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Psicologia da Educação

 ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.35 São Paulo dez. 2012

 

Reflexões sobre a fundamentação teórica de psicólogos nas secretarias de educação de Minas Gerais

 

 

Silvia Maria Cintra da SilvaI; Fabiana Marques BarbosaII; Anabela Almeida Costa e Santos PerettaIII; Lilian Rodrigues de SousaIV; Jaqueline Olina de OliveiraV; Cláudia Silva de SouzaVI; Paula Cristina Medeiros RezendeVII

IProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). silvia_ufu@hotmail.com
IIMestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
IIIProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
IVPós-graduanda (Lato Sensu) em Gestão de Pessoas da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (ESAMC)
VGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
VIDoutoranda em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
VIIProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

 

 


RESUMO

Em pesquisa feita com psicólogos que atuam na rede pública de educação de Minas Gerais, analisamos, à luz da Psicologia Escolar e Educacional Crítica, os elementos que constituem a fundamentação teórica dos participantes. De 98 municípios pesquisados, 42 contavam com psicólogos nas Secretarias de Educação. Desses, 32 responderam a um questionário e, após análise das respostas, elegemos 14 para participarem da entrevista, que abordou: história do serviço; estrutura e condições de trabalho; atuação profissional e fundamentação teórica. Neste artigo, analisaremos as entrevistas de dois participantes. Os profissionais indicaram dedicação à Psicologia Escolar, mesmo diante dos impasses do serviço. Destacamos a urgência de propostas de formação continuada e de assessoria a secretarias de educação e aos psicólogos que atuam neste âmbito.

Palavras-chave: Psicologia escolar; atuação do psicólogo; formação profissional.


ABSTRACT

In survey of psychologists working in the public education of Minas Gerais we analyzed, in the light of Educational Psychology Critical, the elements that constitute their theoretical knowledge. We surveyed 98 municipalities, 42 of which had psychologists in the Departments of Education, and 32 answered to a questionnaire. After analyzing the responses, we chose 14 to be interviewed. The interview covered: service history, structure and working conditions, professional practice and theoretical knowledge. In this article we analyze the interviews of two participants. Professionals indicated dedication to School Psychology, even when faced with dilemmas of service. We have highlighted the urgency of continuing education proposals to psychologists and advisory services to Departments of Education.

Keywords: educational psychology; psychologist performance; psychologist education.


RESUMEN

En un estudio con psicólogos que trabajan en la educación pública de Minas Gerais se investigan los elementos que constituyen el fundamento teórico de los participantes, a la luz de la Psicología de la Educación Crítica. De los 98 municipios encuestados, 42 tienen psicólogos en los Departamentos de Educación. De ellos, 32 respondieron a un cuestionario y, después de analizar las respuestas, se seleccionaron 14 para participar en la entrevista sobre la historia del servicio, la estructura y las condiciones de trabajo, la práctica profesional y teórica. En este artículo vamos a analizar las entrevistas de dos participantes. Los profesionales indicaron dedicación a la Psicología Escolar, a pesar de las dificultades del servicio. Hacemos hincapié en la urgencia de la educación continua propuesta y asesoramiento a los departamentos de educación y los psicólogos que trabajan en este campo.

Palabras clave: psicología escolar; actuación del psicólogo; formación del psicólogo.


 

 

Introdução

Em pesquisa concluída em 2010, com o título "A atuação do psicólogo na rede pública de Educação frente à demanda escolar: concepções práticas e inovações", realizada em sete estados brasileiros, investigaram-se as concepções e as práticas desenvolvidas por psicólogos da rede pública de Educação em relação às queixas procedentes do sistema educacional, a fim de compreender em que medida os profissionais apresentavam elementos inovadores e pertinentes às recentes discussões na área de Psicologia Escolar e Educacional.1

Este artigo é um recorte da etapa da pesquisa realizada em Minas Gerais que pretende analisar, à luz do referencial da Psicologia Escolar e Educacional Crítica, os elementos que constituem a fundamentação teórica de alguns profissionais que participaram do estudo supracitado.

