Psicologia: ciência e profissão
ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.1 n.1 Brasília jan. 1981
Treino em pesquisa, treino em compreensão1
Training in research, training in comprehension
Entrainement à la recherche, entrainement à la comprèhension
César Ades
Universidade de São Paulo
RESUMO
O treino em pesquisa e uma parte importante, geralmente negligenciada, da formação do psicólogo. É sua função, além de preparar do ponto de vista metodológico, fomentar uma atitude criativa de curiosidade e de crítica. O contacto com a pesquisa pode ocorrer em vários níveis - da citação teórica à elaboração e execução de um projeto - todos merecedores de análise. Caminhos produtivos para um programa de instrução poderiam ser: (1) a criação de condições para o surgimento da motivação epistêmica; (2) a exploração da região limítrofe entre o domínio básico e o aplicado, ressaltando a relevância da pesquisa para ambos e (3) a integração do treino em pesquisa com outros setores do currículo. É crucial incentivar-se, em nosso meio, o intercâmbio de experiências a respeito do ensino da pesquisa como maneira de aperfeiçoar a área e de pensar novas alternativas para um currículo em psicologia.
SUMARY
Training in research is an important, but generally neglected part of the training of the psychologist. Its purpose, beyond teaching methodology, is to instill a creative attitude of curiosity and criticism. Contact with research can take place in various ways - from theoretical citation to project development and execution - all deserving analysis. Pruductive paths toward an instructional program are: (1) creative conditions for the growth of an epistemic attitude; (2) exploring the boundaries between basic ad applied domains, with emphasis on the relevance of research for both: (3) integrating research training with the other componentes of the curriculum. It is crucial to strimulate the interchange of experiences in research training in order to develop this area and create new alternatives for a psychology curriculum.
RÉSUMÉ
L'entrainement à la recherche est une partie importante, mais en général negligée de la formation du psychologue. I1 aurait comme fonction, non seulement la préparation du point de vue méthodologique, mais encore celle de susciter une attitude créatrice de curiosité e de critique. Le contact avec la recherche peut s'effectuer à des niveaux différents - de la citation théorique à l'élaboration et l'exécution d'un projet - qui tous méritent être analysés. Des chemins productifs pour un programe d'instruction pourraient être: 1) la création de conditions pour le surgissement de la motivation épistémique; 2) l'exploration de la région limitrophe entre le domaine de base et le domaine d'application, en soulignant l'intérêt de la recherche pour tous les deux domaines; 3) l'intégration de l'entrainement à la recherche avec d'autres sectuers du curriculum. Dans notre milieu, il est d'importance cruciale de stimuler l'échange des expériences à propos de l'enseignement de la recherche, afin de pouvoir perfectionner ce champ, tout en pensant à de nouvelles alternatives pour le curriculum en psychologie.
RESUMEN
La preparación para la investigación es um aspecto importante, generalmente descuidado, de la formación del psicólogo Su función consiste, además de preparar desde el punto de vista metodológico, en desenvolver una actitud creadora de curiosidad y de crítica. El contacto con la investigación puede presentarse en varios planos - desde la citación teórica hasta la elaboración y ejecución de um projecto - todos dignos de ser analizados. Senderos prometedores para um programa de instrución podrian ser: 1) crear condiciones adecuadas para la aparición de la motivación epistemológica; 2) explorar la zona fronteiriza entre el domínio básico y el aplicado, resaltando la relevancia de la investigación para ambos; 3) integrar la formación para la investigación com otros sectores del curriculum. Es fundamental incentivar, em nuestro medio, el intercambio de experiencias sobre la preparación para la investigación, como manera de perfeccionar la área y de buscar nuevas alternativas para el curriculum de psicologia.
Em ensaio publicado originalmente em 1913, Bertrand Russel (1977) sentia-se na necessidade de defender a postura científica como objetivo educacional, "o valor intrínseco do hábito mental científico na formação de nossa perspectiva em relação ao mundo". Hoje em dia, embora a importância da pesquisa como via para a obtenção de conhecimentos acerca da natureza e do homem já esteja bem estabelecida, virando quase lugar comum, não se verifica muito empenho ou sucesso na colocação do espírito de pesquisa como atitude a ser incentivada, no contexto do ensino universitário, especialmente em cursos de psicologia.
A exigência social de atuação, a curto prazo, em áreas de necessidade, o prestígio e a remuneração ligados, em expectativa pelo menos, ao exercício profissional, o desejo de "engajar-se" na modificação da realidade social, criam uma nítida valorização do aspecto aplicado da psicologia em detrimento do aspecto de pesquisa, caracterizado às vezes como abstrato, inútil, alienante.
Em geral, ao escolherem o curso de psicologia, os alunos se deixam guiar pela imagem do psicólogo como solucionador de problemas individuais e comunitários, como especialista da ajuda a pessoas do ponto de vista do ajustamento e do bem estar emocional. Nesta imagem raramente desponta a pesquisa, quer como estágio preparatório para a atuação social, quer como ingrediente desta atuação. É como se houvesse cisão entre a função de descobrir ou organizar a informação e a função de utilizá-la; como se a prática pudesse manter-se autônoma, como se pudesse alimentar-se dos produtos de seu próprio desempenho.
Onde quer que seja oferecido um curso de psicologia, surge a preferência pelos aspectos de aplicação. Em questionário aplicado a alunos de primeiro ano do Instituto de Psicologia da USP (Ana Maria Almeida Carvalho e Maria Alice Vanzolini da Silva Leme, 1978), constatou-se que áreas de aplicação foram escolhidas como motivação básica por 80% dos alunos que manifestaram um interesse definido. Mesmo nos 20% restantes, a preocupação pela compreensão da "natureza humana" parecia decorrer de um interesse pela atuação prática. Um questionário aplicado a alunos norte-americanos de psicologia mostra que "de maneira geral" eles estavam interessados por áreas aplicadas como psicologia, personalidade, desenvolvimento e psicologia social. Estatística,psicologia fisiológica e psicologia experimental estavam sempre entre as áreas menos preferidas" (Quereshi, 1977, p.50; Quereshi, 1979).
