Imaginário
ISSN 1413-666X
Imaginario v.12 n.13 São Paulo dez. 2006
Representação do imaginário no conto oral: uma leitura dos contos coletados no Vale do Juruá*
Imaginary Representation in the Oral Tale: a reading of the tales collected in Vale do Juruá
Representación del imaginario en el cuento oral: una lectura de los cuentos colectados en el Valle del Juruá
José Júlio César do Nascimento AraújoI,**; Jordeanes do Nascimento AraújoII,***
I FARO/ Cruzeiro do Sul-AC
II ICHL – UFAM
RESUMO
O presente artigo analisa o conto oral em suas diversas manifestações simbólicas.Trata-se de um estudo realizado na região do Alto Juruá, nos recantos amazônicos de Guajará, no Amazonas, e Cruzeiro do Sul, no Acre. O texto apresenta a influência do conto oral sobre o imaginário local e como este absorveu elementos do imaginário para se construir. O conto é analisado em seus universos simbólicos e procura-se compreender como estes símbolos são usados para ensinar regras morais, sociais, políticas e éticas no contexto amazônico.
Palavras-chave: Conto oral, Oralidade, Imaginário, Alto Juruá, Acre.
ABSTRACT
The present article analyzes the oral tale in its diverse symbolic manifestations. It deals with a study carried out in the region of Alto Juruá River, in the Amazonian nooks, or Guajará in Amazonas and Cruzeiro do Sul in Acre. The text shows the oral tale’s influence in the imaginary place and how it absorbs imaginary elements to build itself. The tale is analyzed in its symbolism universe coding to understand how these things are used to teach moral, social, political and ethnic rules in the Amazon context.
Keywords: Imaginary, Oral tale, Alto Juruá, Acre, Amazon.
RESUMEN
El presente artículo analisa el cuento oral en sus diversas manifestaciones simbólicas. Trata de un estudio realizado en la región del Alto Juruá, en Guajará, Amazonas y en Cruzeiro do Sul, en Acre. El texto presenta la influencia del cuento oral sobre el imaginario local y como ese, a la vez, absorvió elementos del imaginário para construirse. El cuento es analisado en sus universos simbólicos y se procura comprender como estos símbolos son usados para enseñar reglas morales, sociales, políticas y éticas en el contexto amazónico.
Palabras clave: Cuento oral, Oralidad, Imaginario, Alto Juruá, Acre.
Introdução: contextualização histórica
“Todo homem conta para si, de vez em quando, suas próprias histórias” (J.J. César de Araújo)
“Lá aonde os ecos da civilização só chegavam muito difusamente, como de coisa longínqua e inverossímil quase.” (Ferreira de Castro – A selva)
O Vale do Juruá, uma extensa área que engloba sete municípios amazonenses e quatro acreanos banhados pelo rio Juruá, possui uma longa história que se inicia com as numerosas nações indígenas de origem Pano e Aruak de procedência cisandina ou tunguruana- amazônica, localizadas a partir dos Andes, Médio e Alto Juruá. Algumas delas foram registradas pelo Ouvidor Sampaio em 1775 (citado por BENCHIMOL, 1979), os Uacaraua, Katuquina, Urubu, Kanamari e outros.
O rio Juruá é afluente da margem direita do rio Amazonas com cerca de 3.355 km de extensão desde sua nascente peruana, no Serro das Mecês, a 453 metros acima do nível do mar; tem em fevereiro/abril seu período de águas altas e julho/setembro o período de águas baixas, sendo também o mais sinuoso dos rios da Amazônia e dividido em médio, baixo e alto Juruá. O médio Juruá é composto por sete municípios: Guajará, Ipixuna, Envira, Eirunepé, Itamarati, Carauari e Juruá, formando o Vale do Juruá no Estado do Amazonas; e cinco acreanos: Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Rodrigues Alves, Marechal Thaumaturgo e Porto Valter. É navegável por embarcações de médio porte e, quando diminui o volume das águas, é difícil a navegação devido à sinuosidade do rio, ocorrendo o surgimento de praias e bancos de areia ao longo de seu curso.
O vazio demográfico desta região seria rompido na época do período da borracha quando imigrantes nordestinos povoaram e se expandiram pelo Juruá graças ao volume denso de hevea brasilienses, ou seja, a seringueira da Amazônia. Neste período foram criados os primeiros seringais que, no decorrer dos anos, se transformaram em vilas e municípios. Porém, o rio Juruá já era visitado desde 1813 por comerciantes que subiam o rio em busca de escravos índios, de salsaparrilha, copaíba, cacau e ovos de tartaruga (CUNHA; ALMEIDA, 2002, p.107). A ocupação mais efetiva do Vale do Juruá começa a partir da segunda metade do século XIX, mais especificamente no ano de 1858, quando este território é ocupado por migrantes nordestinos (cearenses) trazidos por João da Cunha Correa, diretor dos índios para o extrativismo da borracha e para a coleta de especiarias (Oliveira Neves, 1996). Entre todos os movimentos de ocupação econômica, o extrativismo foi o mais intenso, o que envolveu o maior número de pessoas, embora também tenha sido o mais injusto ao promover fortes impactos à região e suas populações tradicionais.
No fim do século XIX e início do século XX acontece o auge da produção da borracha na Amazônia. Neste período, milhares de retirantes migram para Amazônia atingidos pela instabilidade econômica do nordeste e pelas secas que ocorreram em 1877/79 e 1904 (SILVA, 2000, p. 49). O Vale do Juruá foi responsável por uma parte 08 Repr. significativa dessa migração, por despontar, na época, como um dos maiores produtores de goma elástica, concorrendo com regiões como as do rio Madeira e áreas de Belém.
