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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.33 São Paulo dez. 2011

 

O aprender circense como experiência de ser

 

Learning the circus art as an experience of being

 

El aprender circense como experiencia de ser

 

 

Eliane Regina PereiraI; Kátia MaheirieII

IDoutora em Psicologia pela UFSC. pereira.elianeregina@gmail.com
IIProfessora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe, a partir de uma perspectiva histórico-cultural, compreender as relações entre ensinar-aprender a arte circense e sua mediação na constituição do sujeito. Para a realização da pesquisa, foram contatados os educadores de um Circo Escola e doze aprendizes. Por meio de entrevistas e observações das aulas no picadeiro, alcançamos informações a respeito de como o aprendiz define a arte circense e a relação que estabelece com o circo e com os educadores. Os resultados apontam uma relação de ensinar-aprender que se efetiva no corpo, mas que constitui novos processos cognitivos por meio dela. Assim, o corpo aprendiz é um corpo afetado pelo encontro com o outro e tem sua potência de agir aumentada, sua possibilidade de se fazer um sujeito que aprende, a partir de sua imersão na arte circense.

Palavras-chave: arte circense; relações de ensinar-aprender; potência de ação.


ABSTRACT

This paper presents, in line with a cultural-historical approach, an understanding of the teaching and learning process of the circus art and its mediation in the constitution of the subject. It was spoken to trainers of a circus school and twelve apprentices for the development of the research. By using interviews and observing the performers in the circus ring, it was possible to produce information on the manner in which the learner define the circus art and the relationship established between them to the circus and to the circus teachers. The results pointed out that teaching and learning process is possible through the body, but it has constituted new cognitive process in this process. Therefore, the apprentice body is a body affected by the meeting to the others and has increased their potency for action, their possibility of being a subject who learns, and it has been made possible by their immersion in the circus art.

Keywords: circus art; teaching-learning; potency of action.


RESUMEN

Este artículo se propone, a partir de una perspectiva histórico-cultural, compreender las relaciones de enseñanza-aprendizado en el arte circense y su mediación en la constitución de los sujetos. Para realizar este trabajo, entramos en contacto con educadores de un Circo Escuela y con dose aprendizes. Por medio de entrevistas y observaciones da clases en loco, alcanzamos informaciones a respecto de como el aprendiz define el arte circense y la relación que establece con el circo y los educadores. Los resultados apuntan a una relación de enseñanza-aprendizado que se efectiva en el cuerpo, y constituye nuevos procesos cognitivos, atravéz de ella. Así, el cuerpo aprendiz, es un cuerpo afectado por el encuentro con el otro y tiene aumentada su potencia de acción, su posibilidad de contituirse como sujeto que aprende, a partir de su inmerción al arte circense.

Palabras clave: arte circense; relación de enseñanza-aprendizado; potencial de acción.


 

 

Introdução

Este trabalho apresenta um recorte da pesquisa realizada em uma escola de circo, cujas reflexões versam sobre as relações de ensinar e aprender descrevendo, necessariamente, as relações educador-aprendiz. A discussão aqui proposta parte de uma perspectiva histórico-cultural, a qual compreende que o sujeito não tem uma subjetividade determinada a priori, mas que se faz num processo sempre inacabado, inconcluso, resultado do modo como interage socialmente e se apropria do contexto.

Nesta perspectiva, compreendemos que o aprender é fundamental à constituição do sujeito, uma vez que promove e aponta os rumos da constituição. Compreendemos que o sujeito aprende desde o seu nascimento, de forma que, aprendendo, ele se desenvolve e se constitui. Mas, também, se desenvolvendo ele aprende. Ou seja, a constituição resulta do movimento dialético que se concretiza nas relações entre ensinar e aprender.

Na medida em que aprende, o sujeito amplia suas possibilidades de ser e, assim, desenvolve e amplia, ao mesmo tempo, suas possibilidades no processo de constituição de si.

Na perspectiva histórico-cultural, cujo referencial é o materialismo histórico e dialético, o conhecer humano é um tipo de atividade que se assemelha, em vários aspectos, à atividade do trabalho, pois coloca um sujeito frente a um objeto cuja natureza, de caráter semiótico, ele deve desvendar, conferindo-lhe uma nova forma de existência: uma existência "para si" (ou seja, para o sujeito). (Pino, 2004, p. 441)