O desligamento entre disciplinas consideradas "básicas" - mais específicamente, as que se centram na pesquisa ou na experimentação - e as disciplinas de cunho aplicado, i acentuado na maioria dos currículos confirmando, de algum modo, a discriminação inicial dos alunos entre dois domínios em psicologia. Após a parte básica, geralmente confinada aos primeiros anos do curso, o aluno entra em contacto com assuntos mais próximos daquilo que sente será sua atuação prática. Aprende então uma nova linguagem, verifica que os requisitos para alcançar a certeza são outros, parece-lhe estar diante de um caminho epistemologicamente distinto.
O presente artigo parte do pressuposto de que não há razão necessária para considerar como antagônicos ou incompatíveis os aspectos de pesquisa e aplicação em psicologia e de que há muita vantagem em se apresentar os dois domínios de uma forma integrada, num quadro de referência que enfatize a unidade do conhecimento2.
Tal como o encaro, este esforço integrador não significa conferir predomínio a uma ou outra corrente de pesquisa, "experimentalizando" à força toda a psicologia, mas consiste num duplo movimento através do qual são desvendadas as raízes de pesquisa básica que subjazem à atividade prática e através do qual se mostra a potencialidade do campo aplicado como fonte de descoberta científica. Nesta perspectiva, perdem sentido as distinções simplistas entre a vertente "exploratória","cognitiva" da psicologia e sua vertente de atuação concreta.
O treino em pesquisa oferecido em cursos de graduação - objeto das presentes notas - não pode ser visto como visando, primordialmente, encetar a formação do pesquisador de carreira (categoria, aliás, para a qual a oferta de trabalho e muito escassa, no Brasil de hoje). Cabe pensá-lo como um caminho para a formação de uma atitude criativa de investigação e teorização, válida dentro e fora do laboratório.
UMA DEFINIÇÃO AMPLA E AVENTUROSA DE PESQUISA
Põe-se,às vezes,ênfase na definição de pesquisa, sobre seu aspecto de alta especialização e sua característica de atividade aberta apenas a uma elite intelectual. Cerqueira Leite (1978) expressou, há algum tempo, uma concepção desse tipo na qual não se pode deixar de sentir semelhanças com a imagem popular do cientista como indivíduo dotado de mente priveligiada, obsessivo, os cabelos revoltos à Einstein.
Num grupo saudável de pesquisa, escreve Leite, "geralmente existe um líder experiente que e responsável pelas principais idéias; alguns outros pesquisadores igualmente experientes, sem grande iniciativa própria, mas competentes quanto à metodologia técnico-científica e bem informados, também participam freqüentemente do grupo. Estes sabem proceder, uma vez supridos com as idéias do líder. O terceiro elemento constituinte do grupo é formado por um conjunto de aprendizes... A característica comum a todos os componentes do grupo é uma tenacidade obsessiva... O verdadeiro cientista está em competição com Deus. Ele procura desesperadamente aquilo que os homens ainda não conhecem e, dominar a natureza. Ele é, portanto, necessariamente agressivo e arrogante, embora possa assumir certa aparência de humildade". A formação do cientista, necessariamente lenta, deveria então ser feita de maneira a estimular sua competitividade.
A imagem esboçada por Leite, com sua tipologia dos cientistas em "líderes" e "aplicadores das idéias dos líderes" certamente se aplica a certos núcleos de pesquisa: todo um capítulo de sociologia da ciência poderia ser escrito sobre a dimensão do poder, da competição e da competência no meio acadêmico3. Ela contudo não faz justiça à heterogeneidade das maneiras de fazer ciência nem a todos os aspectos da motivação do pesquisador.
Ao invés de insistir na manutenção de uma imagem idealizada do pesquisador - arrogante, competitivo, especial - convém apresentar a pesquisa aos alunos como uma esfera de pensamento e ação da qual podem participar, em certo grau. Trata-se de difundir uma atitude de curiosidade, inquirição e rigor que constitui o âmago da motivação do pesquisador. Sem deixar de reconhecer a necessidade de um treino especial, avançado, para os que seguirão a carreira acadêmica, cabe tomar a atitude e os desempenhos de pesquisa, no sentido amplo, como objetivo educacional básico.
Esta concepção do treino em pesquisa como formativo, como preparação para as diversas atividades do psicólogo, é bastante difundida, pelo menos entre docentes, embora venha geralmente acompanhada da constatação de que, no estágio atual da universidade brasileira,são muito grandes as dificuldades na tentativa de expor o aluno de forma satisfatória à pesquisa.
Um questionário , veiculado entre professores de psicologia as vésperas da VIII Reunião Anual de Psicologia da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto (1978) teve a parte relativa ao treino em pesquisa respondida por 29 pessoas. Destas, a maioria disse não existir, em sua instituição, treino de pesquisa e muitos consideraram os cursos de metodologia existentes como insuficientes enquanto instrumento para o ensino da pesquisa. Opiniões fortemente favoráveis ao treino em pesquisa surgiram em quase 80% dos casos em que houve resposta. Não houve rejeição mas apenas, em algumas pessoas, considerações como "o treino não é desnecessário" ou "é útil mas não necessário" que indicam, nestes casos, uma valorização parcial, hesitante.