A Psicologia Escolar e Educacional no Brasil é um importante campo de saber e de atuação que, desde o início da década de 1980, passa por transformações significativas, por meio das contribuições teórico-práticas da denominada Psicologia Escolar Crítica (Patto, 1984; Machado & Souza, 1997; Bock, 1999a, 1999b; Tanamachi, Proença & Rocha, 2000; Tanamachi, 2000; Meira & Antunes, 2003a; 2003b; Viégas & Angelucci, 2006; Martínez, 2007; Souza, 2007; Araujo & Almeida, 2008).

É possível caracterizar essa construção de conhecimentos como um movimento que denuncia as concepções e as práticas do psicólogo em contextos educacionais vigentes até então no país. Tais ações se pautavam ou no modelo experimental, por meio de testes de inteligência e práticas com vistas a adaptar o "aluno desajustado" ao modo de educação predominante ou então no modelo clínico, com explicações exclusivamente subjetivistas para o fracasso escolar (Patto, 1984). Assim, esses dois parâmetros desconsideravam o contexto educacional e social em que as queixas escolares e demais problemas eram produzidos.

Nesse sentido, a Psicologia Escolar e Educacional Crítica se delineia mediante a compreensão de escola, de ser humano e de sociedade que busca entender a raiz desses fenômenos, bem como o compromisso social das concepções teóricas que os permeiam (Foracchi & Martins, 1977).

Com o objetivo de compreender as premissas norteadoras desta proposta e de analisar posteriormente a fundamentação teórica da atuação dos participantes da pesquisa, apresentaremos a seguir as principais características desse referencial teórico-prático.

De acordo com Meira (2000), o pensamento crítico pode ser definido por meio dos seguintes elementos: pensamento pautado pela dialética, no intuito de compreender os fenômenos a partir de seus movimentos, contradições e historicidade; realização de uma crítica ao conhecimento e ao modo como é construído na sociedade capitalista; denúncia da desigualdade e exclusão social que permeia as relações; defesa da utilização do conhecimento em prol da transformação da sociedade.

Nesse sentido, Tanamachi (2000) também aponta alguns importantes critérios que delineiam o referencial crítico em Psicologia Escolar, dentre eles: o entendimento do ser humano como um ser social, devendo ser compreendido em sua complexidade pela Psicologia e áreas afins; a valorização do trabalho coletivo e da interdisciplinaridade para entender as questões educacionais.

A apresentação desses pressupostos teóricos indica um grande desafio para a atuação do psicólogo escolar, pois convida ao exercício de uma postura crítica, que compreende as questões educacionais de um ponto de vista mais amplo e contextualizado. Podem-se identificar inúmeros impasses em uma atuação crítica desse profissional, dentre eles, os limites da própria formação nesse âmbito (Bock, 1999b; Antunes, 2003; Silva, 2004; Cruces, 2009; Araujo & Almeida, 2008; Guzzo, 2009; Souza & Silva, 2009; Silva et al., 2010; Guzzo, 2011; Souza, Ribeiro & Silva, 2011). E, como afirma Guzzo (2011), a formação de psicólogos para a realidade brasileira é um desafio que "se mantém no tempo, por considerar a relevância e a prioridade para um profissional que se proponha a exercer sua prática em um movimento contra-hegemônico dentro da própria Psicologia" (p. 253).

Um dos intuitos da pesquisa apresentada e o objetivo deste artigo é analisar as concepções teóricas que fundamentam a prática de psicólogos escolares. Assim, é importante um olhar cuidadoso, a fim de evitar um possível radicalismo teórico, em que apenas aqueles que se referiram explicitamente a autores da Psicologia Escolar e Educacional Crítica tenham sua prática considerada consistente e emancipadora.

Os entrevistados escolhidos para compor este artigo nos apontaram elementos de uma fundamentação teórica coerente com o movimento de crítica em Psicologia Escolar. Sendo assim, consideramos relevante dar visibilidade a esses profissionais, por demonstrarem dedicação ao exercício de um olhar crítico e contextualizado sobre as questões educacionais, contribuindo para refletirmos sobre as possibilidades de atuação e formação do psicólogo escolar.