O postulado básico da psicologia histórico-cultural é que a constituição do sujeito se dá na relação. Ou seja, a constituição do plano intrapsicológico - a dimensão singular do sujeito - se dá no plano interpsicológico, primeiramente. Portanto, "ser quem se é" depende dos caminhos percorridos pelo sujeito, uma vez que o sujeito está imerso num mundo cultural, e sua especificidade é definida na sua experiência de aprender. O aprender indica os caminhos da constituição do sujeito, caminhos trilhados na relação eu-outro. Segundo escreve Smolka (1993), a aquisição da alfabetização, que aqui generalizamos para aprender, se dá numa sucessão de momentos discursivos, de interlocução, de interação. O conteúdo que vai ser aprendido está fora do sujeito, está posto na realidade e, em função de sua necessidade, o sujeito se apropria dele. Mas o aprender, como explica Pino (2004), se dá numa relação entre o sujeito que aprende, a coisa a ser aprendida e um elemento de mediação, que o autor definiu como sendo a significação.

Mas a significação, antes de ser significação para si, o é para o Outro (os outros sujeitos), o que quer dizer que ela tem sempre como portador o Outro, não sendo acessível diretamente. (Pino, 2004, p. 442)

Investigar o aprender como experiência única e singular exige adentrar na significação dessa experiência para o sujeito aprendiz. Exige conhecer a relação entre estes sujeitos, educador e aprendiz, em que tempo eles se encontram, quem é o sujeito que ensina, como ensina, o que ensina, quem é o sujeito que aprende, o que deseja aprender e o que projeta com a aprendizagem, enfim, em que contexto o aprender se efetiva.

Para dar conta das reflexões sobre as relações de ensinar e aprender a arte circense, realizamos uma pesquisa com educadores e aprendizes de um Circo Escola do município de Penha/SC.

A coleta das informações baseou-se inicialmente em videogravação das aulas no picadeiro da escola e de algumas apresentações por eles realizadas. Foram entrevistados os quatro professores do Circo Escola, a fim de compreender as relações entre ensinar-aprender do ponto de vista de educador, destacando: como ele percebe seu aprendiz; como e o que avalia no processo de ensinar e aprender. Além disso, foram produzidas informações acerca da história de vida do educador-artista, a fim de identificar aspectos da sua formação que se fazem presentes no ensinar.

Terminadas as entrevistas com os educadores, os aprendizes foram convidados a participar de uma entrevista coletiva sendo organizados cinco grupos de dez aprendizes, cuja conversa versou sobre o Circo Escola: como iniciaram as atividades no Circo Escola; quais as motivações para permanência; quais as atividades circenses que mais gostavam de realizar e como realizaram a escolha pelas mesmas; que outras experiências tiveram com "arte" além do Circo Escola e, finalmente, como definiam o circo. Após as entrevistas, 12 sujeitos foram selecionados para as entrevistas individuais, tendo como critério um "envolvimento afetivo com a atividade" que foi para nós destacado com a resposta à pergunta: "como define o circo?". Esses sujeitos foram selecionados a partir de suas respostas, as quais se objetivavam como: "o circo é minha vida"; "o circo é minha segunda família"; "o circo é tudo pra mim". Todas as entrevistas foram videogravadas visando à fidedignidade na transcrição e produção das informações.

O recorte aqui apresentado destaca as falas de oito aprendizes, Ana1, Hugo, Penélope, Samantha, Leopoldo, Elena, Berenice e Bianco, acerca de como compreendem seu processo de aprender a ser circense e como definem a relação que estabelecem com os educadores da escola de circo.

 

Ensinar-aprender a arte circense

Geraldi (2008) explica que para aprender é preciso que o sujeito retorne ao seu repertório ou suas contrapalavras, de modo que o sujeito aprende a partir do que já conhece, de forma que o novo vem para deslocar, rearranjar todos os conhecimentos, modificar toda a estrutura anteriormente organizada. Aprender resulta da apropriação dos conhecimentos que o sujeito recombina ativamente, criando seus próprios conhecimentos, projetos, significações. Toda compreensão, portanto, resulta de uma aprendizagem, emerge das contrapalavras, toda aprendizagem se efetiva na história do sujeito.

É preciso olhar a aprendizagem como um momento à frente, para além daquilo que já sabemos, como uma possibilidade contínua e constante do "vir aprender", do conhecer, do apropriar-se de um conhecimento novo. (Santos, 2000, p. 64)

O aprender não é um comportamento inato ou natural, mas historicamente determinado, sendo entendido como "apropriação" da cultura, "como domínio dos modos culturais de agir, pensar, de se relacionar com outros, consigo mesmo" (Smolka, 2000, p. 27) devendo ser compreendida em sua historicidade. Em seu texto "Experiência e discurso como lugares de memória", Smolka (2006) pergunta "como o sujeito sabe"? E responde que ele sabe a partir da experiência, a qual é entendida, segundo a autora, como

resultante daquilo que impacta e é compreendido [...] significado, pela pessoa. (...) Falar de experiência é falar de corpo/sujeito afetado pelo outro/signo. É falar da via impregnada de sentido. Não existe experiência sem significação. (...) Na raiz da experiência, o signo, aquilo que se produz na relação com o outro, que afeta os participantes na relação, que redimensiona e transforma a atividade humana, que vai possibilitando a produção de sentidos. (Smolka, 2006, p. 125)