O rio teve que ser explorado até suas últimas fronteiras. O Acre começava a despontar como centro de produção de látex. Levas de nordestinos e sírio-libaneses aventuram-se procurando encontrar lendárias fortunas. A ilusão da riqueza fácil contrastava com a privação da seca nordestina. O ano é 1865. No rio Juruá já se encontravam cortadores de seringa e coletores de salsaparrilha, vivendo mata-adentro. Foram vistos por William Chandless. Tal comércio, já com certa expressão, obrigou a Companhia Fluvial do Alto do Amazonas a navegar também pelo Juruá, iniciando seu trabalho por volta de 1873. Em 1877 a província do Amazonas criou um distrito policial para toda a extensão do rio e, em 1879, a 29 de Abril, enviou funcionários da Fazenda Provincial à região do Juruá para arrecadação de impostos sobre negócios efetivados ali. No Juruá, durante o início de exploração da borracha, destacaram-se o coronel Francisco F. de Carvalho, que em 1870 estabeleceu o seringal Riozinho da Liberdade; os coronéis Antônio Petrolino Albuquerque, Miguel Fernandes e João Bussons, que em 1877 penetraram no rio Tarauacá e instalaram seus seringais. No ano de 1883, o cearense Antônio Marques de Menezes montou um seringal na foz do rio Moa. Já os coronéis João Dourado e Balduíno de Oliveira ocuparam regiões de fronteira com o Peru. Esses pólos iniciadores fizeram o Acre ser reconhecido como um importante centro produtor. Após estes, uma série de outros seringais estabeleceram-se por todo o vale do Juruá, alguns minúsculos, outros grandiosos.
Os primeiros migrantes nordestinos que chegaram em Guajará (AM), vieram incentivados pela exploração do látex, resultando também na conquista de novas terras para o desenvolvimento da agricultura, como a cana-de-açúcar, banana, farinha, tabaco, e para a criação de bovinos. Segundo os relatos dos mais antigos moradores do município de Guajará, os primeiros migrantes vindos do nordeste foram: Pedro Américo, Elias Barroso, Raimundo Canindé e Raimundo de Castro, Antônio Veçosa, Maria Maciel, Manoel Davi, Juvenal de Paula e Castro, Duca Barroso, Manduca de Castro, João Herculano (guarda-livros do Seringal Montes das Virgens) e Justino Bernardes; vindos de áreas como Pernambuco, Ceará, Sergipe e Piauí.
A forte presença nordestina no Vale do Juruá e em Guajará (AM) é um dado incontestável até os dias de hoje. Manifesta-se não apenas pelos biótipos da população e nas atividades agrícolas, mas também na permanência de certos valores nas estórias e contos que povoam o universo simbólico do Vale, seus municípios e vilas. Ainda se pode ver e escutar os mais velhos contando estórias antigas e novas adaptadas ao contexto do Vale do Juruá. Contos trazidos nos “gaiolas” pelos nordestinos seringueiros e que aqui se transformaram ou encontraram solo fértil para procriarem novas versões ou adaptações. Esta pesquisa buscou compreender, através da análise da estrutura das narrativas orais, a permanência ou a mudança de valores da cultura do migrante em contato com as culturas locais e as possíveis influências destas sobre os contos coletados, questões que permeiam a formação cultural do município a partir do imaginário trazido pelo migrante nordestino.
A partir disso, a ocupação do Juruá pelo extrativismo do látex resultou em duas problemáticas que desdobraram-se até os nossos dias: primeiro, o processo de extrativismo promoveu a invasão de vários territórios indígenas; segundo, serviu para desenvolver os grandes centros urbanos do norte do país deixando o interior (o Vale do Juruá) no esquecimento, sem retorno econômico para as populações que, de forma direta ou indireta, participaram do processo de ocupação do Vale do Juruá.
Nosso objetivo aqui é analisar os contos orais e procurar compreender as possíveis influências nordestinas sobre estes dentro da cultura local. Para tanto, nos centramos em três linhas interdependentes: migração e povoamento, história do município e formação cultural. Tais perspectivas foram possíveis a partir dos relatos dos moradores antigos que ainda se encontram vivos. Assim, procurase elementos da ocupação da cidade de Guajará para então fazer um esboço da migração nordestina para o município, reconstituindo parte da sua história social.
O conto oral como construção do imaginário simbólico e social
As expressões orais da literatura traduzem-se na maior representação da psicologia coletiva de um povo. O conto, suas diversas expressões em seus processos de transmissão, as formas de entonação e a empolgação dos narradores, preservam na oralidade a permanência de usos, costumes, pedagogias, normas morais, éticas e preconceitos construídos no imaginário secular. É através da tradição de contar que as comunidades mantêm a vivacidade da função lúdica e didática: encanto, magia e entretenimento aliam-se a ensinamentos, regras, conceitos, posturas que devem ser aprendidas, ao mesmo tempo em que documenta o fazer, o pensar e o ser dentro de um universo cultural específico. Ao contar, o narrador é um espírito livre para criar, modificar espaços, sofisticar enredos, descrever novas cenas, incorporar novos personagens, possibilitando por meio da flexibilidade da oralidade inovações imprevisíveis. O conto recria-se a cada vez que o narrador o transmite.