 

Percurso metodológico

Podemos situar esta investigação no âmbito qualitativo, uma vez que buscou compreender os fenômenos a partir de seu processo, situando-os de forma histórica e cultural. Tal definição vai ao encontro do que afirma González-Rey (2002), pois para ele a epistemologia qualitativa é aquela que se esforça por compreender os fenômenos e criar teorias acerca de uma realidade que é "plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica" (González-Rey, 2002, p. 29).

Em todos os estados em que a pesquisa foi realizada, utilizou-se a mesma metodologia, possibilitando uma espécie de "estado da arte" (Ferreira, 2002) acerca da prática profissional em Psicologia no campo da educação. A seguir, descreveremos os percursos metodológicos do estudo, destacando as especificidades da investigação em Minas Gerais.

Em princípio, foi realizado um contato inicial com as Secretarias de Educação, a fim de identificar a presença de psicólogos em seus quadros de funcionários. A seleção dos municípios a serem pesquisados foi orientada pela divisão político-administrativa, buscando-se contemplar as macrorregiões de planejamento, de acordo com dados do site oficial do governo de Minas2.

Em seguida, buscamos o contato com os psicólogos, convidando-os a participar do estudo. A partir de seu consentimento, enviamos um questionário, a fim de caracterizar brevemente a atuação, a formação e a filiação teórica do profissional. A tabulação dos dados fornecidos pelos questionários foi tratada estatisticamente por meio do software Statistical Package for Social Science (SPSS).

A leitura cuidadosa dos questionários possibilitou-nos selecionar os profissionais a serem entrevistados na etapa seguinte da pesquisa. Consideramos como critério para essa seleção aqueles questionários que apresentassem indícios de uma atuação profissional crítica e inovadora, de acordo com os objetivos do estudo.

Escolhidos os profissionais, realizamos as entrevistas semiestruturadas, que abordaram questões sobre os temas: história do serviço em que o psicólogo atua; a estrutura e as condições de trabalho; a atuação profissional do entrevistado e a sua fundamentação teórica, englobando a formação e as concepções teóricas.

Dos 98 municípios pesquisados, 42 contavam com psicólogos nas Secretarias de Educação. Desses, 32 responderam ao questionário, e selecionamos 14 para participar da entrevista. Realizamos um total de 10 entrevistas, considerando que algumas foram respondidas por equipes de psicólogos.

O processo de análise das entrevistas foi estruturado em três categorias, as quais denominamos Eixos de análise, a saber: 1) Serviço; 2) Atuação; 3) Fundamentação Teórica. Neste trabalho, analisaremos duas entrevistas para compreender detalhadamente o terceiro Eixo de análise.

A Fundamentação Teórica pode ser compreendida a partir dos seguintes aspectos: formação do psicólogo, em termos de suas escolhas pela área de Psicologia Escolar, bem como realização de estágios profissionalizantes na área e busca por cursos, supervisões e assessorias; concepções teóricas, em termos das teorias que embasam o trabalho do profissional, das concepções sobre Psicologia e Psicologia na Educação, e da presença de elementos de criticidade na fala dos psicólogos.

A compreensão das entrevistas visa explorar o material obtido de modo a organizá-lo, possibilitando que sejam feitas interpretações e inferências (Bardin, 2000). Conforme aponta Rockwell (1987), o processo de interpretação consiste na compreensão do significado das ações e daquilo que é dito.

A fim de preservar a identidade dos participantes, chamaremos as entrevistas de MG-01 e MG-02. MG-01 é um serviço mais antigo, que conta com uma equipe composta tanto por psicólogos quanto por outros profissionais em caráter interdisciplinar. Iremos nos referir a MG-01 ora com relação à opinião da equipe e ora nos remetendo à fala da psicóloga que respondeu ao questionário na etapa inicial da pesquisa e que é a profissional mais antiga do serviço. Essa respondente graduou-se em Psicologia em uma instituição particular e realizou mestrado e especialização em áreas de interlocução com a Psicologia. Já MG-02 é um serviço recente, que conta com apenas um psicólogo, ou seja, não há uma equipe de trabalho constituída. O profissional formou-se em universidade particular e fez especialização ligada a intervenção em contextos educativos.