Os colegas da USP que pude consultar manifestaram-se todos firmes na defesa do treino em pesquisa como alicerce, não como luxo. Opiniões típicas foram: "Acho que, a não ser que estejamos formando justamente...aplicadores de técnicas, o treino em pesquisa é essencial; não, talvez, com o objetivo de formar uma pessoa competente e auto-suficiente no planejamento e execução de pesquisas... mas para dar "espírito crítico". O que quero dizer é que o profissional deve ser crítico a respeito da origem e da fecundidade das técnicas que usa e mesmo, de modo mais geral, do conhecimento que aplica. Acho que o treino em pesquisa contribui para isso de duas formas fundamentais: mostrando como a gente não sabe, mostrando como e complicado saber". "Para mim, o treino em pesquisa é essencial.... por várias razões. Uma delas é a atitude do pesquisador... No Brasil, muitas técnicas são importadas, muitas conclusões obtidas em pesquisas feitas em outros países são tidas como verdadeiras para nós... A atitude de pesquisador num profissional o acautelaria contra estas suposições, tornariam o seu trabalho uma pesquisa constante e o levariam a modificar, incessantemente, muitas das coisas que, sem esta atitude, seriam aceitas como verdadeiras".
A pesquisa está associada, comumente, a números, estatísticas, equipamentos complexos e cientistas de avental. Talvez sejam estas associações que a tornem um pouco assustadora aos olhos do estudante que, vagamente, está interessado em "conhecer o ser humano". Ela surge como disciplina de restrição e de crítica, como implacável censura diante de qualquer expansão da intuição.
É claro que números, estatísticas, equipamentos e aventais assim como, de maneira geral, uma restrição das proposições e da linguagem a uma faixa considerada aceitável, entram freqüentemente como ingredientes da investigação psicológica4. Mas é crucial que não se perca de vista, quando está em jogo o estabelecimento de objetivos de instrução, o outro aspecto da ciência: explorador, aventuroso, em busca de descoberta, essencialmente recompensador, mesmo em suas tentativas fracassadas.
O repertório do cientista sempre inclui dois aspectos em integração dinâmica: de um lado, o esforço ço em saber até que ponto uma afirmação é permissível, dados um contexto de resultados e um universo de conceitos logicamente encadeados. Aqui, impera a desconfiança, o exame cuidadoso das provas, a consideração de possíveis falhas do instrumental conceitual ou físico. De outro, a ativação de processos heurísticos que lançam o cientista na reconstrução simbólica dos fenômenos, na reconstituição de suas molas secretas e finalmente o fazem atuar sobre um certo aspecto do real, em expectativa de descoberta.
Os pontos de partida deste pensamento aventuroso e aberto podem ser: (1) a descoberta de falhas ou contradições na rede de informações já obtidas; (2) a transformação de um evento aparentemente simples e corriqueiro em evento-problema; (3) a tradução de uma linguagem de descrição imediata dos eventos na linguagem de determinada teoria, dando ensejo para que uma "manipulação" conceitual leve a deduções inesperadas; (4) a procura de táticas de observação ou de experimentação que poderiam permitir ao estudioso abordar um fenômeno sob novos ângulos. É preciso situar a pesquisa numa perspectiva de descoberta, devolvendo-lhe seu caráter de desafio.
Qualquer concepção acerca de treino em pesquisa remete a uma ideologia subjacente sobre ciência. Não há modo, então, de evitar algum grau de divergência quanto às habilidades que cada programador de currículo achará mais adequadas, em termos de benefícios futuros. O unico perigo, a meu ver, reside na adoção exclusiva de um modelo estreito de pesquisa, vinculado a uma determinada área de fenômenos onde, por uma razão ou por outra, tenha obtido sucesso.
Indissociável do caráter criativo da pesquisa está sua virtude de oportunismo, ou seja, de adaptação ao tipo de fenômeno considerado. Da mesma forma como seria, no limite, absurdo propor um regimento que estabelecesse de antemão e em pormenores a maneira como deve ser pintado um quadro ou escrito um poema, seria contraproducente, em psicologia, fechar-se no campo de uma metodologia especializada em demasia, ignorando a diversidade de caminhos frutíferos que se abrem para exploração. O próprio do espírito de pesquisa é permitir que, a cada passo, a discussão venha atuar como auto-corretivo.
NÍVEIS DE CONTACTO COM A PESQUISA
No início, o aluno aprende a respeito de pesquisa por "ouvir dizer". Mesmo em disciplinas teóricas, a referência a pesquisas ocorre a cada passo. Ao lado de proposições que mostram como as coisas são, ou definem termos ou expõem hipóteses (por exemplo: "As condutas motivadas inicialmente por uma necessidade biológica, como a fome ou a sede, podem passar depois a desenrolar-se na ausência desta necessidade, de um modo autônomo", Reuchlin, 1979), surgem proposições que ligam uma afirmação factual a determinada investigação prévia (por exemplo: "Held (1965) também demonstrou que a oportunidade de associar movimentos realizados pelo próprio organismo com a estimulação visual é necessária para a adaptação no caso de adultos submetidos a um deslocamento visual", Harlow, McGaugh & Thompson, 1978).
O aluno toma consciência de que a aceitabilidade de um enunciado não depende apenas ou necessariamente do quanto, à primeira vista, parece adaptar-se à sua experiência passada ou de quão convincente é a argumentação em que vem inserido. Aprende que cada "fato" possui uma origem na história do conhecimento, isto é, provim do trabalho de um investigador ou grupo de investigadores e que sua credibilidade depende da seriedade do método de produção que lhe é subjacente.
A referência a uma pesquisa é feita às vezes de maneira elítica, apresentando-se a conclusão sem explicitar o caminho de acesso; as vezes prove uma descrição rápida do procedimento; em certos manuais, encontra-se, em forma de leitura complementar, resumos de pesquisas relevantes, depurados dos aspectos técnicos rebarbativos, porém razoavelmente completos. O aluno tem, neste caso, como que um sucedâneo do material informativo com o qual o cientista profissional tem necessariamente de lidar.