Nos anos de 2003/2004, empreendemos uma pesquisa a fim de registrar e analisar os contos que povoam o imaginário dos povos juruaenses e descobrimos uma infinidade de histórias após entrevistar pessoas entre 60 e 90 anos nos municípios que compõem a região. Tais histórias possuem ligações com contos tradicionais da literatura universal, e outros apresentam caracteres inolvidáveis aos já coletados em outras regiões por Luiz Câmara Cascudo, Nina Rodrigues, João Ribeiro e outros folcloristas. Revendo os aspectos funcionais do conto levantados por Vladimir Propp, verificamos que a maioria dos contos coletados poderiam ser analisados segundo sua teoria funcional. Como o nosso trabalho tem um caráter eminentemente descritivo e documental, resolvemos aplicar os princípios de tal teoria aos seguintes contos: “Março – Marçal Barro Vermelho – Laranjeiral, Touro – Azul, Água do Pássaro da Vida, O Carrasquinho, Onde Está a Flor e João de Calais do Amor Sem Fim, A vida do gigante, Pestana Branca e suas aventuras pelo sertão, Pedro Malazartes e suas andanças pelo sertão, e Bota me bota; carapuça me esconde e Estórias ocultas”. Os mesmos princípios caracterizadores utilizados por Carvalho (2001) que destaca três funções para a análise comparativa destes contos aos contos tradicionais e de encantamento:
A primeira função selecionada é a que apresenta a “situação inicial”. Ela informa sobre o futuro do herói. (...). A décima quarta função é importante ser mencionada também porque representa a “transmissão”, ou seja mostra o herói sendo qualificado. A trigésima primeira função não poderia faltar, já que apresenta o desfecho. Essas três funções, de certo modo são a base dos contos populares (CARVALHO, 2001, p. 72-3).
Nestes contos até mesmo o leitor leigo identifica essas características, além de outras. Para Zunthor (1993, p. 55), “o conto oral permite a realização simbólica de um desejo”. Essa faceta do conto merece destaque especial no contexto do Juruá pois caracteriza- se como a mais recorrente veia de nossa construção imagética, podendo nos dar o mágico como proposta de leitura desta literatura que, embora carregada de formas e temáticas universais, consolida-se como elemento inovador na oralidade juruaense. Afirma Arias (2002, p. 103) que:
Lá cultura, que és uma construccion especificamente humana que se expressa a través de todos esos universos simbólicos y de sentido socialmente compartidos, que le ha permitido a uma sociedad llegar a “ser” todo lo que se ha construido como pueblo y sobre el que se construye un referente discursivo de pertenencia y de difencia: la identidad.
A identidade é, portanto, uma construção discursiva. Nosso discurso alia-se ao imaginário, aos símbolos, às idéias que construímos e conhecemos. Matriz do psiquismo humano, os símbolos e as suas motivações distinguem-se do pensamento lógico, dada a pluralidade de suas significações. De acordo com Durand (2002, p. 38), a potência fundamental dos símbolos é:
(...) de ligar, para além das contradições naturais, os elementos inconcialiáveis, as segmentações sociais e as segregações dos períodos da história. Suas categorias motivantes estão nos comportamentos do psiquismo humano.
Assim, o imaginário promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico, a narrativa histórica, lendária, os contos, os mitos, pois a imaginação organiza e mede o tempo da vida humana na terra, dando significação e ressignificação aos nossos desejos.
Em sua dimensão imagética, os contos que povoam o imaginário no Vale do Juruá se manifestam em sistemas abstratos, revelando-se também como objetos de contemplação estética. Num sentido levistraussiano, os contos orais são semelhantes a uma forma intelectual de bricolagem onde a sensibilidade e a inteligibilidade elaboram conjuntos estruturados, resíduos e fragmentos de fatos para testemunharem uma história coletiva.
Por isso, analisar o conto como sistema simbólico nos garantiu um entendimento mais vital dos universos que permearam nossa formação cultural. Procurou-se decifrar a ação simbólica e o que esta pode expressar em si mesma, tentando percorrer os caminhos que estes símbolos fazem para representar conceitos de organização social, religião, leis morais e éticas, como possibilidade de revelar o verdadeiro sentido que estes contos desempenham e suas múltiplas interações construídas simbolicamente. O símbolo só é criado por uma sociedade quando ela não consegue nomimar o espaço vivencial ou suas posturas, como destaca Arias (2002, p. 7):
Es ahi cuando los seres humanos construyen procesos de eufenüizacion simbólica como único recurso para ordenar el caos del mundo y la realidad. Basta ver como ante tremenda crisis provocada por un capitalismo salvaje, la gente encuentra en sus universos simbólicos posibilidades de resistencias y de insurgencia frente a esa situación de miseria en la que sobrevive. O cuando tenemos que enfrentar situaciones que van más allá de nuestra capacidad de entenderlas, como la muerte, un desastre natural o la desestruturación social, es en los universos simbólicos donde estas situaciones logran resemantizarse y ayadam e que continue existindo um sentido para seguir vivendo.
Os universos simbólicos dos contos como “Flores de Fogo”, “Borbolectus” e “João acaba Mundo” são um conjunto de significados construídos por uma cultura que ordena e legitima as práticas cotidianas e constrói o marco para entender e operar na realidade e no mundo, viabilizando o ordenamento da história e permitindo situar os acontecimentos coletivos nos moldes de um conhecimento necessário dentro de uma dada temporalidade. Tempo este carregado de um sentido passado para entender suas experiências presentes e sobre o qual podem fincar-se as bases para o futuro. Assim, vemos que os universos simbólicos dão sentido à ação humana, carregados de historiticismo e produtos sociais concretos. Os contos “Flores de Fogo” e “Borbolectus”, colhidos em Guajará (AM) refletem um desejo de explicar a criação do mundo.
O conto as “Flores de Fogo” é ao mesmo tempo a narrativa da criação de um elemento natural – “as flores vermelhas” e, por outro lado, mistifica o sentimento “amor”. A narrativa faz uma fusão do mito com elementos do conto. A figura do deus é apenas uma transferência funcional para orientar a metamorforização dos elementos amor/flor. Os símbolos constroem novos universos míticos e simbólicos e dão à cultura juruaense e aos componentes desta sociedade novas formas de experiências humanas.