 

A fundamentação teórica dos participantes

Para analisar as entrevistas, foram criadas categorias que destrincham e especificam o tema Fundamentação Teórica; são elas: Formação do psicólogo e Concepção teórica. A categoria Formação do psicólogo envolve a escolha pela área da Educação, cursos realizados, assessorias e supervisão. A categoria Concepção teórica engloba autores e correntes teóricas citadas; concepção de Educação que embasa o trabalho; concepção de Psicologia e Psicologia na Educação; crítica a diagnósticos tradicionais (por exemplo, dislexia e TDAH) e à padronização no contexto escolar; a compreensão sobre a constituição histórico-cultural dos fenômenos humanos.

A seguir, analisaremos detalhadamente cada uma das categorias em questão.

Formação do psicólogo

Nesta categoria, buscou-se conhecer o percurso do psicólogo na área escolar, abarcando desde a formação inicial, durante a graduação até o momento atual, considerando-se também a formação continuada.

a) A escolha pela área da Educação

A entrevista MG-02 não apresenta uma descrição sobre o percurso do psicólogo na área de Educação; portanto, não tivemos acesso aos motivos de sua escolha. Ainda assim, percebemos, por meio de seu relato sobre a prática, bem como sobre os desafios encontrados e o empenho e dedicação para construir possibilidades diante deles, que há um interesse e valorização do papel da Psicologia na escola e na educação.

A entrevista MG-01 também mostra que a área educacional é uma questão importante na trajetória profissional da participante e, ao contrário da outra entrevista, apresenta mais elementos em relação à escolha da Educação. A psicóloga mais antiga da equipe iniciou sua atuação profissional como estagiária de Psicologia no município. Desse trabalho, surgiu a compreensão sobre a demanda escolar da cidade que, aos poucos e com o empenho da psicóloga e da equipe, constitui o serviço que existe atualmente.

Essa trajetória demonstra o grande engajamento e preocupação com as questões da área por parte dos psicólogos do município, postura que indica um dos motivos para manutenção e aprimoramento dos serviços.

É importante destacar, a partir do relato da entrevistada de MG-01, a experiência do estágio supervisionado em Psicologia Escolar como uma possibilidade concreta de aprendizagem a respeito das demandas da população no contexto educacional, consistindo, portanto, em uma possibilidade de formação crítica (Guzzo, Costa & Sant'Ana, 2009).

b) Cursos, assessorias e supervisão

O psicólogo de MG-02 é formado há cerca de oito anos e realizou uma especialização em Portugal. Atualmente, o que contribui para a continuidade de sua formação são as leituras, buscadas por conta própria, discussões e trocas de experiências com uma colega psicóloga que atua em uma cidade vizinha. Além disso, conta que as conversas com as orientadoras educacionais e diretoras das escolas também fazem parte da continuidade de sua formação. O psicólogo ainda relata não participar com freqüência de congressos e simpósios, visto que não são comuns na região e também por não receber verbas de apoio do município. Apesar disso, reconhece que acontecem muitos encontros interessantes fora do estado e atribui sua não participação a uma falha pessoal.

Aqui notamos que o psicólogo percebe a importância de se aperfeiçoar e de buscar sempre mais elementos que contribuam para sua prática, ainda que na Secretaria não exista um espaço sistematizado para essa formação, que legitime suas funções como psicólogo escolar em nível institucional. As buscas por aprimoramento na formação são feitas por iniciativa particular, o que indica uma lacuna na própria organização do serviço. Nesse sentido, consideramos fundamental a existência de espaços de discussão e de cursos de formação continuada para o aperfeiçoamento do serviço de Psicologia.

No campo da Educação e da Psicologia Clínica, tradicionalmente a formação continuada dos profissionais já é algo bastante estabelecido (Gatti, 2009; Nóvoa, 1997; Fontana, 2000a, 2000b; Pimenta & Ghedin, 2002; Alvarado Prada, 2001; Facci, 2004, entre outros), o que ainda não ocorre no campo da Psicologia Escolar. Portanto, um dos desafios para o aprimoramento tanto dessa formação quanto da qualidade dos serviços oferecidos, consiste na legitimação da necessidade do contínuo desenvolvimento profissional.

