmos se a demanda por responsabilização das mulheres pelo seu desejo não teria produzido uma hipertrofia dessa "verdade"? Se, com a promessa de uma atenuação do sofrimento dessas mulheres pela possibilidade de, pelo menos, falar de suas vidas eróticas e íntimas, não teríamos deixado passar enorme quantidade de abusos não investigados em nossos consultórios? Ou, pelo menos, não teríamos deixado passar uma série de projeções sádicas sobre a formação da sexualidade dessas mulheres? Não obstante a existência de muitas alternativas já desenvolvidas pelos autores acima citados, em Gross e Spielrein é frequente a defesa de que algum tipo de resolução para os problemas apresentados por mulheres em suas queixas nos consultórios de psicanálise seja a aceitação da posição masoquista. Para a qual, inclusive, se oferece o consolo de que ela já pode ser cotejada por momentos em que a mulher pode exercer socialmente uma posição mais ativa na cultura.
Contudo, nesses casos, persiste o problema da interpretação da cultura como algo estanque e que a determinaria essencialmente como produto de uma concepção da castração como limite final, portanto, como algo restritivo e frustrante. Parece-nos que é necessário evitar essa tendência e buscar a compreensão da cultura como algo em constante movimento e atualização pelos seus componentes, sejam eles homens, mulheres, ou ainda, por aqueles que não se identificam em nenhuma dessas categorias.
Além disso, se pensarmos rigorosamente sobre o conceito de Spielrein, especialmente em seu caráter associado à ideia de violência e de destruição, torna-se ainda mais urgente pensar criticamente qualquer tipo de aceitação deste binômio, sadismo e masoquismo, como único limite da sexualidade humana. Uma vez que, se a autora desenvolve a ideia de que o masoquismo, como conhecido naquela época, gerava frequentemente nas mulheres o desejo por sua autodestruição, não faria sentido pensar que isso colocaria na posição masculina algo desse mesmo desejo? Somente, nesse caso, pela destruição do outro. Dessa forma, recusar a redução da sexualidade humana a essas duas únicas possibilidades poderia nos ajudar a imaginar laços sociais menos violentos, excludentes e destrutivos.
Uma vez que não é possível comprovar que haja qualquer tipo de determinação biológica para a performance de um gênero, o que faz com que sigamos reforçando esses estereótipos? Em função de que tipo de apaziguamento faz-se esse tipo de concessão a essas fixações na cultura que a psicanálise deveria se esforçar para mobilizar? Parece-me que se trata sim de uma coesão social, mas uma do tipo excludente que não aceita a diferença e que se esforça para não abrir espaços de poder para o que possa incomodar e, por isso, desestabilizar. Nesse sentido, esse ponto da teoria psicanalítica ficou profundamente submetido a certos ideais históricos incompatíveis com outras mudanças conquistadas socialmente, e, por esse motivo, não oferece alternativas de saída para as mulheres que não aceitem encarnar papéis que as subjuguem.
Não seria igualmente importante, por isso, responsabilizar também os homens pelos abusos cometidos em nome de uma norma que estabelece para a mulher uma posição passiva e masoquista socialmente e que determina uma posição objetal que restringe tanto o imaginário quanto, posteriormente, as possibilidades de ação no mundo para as mulheres? Como discutimos a partir de Spielrein, nota-se desde muito cedo a construção de ideais para homens e mulheres que depois serão utilizados por suas subjetividades maduras como traços adequados ao seu gênero. No exemplo que ela traz sobre a empatia, é simples perceber como a proposição para as mulheres de lugares onde elas possam ter "prazeres substitutivos" tornou-se uma ferramenta para que fosse mais fácil aceitar a norma social que não lhes permitia, por exemplo, as experimentações sexuais e a livre escolha de seus parceiros. Diante do que foi exposto, não seria possível dizer também que, sim, Viena estaria cheia de perversos e, diante deles, as mulheres teriam, então, passado a ter que fantasiar alternativas às suas sexualidades que não passassem por esses abusos e violações, se não reais, pelo menos simbólicos?
Referências
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Artigo recebido em: 19/10/2019
Aprovado para publicação em: 03/03/2021
Endereço para correspondência
Ana Cláudia Lima Holanda
E-mail: anaclh@gmail.com
Marcelo Amorim Checchia
E-mail: checchia@gmail.com
*Mestranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica - Núcleo de Subjetividades da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, SP, Brasil.
**Mestre, Doutor e Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil.