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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.40 São Paulo jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Sentidos da leitura e escrita para professoras alfabetizadoras: implicações nas práticas educativas

 

Meanings of reading and writing for literacy teachers: implications in educational practices

 

El significado de la lectura y la escritura para los profesores de alfabetización: implicaciones para las prácticas educativas

 

 

Wallisten Passos GarciaI; Miriam Aparecida Graciano de Souza PanII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná Universidade Federal do Paraná
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná. miriamagspan@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

As discussões sobre as práticas formativas de leitura/escrita configuram-se como uma questão primordial na educação brasileira. Concebendo-as como práticas sociais e discursivas, o objetivo deste artigo é analisar os sentidos da leitura e escrita para professoras alfabetizadoras e os efeitos em sua prática com os alunos a partir de uma análise discursiva de textos produzidos durante um processo de formação continuada com 18 professoras de uma escola pública de Piraquara-PR. Os resultados evidenciam diferentes sentidos atribuídos à leitura/escrita, que se modificaram durante o processo de formação. A partir disso, discute-se a importância do incentivo e da promoção de uma experiência profunda e significativa com as diferentes dimensões da leitura e escrita no campo das práticas formativas.

Palavras-chave: psicologia da educação; formação de professores; linguagem; alfabetização; Bakhtin.


ABSTRACT

The discussions about training practices of reading/writing characterized as an important topic in Brazilian education. Conceiving them as social and discursive practices, the purpose of this article is to analyze the meaning of reading and writing for literacy teachers and the effects on their practice with students through a discursive analysis of texts produced during a process of continuing education with 18 teachers of a public school Piraquara-PR. The results show different meanings attributed to reading/writing, which have changed during the training process. From this results the importance of encouraging and promoting a deep and meaningful experience with the different dimensions of reading and writing in the field of educational practices.

Keywords: Educational Psychology; teacher training; language; literacy; Bakhtin.


RESUMEN

Los debates sobre las prácticas de formación de lectura/escritura de forma como un problema importante en la educación brasileña. Concebirlos como prácticas sociales y discursivas , el propósito de este artículo es analizar el significado de la lectura y la escritura para los alfabetizadores y los efectos sobre su práctica con alumnos de un análisis discursivo de los textos producidos por un proceso de educación continua con 18 profesores de una escuela pública Piraquara -PR . Los resultados muestran diferentes significados atribuidos a lectura/ escritura, que ham cambiado durante el proceso de formación. A partir de esto, se discute la importancia de fomentar y promover una experiencia profunda y significativa con las diferentes dimensiones de la lectura y la escritura en el campo de prácticas de formación.

Palabras clave: psicología de la educación; formación del profesorado; lenguaje; alfabetización; Bakhtin.


 

 

No Brasil, o alto índice de analfabetismo e os inúmeros casos de repetência e de evasão escolar configuram-se como graves problemas historicamente enfrentados no campo educacional. É cada vez mais generalizada a preocupação com os níveis insuficientes de aprendizagem que os indicadores como o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf) revelam. Os resultados do último Inaf mostram que houve uma redução do analfabetismo absoluto e um incremento do nível básico de habilidades de leitura e escrita da população brasileira na última década. No entanto, a proporção dos que atingem nível pleno dessas habilidades mostra-se praticamente inalterada, em torno de 25%, o que significa que apenas um em cada quatro brasileiros é plenamente alfabetizado (Instituto Paulo Montenegro, 2012). Ao reconhecer que o uso da leitura e da escrita no cotidiano das pessoas é essencial para a participação nas sociedades letradas, constata-se que os baixos níveis de alfabetização provocam a exclusão social de grande parte da população brasileira, trazendo implicações políticas, sociais e econômicas importantes no que diz respeito às práticas formativas de leitura e escrita.

A escola caracteriza-se como uma das mais importantes instituições devendo assegurar a todos o acesso ao conhecimento e garantir condições para práticas efetivas de leitura e escrita. Entretanto, apesar das diversas políticas públicas e de programas específicos para destinação de recursos principalmente às séries iniciais de ensino, muitos entraves ainda precisam ser superados tendo em vista a melhoria do nível de alfabetização da população brasileira. Dentre eles, encontra-se o enfrentamento dessa problemática por meio de uma reflexão sobre o que é ler e escrever, sobre que tipos de leitores e escritores a escola pretende formar, além da discussão sobre as concepções e práticas de alfabetização presentes e realizadas na escola.

São diversas as concepções sobre o que é leitura e escrita. Autores de diferentes campos do conhecimento, e a partir de distintos estudos histórico-culturais, entendem a leitura e a escrita como práticas sociais e discursivas que produzem diferentes sentidos nos sujeitos a partir de suas relações sociais e por meio da linguagem (Brandão, 2005; Brito eVerri, 2004; Geraldi, 2008; Goulart, 2007; Kramer, 2000, 2001, 2009; Pan, 2005, 2006, 2007; Souza, 2006, 2011; Souza e Kramer, 1996). Esses autores ancoram-se principalmente na filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin (1929/2010) que compreende a palavra como signo social e instrumento de constituição e organização da consciência. Para o autor, a consciência é dialogicamente orientada, ou seja, ela constitui-se como resposta e como ato responsável. Segundo Bakhtin (1919/2012), a palavra sempre está direcionada a alguém, é palavra viva, que quer ser ouvida, entendida e, sobretudo, respondida. Todo membro de uma coletividade falante enfrenta a palavra recebida por meio da voz do outro, de suas aspirações e valorações.

A língua opera, contudo, sob o princípio da heterogeneidade do sentido, refletindo e refratando as experiências vividas pelos grupos humanos em determinadas épocas. Desse modo, as experiências sócio-históricas dos diferentes grupos sociais constituem a multiplicidade de vozes que soam no plurilinguismo; elas são as formas diferenciadas de os grupos humanos dizerem o mundo. Essas vozes ganham estabilidade ao longo da história e se adaptam aos pontos de vista específicos, às atitudes, às nuanças e entonações de um determinado gênero discursivo (Bakhtin, 1975/1998).

Cada enunciação individual responde ao plurilinguismo social e histórico. Nesse sentido, o autor define o enunciado como plurilinguismo dialogizado, anônimo e social como linguagem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado como enunciação individual (Bakhtin, 1975/1998). A orientação dialógica do discurso é uma réplica viva; todo enunciado nasce como resposta ativa e implica compreensão ativa. Ao se inserir na corrente dialógica, no discurso, o indivíduo interfere de modo responsivo e ativo no processo de produção de sentido.

Portanto, o objeto do discurso não é a palavra neutra, mas o discurso do outro. Todo enunciado orienta-se para um meio flexível de discursos alheios, de pontos de vista, de apreciações, de entonações e julgamentos. A palavra orientada ao seu objeto entra nesse meio dialogicamente tenso das palavras, de valorações e acentos alheios, entrelaça-se com suas complexas inter-relações, funde- se com umas, repele outras, entrecruza-se com terceiras (Bakhtin, 1975/1998). Segundo Pan, Rossler, Ferrarini, Valore e Oliveira (2011), para Bakhtin o mundo interior do sujeito é uma arena povoada de vozes sociais, apropriadas por ele, em suas múltiplas relações de consonâncias e dissonâncias que está em permanente movimento. É essa dinâmica social internalizada que orienta a atividade psíquica. Nessa perspectiva, o sujeito se constitui na/ pela linguagem, na multiplicidade de discursos produzidos por instâncias tanto individuais quanto coletivas e institucionais.

Essa concepção de linguagem de Bakhtin nos permite compreender que no processo de ler e escrever também ocorre um diálogo entre o leitor, o autor e as demais vozes presentes no texto. O leitor não apenas decodifica a mensagem do autor, mas reflete sobre, concorda, discorda, revê, repensa e questiona, tendo, portanto, uma compreensão que é responsiva ativa. O sujeito ouve e entende o outro pela leitura, gerando uma resposta a esse outro, e aprende a se posicionar, a dizer o que sente; ele pensa e deseja por meio da expressão oral ou escrita. Nessa perspectiva, ler e escrever não são apenas processos mentais ou cognitivos, mas também atividades interdiscursivas, instauradoras e constituintes dos sujeitos. A leitura como forma de linguagem na cultura escrita torna-se uma prática social de alcance político por ser uma atividade que acarreta uma mudança em todo desenvolvimento cultural dos sujeitos capazes de interligar o mundo e nele atuar, exercendo a cidadania. Nessa compreensão, a alfabetização não implica somente a aprendizagem e o domínio de um código, nem tampouco envolve uma relação instrumental da criança com a escrita: aprender a ler e a escrever significa também usar, praticar, posicionar-se, conhecer a língua que se fala e se escreve. Enquanto escreve e lê, o sujeito aprende a escrever e a ler e aprende sobre leitura/escrita; com isso, aprende sobre si mesmo e sobre os outros, transformando o meio e a si mesmo por intermédio desses processos discursivos (Kramer, 2001; Pan, 2006, 2007).

Outro filósofo que traz contribuições importantes para o campo da leitura e da escrita é Walter Benjamin, que realiza uma discussão profícua sobre a linguagem a partir do conceito de narrativa. Para Benjamin (1994), a narrativa liga-se a uma tradição e a uma memória comuns que garantem a existência de uma experiência coletiva, ligada a um trabalho e a um tempo partilhados em um mesmo universo de práticas e de linguagem. O autor destaca a relevância das narrativas para a constituição dos sujeitos e de sua história. Firmado em seu pensamento, a leitura e a escrita podem ser compreendidas como práticas de narrativas e, portanto, como produções humanas, transformadoras e criadoras, ligadas à própria história do sujeito inserido em uma coletividade. Nesse pensamento, apropriar-se da leitura e da escrita significa ter condições de compartilhar e apoderar-se do legado escrito, da memória e da história da humanidade, refletindo sobre o sentido da vida individual e coletiva.

As práticas formativas de leitura/escrita, pensadas a partir desses pressupostos, implicam a compreensão de que, para além de ensinar a ler e a escrever, as escolas precisam proporcionar a valorização da experiência dos alunos e professores com a leitura/ escrita. Entretanto, como destaca Pan (2006), a leitura e a escrita nas práticas de letramento escolar são predominantemente articuladas ao desenvolvimento de capacidades individuais e cognitivas. Ao pressupor uma cognição individual como condição para o conhecimento do mundo, a língua deixa de ser compreendida como construção conjunta, por meio da relação com o outro na situação concreta em que é produzida, o que impossibilita o sujeito de tomar consciência dos sentidos de suas experiências sociais e afetivas diante do ato de ler e escrever. Desse modo, constata a autora, a dimensão discursiva, social e política da leitura e escrita e seus efeitos sobre a produção da subjetividade dos sujeitos nem sempre são levados em conta nas práticas educativas, seja na formação dos alunos ou dos professores.