Já neste nível, ele percebe a importância atribuída à pesquisa como instrumento de conhecimento e verifica que a referência a resultados tem o papel de argumento ou de prova. O perigo reside, contudo, numa falta de compreensão do caráter essencialmente dinâmico de um dado de pesquisa. Dentro de um texto introdutório ou no decorrer de uma aula, mencionar um trabalho experimental leva facilmente à impressão de que "já se sabe a verdade a respeito deste ou daquele aspecto do comportamento", como se um exprimento único pudesse fornecer a última palavra a respeito do assunto, ou como se ele isentasse de reflexão sobre suas implicações teóricas.
Nas disciplinas de "metodologia científica", a pesquisa passa de fundo para figura. Focaliza-se o fazer, abstraído até certo ponto de seus resultados factuais ou das generalizações às quais pode dar origem. Discute-se os instrumentos de medida , as técnicas de coleta de dados, os testes estatísticos e sua margem de aplicação, a validade das inferências e das teorias. Disciplinas como estas, embora possam aproveitar a título de exemplo pesquisas concretas, são essencialmente reflexivas, isto é, visam uma espécie de analise das condições mesmas do conhecimento. Num nível evidentemente muito mais rudimentar, pedem um pouco ao aluno que adote uma postura semelhante à do filósofo da ciência.
Disciplinas de metodologia e afins contribuem para proporcionar um contacto maior do aluno com os problemas da ciência e para adestrá-lo numa perspectiva crítica. Contudo, conforme notam professores, podem pecar justamente por terem um caráter abstrato, pelo seu distanciamento em relação ao domínio variável e complexo dos "fatos". Opina um deles: "Creio que a pesquisa não se aprende lendo livros sobre metodologia de pesquisa mas sim, fazendo e vivendo, na prática, os problemas metodológicos que surgem quando se realiza uma pesquisa. Além disso, costuma-se isolar o problema metodológico do problema teórico, criando uma falsa impressão de que uma coisa é colher dados, outra coisa interpretá-los". Tira-se a impressão de que um curso de metodologia somente teria pleno impacto se ministrado concomitantemente com outro em que o aluno tivesse vivência de pesquisa ou, em séries adiantadas, como meio para reanalizar e integrar experiências prévias de pesquisa.
O recurso ao qual mais comumente se recorre para proporcionar ao aluno o "gostinho" da pesquisa é o chamado trabalho prático. Trata-se de uma situação simplificada em que, muitas vezes, o professor eliminou de antemão as dificuldades que poderiam atravancar a execução do exercício ou levar o aluno a becos sem saída. Equipamentos padronizados e registros padronizados são programados para levar a resultados até certo ponto previsíveis.
Entre os aspectos positivos do trabalho prático esta o contacto com o "sujeito" concreto: um colega de turma ao qual aplicar um procedimento psicofísico, um rato branco submetido a exigências maiores ou menores de trabalho para ganhar uma gota de água, o escolar que se submete a procedimentos piagetianos ou ao qual é aplicado um teste, etc. Talvez o aluno sinta que ainda não está apreendendo todos os segredos da mente humana, mas vê-se envolvido num relacionamento fascinante com um indivíduo.
As condições controladas de observação e manipulação de variáveis permitem que o aluno seja recompensado ao redescobrir, em forma simplificada, um resultado já conhecido, pela constatação de que certas "verdades" estão ao seu alcance. Ao mesmo tempo em que aprende alguns macetes técnicos e aperfeiçoa suas habilidades de registro, computação, etc, o aluno tem uma chance de por à prova um dos pressupostos que fazem parte da ideologia de seus professores: o fato psicológico possui regularidade; é possível descrevê-lo e nele atuar de forma sistemática.
Embora seja um instrumento de enorme valor para a implementação de cognições e comportamentos relacionados à pesquisa, a prática padronizada tem por limite o próprio aspecto que a torna preciosa. Se ela confirma e fortalece a crença na regularidade de pelo menos certos eventos psicológicos, ela pode transmitir uma concepção pouco aventurosa da pesquisa, vista então como um procedimento que leva a algo que já se conhece, como uma espécie de receita pronta para resultados desejados. Quando o professor, numa disciplina introdutória, fornece aos alunos instruções pormenorizadas de como efetuar, por exemplo, um treino de discriminação, ele cria neles a expectativa de um resultado considerado a. priori como adequado. Todos os outros resultados devem levar a uma correção até que seja alcançado o objetivo. Pode haver então ênfase demasiada no aspecto de controle (como tática que permite levar o organismo a adequar-se a um esquema fixado de antemão) e pouco treino de descoberta propriamente dito.
À medida que aumenta o nível de incerteza quanto aos resultados e também a respeito dos eventuais procedimentos, aumentam os riscos de o trabalho prático não ter um desfecho "satisfatório", no sentido preditivo e de controle. Mas também crescem as oportunidades de o aluno envolver-se com o problema proposto, despertado seu interesse pela perspectiva de, através da produção de informações relevantes, reduzir a incerteza inicial. O exercício prático, de "pacote" pronto, passa a ganhar características de instigação, quando nele se instila o novo e o incerto. Aproxima-se mais de um experimento real.
O aluno, informado do contexto de idéias dentro do qual seu problema experimental ganha sentido e instruído acerca dos pormenores metodológicos, toma consciência de que a pesquisa e uma maneira de questionar a natureza. Os resultados podem ate certo ponto ser antecipados (o aluno pode até mesmo torcer por um deles) mas constituem, na fase inicial da pesquisa, enunciados que incorporam a dúvida, hipóteses mais do que objetivos a serem alcançados5.