O símbolo, em Bachelard, é um sistema que não substitui qualquer sentido, mas pode efetivamente conter uma pluralidade de interpretações. Por exemplo: o papel do gigante em “A vida do Gigante” poderia representar a imensa floresta amazônica para o nordestino. “Manelão”, personagem do conto “Manezim e Manelão”, poderia representar o seringalista ou o coronel de barranco que submetia o migrante a trabalhos desumanos. Assim Laplantine e Trindade (1997, p. 15) ressaltam:
(....) os homens atribuem significados aos objetos, a idéia aparece como representação mental de uma coisa concreta ou abstrata, é considerada como o elemento consciente do universo simbólico, as imagens e o imaginário são sinônimos simbólicos, são também formas que contêm sentidos afetivos universais ou arquétipos cujas explicações nos remetem as estruturas do inconsciente.
O imagético e o simbólico nos contos orais
Cada vez que se conta, a história cresce, ganha novos elementos, novo entusiasmo, nova vida. Pois, como toda manifestação cultural, sofre adaptações ao ser transplantada para um novo lugar. O conto popular oral presente no Vale do Juruá e, principalmente, em Guajará (AM) e Cruzeiro do Sul (AC), passou por este processo de adaptação ao ser transplantado. Porém, os elementos da cultura nordestina ainda estão presentes na maioria dos contos trazidos pelo migrante. Estes se adaptam ao novo cenário, cheio de novos elementos que se agregaram a esses contos. Embora os mesmos tenham sofrido processo de adaptação, não perderam sua originalidade e preservaram suas características essenciais.
A lógica dos contos orais de Guajará (AM)
Inspirado pela teoria interpretativa de Geertz, percebe-se que os contos orais que povoam o imaginário de Guajará vão além da simples análise comparativa de termos ou da busca de características semelhantes. Até a metade da pesquisa vínhamos fazendo este tipo de análise, mas pudemos então perceber que ela nos ajudava apenas a compreender a superfície dos contos e levava-nos a manter um distanciamento do objeto de estudo.
Resolvemos, portanto, nos distanciar deste tipo de análise comparativa de elementos para percebermos profundamente as mudanças, a permanência no tempo e no espaço, a continuidade e a descontinuidade da tradição, as adaptações, a sobrevivência e o futuro dessas narrativas orais. Nesta parte do estudo valeram-nos os pressupostos de análise literária, os princípios da teoria da literatura comparada e da crítica temática, a teoria da hermenêutica cultural e do estruturalismo de Lévi-Strauss. Nosso grande enfrentamento foi, ao mesmo tempo, compreender qual a lógica interna dos contos coletados em Guajará, o significado que se oculta atrás das palavras. Será que os contos orais conversam entre si?
A primeira pergunta poderia ser respondida a partir de uma análise estrutural dos contos orais. Como fazer isso? Reportamo-nos a Lévi- Strauss (1975) quando analisa as estruturas dos mitos. Não pretendemos mostrar como os homens pensam os contos, mas como os contos podem nos levar a pensar os homens e, de certo modo, como os contos conversam entre si. Pois, trata-se aqui de perceber o que há por trás dos contos orais, analisando todas as dimensões dos mesmos e compreendendo, a partir da interpretação geertiziana, o que o conto oral pode estar dizendo além da própria história, o dito e o não-dito, o que está nas entrelinhas das narrativas orais.
Primeiro, queremos esclarecer que os doze contos orais, segundo Cascudo (2004), estão classificados em contos de encantamento (de origem européia e amazônica), contos de exemplo, contos acumulativos e contos religiosos. Portanto, ao dividi-los, os analisaremos por partes.
Os contos de encantamento coletados em Guajará, “Bota, me bota; carapuça, me esconde”; “A vida do gigante” e “Leão, o rei dos bichos”, nos remetem a uma mesma lógica, ou seja, todos contêm as mesmas palavras-chave como riqueza, um herói que resolve todos os problemas, esperança, vingança, luxo, inferno, sagrado, mas há também um enorme desejo de conquista, quem sabe, de vida nova. Para o migrante nordestino poderia ser o lugar ideal, onde ele teria uma condição muito melhor que aquela onde antes vivia. Os contos representam esta preocupação, a esperança de conquistar algo que possa suprir as necessidades do migrante nordestino.
Por outra interpretação, estes contos podem representar o longo percurso que o migrante nordestino fez até chegar ao Vale do Juruá, passando por vários obstáculos e vivenciando suas aventuras no decorrer da viagem. A mesma viagem que o personagem (o herói) dos contos faz. Marca profundamente um processo de luta e adaptação ao novo ambiente desconhecido e estranho, onde somente a esperança de dias felizes e prósperos podia preencher o vazio que a floresta proporcionava. Ao mesmo tempo, o seu isolamento do mundo ajudava na construção de novas produções orais a partir das imagens de um novo ambiente visto pelo migrante. Representa, também, a construção de uma identidade cultural própria, que se sobrepôs às intempéries do meio, criando um pacto com a natureza e adaptando-se ao local e vivenciando suas manifestações culturais, registradas nas músicas, nas estórias, nas comidas, trazidos pelo migrante ao Vale do Juruá, como retrata a passagem destes dois contos:
[...] o rapaz então disse: “Vou atrás das minhas irmãs”, e assim saiu atrás delas. Andou, andou, chegou muito longe, encontrou dois meninos brigando e disse: - “Meninos, por que vocês estão brigando?” Eles disseram: -”Porque o papai morreu e o que deixou pra nós foi essa carapuça, que eu quero, ele quer”. Perguntou aos meninos: - “Que privilégio tem essa carapuça?” Eles disseram: -”Você diz: carapuça, me esconde, ela lhe esconde”. O rapaz disse: - “Vocês vendem?” Eles disseram: - “Vendemos”. E assim ele comprou a carapuça e foi embora. Chegou mais na frente, tinha mais dois meninos brigando, então perguntou: -”Por que vocês então brigando?” Eles responderam: -”Porque o papai morreu e o que deixou pra nós foi essa bota, que eu quero, ele quer”. Daí, ele disse: -”Que privilégio tem essa bota?” Eles responderam: -”O senhor diz: bota, me bota em tal canto, ela lhe bota”. O rapaz perguntou: “Vocês vendem a bota?”. Os garotos responderam: “Vendemos, senhor”. Aí, venderam e dividiram o dinheiro. Ele foi embora (o rapaz). Chegou lá na frente, meteu o pé na bota e disse: -”Bota, me bota na casa da minha irmã mais velha”. No bater de pestana, ele estava lá. (REIS, 2004, trecho retirado do conto A vida do gigante).