A crítica às práticas de leitura e escrita traçadas por Pan (2005, 2006) é produzida a partir da crítica do linguista Brian Street ao modelo de letramento definido como autônomo. Segundo Street (2010, 2013), as práticas dominantes de uso da escrita na escola e na sociedade pressupõem sua associação causal ao progresso, à civilização e à mobilidade social. O autor opõe esse modelo ao "modelo ideológico", segundo o qual as práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas, estando os significados que a escrita assume para um determinado grupo social associados aos contextos e instituições em que ela foi adquirida. Seu foco está na identidade e nos discursos de poder que levam o letramento de um grupo a produzir efeitos de dominação sobre outros.

O termo letramento surge no Brasil como uma nova maneira de compreender a presença da escrita no mundo social, diferenciando-se produtivamente da palavra alfabetização. Isso implica pensar que a imersão nas práticas sociais de leitura e escrita tem consequências sociais, políticas, psíquicas, cognitivas, linguísticas e até mesmo econômicas para uma pessoa ou para um grupo social, alterando seu "estado" ou "condição" (Kleiman,1995; Soares, 2003).

No campo da psicologia, constata-se que as principais contribuições do psicólogo em relação à leitura e à escrita estão relacionadas à avaliação ou ao desenvolvimento das habilidades de ler e escrever dos alunos, com base, sobretudo, em concepções que consideram a linguagem em seu aspecto puramente cognitivo, cujas discussões se orientam pelos campos da psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem (Pan, 2005, 2006; Souza, 2001). Tais práticas pautam-se na visão tradicional da psicologia na área escolar, com enfoque no modelo clínico,o qual naturaliza e individualiza fatos que são produzidos socialmente e usa a psicometria como única ou principal ferramenta para avaliar os problemas no processo de escolarização por meio do psicodiagnóstico e do atendimento às crianças com distúrbios/dificuldades de aprendizagem, contribuindo para o processo de patologização, medicalização e produção do fracasso escolar (Meira, 2012; Patto, 1997; Souza e Checchia, 2003).

Entretanto, o psicólogo, ao compreender os processos de leitura e escrita em sua dimensão formadora, discursiva, social e política, pode criar novas formas de intervenções para além de uma atuação focada no desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita ou nas dificuldades de aprendizagem dos alunos, pautando-se em modelo crítico de atuação do psicólogo escolar,o qual leva em conta a multiderminação de fatores que influenciam no processo pedagógico, contrapondo-se ao modelo tradicional (Pan, 2005, 2006; Souza e Checchia, 2003). Da mesma maneira, o psicólogo, ao compreender que o professor se forma pela sua trajetória escolar, pela licenciatura e pela sua própria experiência de vida e por sua relação com a leitura e a escrita, pode contribuir para a formação do professor como leitor e escritor responsável pela formação de novos leitores e escritores.

Nesse cenário, o debate sobre as práticas formativas de leitura/escrita perpassa a discussão no campo não apenas da formação dos alunos, mas também da formação dos professores. Souza e Kramer (1996) afirmam que, para tornar seus alunos pessoas que gostem e que queiram ler e escrever, os próprios professores precisam estabelecer relações estreitas com a linguagem, experimentando a leitura e a escrita como prática social e cultural. A partir desse postulado, é possível afirmar que o ato de se formar professor implica formar-se leitor e escritor, processo constante e inacabado que passa pela experiência desse professor com a leitura/escrita. A forma como esse professor torna-se leitor e escritor - os sentidos de sua experiência formativa - produz efeitos em sua forma de ensinar seus alunos a ler e a escrever. Portanto, os sentidos que os professores atribuem à leitura/escrita têm efeitos em sua prática com os alunos. Esses sentidos, por sua vez, são resultados - não únicos, mas relevantes - das práticas formativas pelas quais esses professores passaram, e ainda passam, desde sua trajetória no ensino fundamental, médio e superior até os programas de formação continuada aos quais são submetidos. Conhecer esses sentidos possibilita criar intervenções mais efetivas no campo das práticas formativas de leitura/escrita e de formação de professores. Nesse intuito, enuncia-se o objetivo deste artigo, qual seja, analisar os sentidos da leitura e da escrita para professoras alfabetizadoras e os efeitos em sua prática, a partir de uma experiência de formação continuada.

 

MÉTODO

Esta pesquisa analisa discursivamente textos produzidos durante um processo de formação continuada de professoras alfabetizadoras. As temáticas que nortearam esse trabalho referem-se às diferentes dimensões dos processos envolvidos com a linguagem, com foco nas práticas de leitura, escrita e oralidade, relacionadas ao letramento dos alunos e dos professores.

A formação foi realizada pela Prefeitura Municipal de Piraquara-PR e coordenada por um psicólogo e uma fonoaudióloga que compunham a equipe de um centro de atendimento interdisciplinar, ligado à Secretaria Municipal da Educação, que tinha como objetivo oferecer apoio às escolas e às crianças com necessidades educativas especiais e a seus familiares por meio uma equipe multiprofissional composta por psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais, pedagogos e terapeutas ocupacionais.

O projeto aconteceu na escola que mais encaminhava alunos com dificuldades de aprendizagem para atendimento no centro, o que gerou a necessidade de uma atuação por parte da equipe desse local no próprio contexto escolar. Ao iniciar o trabalho, os coordenadores do projeto explicaram a proposta à direção e à coordenação pedagógica da escola, que demonstraram interesse de que esse trabalho acontecesse na instituição, pois acreditavam que precisavam de auxílio diante do fato de haver, nesse contexto, muitas crianças com dificuldades de aprendizagem, principalmente aquelas relacionadas à leitura e à escrita.