Autores como Larrosa (2002) e Bakhtin (2003) esclarecem a diferença entre experiência e vivência. Vivência é aquilo que o sujeito vive na cotidianidade, mas que não o marca, não o transforma e que, consequentemente, não é possível de ser narrado. A experiência, ao contrário, é a vivência que passa e toca o sujeito, deixa marcas, transforma.

Larrosa (2002) explica que se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido daquilo que nos acontece, trata-se de um saber ligado à existência de um individuo particular. O autor explica que esse saber é um saber particular, subjetivo e, por esse motivo, um acontecimento único é experienciado de formas diferentes por duas pessoas. Se a experiência é marca, é marca no corpo, é "experiência de ser".

O corpo vivo é mais do que a capacidade de se manter em pé e em movimento, é o corpo/mente com potência de ação para perseverar na autonomia e lutar contra tudo que nega a liberdade e a felicidade de cada um e do coletivo. (Sawaia, 2003, p. 56)

O corpo expressa as marcas desta experiência, ao mesmo tempo que é condição para a experiência. O corpo é emoção, é símbolo, é memória. Dizer que o corpo é memória, é afirmar que ele condensa palavras e gestos, práticas e sentidos, as marcas da cultura e da história (Smolka, 2006).

O corpo é instrumento do sujeito no mundo, é com o corpo que o sujeito experimenta as relações com o mundo, sente e significa este mundo (Sartre, 2007). Ao mesmo tempo, nas relações que o sujeito estabelece, o corpo é visto pelo outro e, ao ser visto, é significado pelo outro e (re)significado pelo próprio sujeito que, então, (re)define-se enquanto tal. O corpo se constitui como afetado pelos encontros e desencontros com outros corpos.

Duarte Jr. (2010) chama nossa atenção para o que e como se aprende que, segundo ele, antes do conteúdo aprendido ser matéria inteligível, é apropriado pelo corpo como objeto sensível. É o corpo, portanto, que sente ou percebe as cores, as texturas, os sons, os odores e depois converte em matéria de aprendizagem outra. Deste modo, o conhecer exige uma abstração, enquanto o saber exige ser incorporado, "significa precisamente trazer ao corpo, fundir-se nele: o saber constitui parte integrante do corpo de quem o possui, torna-se uma qualidade sua" (p. 14). O conhecer é o inteligível capaz de ser articulado abstratamente, enquanto o saber está detido no corpo, nos constitui e nos move.

O autor descreve o que ele chama de sabedoria do corpo, uma sabedoria que muitas vezes é dita como sentimento, intuição ou treino corporal, mas que determina muito das nossas ações diante do mundo.

Emprestar sentido - ao mundo - depende, sobretudo, de se estar atento ao sentido - àquilo que nosso corpo captou e interpretou no seu modo carnal. O sentir - vale dizer, o sentimento - manifesta-se, pois, como o solo de onde brotam as diversas ramificações da existência humana, existência que quer dizer, primordialmente, "ser com significação". (Duarte Jr., 2010, p. 130)

Compreendemos assim que o aprender circense se faz experiência, marca os sujeitos aprendizes e os transforma como sujeitos, modificando a maneira como compreendem e agem no mundo, conforme as falas aqui destacadas.

A minha vida mudou completamente. (...) eu me sentia sozinha mesmo. Eu tinha minhas amigas, mas eu não sentia aquilo tudo. Antes, eu era mais trancada, não vou fazer isso, não dançava na escola nada, agora não, agora eu quero fazer tudo, vamos fazer tudo, vamos fazer tudo! Não quero nem saber das pessoas, quer rir, o problema é deles, eu vou fazer e pronto. Assim mudou minha vida completamente, gosto daqui e vou ficar. (Elena)

Elena nos fala de escolhas. Das escolhas que realizava antes da escola de circo e das que realiza no aprender circense, falando de si, do sujeito que foi e não pode negar, mas, também, do que é e do que vislumbra ser. Sartre (1979) aponta para a importância do projeto como determinante do "ser quem se é". Para o autor, o sujeito supera pelo projeto a condição que lhe é dada transcendendo-a para objetivar-se pelo trabalho, ação ou gesto. "É superando o dado em direção ao campo dos possíveis e realizando uma possibilidade entre todas que o indivíduo se objetiva (...)" (p. 80). São as escolhas, portanto, realizadas dentro das condições possíveis, que constituem Elena.