A entrevista de MG-01 relata um repertório maior de suporte em relação à supervisão, ao acesso aos cursos de formação e aos congressos. A equipe descreve, inclusive, a participação em encontros em São Paulo com o grupo Orientação à Queixa Escolar (OQE)3, organizado por Beatriz de Paula Souza, um nome de grande relevância nessa temática.

A diferença de acesso a esses eventos e cursos em relação aos dois municípios pode acontecer devido à diferença de localidade entre MG-01 e MG-02, uma vez que MG-01 é uma cidade maior e mais próxima de São Paulo e de outros grandes centros que possuem maior acesso à formação. Além disso, o serviço apresenta semanalmente um espaço de supervisão para discussões sobre as demandas e estratégias de trabalho. Isso também difere de MG-02 e indica o quanto é importante que exista uma equipe no serviço de Psicologia, ao invés de um ou dois profissionais isolados, e o quanto é interessante que o espaço de supervisão seja bem planejado e sistematizado.

Outra possibilidade de contato com discussões contemporâneas acerca da Psicologia Escolar pode se dar por meio de eventos promovidos e apoiados pelas Subsedes do Conselho Regional de Psicologia. Nas cidades em que houver cursos de Psicologia, pode ser firmada uma parceria entre estes, a respectiva Subsede e o Serviço de Psicologia do município, com a proposta de cursos e assessorias.

Concepções teóricas

Nesta categoria, buscou-se conhecer as concepções teóricas que sustentam a atuação dos psicólogos, considerando-se os autores e as correntes teóricas, a concepção de Educação e de Psicologia na Educação que embasa o trabalho e a crítica a diagnósticos tradicionais (dislexia e TDAH).

a) Autores e correntes teóricas citadas

A equipe de MG-01 cita como referência o grupo de psicólogas escolares da USP de São Paulo, que tem se caracterizado por desenvolver estudos e projetos calcados na perspectiva crítica em Psicologia Escolar. Além disso, no questionário citaram: Paulo Freire, autores do interacionismo/construtivismo, Deleuze e Guattari, autores franceses contemporâneos e Michel Foucault. Percebemos que a equipe respalda seu trabalho em referências atualizadas e que vão ao encontro das discussões aqui destacadas, no que se refere à Psicologia Escolar e à compreensão decorrente a respeito das questões educacionais.

O entrevistado de MG-02 cita diversos autores que norteiam seu trabalho, como Marli André, Urie Bronfenbrenner, Ana Beatriz Cerisara, Áurea Maria Guimarães, Bernardete A. Gatti, Menga Lüdke, Maria Célia Moraes e João Pedro da Ponte. É interessante notar que os nomes aludidos não estão diretamente relacionados a uma perspectiva crítica em Psicologia Escolar. Grande parte deles é brasileira, constituindo-se em pesquisadores e professores na área da Educação de universidades de relevância, tais como Universidade de São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, entre outras. Dois deles são também autores da área da Educação, mas de nacionalidade portuguesa, lugar onde o profissional realizou sua especialização. Apenas Bronfrenbrenner é específico do campo da Psicologia.

Apesar de nenhuma referência a autores diretamente ligados à Psicologia Escolar Crítica, podemos considerar seu embasamento teórico coerente com as teorias e práticas críticas, uma vez que em sua atuação e concepções há uma lógica que sempre contextualiza os problemas no processo de escolarização, uma visão abrangente sobre a origem das queixas escolares, uma busca pelo envolvimento dos diversos segmentos na superação das dificuldades, bem como pela adaptação da escola ao aluno e não o contrário (Meira, 2000; Tanamachi, 2000).

O conceito de um posicionamento crítico pode ser definido como aquele que busca as raízes históricas dos fenômenos, a fim de compreender as concepções de homem e de mundo que fundamentam uma determinada concepção e, assim, buscar formas de superação perante posicionamentos tradicionais (Foracchi & Martins, 1977).