Seria um aluno de graduação em psicologia capaz de contribuir com idéias acerca de aspectos de procedimento, ou acerca das questões a serem estudadas em seu trabalho prático? A resposta parece-me que deve ser afirmativa, levados em conta limites a serem fixados em cada contexto concreto.
A experiência colhida em discussões com grupos de alunos sobre projetos de trabalho prático mostra que, às vezes, as idéias sugeridas, embora ricas, carecem de realismo. A ambição de descoberta ultrapassa os meios, técnicos ou conceituais, disponíveis; os resultados almejados não constituem elementos que de maneira inequívoca servissem para demonstrar ou desmentir a hipótese inicial. Aos olhos do professor, os alunos parecem estar fazendo da ciência a arte do insolúvel (estou parafraseando uma expressão do cientista inglês P. Medawar que vê na ciência "the art of the soluble"), ou seja, uma procura de problemas para os quais, no momento, não se vislumbra uma estratégia adequada de solução.
Esta distância entre o enfoque do professor cauteloso, preso aos paradigmas vigentes - e do aluno -ambicioso, mais preocupado pela informação a ser alcançada do que nos meios de alcançá-la - e que constitui o terreno sobre o qual se dará a instrução. Cumpre alcançar o equilíbrio entre o que deve ser sugerido ao aluno (os parâmetros do trabalho prático que a experiência indica serem importantes para que qualquer resultado possa ser alcançado, as regras gerais do jogo científico) e a margem dentro da qual terá a oportunidade de desenvolver suas próprias opções.
Dada uma discussão, com o aluno, do possível, do pouco possível e do impossível, e dado o empurrão inicial, suas sugestões revelam-se freqüentemente interessantes e perfeitamente pertinentes do ponto de vista do assunto proposto. Feitas como que de improviso, possuem às vezes a originalidade de um pensamento ainda não amarrado ao saber codificado dos manuais.
Trabalhos práticos que partem de um planejamento em que se admitiu um certo grau de incerteza não levam sempre ao resultado que o aluno espera. Tratamentos experimentais, que se supunha drásticos, acabam não afetando os sujeitos estudados; classes de indivíduos que acreditava-se fossem diferentes desapontam pela sua homogeneidade e mesmo resultados que se encaixam nas hipóteses favoritas podem deixar de provocar euforia quando, a posteriori, é descoberta uma falha no planejamento de pesquisa. Este "fracasso" não deixa de constituir um elemento positivo dentro da perspectiva de instrução, na medida em que revela ao aluno, a um só tempo, possíveis características dos eventos estudados e a dificuldade que há em arrancar-se um pedaço de certeza ao universo das "coisas".
Um dos organizadores de uma série de manuais de trabalhos práticos consola desta maneira, de antemão, o novato: "...na verdade, fracassar inteligentemente é uma das grandes virtudes do investigador. Cada fracasso é analisado e, a partir desta análise, o sucesso pode ser alcançado. Esperamos portanto que você erre um número razoável de vezes" (Brandwein, 1963).
É muito provável que, dada a natureza corrida e atribulada de seu curso de graduação, o aluno não tenha a possibilidade de levar muito adiante esta "análise de fracassos" e de replicar procedimentos de maneira corretiva. Assim mesmo, afigura-se muito importante que perceba a possibilidade desta correção e que, de maneira geral, conceba a tarefa científica como envolvendo uma série de equilibrações, não havendo previsão quanto à equilibração definitiva.
A aproximação maior ao que seria um modelo ideal de treino ocorre em cursos de iniciação à pesquisa ou de treino em pesquisa nos quais o aluno tem a oportunidade de realizar um projeto concreto ou de colaborar em atividades de pesquisa numa área explorada por um professor ou por uma equipe de professores. Em disciplinas como estas, o relacionamento professor-aluno, além de ganhar na dimensão pessoal, assume as características de um contacto de orientação, com as vantagens auferidas pela possibilidade sempre presente de discussão e de uma supervisão feita de perto. Minha experiência pessoal, como a de meus colegas6, tem sido satisfatória, tanto por constatar que os alunos conseguem assimilar os conceitos essenciais da área e compreender as lacunas ou dissonâncias que deram origem à pesquisa, como por verificar seu alto nível de motivação, o entusiasmo com o qual sugerem, perguntam, analisam, participam. Vários estudantes manifestam interesse em continuar trabalhando no assunto de treino, mesmo depois determinado o semestre, o que e indício de motivação "intrínseca" (DeCharms & Muir, 1978), poderosa alavanca para a produção de mudanças de atitude e comportamento.
Minha tendência é achar que a pesquisa, em qualquer dos níveis em que for apresentada (todos são importantes) - da simples descrição de pesquisas à realização de um projeto próprio ou colaboração em trabalho de equipe - representa essencialmente um jogo conceitual, a procura de coerência num sistema de representação da realidade. Os aspectos puramente metodológicos (uso do equipamento ou planejamento do mesmo, execução dos passos necessários na coleta dos dados, análise dos resultados, redação do relatório) evidentemente merecedores de atenção, só ganham sentido se relacionados a toda uma atividade teórica: colocação de um problema de pesquisa, ensaios-e-erros vicários iniciais em que e revista a bibliografia relevante, em que hipóteses são lançadas, em que críticas às versões anteriores do planejamento são utilizadas como meio de aperfeiçoamento. Obter registros precisos, acumular observações, sim, mas com a condição de assimilá-los a uma concepção em transformação da natureza das coisas. Retomaria de bom grado o conselho de Pavlov aos jovens: "Mas quando estiverem estudando, experimentado e observando, façam o possível para atingir o âmago dos fatos. Não se transformem em armazenadores de fatos. Tentem penetrar nos segredos de sua origem. Procurem persistentemente as leis que os governam" (Pavlov, p.52).
O treino em pesquisa é, basicamente, um treino em compreensão.