Todas as professoras das séries iniciais dessa escola foram então convidadas a participar de uma reunião inicial na qual seriam explicados os objetivos da proposta de formação. A permanência no projeto seria facultativa. A formação durou dois anos. No total foram realizados vinte encontros de três horas de duração cada. Esses encontros eram realizados quinzenalmente, às sextas-feiras, após o encerramento do expediente das professoras. Participou um total de dezoito professoras, com perfis bastante variados, cujas idades situavam-se entre 23 e 60 anos, com experiência profissional de 2 a 20 anos. Com exceção de uma professora, cuja formação era apenas em Pedagogia, todas fizeram magistério e apenas uma não tinha curso superior. As outras professoras eram formadas em diversas áreas: Pedagogia, Letras, Matemática, História e Educação Física. Dez professoras tinham cursos de pós-graduação latu senso, e nenhum stricto sensu.

Procedimentos de análise dos dados

O material de análise consistiu-se das transcrições dos encontros realizados com as professoras, que foram gravados em áudio e vídeo. Para tanto, todas as medidas éticas foram tomadas em relação à coleta e à análise dos dados, que ocorreu após aprovação do projeto pelo comitê de ética da Universidade Federal do Paraná (UFPR) - CAAE: 01894312.0.0000.0102. A direção da escola e as professoras participantes foram informadas dos objetivos da pesquisa e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, autorizando a gravação e a transcrição dos vídeos. Do mesmo modo, também se utilizaram como material de análise o registro coletivo do grupo (realizado ao final de cada encontro), as anotações do pesquisador e textos escritos produzidos pelas professoras durante os encontros, todos com a autorização dessas.

O processo de formação continuada e a posterior análise dos dados deram-se a partir das ideias de Bakhtin (1979/2011), que afirma que, por ser um sujeito de linguagem, o ser humano exprime-se a si mesmo em atos, por meio de textos que podem ser orais ou escritos, sendo, portanto, por intermédio de seus textos que se pode compreendê-lo. Cabe ressaltar que "compreender", para o autor, não se restringe simplesmente a um movimento de empatia em relação ao outro, mas significa orientar-se para esse outro, perceber seus pontos de vista, concordar com ou contrapor-se a ele, posicionando-se ativamente perante ele.

Partindo-se desses pressupostos, a intervenção realizada com as professoras desenvolveu-se a partir das relações que puderam se estabelecer principalmente entre psicólogo e professoras. São as contradições e tensões produzidas nos diálogos construídos nos encontros que permitiram a produção de diversos sentidos registrados e recortados pelo pesquisador para a análise. A contribuição de cada um dos participantes da pesquisa deu-se a partir de diferentes saberes e práticas, de diferentes lugares discursivos que sofreram transformações no decorrer do processo, revelando a dinamicidade e o acontecimento aberto que é o mundo da vida.

Pode-se afirmar, junto com Souza (2011), que a pesquisa de fundamentação bakhtiniana aborda o ato de pesquisar em dois sentidos: o encontro do pesquisador com seu outro, que ocorre no mundo da vida, e o encontro dele com seu texto, momento em que ele se retira do campo no qual se deu o diálogo vivo com os sujeitos da pesquisa para o processo de análise e escrita desse acontecimento.

No encontro do pesquisador com seu texto, a pesquisa adquire um caráter científico e passa a fazer parte daquilo que Bakhtin (1979/2011) denomina mundo da cultura: mundo da arte e da ciência. No entanto, nessa perspectiva, a escrita do texto científico não é a transposição dos dados do mundo da vida para o mundo da cultura; como postula Bakhtin (1919/2012), os atos éticos do sujeito, que ocorrem no mundo da vida, acontecem uma vez e não podem ser repetidos nem reproduzidos. Na pesquisa científica, é necessário, portanto, outra forma de relação com os dados produzidos. Trata-se de, a partir de um olhar exotópico- um olhar não mais como participante da pesquisa no campo, mas como pesquisador escritor - entrar em contato com os dados da pesquisa, dialogar com esses textos e produzir um novo texto que, ao entrar no mundo da cultura, estará sujeito a outras regras e determinações. Portanto, o pesquisador não limita sua tarefa investigativa ao processo de replicar a voz do outro, seus pontos de vista, nem a descobrir o que já está descoberto; a tarefa investigativa é considerada uma atividade criadora. Nesse sentido, analisar os dados da pesquisa significa, além de dar uma resposta ao outro por meio de uma compreensão responsiva ativa, acrescentar algo novo ao dado.