Sartre (2007) escreve que o corpo é condição para a subjetividade. O autor explica que o somos corpo como "ser-para-si", ou seja, corpo como instrumento, corpo que se emociona na relação com o mundo, corpo que capta o mundo, corpo que se afeta e se transforma dando condições do sujeito ser. Mas, o autor explica ainda que somos "corpo-para-outro", um corpo que se expressa para o outro, para dar conta de ser captado pelo olhar do outro.

Quando Elena fala de si e de suas escolhas, fala do corpo, do corpo "ser-para-si" que se apresentava "trancado", tímido, e que agora se permite ser um corpo que dança. Mas fala também do corpo-para-outro, um corpo que ao dançar é visto pelo outro e para continuar dançando precisa se deixar marcar diferentemente. Elena revela diferentes formas de movimentação e experimentação do corpo e, junto com a visibilidade do corpo, alcança uma estética do existir. Elena fala de seu corpo vivo, um sujeito - corpo e consciência - que aprende a ser circense e se modifica como corpo e consciência, um corpo que deseja experiencia quando diz "vamos fazer tudo".

O mesmo movimento acontece com Leopoldo:

Antes de eu entrar aqui, como no começo que eu era obeso, não tinha nada, me viam como mais um, mais um, agora é o Leopoldo, que tem mais conhecimento, se comunica melhor. (...) o Leopoldo é o garoto do instituto que conhece todo mundo, que é legal com todo mundo e que não, como posso dizer, não critica ninguém, não tem rixa com ninguém, é amigo de todo mundo, não incomoda ninguém.

O sujeito se constitui no presente numa relação dialética entre as experiências passadas e o projeto. É exatamente isto que Leopoldo relata em sua fala, quando compreende que o sujeito que foi é diferente do sujeito que é, do garoto "que não tinha nada" ao "garoto do instituto", Leopoldo faz-se sujeito. Leopoldo fala do "garoto obeso que não tinha nada" e de quem é hoje. Orgulha-se de si e orgulha-se do corpo que é. É marcado e transforma-se como sujeito.

O aprender circense vai muito além do saber fazer, do aprender a técnica, pois constitui sujeitos, os marca. Essa marca é narrável como nos diz Bakhtin, o sujeito experiencia o acontecimento e tem a possibilidade de descrevê-lo, de compartilhar. O circo é experiência, é mediador de transformações.

Compreendemos que o sujeito é eterna temporalização, quer dizer, se constitui no presente, mas se define pela relação entre o passado e o futuro. O tempo passado é sempre tempo futuro, porque, quando no presente eu revisito uma experiência, eu lhe dou outro sentido. O futuro é abertura de possibilidades, se apresenta como projeto em movimentos de totalização aberta. Somos determinados pela nossa história passada, mas atuamos em função do futuro, o futuro é o que nos ilumina, de forma que toda ação que experienciamos é uma ação que busca realizar a ação seguinte. Toda ação tem uma "memória de futuro2", mas que pode ser a curto ou longo prazo.

Quando pensamos no circo, sabemos que o aprendiz circense tem uma história, e, portanto, quando experiencia o aprender circense o faz a partir de sua história. Temos em curto prazo a ação da construção da personagem que, em longo prazo, se faz mediação na construção do artista que o aprendiz sonha ser, na composição da sua vida.

Isto pode ser identificado na fala de Elena:

imaginava que seria uma brincadeira, assim, vir pra cá e ficar pulando, ficar brincando. Depois que eu conheci é totalmente diferente, se tu queres tu tem que correr atrás, tem que tentar aprender, tem que fazer as coisas, tipo assim, não pelas pessoas é por ti mesmo, eu sou capaz de fazer isso, entendeu? (...) quando a gente consegue subir no tecido, oh! eu consegui, tu fica com aquela alegria o dia inteiro, (...) eu penso em ficar aqui no instituto pra podermelhorar a minha vida, meu físico, mental porque é uma coisa que a gente fica alegre, dá pensamento positivo e daí vou tentar fazer um vestibular, uma coisa fora, se conseguir um futuro aqui melhor ainda. (Elena)