Uma questão de motivação, de relevância e de estrutura.
Como melhor transmitir o know-how e a atitude de criatividade e de crítica que caracterizam a pesquisa? não existem, em nosso meio, propostas acerca das técnicas apropriadas de instrução para o treino em pesquisa e a troca de idéias em simpósios ou mesas redondas ainda não levou a análise a um grau suficiente de aprofundamento.
A reflexão poderia começar levando-se em conta os seguintes aspectos básicos, de estreito interrelacionamento: (1) o aspecto da motivação, ou seja, dos recursos a serem usados para manter alta a participação do aluno, para tomar recompensadora toda a situação de instrução; (2) o aspecto da relevância, ou seja, da importância do treino do ponto de vista dos objetivos da população de alunos e do papel sócio-cultural da psicologia; (3) o aspecto da estrutura, relativo à determinação do conteúdo propriamente dito da disciplina, à escolha e concatenação das atividades que a compõem.
MOTIVAÇÃO (EPISTÊMICA)
É certamente equivocada a impressão de que, aos olhos do aluno, a pesquisa aparecerá, no primeiro contacto, tão atraente e relevante como costuma aparecer ao olhos do professor/pesquisador (que, além da retribuição estritamente intelectual, está sob controle de uma série de fatores sociais: salário, prestígio, carreira acadêmica, etc.).
Em suas "Confissões de um autor de manual", McConnell (1978) cita o caso de um aluno a quem tinha dado carona e que, de uma disciplina de psicologia cursada havia algum tempo, só se lembrava do seguinte: "If you ring a bell, a dog will saliva like hell!" ("Se vovê tocar o sino, o cão salivará um bocado'."). Se não quisermos que o nosso aluno conserve, de nossos cursos cuidadosamente preparados, mais do que fragmentos deste tipo, é necessário que obtenhamos sua participação no processo de mudança comportamental, mostrando-lhe o quanto a pesquisa e relevante do ponto de vista de sua formação e de suas expectativas, o quanto é recompensadora.
A tática motivacional adequada consistiria, em primeiro lugar, em ressaltar o aspecto problemático ou de "resolução de quebra-cabeça" da atividade científica. É preciso logo acostumar o aluno a perceber que (1) o conhecimento científico não é algo revelado a algumas mentes privilegiadas e que as outras devam, passivamente, absorver, mas algo conquistado. A assimilação do conhecimento envolve então, necessariamente, uma espécie de redescoberta, o aluno trilhando, de forma vicária, as trilhas abertas por cientistas de carreira; (2) o progresso científico consiste tanto na descoberta de problemas (lacunas e dissonâncias na rede já elaborada de conhecimentos) e na reformulação de abordagens, como na aplicação de paradigmas visando a obtenção "automática" de dados.
No começo do treino, então, devem ser suscitadas a dúvida e a busca da dúvida como condições para o estabelecimento de uma genuina motivação epistêmica (Berlyne, 1960, 1963). 0 surgimento da pergunta ("Será o desempenho do rato mais intenso quando reforçado com x do que com y?", "Como será a apreciação estética de pessoas de determinada idade quando comparada com a de outras pessoas em outro grupo etário?", etc), assimilada pelo estudante, instaura um aumento de prontidão para comportamentos investigativos e aumenta o valor de incentivo da informação que estes possam trazer. A incitação da curiosidade, num contexto teórico ou de planejamento prático, tanto pode provir de uma colocação propositadamente dissonante por parte do professor, como das próprias atividades de questionamento do aluno.
"Há mais, na psicologia, do que atos de decorar e comportamentos motores", lembra McConnel (1978) . "Por exemplo, acredito absolutamente necessário comunicar aos meus alunos parte da excitação, do arrepio da curiosidade intelectual e as recompensas emocionais que advêm da compreensão crescente da complexidade que há nas ciências comportamentais. Assim, de meu ponto de vista viesado, é tão importante modelar as atitudes e emoções de nossos estudantes, como treinar suas cognições e comportamentos" (p.165).
A satisfação inerente ao trabalho intelectual e, mais especificamente, à pesquisa, decorre da percepção de que, em parte e de alguma maneira, a pergunta inicial recebeu resposta e, muitas vezes, de ganhos inesperados de informação em aspectos supostamente periféricos do assunto.
Na medida em que se permite que parte das questões que orientarão a busca sejam levantadas pelos alunos e na medida em que se lhes deixa responsabilidade pela realização concreta da prática ou projeto, institui-se um regime em que a participação do aluno, aumenta, com vantagens claras do ponto de vista da atenção despertada, da freqüência e da qualidade dos comportamentos exibidos, da persistência e do senso de auto-realização7.
Um aluno que participa é um aluno cujo trabalho no curso se justifica, não mais apenas pela simples procura de notas ou pela fuga da reprovação mas pelo seu envolvimento em tarefas onde a sua própria capacidade de pensar está posta à prova.
RELEVÂNCIA
A pesquisa não é, por princípio, alienação. A dimensão científica do pesquisar não representa, por definição, um virar as costas à situação social, nem um incentivo para o cultivo de temas irrisórios, cada vez mais especializados e cada vez menos importantes. Dicotomias fáceis - que opõem o científico como fonte de um "saber inútil" a abordagens intuitivas porém socialmente relevantes - impedem que se alcance um ponto de vista equilibrado sobre as potencialidades e sobre as limitações da atitude de pesquisa.
Parece claro que alunos de psicologia terão sempre, como parte de sua formação, que travar contacto com áreas básicas em que a ciência será apresentada na sua roupagem tradicional de neutralidade e de busca "desinteressada" de saber. Mas, além disso, certamente terão de se tornar familiares com todo um ramo de investigações em que o critério para a seleção dos problemas "pesquisáveis" é a importância e a urgência sociais.