A partir desse fundamento teórico e de acordo com o objetivo deste trabalho, o método utilizado para análise dos dados foi a análise do discurso de fundamentação bakhtiniana (Garcia, 2013; Pan, 2005, 2006, 2007). No momento da análise dos dados, a preocupação do pesquisador foi a de encontrar, por meio dos textos produzidos por todos envolvidos nos encontros, momentos/acontecimentos/diálogos nos quais se evidenciavam os diferentes sentidos atribuídos à leitura e à escrita pelas professoras, sentidos esses que, como se verá, modificaram-se e transformaram-se durante todo processo de formação continuada, já que foram produzidos a partir do diálogo, das relações variadas e infinitas.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Durante os encontros realizados com as professoras os coordenadores do projeto de formação continuada utilizaram diferentes recursos metodológicos. Buscou-se realizar discussões em pequenos grupos e, em seguida, com o grupo todo; dinâmicas de grupo; práticas de oralidade, tais como narrativas de histórias de vida e lembranças relacionadas à escola, leitura e escrita, leitura em voz alta; práticas de escrita individuais e coletivas, tais como a produção de um caderno de memórias de cada professora e o registro no qual os participantes do grupo poderiam escrever suas impressões e reflexões sobre cada encontro. As discussões foram mediadas por textos de diferentes gêneros: científicos, trechos de romances, charges, tirinhas, propagandas escritas, contos, textos biográficos, crônicas, poemas, livros de literatura infantil, músicas, além de filmes e vídeos. Dessa gama de atividades resultaram os textos produzidos e analisados neste trabalho.

As dificuldades que enfrentavam com os alunos em relação ao ensino da leitura e da escrita apareciam com frequência no discurso das professoras. Em um dos encontros analisados, os coordenadores solicitaram às professoras que elencassem as práticas de leitura que realizavam com os alunos e as dificuldades que enfrentavam nesse processo. Nesse momento, os coordenadores tinham também o objetivo de investigar e de discutir com as docentes o modo como a leitura era ensinada e praticada na escola.

As análises realizadas por meio dos textos produzidos nesse encontro permitiram compreender que uma prática comum na escola era a leitura de textos e palavras expostas na parede ou escritas no quadro. Os textos que circulavam em sala estavam presentes nos livros didáticos ou em folhas mimeografadas/ xerocadas e eram usados como materiais para trabalhar a gramática da língua portuguesa. Os livros de literatura eram pouco lidos e não faziam parte do planejamento das aulas. Muitas professoras permitiam que as crianças lessem um livro como recompensa caso terminassem todas as tarefas. Ao serem questionadas sobre os motivos pelos quais os livros literários eram poucos utilizados, as professoras diziam que faltava tempo, pois tinham muitos conteúdos para passar aos alunos e, com a leitura, as crianças dispersavam-se, não terminavam as tarefas e conversavam bastante.

Nesse mesmo encontro, ao refletir sobre suas práticas de leitura e escrita, as professoras relataram que liam apenas o que lhes era pedido na escola, tais como a proposta curricular do município, revistas com matérias relacionadas à educação, livros de conteúdos a serem trabalhados em sala de aula. Dessa maneira, observou-se que as práticas de leitura/escrita experimentadas davam-se em função do oficio de ser professora, restringindo-se, portanto, ao ambiente de trabalho e estando enquadradas em planos de aula, documentos escolares, livros e materiais dos alunos. As professoras diziam que gostavam de ler romances, livros de aventura e mistério, histórias de amor, gibis, sites da internet, blogs de pessoas conhecidas, que caracterizavam como suas leituras preferidas e que despertavam seu interesse, mas esses não faziam parte de seu repertório de leituras, principalmente porque não tinham tempo, dada a sobrecarga de trabalho na escola e as responsabilidades que elas assumiam como mães e esposas em seus lares. Desse modo, a leitura tinha sentido de obrigação, e, nesse caso, apesar de lerem muito, o prazer pela leitura frequentemente não estava presente.

Ao elencarem as dificuldades que enfrentavam no ensino da leitura, as professoras afirmaram que os alunos eram "resistentes"; que apresentavam "dificuldade de concentração", "desinteresse", "medo de errar", "vergonha de pedir ajuda", "sentimento de incapacidade", "baixa auto-estima", "falta de confiança", "insegurança", "pouca imaginação e criatividade". Em diversos encontros foi possível identificar que as professoras também apresentavam os mesmos comportamentos e sentimentos dos alunos em relação à leitura e à escrita. Ao lerem textos de diferentes gêneros, diziam que não gostavam e que não tinham vontade de ler e de escrever. Ao serem solicitadas que escrevessem, as professoras mostravam-se resistentes e inseguras:"Ah, agora vamos ter que escrever?", "Tem que escrever mesmo?", "Ai meu Deus! Escrever?". Ficavam constrangidas e receosas em mostrar os textos que escreviam para as outras pessoas do grupo. Sobre isso, uma das professoras refletiu:

Dá nervoso você ler e pensar que não está dentro do que estão pedindo, a gente fica preocupada com isso. No fundo, não está sendo avaliado nem nada, mas a gente quer fazer bem feito. Eu, nesse sentido, penso: será que vou fazer certo? Será que não errei na escrita, na própria ortografia?

Ao narrar os sentidos que um texto lido produzia nelas, diziam não compreendê-lo, por achar a leitura "muito difícil", "complexa" ou "distante de suas realidades", ou focavam apenas em seus aspectos formais, buscando uma explicação única e lógica para ele; diziam ter dificuldades de estabelecer outros sentidos e de fazer relações com sua própria vida ou com seu trabalho. Assim, durante a leitura de um conto de Clarice Lispector, chamado "A fuga", uma das professoras, utilizando do humor, disse: "Quando a gente foi ler esse texto, eu já estava querendo fugir; fui passando de um parágrafo para o outro. É uma leitura cansativa; é pesada, ruim, distante da nossa realidade". Ao serem questionadas sobre alguma leitura ou livro que de algum modo a tivesse marcado a vida delas, muitas disseram que não havia nenhuma ou não souberam responder.