Na fala a aprendiz fala de si, das relações do cotidiano, das aprendizagens que favorecem sua condição corporal, mas, principalmente, das possibilidades que vislumbra. O devir não é uma meta ou um projeto de chegada, mas um projeto de ser. O aprender circense transcende a escola de circo possibilitando que o sujeito passe a projetar-se em instâncias outras, imaginando-se artista, mas, principalmente, imaginando-se um sujeito outro. Um sujeito, como diz Elena, capaz de "melhorar de vida, passar no vestibular", mas também como dizem Samantha e Bianco, nas falas destacadas a seguir, um sujeito que aprende a "ter garra, não desistir, ver o lado bom da vida".

também aprendi a ver o lado positivo das coisas, não o lado negativo. A gente pensa, a gente vai fazer aula ali, a gente sempre ta pensando meu Deus se eu fizer isso aqui, acho que vou me machucar, mas vou ver o lado positivo, se eu fizer isso aqui e conseguir eu vou impressionar o... (nome do Educador). (...) meu, a disciplina mudou muito. Nosso comportamento, como vou dizer assim, de sempre estar sentado corretamente, mesmo quando uma cadeira não tem apoio, estar sempre em silêncio, meu, aqui eu aprendi a ouvir as pessoas, eu aprendi a ouvir, porque às vezes a ... (nome da Educadora) está falando, daí vem uma pessoa e corta, ela fica muito brava, então em casa eu aprendi a fazer isso, às vezes a mãe tá falando e eu espero ela acabar de falar, e depois assim eu vou falar, dizer o que eu queria falar pra ela. Acho que mudou muito a disciplina e também o comportamento físico. (Samantha)

eu aprendi a ter mais garra, que se eu não consigo uma coisa eu aprendi a não desistir na primeira vez como fazia antes. Eu aprendi a persistir e continuar tentando até conseguir, e conseguindo aprendi a me aperfeiçoar e fazer melhor e isso vou levar pra minha vida, pra quando tiver que fazer um trabalho, eu vou poder trabalhar e tentar me esforçar, fazer melhor, e se não conseguir vou tentar até conseguir. (Bianco)

Não existe um sujeito sem projeto, diz Sartre (1979). Em cada ação do sujeito no mundo, há um sentido que a transcende e que se explica ou se justifica em seu projeto de ser. O aprender circense foi significado por Bianco ou Samantha a partir de seu projeto. Quando dizem "eu vou impressionar ou vou me aperfeiçoar", esses sujeitos falam de si, de um aprender que os constitui.

Aprender é um processo ativo, contínuo e participativo, e compreende situações significativas, diversificadas e planejadas (CENPEC, 2003). Significativas porque o novo se relaciona com o universo de conhecimentos existentes, diversificadas porque propiciam a exploração, a investigação e a vivência de atividades com recursos variados; planejadas porque possuem objetivos de modo a nortear os procedimentos e as estratégias.

No circo fica evidenciado que o processo é ativo, contínuo e participativo, mas é principalmente significativo, diversificado e planejado.

 

Ser educador e artista

Durante as entrevistas com os aprendizes da escola de circo, as falas sobre os educadores se alternavam. Ora descreviam a admiração pela carreira, ou seja, pelos artistas, ora descreviam a relação de afeto entre educadores e aprendizes e a admiração no processo de ensinar.

Vigotski (2009, p. 25) explica que nossa imaginação não funciona livremente, mas que é orientada pela experiência de outros, atuando como se fosse por ele guiada, isso porque "ela transforma-se em meio de ampliação da experiência de um indivíduo porque, tendo por base a narração ou descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal". Há concretamente a possibilidade de ampliação da existência a partir da narrativa de um outro, como pode ser identificado nas falas de Ana e Hugo.

(...) eles tiveram uma grande carreira e acho que eles tem muito que mostrar pra gente... (Ana)

(...) eles fazem circo também, eles já sabem melhor, como é pra ensinar. São ótimos professores, muito educados e sabem como lidar, tanto com pequeno quanto grande. Sabem quanto cada um pode chegar, se o pequenininho faz uma cambalhota e começa a chorar, ele vai lá, fala uma coisa para o menino, ele vai lá e consegue, não sei o que ele faz, é uma coisa! (Hugo)

Os aprendizes revelam a importância de os educadores serem artistas circenses, de contarem histórias a partir de suas experiências, de descreverem lugares que já conheceram. A admiração de Ana e Hugo vai além do saber ensinar, mas ambos destacam o que os educadores sabem contar, contagiar, compartilhar. Hugo enfatiza a diferença no modo como os educadores se relacionam com os aprendizes, suas possibilidades e limitações. A postura dos educadores é identificada como facilitadora, auxiliando a superar as condições em que estão inseridas e impulsionando o aprendiz a ir além de si mesmo.