Vários autores têm ressaltado as diferenças entre a pesquisa aplicada e a pesquisa pura. As dicotomias de Azrin (1977) são entre as mais exaustivas: "a pesquisa aplicada tem requisitos diferentes dos da pesquisa básica: a pesquisa aplicada focaliza o resultado mais do que a analise conceitual; a significância clínica mais do que a simplicidade da resposta; a complexidade da situação mais do que a simplicidade dos estímulos e do laboratório; a heterogeneidade da população em contraste com a homogeneidade dos sujeitos; uma abordagem em termos de sistemas mais do que em termos de variáveis únicas; as preferências dos sujeitos mais do que medidas objetivas produzidas mediante equipamentos; benefícios práticos e de custo mais do que a significância estatística e efeitos individuais mais do que uma tendência central" (p.141).
Não há distinção epistemológica marcada entre os dois domínios e as diferenças arroladas por Azrin, e outras que possam ser sugeridas, retratam mais, a meu ver, a necessária adaptação da abordagem científica às exigências específicas que lhe são colocadas, em cada domínio. Uma observação clínica é tão observação quanto um registro de laboratório; a pessoa que se presta a participar de um experimento não difere, ontologicamente, da que poderá recorrer ao profissional, buscando auxílio do ponto de vista de seu ajustamento emocional8.
Cumpre, dentro desta perspectiva, reconciliar aos olhos do aluno a pesquisa e o campo da aplicação e da atuação social desvendando, em primeiro lugar, a identidade epistemológica subjacente. A possibilidade de transição entre um domínio e outro poderia ser indicada: (1) mostrando a relevância de certos princípios descobertos em pesquisa básica para a compreensão do comportamento diário do indivíduo ou para o surgimento de abordagens frutíferas às áreas de resolução de problemas sociais; (2) mostrando a enorme riqueza de observações que podem ser feitas em contextos aplicados e sua importância como base para a formulação de hipóteses e teorias originais.
A perspectiva de interação entre os domínios básico e de aplicação constitui uma das promessas maiores da psicologia de hoje.
ESTRUTURA
Como qualquer outro tipo de treino, o tremo em pesquisa deve ser planejado em função de objetivos claros e seus resultados avaliados regularmente a fim de que possa alcançar estágios sucessivos de aprimoramento. O planejamento representa um compromisso entre a fidelidade a certos requisitos impostos pela natureza da matéria e pela concepção que o professor tem do que seja a atividade científica e uma adaptação às necessidades e ao preparo de cada grupo de estudantes. No treino em pesquisa convém que a uma abordagem centrada no programa se alie uma abordagem centrada no aluno.
Dentro de uma concepção liberalizada de pesquisa, o treino deveria ser pensado, talvez de modos diferentes mas sempre com a intenção de entrosamento, em todos os níveis de contacto do aluno com a pesquisa, da simples leitura de resultados de pesquisa à elaboração e execução de um projeto.
A condição ideal para a formação de uma atitude de pesquisa envolve o planejamento multidisciplinar. Uma das perspectivas mais atraentes, para uma possível reforma curricular, consiste em visualizar as diversas disciplinas, sejam elas teóricas ou práticas, não mais como elementos monâdicos, auto-suficientes, mas como vetores em interação. Pensar em termos da experiência global do aluno e uma necessidade e os próprios alunos, em suas queixas à falta de coerência dos currículos aos quais se vêem submetidos, lembram-no a cada instante.
A integração inter-disciplinas possibilitaria, em primeiro lugar, situar a pesquisa dentro do contexto geral de conhecimento na área psicológica e em áreas afins. "Por que ciência?", "por que pesquisa?", "por que esta e não outra abordagem?" são perguntas sempre presentes no aluno que o levam, se não discutidas, a não perceber muito sentido nos exercícios e na metodologia . Cursos de psicologia geral ou de história da psicologia ou de filosofia serviriam então, se não para aplacar as dúvidas, pelo menos para colocar numa perspectiva mais realista a função do pensamento científico em psicologia, mostrando o desdobramento dos pontos de vista tradicionais, as conquistas e impedimentos da pesquisa através do tempo, o embate entre pontos de vista divergentes.
Em segundo lugar, a integração forneceria elementos de base para a atividade de pesquisa. Disciplinas, como por exemplo as de estatística, poderiam ter seu programa sincronizado com o de disciplinas com trabalho prático, de maneira que o aluno pudesse aproveitar seus recém-adquiridos conhecimentos sobre amostragem ou teste de hipóteses ou outros, para analisar os resultados colhidos, por ele mesmo, em seu trabalho de pesquisa.
Em terceiro lugar, poderia ser tentada a síntese com as disciplinas de aplicação. Uma medida talvez proveitosa seria reexaminar a distribuição temporal que, conforme a tradição, coloca as matérias que incluem uma certa ênfase em pesquisa (especialmente em área básica) no início do curso, separando-as das matérias profissionalizantes, mas tardiamente apresentadas. Disciplinas do primeiro tipo poderiam também ser programadas para a parte final do curso e, inversamente, disciplinas do segundo tipo poderiam ser propostas desde o começo. Ganhar-se-ia em continuidade e ter-se-ia pelo menos a condição de coincidência temporal propícia para o surgimento de influências mútuas9.
Em certos de seus aspectos, a programação do treino em pesquisa pode seguir um paradigma já bastante difundido em que o empreendimento inicial consiste na definição de objetivos básicos. Conceitos essenciais que se queira transmitir, comportamentos que o aluno deveria apresentar, regras que deveria por em uso quando terminado o treino, são esquematizados de antemão havendo, em seguida, uma tomada de decisão a respeito da estratégia de instrução mais adequada. No caso do treino em pesquisa, os objetivos deverão girar em torno das capacidades e dos comportamentos que são concebidos como essenciais para a execução de um trabalho de pesquisa ou, pelo menos, para a compreensão de pesquisas desenvolvidas por outrem. O aluno, ao passar pelo curso, deveria adquirir competência na resolução de uma categoria específica de problemas.