Nesse cenário, o que se constatou foi que tanto alunos como professoras sentiam-se inseguros e tinham sentimentos negativos em relação à leitura/escrita. O prazer por essas atividades na escola não se evidenciava no discurso das professoras até esse momento. As práticas de leitura e escrita remetiam-nas a um sentido técnico ou puramente burocrático. Predominava a valorização da linguagem em seus aspectos formais, em especial os fonéticos/fonológicos e morfossintáticos, em detrimento dos seus aspectos discursivos. Do mesmo modo, a relação dos alunos e das professoras com a leitura e a escrita tinha um sentido instrumental e utilitário, pois se configurava como uma relação com diferentes materiais escritos, mas com um fim específico e momentâneo, geralmente o de dar conta das tarefas escolares. Os sentidos produzidos em tais atividades não eram partilhados e compartilhados entre as professoras e os alunos, nem somente entre os alunos ou entre as professoras.

Soma-se a isso um dos aspectos trazidos pelas professoras em diversos encontros que dizia respeito à exigência quanto à grande quantidade de conteúdos a serem ensinados aos alunos, em um tempo considerado por elas como insuficiente para que esses tivessem um bom aprendizado. Essa questão resultava no conflito entre a cobrança, por parte principalmente dos órgãos educacionais, de se ensinar todo conteúdo presente na proposta do município, privilegiando um ensino quantitativo, e a priorização do aspecto qualitativo da aprendizagem, respeitando o tempo do aluno. Segundo as professoras, era exigido que os alunos produzissem textos, de diferentes gêneros e em grande quantidade, mas sem se preocupar que tais textos lhes fossem significativos, pois eles não tinham oportunidade de voltar ao seu texto, de modo a pensarem sobre sua escrita, processo esse fundamental à apropriação significativa da leitura/escrita. Sobre isso, uma das professoras comentou:

A grande maioria do tempo, a gente dá produção de texto para nosso aluno e depois ele nunca mais volta naquela produção. Ele sempre vai para o próximo texto. Em que momento ele volta naquele texto? De repente, em que momentos a gente pode retornar naquele texto, ter uma nova ideia? Será que não é isso? Uma prática que eu vejo que a gente não tem com os alunos é aquela coisa do rascunho, a gente esboçar o que vai escrever pra depois passar a limpo. Não dá tempo de fazer a reescrita, e isso com certeza ajudaria o aluno a se apropriar com mais efetividade da escrita.

O cenário que vai se desenhando, por meio da análise do discurso das professoras, é o de uma escola onde há grandes quantidades de tarefas e exercícios burocráticos e repetitivos a serem realizados pelos alunos e professoras. Apoiados em Benjamin, os autores Souza e Gamba (2003) afirmam que o sujeito moderno vive os acontecimentos na forma de choque, de estímulo, de vivência instantânea, pontual e fragmentada; a velocidade com que são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, que caracteriza o mundo moderno, impedem a conexão significativa entre os acontecimentos, já que cada um deles é imediatamente substituído por outro que igualmente o excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio significativo.

No espaço escolar, essa característica da modernidade se evidencia. A respeito disso, Dias e Breia (2010) observam, na contemporaneidade, em todos os setores da educação, tanto aluno quanto professores subjugados a mecanismos de controle do tempo e da produção, enfatizando um investimento no tempo-espaço do produtivismo, característica dos tempos modernos. Em contrapartida a esse cenário, a experiência de que fala Walter Benjamin é, conforme Bondía (2002), um encontro ou uma relação com algo que se experimenta. O conhecimento que deriva da experiência tem relação com o modo como o sujeito vai respondendo ao que lhe acontece ao longo da vida e com o modo como ele lhe atribui sentido, transformando-o.

Em relação à leitura e à escrita, Kramer (2001) afirma que a experiência se efetiva quando a escrita permite ao sujeito refazer o processo, sistematizá-lo e melhor compreendê-lo, percebendo as contradições, incoerências e dificuldades existentes no ato de escrever. Portanto, escrever significa interferir no processo, deixar-se marcar pelos traços do vivido e da própria escrita, reescrever textos e ser leitor de textos escritos e da história pessoal e coletiva, marcando-a, compartilhando-a, mudando-a, inscrevendo nela novos sentidos. A escrita como experiência refere-se a situações nas quais o vivido assume uma dimensão para além do finito. O que faz dela uma experiência é o fato de que tanto quem escreve quanto quem lê enraízam-se numa corrente, constituindo-se com ela, aprendendo com o ato mesmo de escrever ou com a escrita do outro, formando-se.

Em resposta a isso, em diversos momentos os coordenadores discutiram com as professoras o fato de que, mais importante do que produzir diferentes textos e em grandes quantidades, era fundamental que se escrevesse textos com sentidos, que permitissem aos sujeitos se apropriarem discursivamente da linguagem, compreendendo-a como existente no cotidiano e podendo utilizá-la na sociedade como prática social, concreta e transformadora. Produzir e consumir textos em grandes quantidades, por meio de leituras interrompidas e fragmentadas, não garantiria uma experiência significativa e transformadora com a leitura e a escrita.

A formação das professoras, como leitoras e escritoras, era um dos principais objetivos no trabalho de formação continuada realizado. Apesar da insegurança e do receio das professoras diante da leitura e da escrita evidenciados nos encontros, os coordenadores procuravam encorajá-las nesse processo por meio de diferenciadas atividades, distintas tarefas próprias dos processos de qualificação de professores. Não buscavam ensinar teorias e metodologias de ensino a essas professoras, mas, por meio do diálogo, com elas incentivavam a participação oral nas discussões realizadas e insistiam em fazê-las ler e escrever.