O essencial de uma visão crítica em Psicologia Escolar é considerar a relação dialética e histórica entre indivíduo e sociedade, bem como "a reflexão sobre o papel possível do homem no processo histórico" (Meira, 2000, p. 49), o que remete necessariamente a uma postura profissional que assuma um compromisso de transformação com as questões da sociedade e da escola.

b) Concepção de Educação que embasa o trabalho

A equipe de MG-01 se refere à Educação no sentido de buscar as relações desse campo com a Psicologia; uma das psicólogas afirma a importância de o trabalho dialogar com os "quatro pilares da Educação da Unesco"4, que são: aprender a viver, a conviver, a conhecer e a fazer. Essa menção pode indicar a concepção de Educação que orienta o trabalho dos psicólogos, tendo esse campo como possibilidade humanizadora das relações no contexto educativo.

No que se refere ao entrevistado de MG-02, não foi relatada explicitamente uma concepção de Educação. Contudo, percebemos um modo de encarar a educação como um processo de construção em que todos os segmentos da escola precisam estar envolvidos para o enfrentamento das questões. Para ele, "a escola é um sistema complexo onde estão representadas as mais variadas expressões culturais e sociais" .

Nota-se uma valorização do aluno, buscando compreender o que se passa na relação ensino-aprendizagem, evitando culpabilização, seja do estudante, do professor ou da família nas dificuldades enfrentadas. O entrevistado também procura buscar condições educacionais que favoreçam o aprendizado discente.

Para Meira (2003, p. 57), "não há homem, nem individualidade, nem subjetividade plenamente desenvolvida sem a apropriação do conhecimento, ou seja, sem educação". Assim, educação é um processo imprescindível "para que o homem se constitua, de fato, como ser humano, humanizado e humanizador".

c) Sobre a Psicologia na Educação

Para o entrevistado MG-02, a Psicologia dever cumprir um papel investigativo no contexto educacional para que, a partir da compreensão das relações que ocorrem na escola, sejam propostas intervenções para o enfrentamento dos problemas, oferecendo alternativas aos educadores para a construção de "um conhecimento autêntico sobre a prática educacional".

Ainda de acordo com este entrevistado:

O psicólogo ainda é visto por muitos educadores como um profissional que tem como obrigação atender aos alunos "problemas"; entre eles estão os que supostamente possuem dificuldade para aprender e problemas relacionados ao comportamento. A função do psicólogo deve ir além dos atendimentos em consultório; a escola é um sistema complexo onde estão representadas as mais variadas expressões culturais e sociais, por essa razão o trabalho do psicólogo deve ser antes de tudo investigativo. A compreensão das relações que acontecem na escola fornece subsídios para o psicólogo propor intervenções que possibilitem a resolução dos problemas ou uma mudança no pensamento de todas as pessoas que fazem parte do contexto educacional. Acredito que podemos fornecer alternativas para os educadores construírem um conhecimento autêntico sobre a prática educacional.

Já na cidade MG-01, a perspectiva das psicólogas, em todos os projetos que desenvolvem, é reconduzir "essa história de mandar menino pra ser atendido", o que indica uma crítica à culpabilização do aluno por eventuais dificuldades e ao trabalho clínico na escola. Relatam projetos bem-sucedidos com uma perspectiva de Psicologia que focaliza o desenvolvimento da autonomia dos educandos. Entretanto, a escola se incomoda com a autonomia que eles adquirem e às vezes barra os projetos, por não desejar que os alunos tenham "voz e vez":

Aí isso é um problema, porque eles ficam motivadíssimos, muito motivados e quando a gente chega à escola eles ficam alvoroçados, atrapalha, é claro, o ritmo da escola em alguns momentos, mas em outros o que incomoda mais é que eles vão adquirindo certa autonomia, tem que até que definir coisas, isso é o que mais incomoda a escola: é a autonomia que eles vão adquirindo (...). Nós chegamos ao máximo de uma pessoa que cuidava da biblioteca de uma escola reclamar que com o trabalho os meninos estavam procurando demais a biblioteca, tava dando muito trabalho pra ela. Pra você ver que aciona uma vontade que era pra estar sendo acionada o tempo todo.