[...] Quando foi de manhã, o rei disse: “Aí, rapaz, você descobriu onde minha filha dorme?” Ele disse: “Descobri”. Mandou todo mundo, juiz, delegado, sentar. Começou a falar: “Olhe, sua filha tem uma boneca de nome Calanga. Tudo que sua filha pedir a ela, ela dá! Ela pediu pra Calanga botar ela na porta do jardim de ouro. E eu tenho uma bota, que me bota onde eu quero e uma carapuça, que me esconde. E eu pedi pra bota me colocar lá, antes dela. Ela chegou, deu três voltas e tirou três flores”. A princesa falou: “É mentira!”. Ele disse: “Não é, estão aqui as flores em cima da mesa. E, depois, ela foi para um hotel de ouro. Quando chegou lá, ela jantou!”. Ele mostrou o garfo e a faca: “Estão aqui!” e botou em cima da mesa. Ele disse: “Tem mais, sua filha dorme no inferno junto com o Satanás”. Ela disse: “É mentira!”. “Mentira, não, está aqui o lençol que eu trouxe de lá, quando você ia se enrolando”. Ele foi mostrando todas as coisas que tinha arrebatado das mãos dela, tudo mesmo. O rei disse: “Pois você vai se casar com ela”. Ele disse: “Eu mesmo não, Deus me livre!”. Depois disso, apareceu uma língua (lingüeta) de fogo por cima da mesa, que carregou ela, com as coisas e com tudo! Aí, o rei entregou a metade da riqueza para o homem, e ela, a princesa, sumiu até hoje (NASCIMENTO, 2004, trecho retirado do conto Bota, me bota; carapuça, me esconde).
Esses elementos como riqueza, um herói que resolve todos os problemas, esperança, vingança, luxo, inferno, sagrado e profano, contidos nas entrelinhas, revelam como os contos pensam entre si, e, ao mesmo tempo, como são construídas as estruturas desses contos, como respondem pela lógica que está oculta, refletindo um tempo de dificuldade, de luta e de muita coragem para superar as adversidades locais. Na medida do possível, trata-se aqui, também, de extrair o sentido dos contos, nem sempre claro na consciência dos homens, de revelar o sistema capaz de dar uma significação comum às elaborações inconscientes que são próprias de sociedades e culturas.
De acordo com Serra Pinto (2005), a natureza simbólica e a realidade material não se excluem porque os homens se comunicam por meio de símbolos. Nas três narrativas orais, “Bota, me bota; carapuça, me esconde”, “A vida do gigante” e “Leão, o rei dos bichos”, os mesmos operadores simbólicos estão sendo potencializados constantemente. Nesse sentido, a cultura pode ser entendida não apenas como o conjunto de produtos do pensamento ilustrado, mas também como a reunião de formas simbólicas diferenciadas que são interpretadas e traduzidas sem que o sentido se esgote. Como afirma Serra Pinto (2005, p. 76), “uma noção de cultura desmistificadora, desvinculada das ideologias dominantes apresenta-se como atualização de todas as potencialidades da natureza biológica do sapiens”, pois o papel da cultura é também ser um sistema de regulação no qual funcionam instâncias contraditórias, antagônicas, que se compensam entre si.
Assim, em uma perspectiva hermenêutica, as narrativas orais nos remetem a relações de poder entre homem e natureza, ou, também, entre natureza e cultura, apontando que a cultura poderia ser ou é o resultado dessas escolhas, um conjunto acabado de elementos associados logicamente que se organizam em sistemas, e as relações, nesse caso, acabam nos unindo, resultado de todo um processo que construímos socialmente. Pois, se acreditarmos que o homem é um animal amarrado a suas teias de significados tecidas por ele mesmo, como nos sugere Geertz (1989), veremos que nos contos de Guajará este homem busca incessantemente o significado, uma explicação, digamos, possível, visando passar seus ensinamentos a sua descendência. No caso do nordestino, podemos perceber que este processo irá gerar consciente ou inconscientemente uma volta às origens.
O hibridismo cultural nas narrativas orais
Para Burke (2003), exemplos de hibridismo cultural podem ser encontrados em toda parte, nas religiões sincréticas, nas línguas, na literatura e na música. No caso do Vale do Juruá e, conseqüentemente em Guajará, surge esta construção social (hibridismo cultural) quando o migrante nordestino mergulha no imaginário amazônico e, num ambiente rodeado de águas e florestas, recria uma nova estória ao refletir a relação homem e natureza dentro de um percurso épico feito por ele.
Nos contos religiosos, contos de exemplos e nos contos acumulativos, os elementos-chave nos remetem a uma mesma lógica onde todos estão interligados pelo desejo de vitória, conquista, esperteza, astúcia, inteligência, solidariedade, moral, medo, ambição, como mostra a passagem do conto “Manezim e Manelão”:
Certo dia, o Manezim tinha uma burrinha, era toda a riqueza que ele tinha e o único bem material era uma moedinha de ouro. Aí, o Manezim disse: “Vou fazer uma graça com o Manelão”. Então, ele pegou a burrinha, ela defecou no meio do terreiro, ele foi, pegou a pataquinha (a moeda) e enfiou na merda da burrinha, e deixou lá. Quando foi de manhã, o Manelão saiu na janela, escovando os dentes. O Manezim lá sabia o que era escovar os dentes! Aí, o Manezim chegou perto da merda da burrinha e ficou escavando com um pedaço de pau. O Manelão olhou da janela e disse-lhe: “Ei, Manezim, tu ficou doido mesmo?!”. O Manezim falou para ele: “Doido uma droga, olha aqui”. Ele pegou a moedinha, levantou-a e mostrou para ele. O Manelão falou: “Manezim, tua burrinha defeca ouro, vamos fazer uma troca?”. O Manelão era ambicioso. O Manezim disse-lhe: “Depende da troca”. “Eu te dou dez burros por essa burrinha”. O Manezim, que não era besta, disse-lhe: “Tá feito o negócio” (trecho retirado do conto “Manezim e Manelão”).