Com o tempo, observou-se que as professoras foram se posicionando de maneiras diferentes diante da leitura/escrita. Aos poucos, elas foram assumindo seu lugar como leitoras e, com isso, passaram a ter outras relações com a leitura e escrita, atribuindo diferentes sentidos a essas práticas. A partir desses novos sentidos, as educadoras passaram a refletir sobre o trabalho que realizavam com os alunos. Ao se perceberem inseguras diante do ato de escrever, colocavam-se no lugar deles, demonstrando que muitas vezes é desse modo que o aluno se sente diante da leitura/escrita. Disse uma das professoras:

Como nós, os alunos também precisam ser encorajados a ler e a escrever. Eles têm medo de errar, e eu preciso incentivar e encorajar.

Esse processo de identificação com os alunos foi decisivo para que novos sentidos pudessem ser atribuídos às suas práticas de ensino da leitura e da escrita. Desse modo, as professoras consideraram que, assim como elas, seus alunos também precisavam ser encorajados a ler e a escrever, mas a escrita e a leitura precisavam se configurar como práticas significativas e transformadoras da consciência e da realidade. O que ia se evidenciando era que as professoras cada vez mais se viam como leitoras e percebiam o seu papel político na formação de seus alunos como leitores e escritores.

Para aprofundar essa discussão, selecionou-se um acontecimento significativo que ocorreu no sétimo encontro. Nesse dia, uma das professoras relatou que a escola não tinha uma biblioteca, mas apenas muitos livros, que estavam encaixotados. A diretora da escola afirmou que não havia espaço para isso, mas que em cada sala havia o que chamavam de "cantinho da leitura". A professora argumentou que os livros que estavam nas salas eram simples e não despertavam o interesse dos alunos. O grupo então passou a discutir um modo de ampliar o acesso à leitura aos alunos. Criaram então uma biblioteca itinerante; passavam com um carrinho cheio de livros nas salas para que os alunos emprestassem. Posteriormente, devido ao grande interesse dos alunos, a escola conseguiu um espaço e montou sua própria biblioteca. Uma das professoras responsáveis falou sobre essa experiência:

A gente pegou, colocou na caixa e catalogou todos os livros novos e levamos para as salas. Hoje, passamos numa terceira série e falamos: "Ah, nem vamos passar ali, vamos passar semana que vem porque eles estão na aula de artes". Nós passamos na porta, daí eles: "A diretora! Os livros! Os livros!".

Todo mundo ficou ali na porta. Daí, tivemos que entrar na turma, porque eles ficam ansiosos esperando os livros; eles ficam quietinhos escolhendo os livros, maravilhados.

Novas formas de relação com a leitura foram se evidenciando no discurso das professoras ao re-significar suas experiências e compreenderem seu papel e seu trabalho como educadoras. Em seus discursos evidenciavam-se surpresa e alegria ao perceberem que seus alunos se interessavam e estavam "maravilhados" pela leitura, em contraposição ao desinteresse e desmotivação antes observados. Nesse sentido, as professoras relataram a importância de oferecer o contato com os livros para os alunos recuperando o prazer pela leitura e pela escrita. Seus posicionamentos em relação às suas próprias leituras também foram se modificando. Em um dos encontros, as professoras leram trechos de livros de memórias de infância de diferentes autores. Um grupo de professoras leu pequenos trechos do livro As palavras, do filósofo Jean Paul Sartre, em que ele narra a experiência que teve com a leitura em diferentes momentos quando criança. Uma das professoras assim contou:

Sartre, mesmo sem saber ler, já era levado a ter contato com os livros. Então, ele gostava de olhar, pegar, abrir, folhear; queria entender o que estava escrito ali dentro. Que nem a gente faz com as crianças. Na primeira série, eles não sabem ler, mas mesmo assim a gente entrega livros pra eles e eles querem ler, querem pegar, às vezes rasgam, querem mostrar para os colegas, até eles entenderem que aquilo ali eles podem transformar em leituras, palavras. E, quando Sartre foi aprendendo a ler, passou a ouvir as vozes, o que eram essas vozes? Eram as palavras que saíam do livro, não da boca da mãe dele, não da boca do avô dele; era a própria leitura que ele fazia, as palavras do livro foram se tornando suas palavras.

A professora foi identificando, desse modo, na história de Sartre, muitos aspectos que vinham sendo discutidos no grupo sobre suas práticas de leitura e escrita e a dos seus alunos. Tanto é que ela mesma fez relação ao trabalho com os alunos. Assim como aconteceu com Sartre, afirmou essa experiência com a leitura e a escrita também precisa acontecer com a criança na escola. Assim fala a referida professora:

A importância de a criança ser apresentada ao mundo da leitura, de ela ser instigada, de conhecer, de ter prazer, de fazer sentido na vida dela. Eu acho que a maioria dos textos que lemos nos encontros traz a questão do incentivo da leitura. Sempre é o pai, a mãe, a professora que apresenta essa vida pra criança; ninguém ama o que não conhece.