As psicólogas afirmam que não são um grupo de recreação que vai fazer atividade com os alunos. Vão para intervir de alguma forma, com o saber delas junto ao saber do campo escolar, tentando descobrir novas maneiras de estar na escola.

Ao serem questionadas sobre a contribuição que o psicólogo pode dar à Educação, afirmam que esses profissionais têm condições de ouvir e de olhar de uma outra maneira para o campo. As psicólogas têm uma forma diferente de ver a criança e o adolescente: "... como alguém que tem voz e que tem vez, que pode falar de si, que pode propor, que pode vivenciar certas coisas, que pode participar da grade escolar, que pode ver alguns caminhos na escola", ou seja, elas realizam uma análise ampla e contextual da instituição.

Objetivam garantir os supracitados quatro pilares maiores da Educação: aprender a viver, a conviver, a conhecer e a fazer. "Não tem um molde certo: 'vai ser feito assim'!". Por isso, a contribuição da Psicologia é criar um espaço para que a escuta do outro possa realmente construir algo.

Ao pensar sobre a escola e a Psicologia no âmbito educacional de modo mais ampliado, os participantes corroboram a posição de Meira (2003, p. 57), a respeito do compromisso social da Psicologia Escolar: "contribuir para que a escola cumpra de fato seu papel de socialização do saber e de formação crítica".

d) Crítica a diagnósticos tradicionais (dislexia e TDAH) e à padronização no contexto escolar

As psicólogas de MG-01 demonstram um posicionamento crítico em relação aos diagnósticos relacionados a problemas escolares, por exemplo a dislexia. Afirmam que muitas pessoas acabam sendo avaliadas segundo critérios de um modelo médico, que desconsidera o indivíduo de maneira integral:

(...) então o campo médico realmente avançou sobre essa fatia do mercado (dislexia), como já tinha feito com o déficit de atenção, a hiperatividade (...) [a função do psicólogo] é não deixar que decisões que são do campo educacional, da própria vida da escola, sejam colocadas na criança como algo a ser tratável. Então essa possibilidade a gente vai buscando.

As falas das psicólogas corroboram o processo de medicalização que tem se imiscuído na seara educacional (Souza, 2010; Moysés & Collares, 2011), com graves repercussões para todos os atores escolares. Como escreve Machado (2011, p. 64), "a vida escolar se tornou mais um impeditivo do viver", e muitas vezes tal processo é respaldado por profissionais cuja formação não permite questionar e desconstruir a queixa escolar. Por outro lado, também há psicólogos que conseguem mostrar para a instituição as sérias implicações do discurso médico como justificativa para "as dificuldades vividas por um sistema escolar que não consegue dar conta de suas finalidades" (Souza, 2010, p. 65).

O psicólogo do município MG-02 não explicita uma crítica a diagnósticos tradicionais, mas, sim, à padronização no contexto escolar, como podemos ler no excerto abaixo: "Isso que falta, talvez, para as escolas hoje, sair um pouco dessa questão sistêmica, ser aquela coisa rígida, tem que ser daquela maneira, o aluno tem que seguir junto com a turma porque senão não serve para a escola".

Ele mostra-se atento à necessidade de a escola voltar-se para as especificidades de cada estudante, sem se preocupar com o cumprimento rígido do programa, buscando o desenvolvimento de cada aluno.

Como recorda Machado (2010, p.29), "Aprendemos, com o grande número de crianças e jovens que têm recebido o diagnóstico de dislexia, hiperatividade, déficit de atenção e outros, que existem muitas formas de agir e aprender que não cabem naquilo que está instituído".

Assim, a crítica a diagnósticos tradicionais só é possível à medida que a formação do psicólogo contemple tanto a compreensão acerca da lógica excludente que rege o sistema educacional e a sociedade, quanto conhecimentos sobre os processos sociais e históricos de constituição humana, considerando tanto os processos de ensino-aprendizagem quanto o cotidiano da sala de aula.