Os contos também refletem, de um lado, a moralidade de um povo preocupado pela permanência dos valores tradicionais e, do outro, o imaginário, a identidade reforçada pela presença da floresta, do rio, dos animais que se confrontam e, ao mesmo tempo, encontramse, misturam-se, sincretizam-se para criar uma nova identidade no Vale. Assim, o hibridismo cultural surge com o processo de incorporação dos elementos locais, de forma propositiva, na relação entre natureza e cultura. O confronto de imagens constitui os elementos das narrativas orais que são significados e ressignificados, construindo hierarquias resultantes de valores, regras e compromissos assumidos, pois a convivência com a floresta é um dos traços que está presente no cotidiano dos indígenas, dos caboclos, dos seringueiros que vivem na Amazônia.
Mas, um dia, um determinado seringueiro saiu pra caçar, e andou, andou, andou e quando chegou num determinado canto (lugar), ele começou a ouvir uns gemidos, gemido muito alto, e ouviu que era para cima de uma terra, ele subiu aquela terra, Subiu, subiu, subiu, até que chegou lá em cima, quando ele chegou, ele avistou uma grande chapada. Aquela área, assim como eles chamavam de campestre, ele saiu no rumo daquele gemido. Chegou lá tinha uma anta, a anta estava seca (magra), doente, morrendo, quase morta mesmo, e ele olhou, olhou, ficou ali muito impressionado em ver aquilo, olhava por outros cantos, aí ele viu muitos ossos, uma ossada aqui, acolá, tinha ossada de animais silvestres, ele começou a olhar por ali, por aqueles cantos, olhando, olhando. Chegou ao tronco de uma árvore, ele achou uma coisa que trouxe uma grande preocupação pra ele, ele encontrou a arma, que naquele tempo eles usavam as espingardas americanas que tinha o fogão de dois pinos, ele encontrou a arma de um dos seringueiros que tinha sumido, escorada, então, ele viu estava toda revirada (estraçalhada) pelo cupim, ele viu a arma que estava em pé, viu o sacutelo que ele tinha levado nas costas, o sapato de borracha que ele usava, a carapuça que ele usava na cabeça também estava lá (BATISTA, 2004, trecho retirado do conto Estórias ocultas).
Nestes contos, a astúcia e a inteligência dos personagens assumem um papel preponderante, recondicionando os atributos humanos para imaginar ou criar estratégias de luta e, ao mesmo tempo, de defesa contra as contradições que venham a surgir. A astúcia e a inteligência sobrepõem em muitos casos os elementos mágicos presentes nos contos orais. Segundo Carvalho (2001), essa transposição do elemento sobrenatural pelo elemento natural impede a ocorrência de lacunas, levando as ações a se desenrolarem livremente na estória.
Se adentrarmos numa análise interpretativa mais profunda perceberemos que, além do processo de incorporação que gera o hibridismo cultural, estes contos nos evidenciam a todo momento o processo de estratificação social que se formou nos seringais do Vale do Juruá, representado por dois personagens históricos, o seringueiro e o seringalista, um predestinado à submissão do outro; dessa forma, o seringueiro, por mais que esteja em condição desfavorável, está a todo momento criando e recriando estratégias de vivência (algo que acontece com os personagens das narrativas), a partir das representações simbólicas de seu próprio tempo e espaço.
Os personagens, de certa forma, estão mergulhados no simbolismo que os rodeia, elaborando estratégias para vencer as adversidades que irão encontrar ao longo do caminho a percorrer. Se trilharmos os caminhos da análise temática, iremos descobrir que, em alguns contos orais de Guajará, o encontro de culturas faz-se presente na medida em que ocorre a junção de contos nordestinos com os elementos locais.
O narrador cria uma nova estória, cheia de elementos tradicionais e, ao mesmo tempo, com elementos locais; isso não ocasiona a perda da essência do conto oral, procura demonstrar tanto aspectos do tradicionalismo como a possibilidade dos novos elementos a serem incorporados.
Como percebemos na versão de “Pedro Malazartes e suas andanças pelo sertão”, a astúcia e a inteligência são elementos constantes. Mas o narrador, ao criar no repente algo para refutar o repente do fazendeiro, torna-se um elemento novo na versão de Guajará, não estando contida na versão de Cascudo (2004); o repente faz parte da cultura nordestina, mas torna-se um elemento que foi construído com elementos locais.
Tou feito e satisfeito, eu e a minha colher, e se fizera quem vergonha tiver”, e todas as pessoas acompanhava o que ele falava, quando na presença do Pedro Malazartes ele recebeu o troco, dizendo para ele: “Tou na casa do meu tio, que vergonha posso ter, só me levanto da mesa quando a minha barriga encher, como esse e mais outro que vier (Trecho retirado do conto Pedro Malazartes e suas andanças pelo sertão).
Ao incorporar traços locais, poderíamos sugerir que a compreensão da cultura do Vale e, conseqüentemente de Guajará, pode ter sido construída a partir desse hibridismo ou deste encontro de duas culturas que se entrelaçam sem perder a originalidade e acabam construindo algo diferente, permitindo construções simbólicas da vida e sendo interpretada a partir de vários olhares.