"A pessoa não se restringe ao círculo e a limites estreitos de sua própria experiência, mas pode aventurar-se para além deles, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência histórica ou social alheia" (Vigotski, 2009, p. 25). Quando escreve isto, Vigotski se refere à importância da imaginação para toda atividade humana, estabelecendo uma relação de dependência entre experiência e imaginação. No caso do circo, os aprendizes destacam a importância de os educadores não serem brasileiros, falando de suas experiências na Rússia, como motivadores de sua aprendizagem. Destacam as experiências de vida, as histórias que contam, os circos onde trabalharam, como experiências do outro, conferindo-lhes novos sentidos.

São educadores do circo, mas principalmente artistas e, por isso, admirados como pessoas, indo muito além do ensinar.

O professor do futuro não será um instrutor, mas um engenheiro, um marinheiro, um militante político, um ator, um operário, um jornalista, um cientista, um juiz, um médico, etc. Isso não implica, porém, que tenha que ser um diletante em pedagogia. Na própria natureza do processo educativo, em sua essência psicológica, está implícita a exigência de um contato e de uma interação com a vida que sejam o mais estreito possível.

Em suma, só a vida educa e, quanto mais amplamente a vida penetrar na escola, tanto mais forte e dinâmico será o processo educativo. O maior pecado da escola foi se fechar e se isolar da vida... (Vigotski, 2001, pp. 300-301)

Penélope descreve seus educadores a partir do que compreende aprender com eles.

O... (nome do Educador) ... não tenho palavras pra dizer como ele é. Ele sempre fala que a gente não precisa fazer as coisas por obrigação, a gente tem que fazer porque a gente gosta. Ele é uma pessoa simpática... porque ele chega e já vai conversando com os aprendizes, ... ele fala sobre a aula, ele conversa, diz que poderia montar um número pra gente, e que a gente poderia fazer isso ou aquilo... Eu defino a... (nome da Educadora) assim, como guerreira, porque ela sempre quer impor aos outros mais e mais. Ela quer sempre estar com o corpo mais bonito... e pra idade dela, meu Deus, eu acho ela muito... Eles estavam ensaiando o rola-rola, uma dança que precisa rebolar, daí a menina que entrou não sabia, daí de repente ela colocou a saia e começou a rebolar numa elegância, meu Deus, que que é isso... (Penélope)

Penélope fala de desejo, de vontade de aprender, mas destaca também a importância de ter garra, de insistir, de ser melhor. Para ela, a "simpatia" ou a capacidade artística dos educadores inserem em seu contexto de significados "a volição", e ela compreende que é necessário "gostar", desejar, para que o processo de ensinar e aprender sejam eficientes. Mas descreve também o quanto se impressiona com a beleza da educadora.

Penélope, ao descrever a educadora, fala do sentimento da beleza, do quanto se sente motivada, do quanto a admiração da beleza é mediadora do sentir e perceber o outro e, com isto, do sentir e perceber a si mesma, permitindo-se estimulada. Lucinda e Alves (2008, p. 61) escrevem que "os seres humanos são os únicos seres que se alimentam com aquilo que não existe. E a poesia é aquilo que não existe", dizem eles, e acrescentamos, a beleza é aquilo que não existe, a arte é aquilo que não existe, e que alimenta Penélope, ou ainda Samantha, como na fala a seguir.

(...) o educador é quem eu mais gosto de falar, porque ele é uma pessoa que sabe ele tem a lábia, ele é uma pessoa muito sofisticada, sabe? É uma pessoa ao mesmo tempo rígida e ao mesmo tempo extrovertida, uma pessoa ao mesmo tempo brava, mas ao mesmo tempo alegre. Então, o educador como é que vou dizer, é uma pessoa mista, ele sabe falar com todo mundo, ele sabe fazer a gente se enraivar mesmo, pra gente fazer aquilo lá. Ele é uma pessoa maravilhosa... A educadora eu diria que ela é uma pessoa muito atenciosa com seus alunos, ela trata seus alunos como se fossem filhos dela, porque assim, nos exercícios ela dá muita, muita atenção pros aprendizes... (Samantha)

O discurso dos aprendizes indica o processo dialético presente na relação educador e aprendiz. Samantha fala de um educador que é "rígido e extrovertido, bravo e alegre".

Nesta relação, cujo vínculo é mediado pela afetividade, o eu e o outro se encontram de forma que a produção resultante dessa relação parece inusitada e, por isso, chamada de amizade. Sartre (2006) escreve que estar emocionado significa construir "um mundo mágico que utiliza nosso corpo como meio de encantamento" (p. 73), e é neste mundo mágico que a ação de ensinar e aprender na escola de circo se unem "numa síntese indissolúvel" (p. 57).