 

Considerações finais

Este artigo teve por objetivo analisar, à luz do referencial da Psicologia Escolar e Educacional Crítica, os elementos que constituem a fundamentação teórica de alguns psicólogos que trabalham em Secretarias de Educação de Minas Gerais, participantes da pesquisa "A atuação do psicólogo na rede pública de educação frente à demanda escolar: concepções práticas e inovações". Na primeira etapa da investigação, dentre as respostas dos questionários selecionamos aqueles profissionais que apresentaram elementos de criticidade em sua prática bem como uma atuação inovadora. Assim, foram entrevistados 14 profissionais e, dentre estes, elegemos dois serviços que apresentaram nas entrevistas tais elementos, sendo um psicólogo e uma equipe de psicólogos.

Constatamos que os profissionais demonstram interesse e dedicação à área de Psicologia Escolar, mesmo diante dos impasses e limites do serviço. Um ponto que se destacou nas falas dos entrevistados foi a experiência do estágio supervisionado em Psicologia Escolar. Essa é uma oportunidade muito importante para a articulação dialética entre os conhecimentos teóricos aprendidos nas disciplinas e as situações de atuação profissional diante da realidade concreta, considerando-se as efetivas demandas da população no contexto educacional.

Outro ponto importante é a participação em congressos e pequenos eventos, ocasiões em que os profissionais podem compartilhar suas experiências e ter contato com a produção científica mais recente na área. A equipe de MG-01 descreve um suporte maior no que se refere à supervisão, ao acesso aos congressos e cursos. Em relação às dificuldades apresentadas em MG-02, cidade distante dos grandes centros em que há mais dificuldade para o psicólogo ter acesso e apoio para a sua atuação, esforçando-se por meio de buscas solitárias, apontamos a urgência em se pensar em mais possibilidades de acesso para a formação continuada na área, por meio de cursos e assessorias que possam chegar a cidades de pequeno porte5.

No que diz respeito às concepções teóricas que alimentam a atuação dos psicólogos, vimos que tanto os autores como as orientações teóricas, as concepções acerca de Educação e de Psicologia na Educação e a crítica a diagnósticos tradicionais são coerentes com as teorias e práticas críticas, uma vez que em seu trabalho e concepções há uma compreensão contextualizante e abrangente sobre a procedência das queixas escolares, uma procura pela implicação dos diversos segmentos no enfrentamento e superação das dificuldades.

Ao considerar a escola e a Psicologia no campo educacional de modo mais expandido, os entrevistados apóiam o compromisso social da Psicologia Escolar no sentido de colaborar para que a instituição cumpra de modo efetivo sua função de socialização do conhecimento e de formação ética e crítica dos sujeitos.

Por fim, ressaltamos a necessidade de que outras investigações sobre o tema sejam delineadas, a fim de aperfeiçoar as contribuições sobre a formação e a prática dos psicólogos escolares, fornecendo recursos e consolidando as críticas até então realizadas. Em relação à formação, destacamos aqui a urgência de que as instituições de Ensino Superior ofereçam cursos de extensão, especialização, formação continuada e programas de assessoria em parceria com as secretarias municipais de Educação para os psicólogos que atuam nesse âmbito. Além disso, como mencionamos, tal parceria também pode ser estabelecida com as Subsedes dos Conselhos Regionais de Psicologia, em um esforço coletivo para que a educação possa efetivamente desempenhar seu papel com qualidade.

 

REFERÊNCIAS

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1 A pesquisa abrangeu os seguintes estados: São Paulo, Rondônia, Acre, Minas Gerais, Bahia, Paraná e Santa Catarina. No âmbito nacional, foi coordenada pela Profª. Drª. Marilene Proença Rebello de Souza, da Universidade de São Paulo. Em Minas Gerais foi financiada pela FAPEMIG (Fundação de Apoio à Pesquisa de Minas Gerais - Edital Demanda Universal/APQ-00014-08) e coordenada pela Profª. Drª. Silvia Maria Cintra da Silva, da Universidade Federal de Uberlândia.
2 Informação disponível em: www.geominas.mg.gov.br, acesso em 20 de maio de 2012.
3 http://grupoqueixaescolar.blogspot.com
4 Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001095/109590por.pdf
5 Ressaltamos que o estado de Minas Gerais possui 853 municípios, sendo a unidade da federação brasileira com o maior número de municípios. Fonte dos dados: http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=mg