Assim, nas narrativas orais “O macaco Dingo-diringo”, “O almoço do nosso Senhor”, “Pestana Branca e suas aventuras pelo sertão” e “Pedro Malazartes e suas andanças pelo sertão”, há também um processo de resistência contra as contradições do seu próprio mundo, do espaço que o cerca, esse desejo de manter-se ligado ao passado surge e traz à tona implicações e, ao mesmo tempo, revela um novo desejo de superação das adversidades, de conquista, dos tantos problemas que surgem. Inconscientemente, o migrante nordestino impõe seus valores refreando possíveis mudanças que venham a ocorrer em seu mundo.
Os contos conversam entre si
Se antes, nos contos coletados por Cascudo (2004), o “sertão” funcionava como um traço da cultura nordestina, a “floresta” assume aqui as características para representar a cultura juruaense, fazendo uma interligação entre os universais postos (conquista, desejo de vitória, inteligência e astúcia) com as palavras floresta, água, seringueira, animais e seres encantados. Tais elementos condicionam as narrativas a manifestar um mesmo significado, ou seja, criam a possibilidade do diálogo entre todos os contos. A mensagem que está subjacente a esses contos é que eles demonstram um eterno confronto de valores, onde o medo, a coragem e a conquista estão intimamente ligados a questionamentos morais, em condutas de valores e processos de resistência, revelando-nos uma importância muito maior para a construção da identidade no Vale.
Partindo desse pressuposto, percebemos que o contexto do conto oral em Guajará sofreu transformações ao adaptar-se ao local. Mas o signo permanece intacto ao dar respostas aos processos de ressignificação, embora só consigamos percebê-la através das mudanças, das novas trajetórias, dos acontecimentos que se desdobram no contexto destes contos orais, como ressalta o trecho do conto:
Quando foi à noite, o Manezim pegou os dez burros e os escondeu. A mãe dele trabalhava como lavadeira e ganhava um dinheirinho; lá o Manezim pegou o dinheiro da velhinha e foi bem de madrugada para o mercado. Chegando lá, comprou umas coisinhas e veio embora pra casa. Manelão viu as coisas que o Manezim tinha comprado e disse-lhe: “Manezim, onde tu arranjou dinheiro, peste, tu não tem dinheiro, peste”. Aí, ele falou: “Tu não sabe, Manelão, tu me fez uma troca, que me deu muito prejuízo, aqueles burros que tu me deste estavam todos doentes, os bichos morreram todos, não escapou nenhum”. “Mas, Manelão, eu não te conto, olha, no mercado o que está dando muito dinheiro mesmo é couro de burro, aí eu peguei todos os couros e levei para o mercado; a venda dos couros deu um dinheirão”. A mulher do Manelão era muito ambiciosa e falou pra ele: “Manelão, meu velho, vamos matar os nossos”. O Manelão concordou com ela e mataram todos os burros que tinham e os levaram para o mercado para serem vendidos. Chegando lá dependuraram os couros em arames que se usa para as carnes. Aí eles falavam: “Olha os couros de burro!”. Foi passando o tempo e nada das pessoas comprarem. Eles repetiam: “Olha os couros de burro”, e nada das pessoas comprarem. Já estava fechando o mercado, as pessoas do mercado pegaram eles e deram uma surra nos dois, aproveitaram e foram embora (Trecho retirado do conto Manezim e Manelão).
Os signos (no sentido levistraussiano), de certa forma, condicionam a permanência de algo que nos leva a perceber a continuidade da tradição e também, por meio das mudanças ocorridas, uma descontinuidade em desvelar algo novo que antes não estava presente, pois os contos são manifestações culturais simbólicas da vivência, dos processos socioeconômicos, da historicidade de grupos humanos.
Compreendendo que essas lacunas ou aberturas presentes nos contos quebram e reinventam novas concepções de mundo vivido, refletindo a importância dessas estórias em que os valores eram aprendidos, a própria natureza, para os moradores, se tornou um elemento intocável, pois sob as pressões de um sistema de submissão os contos representavam, ou ainda representam, um refúgio, uma resistência às próprias condições do ambiente em que vivia o migrante nordestino. Além disso, podemos dizer que fazem parte de um processo de construção de uma identidade que se deu a partir de um trajeto de luta e adaptação, como relata um dos entrevistados:
A importância dessas estórias era enorme, porque não tínhamos meios de comunicação, pois a gente só se preocupava com as necessidades básicas da vida. Lá a gente não sabia de notícia nem boa nem ruim, então, a gente vivia isolado de tudo, mesmo se acontecesse algo de nível nacional não tinha como saber, só sabíamos das coisas que aconteciam no seringal. Naquele tempo o seringalista era a lei, era o padre, o professor, era tudo, estávamos condicionados aos deveres e às ordens dadas pelo dono do seringal. Nesse momento, os contos apareciam em nossas vidas como formas de distração, representavam também um valor moral que era passado para os filhos (Ibianez Batista, morador de Guajará).
Conforme Loureiro (1995), o homem amazônico compreende sua realidade de uma forma empírica e devaneia diante de sua beleza. É, ao mesmo tempo, sensível a ela, podendo senti-la, compreendêla, e recria o seu mundo diante de sua presença. Nas narrativas orais há uma preocupação em demonstrar a esteticidade da floresta, a convivência entre homem e natureza, além disso, o homem amazônico cria uma realidade transcendental da natureza. Isso torna-se uma busca de significações e ressignificações que recondiciona o reconhecimento de um aspecto sobrenatural, que é algo presente nos contos orais seja para explicar sua relação com a natureza, seja para educar e impor certos valores.