As relações descritas como amizade, bastam-se pela possibilidade de encontrar as pessoas em outros contextos e de neles se estabelecer, também, algum outro tipo de relação, além da possibilidade de ver e ser visto pelo outro, e o papel exercido naquele primeiro contexto. A fala de Samantha revela a importância dos "bons encontros" no processo de ensinar e aprender; por isso, destaca uma relação afetivo-volitiva que impulsiona, que mantém os aprendizes no circo, que os constitui.

Durante as observações identificamos em um dos educadores uma ação frequente, que era a de reclamar e mover a cabeça simultaneamente, como se os exercícios estivessem sempre errados. O aprendiz executava a ação e ele gesticulava, falava alto e reclamava muito, tudo ao mesmo tempo. Por esse motivo, questionamos os aprendizes, sobre como se sentiam em relação a isso, como compreendiam essas críticas, tentando entender como isto os mobilizava. E as falas revelam a motivação, nascida nas críticas do educador.

(...) eu me sinto assim ó, eu vou fazer de novo... Vou fazer de novo até eu conseguir... Vou fazer de novo, não quero nem saber se não está certo, vou fazer de novo. (Elena)

É sobre ser afetada que Elena fala, pois quando diz "vou fazer de novo", ela se apropria da afetividade que se torna mediadora de uma reflexão, possibilitando que transcenda as condições existentes, em função de uma força individual, uma "potência de ação".

Espinosa (1983) nos explica que "ser capaz de existir é potência" (p. 98), isto porque o autor entende que, em existindo, o sujeito dispõe seu corpo ao contato com outros corpos e, neste contato, "o corpo humano é afetado pelos corpos exteriores de um grande número de maneiras" (p. 211). O autor explica ainda que nestes afetos:

a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as ideias dessas afecções. (...). O corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída; e, ainda, por outras que não aumentam nem diminuem a sua potência de agir. (...). As afecções, com efeito, são modos pelos quais as partes do corpo humano e, consequentemente, o corpo humano, na sua totalidade, são afetados". (Espinosa, 1983, p. 184)

Espinosa (1983) explica que o encontro com o outro pode resultar numa paixão triste que diminui a potência do corpo, pois retira dele as condições reagir, são encontros perversos que enfraquecem o sujeito; ou, podem resultar numa paixão alegre, que aumenta a potência do corpo, imprimindo nele a liberdade de ação, ativando-o em direção ao devir.

É com base em Espinosa que Sawaia (2009) explica que a vontade e a afetividade são dimensões fundamentais para a concretude da ação humana. Segundo a autora, os afetos aumentam ou deprimem a capacidade de agir dos sujeitos, e ela esclarece que negar ou menosprezar o afeto na ação educativa é inibir a potência de ação.

A afetividade é mediadora dos acontecimentos objetivos; portanto, é para aquele educador e para si mesma que Elena decide fazer de novo. O mesmo acontece com Berenice e Ana, como pode ser identificado em suas falas.

(...) eles são exigentes do ponto deles. São exigentes pra ajudar a gente, pra você fazer melhor... é só pra te incentivar, porque se ele falar que você está bem, você não vai mais querer fazer entendeu? Pra eles é assim, o esforço que eles fazem é pra gente mesmo entendeu? Eles ajudam mais a gente, do que eles mesmos. É para o nosso bem. Eles são bem atenciosos em tudo. (Berenice)

(...) ah, eu tento fazer o meu melhor. Se eles tão me criticando é porque tem uma coisa errada, eles não vão me criticar por criticar, eu vou fazer o meu melhor. Se eu errar, beleza, eu vou chegar e vou falar, ó ... (nome dos Educadores), eu não consegui, isso não é pra mim, eu espero que outra pessoa tente e consiga. A gente só conversa assim, é conversando que se entende. (Ana)

A afetividade determina o sentido da crítica do educador, que é significada por Berenice e Ana como mobilizadora do aprender mais, aprender melhor. Não é a afetividade que justifica a ação, mas durante ou após a vivência em si o sujeito inventa para ela um significado, com base em sua história contextual e no projeto vislumbrado, mediados por todo contexto coletivo em que vive (Sartre, 1978).

O mesmo significado pode ser identificado nas falas de Samantha e Hugo.