Com esses novos sentidos, o desinteresse, a desmotivação, a distração, a insegurança, o sentimento de incapacidade, a falta de imaginação e de criatividade e a baixa auto-estima dos alunos passaram a ser compreendidos pelas professoras não mais como problemas individuais ou como a causa das suas dificuldades de aprendizagem, mas sim como resultado de práticas instrumentais de leitura e escrita realizadas na escola. Sobre isso, uma das professoras disse:

Pensei na forma como a gente é leitor, né? Leitor pros filhos, leitor pros alunos. Se a gente não tem uma forma atraente de contar história, a criança muitas vezes não vai entender nada. Se você lê de qualquer forma pra criança, elas vão achar que a leitura é um bicho de sete cabeças, que é terrível para entender alguma coisa ou não vai fazer sentido nenhum.

Diante desses fatos, não se pode dizer que as dificuldades de leitura e escrita que as professoras apresentavam resultavam da incapacidade de compreenderem os diferentes sentidos de um texto, pois, ao terem a experiência com diversos textos, elas demonstraram serem capazes de estabelecer relações estéticas e profundas com a leitura. Essas professoras não eram leitoras incompetentes e despreparadas; elas poderiam despertar o interesse dos seus alunos pela leitura em práticas que tivessem sentido para eles. No seu discurso, observou-se que, mesmo quando a leitura não era o foco nas aulas, ela se fazia presente e ganhava espaço na escola. Como disse uma professora:

Uma aluna, esta semana, a gente estava trabalhando com o sistema solar, falamos sobre a Terra. Daí, na terça-feira, ela chegou pra mim e falou: "Professora, eu trouxe esse livro pra você ler". Eu achei interessante, porque ela relacionou com o que ela tinha visto na semana anterior, e eles estão gostando de ler. E todos os dias eles trazem uma leitura diferente, mesmo que eu não peça. Agora virou hábito.

Nesse sentido, o que essas professoras estavam resgatando em seu trabalho com a leitura e a escrita era aquilo que Benjamin (1994) chama de dimensão polissêmica da linguagem, ou a dimensão pluridiscursiva em Bakhtin (1975/1998), que se contrapõe à cristalização e à redução das palavras do texto a um sentido unívoco e definitivo. Ao avaliarem o trabalho de formação continuada realizado, as professoras reconheceram que os problemas e as dificuldades em suas práticas não haviam se encerrado. No entanto, a partir dos novos sentidos produzidos, essas professoras disseram estar mais seguras quanto ao modo de trabalharem com a leitura e a escrita; reconheceram-se mais capazes de encontrar novos caminhos para enfrentarem os empecilhos em sua profissão; perceberam mudanças significativas em suas práticas e reafirmaram seu compromisso social e político com a educação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de formação continuada, analisada e discutida neste artigo, evidencia a importância de se compreender os sentidos da leitura e da escrita para professoras alfabetizadoras e, ao mesmo tempo, a necessidade de se considerar nos programas de formação de professores o incentivo para práticas significativas de leitura/escrita, promovendo a construção de espaços de re-significação, produção e criação de novos sentidos para leitura e escrita, contribuindo, dessa maneira, para uma atuação mais efetiva do professor e dos demais profissionais no contexto escolar. Considera-se importante a formação do professor como leitor e escritor para que ele realize seu trabalho de maneira que as práticas de leitura e de escrita ultrapassem a dimensão instrumental, própria do modelo autônomo de letramento, que é o modo como vêm sendo realizadas e experimentadas na escola, podendo alcançar uma dimensão emancipatória, de prática social relevante, que resulte em práticas de leitura e de escrita revestidas de significados e consolidadas como experiências efetivamente transformadoras; que sirvam para além de meros exercícios de prestação de contas à contabilidade escolar e às suas exigências burocráticas. Sabe-se que existem diversas ações do Ministério da Educação no sentido da necessidade apontada, porém a realidade escolar, expressa pelos dados estatísticos e pelos discursos das professoras, evidencia que muito ainda precisa ser feito no campo das práticas formativas de leitura e escrita. Cabe às escolas e profissionais responsáveis pela formação de professores aplicar, avaliar, discutir e refletir criticamente a respeito desses programas, bem como criar novas possibilidades de intervenção no contexto escolar, rompendo com o distanciamento que há entre as propostas de melhoria da alfabetização e a realidade concretas das escolas que, por questões históricas, sociais, políticas e burocráticas, encontram, muitas vezes, dificuldades de implementá-las. Ressalta-se, ainda, que a escola é a principal instituição responsável pela formação de leitores e escritores e um lugar privilegiado e para promover a experiência com a leitura e a escrita. Entretanto, sabe-se que a formação de leitores/escritores perpassa também pela ampliação do seu espectro cultural e de informações, como o acesso a bibliotecas, exposições, feiras de livros, museus, teatros, cinemas, espetáculos musicais e de dança e diversas outras esferas da atividade cultural. Nesse sentido, é necessário um investimento na criação e no acesso a esses espaços culturais não apenas por parte das instituições educativas, mas também de outros setores da sociedade.

Quanto à psicologia, para uma prática mais efetiva, os psicólogos escolares precisam ter uma atuação mais ativa no campo do letramento no contexto escolar, aprofundando seus estudos no que diz respeito aos processos de apropriação da leitura e da escrita, envolvendo-se profundamente com sua compreensão. Do mesmo modo, considera-se necessário que o psicólogo escolar trabalhe com a formação continuada de professores, discutindo não apenas os processos de letramento dos alunos, mas também dos próprios professores, assegurando que a leitura e a escrita sejam experiências significativas e evitando que os cursos de formação de professores sejam somente espaços de instrução dos métodos e das técnicas disponíveis ou de ensino de teorias e conceitos.

 

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