Podemos dizer que existe um “homem simbólico” dentro das narrativas orais, que observa, analisa, conhece, destaca, valoriza, sente, humaniza, raciocina, estetiza a sua relação com a paisagem, vive com a natureza uma relação de complementaridade para descobrir seus mistérios. Percebe-se que isso é fruto de uma configuração cultural transplantada e adaptada que está em constante processo de ressignificação dos valores trazidos, dos símbolos e da sua própria visão de mundo, perceptível a partir da realidade que o rodeia.
Se aprofundarmos a análise, perceberemos que se criou algo novo, fruto do imaginário triunfante e não da razão objetivadora, revelando a possibilidade de novos horizontes desconhecidos pelo imaginário amazônico, além de poder afirmar-se que o conhecimento racional não é a única forma de reger as relações do homem com o seu mundo. Segundo Loureiro (1995), sua enorme capacidade de conhecê-lo se vale da imaginação, da sensibilidade, do impulso do imaginário, presente no seguinte trecho do conto:
[...] ele começou a ouvir uns gemidos, gemido muito alto, e ouviu que era pra cima de uma terra. Ele subiu aquela terra, subiu, subiu, subiu, até que chegou lá em cima; quando ele chegou, ele avistou uma grande chapada. Naquela área, que eles chamavam de campestre, ele saiu no rumo daquele gemido. Chegou lá tinha uma anta, a anta estava seca (magra), doente, morrendo, quase morta mesmo, e ele olhou, olhou, ficou ali muito impressionado em ver aquilo, olhava por outros cantos, aí ele viu muitos ossos, uma ossada aqui, acolá, tinha ossada de animais silvestres, ele começou a olhar por ali, por aqueles cantos, olhando, olhando. Chegou ao tronco de uma árvore, ele achou uma coisa que trouxe uma grande preocupação pra ele, ele encontrou a arma, que naquele tempo eles usavam as espingardas americanas que tinha o fogão de dois pinos, ele encontrou a arma de um dos seringueiros que tinha sumido, escorada. Então, ele viu que estava toda revirada (estraçalhada) pelo cupim, ele viu a arma que estava em pé, viu o sacutelo que ele tinha levado nas costas, o sapato de borracha que ele usava, a carapuça que ele usava na cabeça também estava lá (BATISTA, 2004, trecho retirado do conto Estórias ocultas).
Enfim, os contos orais conversam entre si criando laços de sociabilidade. Este aspecto revela a importância do terreiro como centro imaginário da comunidade, o idoso como alguém responsável pela manifestação da força criativa e aquele que, também, naquele ambiente hostil, influenciou o imaginário no Vale.
Conclusões
O isolamento geográfico e a precariedade dos meios de comunicação propiciaram ao Vale do Juruá a conservação das produções orais por um longo tempo. Essas manifestações culturais, com os folguedos, representavam naquele momento a integração do homem com a natureza revivendo seu passado, seu presente e seus sonhos.
A pesquisa realizada por Carvalho (2005) sobre a presença do conto no Vale do Juruá mostrou que o conto popular oral é uma das maiores expressões da localidade, sendo identificados por temas moralizantes, conseguindo transmitir ensinamentos morais e revelando que o espírito humano é conduzido por leis universais.
É possível identificar muitos traços que foram transplantados da cultura nordestina. As manifestações folclóricas que representavam a luta e a adaptação do migrante sempre estiveram presentes na memória cultural do nordestino ao procurar uma proximidade com a terra natal. A tradição oral e os folguedos representavam uma maneira de resistência da cultura nordestina e, ao mesmo tempo, a construção de uma nova identidade cultural. Com base em Laraia (2004) o modo de ver e sentir o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais, são assim produtos da herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura.
Uma das características dos contos orais de Guajará é a adaptação lingüística e a força imagética aproximando o conto da realidade regional e permitindo uma construção que preserva muitos dos elementos originais ligados às narrativas universais e às tradicionais trazidas pelo imigrante. Nesse sentido, a influência do elemento nativo dá-se mais pela adaptação ao meio que pela incorporação de elementos da cultura amazônica como caboclos e seres encantados próprios do mundo fantástico da Amazônia.
Segundo Schmeider (citado por LARAIA, 2004, p. 63), a cultura é “um sistema de símbolos e significados, que compreende categorias ou unidades e regras sobre relações e modos de comportamentos’’. Tanto a simbologia como o seu significado estão representadas nos contos orais e constituem o imaginário do conto a partir de uma realização simbólica de um desejo, permitindo ao narrador envolver o ouvinte, o herói e também a si mesmo. Sendo o homem esse ser que conta estória, ao contar povoa o seu imaginário e o imaginário do povo viabilizando as realizações simbólicas de nossos desejos, criando e recriando novas imagens cotidianas que serão passadas para as próximas gerações responsáveis pela dinâmica da cultura, seja erudita ou popular. Por isso, compreender uma manifestação cultural é estudar um código de símbolos e significados partilhados pelos membros da mesma cultura.
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Endereço para correspondência
E-mail:Cassyjones_araujo@hotmail.com
E-mail: cezar2julio@yahoo. com.br
Recebido em 28/06/2006
Aceito em 25/09/2006
* O presente artigo é parte do livro Simbolismo e Imaginário: um olhar sobre a cultura no Vale do Juruá – inédito
** É graduado em Letras, pós- graduado em Línguagem, literatura & Identidade (UFAC) e Gestão Educacional (IVE- MT), professor da rede estadual e municipal (GUAJARÁ) de ensino no Amazonas, cood. dos cursos de pós- graduação FARO/ Cruzeiro do Sul-AC e autor do livro O homem Falando no Escuro (Editora Valer - Manaus), Kamamducaya: O apanhador de Sonhos (no prelo EDUSC)
*** É estudante de Ciências Sociais (ICHL – UFAM), bolsista/ pesquisador de Iniciação Cientifica – CNPq, pesquisando atualmente sobre as influências da cultura nordestina sobre o conto oral no Vale do Juruá.Doutora pela FFLCH/USP