(...) O (nome do Educador), ele sabe fazer a gente se enraivar... ele quer que a gente prove pra ele, prove pra pessoa dele, que a gente tem capacidade, depois que a gente faz isso, parece uma maravilha né, não incomoda mais a gente. (Samantha)

Todas as críticas são para aprender... você precisa organizar o corpo, se ficar mole, todo molenga, pode cair de cabeça e morrer ali... se tá todo mole, todo curvado, primeiro aprende a botar o corpo no lugar depois vai aprender a pular, que é o principal... e assim vai indo. (Hugo)

O que Samantha e Hugo revelam em suas falas é a importância do afeto, como potencializador de uma nova racionalidade, de uma nova forma de pensar, sentir e agir. Falam de um educador que observa o outro como sujeito de desejos e possibilidades e, explorando isso, utilizam o desejo como fonte para aprender. Falam de um educador cuja postura ético-afetiva, (re)significa o modo como cada um dos seus aprendizes se faz sujeito no mundo.

Duarte Jr. (2010, p. 26) escreve que "é preciso possibilitar ao educando a descoberta de cores, formas, sabores, texturas, odores, etc. diversos daqueles que a vida moderna lhe proporciona". Podemos inferir que isso acontece na escola de circo, pois se os educadores tiveram suas sensibilidades desenvolvidas e cuidadas como artistas que são, possivelmente conseguem ofertar o mesmo aos seus aprendizes, e isso parece ter sido descrito nas falas até aqui destacadas.

O que os educadores de circo parecem fazer é se preocupar em conhecer o momento atual do desenvolvimento físico e emocional dos aprendizes, conseguindo criar novas necessidades, novos desejos para suas vidas, fazendo-se mediação na constituição dos aprendizes. Os educadores da escola de circo ensinam com o corpo, para que o aprender seja sentido, experienciado, marcado, e que o encontro com o outro seja potencializador das possibilidades destes corpos.

 

Considerações finais

Ao destacarmos as relações de ensinar e aprender, vislumbramos projetos de ser, identificamos um aprender que favoreceu uma condição corporal, mas, principalmente, se constituiu como espaço em que novas possibilidades foram lançadas. Identificamos, neste contexto, pessoas que reinventaram possibilidades para si e para os outros e, desta forma, se projetaram para o futuro.

Na escola de circo, o aprender pode ser entendido como sinônimo de experiência, como aquilo que tocou, que marcou, que transformou, que constituiu os sujeitos. Marca essa que se apresentou no corpo, um corpo que se apropriou de forma sensível do mundo e a ele ofertou novos significados, mas que precisa, ainda, ser valorizado em outras relações de ensinar e aprender. Essas relações ampliaram as possibilidades de aprender, pois a linguagem artística produziu uma nova forma de reflexão, gerou uma racionalidade outra, que possibilitou outros processos psicológicos complexos para além do afeto. Houve, portanto, uma nova forma de sentir, mas, necessariamente, uma nova forma de pensar e agir. Portanto, foi um aprender que se iniciou no corpo, mas que constituiu novos processos cognitivos por meio desta objetivação artística.

No caso do circo, o aprender se iniciou de fato no corpo. Um corpo que se exercitou, se fortaleceu, se definiu, para dar conta da atividade circense, que ouviu e sentiu a música que comandava as aulas ou determinava o ritmo das apresentações e que se maquiou e se vestiu para ser visto. No circo, compreendemos o aprender a partir do corpo, pois foi com o corpo que o sujeito experimentou as relações com o mundo, sentindo-o e significando-o. Assim, foi este corpo afetado pelo encontro com o outro que teve aumentada sua potência de agir, sua possibilidade de se fazer um sujeito que aprende.

Em todas as falas dos aprendizes da escola de circo, foi possível identificar o compromisso dos educadores com o seu fazer que, sustentados em seu projeto de ser, assumiram uma postura ético-afetiva com os aprendizes, priorizando um aprender que alcançava a experiência do sujeito e, assim, o modificava enquanto tal. Ensinar e aprender, neste contexto, tem como base a história dos educadores, mas também o cotidiano dos aprendizes, suas (im)possibilidades corporais e seu devir.

Os aprendizes descreveram, em suas falas, educadores rígidos e extrovertidos, bravos e alegres, mas acima de tudo amigos. As relações foram, nesse sentido, mediadas pela afetividade. Foi esse movimento afetivo-volitivo que permitiu ao aprendiz transcender o existente e ir além de si mesmo. A relação, portanto, de educador e aprendiz mediou o aprender e necessariamente constituiu e constitui sujeitos, sujeitos aprendizes.

 

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1 Todos os nomes apresentados neste texto são fictícios.
2 Bakthin (2003) acrescenta ao passado e ao futuro, a palavra memória, para afirmar que estes não são vividos no presente nas suas condições reais, mas sim, a partir da significação que o sujeito confere a eles. O sujeito (re)compõe o passado na produção de sentido e este é revivido no presente, o mesmo ocorre com o futuro, cuja imaginação o presentifica.