Outras capacidades - patentes na atividade diária de pesquisa do cientista e ausentes dos tratados de metodologia ou dos artigos ou livros publicados, representando a face não-oficial do fazer científico - são bastante difíceis de se definir, pelo menos na forma como gostariam certos planejadores de instrução. A capacidade de se decidir por um determinado caminho de pesquisa; a aptidão em relacionar observações a um arcabouço teórico pri-existente ou em formular explicações para resultados aparentemente díspares; a facilidade em reconhecer a utilidade potencial de certos conhecimentos da área "pura" do ponto de vista da atividade profissional, etc. podem ser propiciadas se aumentarmos as oportunidades em que o aluno participa de projetos nos quais detém uma parcela de iniciativa. Cabe-nos fornecer o contexto de desenvolvimento e os modelos apropriados e apoiar qualquer manifestação do aluno em direções que nos pareçam produtivas: o aprimoramento virá por vias indiretas, sem a previsibilidade ou estereotipia que talvez vigorem em outros aspectos do treino.
Um planejamento de treino em pesquisa contém, portanto, setores necessariamente abertos, flexíveis, resistentes a qualquer tentativa de programação ponto por ponto.
NECESSIDADE DE PESQUISA E INTERCÂMBIO A RESPEITO DE TREINO EM PESQUISA
Rothkopf (1973) queixou-se há algum tempo da tendência de a pesquisa educacional desenvolver-se sem o suficiente contacto com o material comportamental(riquíssimo) da situação de ensino. Educadores, sem este contacto, estariam exibindo algo como uma Leerlaufreaktion (atividade no vácuo10), perpetuando fórmulas gastas, sem a necessária retroalimentação.
Para que o treino de pesquisa não seja apenas orientado por opiniões feitas, para esquivar-se de uma Leerlaufreaktion educacional, urge que encaremos a necessidade de aprender mais a respeito da dinâmica da situação de ensino. O treino em pesquisa pode e deve ser submetido ao crivo da pesquisa.
Um primeiro passo consiste em transcender a prova, procurando meios alternativos de se obter uma avaliação das mudanças em competência decorrentes do treino. Além desta avaliação, é importante obter indicações sobre o grau de interesse suscitado pelo curso. 0 aspecto motivacional merece um destaque todo especial. A freqüência a atividades optativas, a propensão demonstrada pelo aluno em ler material alem do programado, sua dedicação ao projeto experimental, as perguntas, os questionamentos, a procura de fontes, etc. serão critérios informais para julgar que o programa atingiu um de seus alvos básicos ou seja, na expressão de McConnel, uma modelagem de atitudes e emoções.
Uma maneira de ampliar as perspectivas na área e de explorar, mesmo que de forma preliminar, o problema da eficiência do treino em pesquisa consistiria em incentivar, no Brasil, a comunicação ou publicação de experiências educacionais, obtidas em diversos centros. O foco deste intercâmbio não seria necessariamente a produção de relatos sobre pesquisas sofisticadas, mas a comunicação de experiências curriculares que pudessem ser facilmente replicada ou que pudessem inspirar docentes em várias instituições em condições modestas de verbas e equipamentos11.
Do ponto de vista do treino em pesquisa, a publicação de pequenos manuais de práticas para alunos (como o livro de Guidi e Bauermeister, 1977, por exemplo) se afigura como especialmente relevante12. Manuais deste tipo, escritos especialmente para as nossas condições, cumpririam um papel não desprezível no incentivo a um tipo de ensino mais concreto e também (não é um paradoxo) mais elaborado conceitualmente.
EM DIREÇÃO À UTOPIA
O desabafo é freqüentemente ouvido: "Incentivo à pesquisa, valorização mesmo da produção científica praticamente não existem em nossa universidade". A carência de oportunidades e de apoio para a atividade científica entre os docentes é muito grande e se reflete, necessariamente, no treino oferecido aos alunos. Não posso deixar de pensar que o gosto pela pesquisa é melhor transmitido quando o professor pode usar sua experiência pessoal em pesquisa como plataforma. A luta por um ensino que adote, entre outros valores centrais, o espírito de investigação científica, deve ser entendida como fazendo parte de uma luta maior, pela melhor formação dos docentes, por condições mais propícias de atividade acadêmica, pela cultura enfim.
A mensagem nuclear do presente artigo é que o treino em pesquisa tanto na chamada área básica como nos diversos campos de aplicação é necessário para a pleina formação do psicólogo. Talvez seja aceita facilmente, sem muitos protestos, uma vez que se enquadra numa ideologia corrente em que a pesquisa recebe, em teoria, uma certa valorização.
Na verdade, esta mensagem deveria ser vista como justamente levantando o problema da dissonância entre os pressupostos da boa intenção e a realidade do momento universitário, suas dificuldades, sua crise. Ela não oferece um programa de trabalho, apenas mostra a necessidade de organizá-lo, para que mais um passo seja dado em direção à utopia.
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1) Uma versão deste artigo foi apresentada no simpósio "Formação em psicologia, o ponto de vista dos profissionais", realizado durante a VIII Reunião Anual de Psicologia da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto,Ribeirão Preto,1978. Quero agradecer aos colegas Ana Maria Almeida Carvalho, Dora Selma Fix Ventura,Lino de Macedo e Walter Hugo de Andrade Cunha pelas respostas a um questionário sobre treino em pesquisa.
2) Sobre a necessidade de uma estreita ligação entre pesquisa e treino aplicado na formação do psicólogo clínico, ver o artigo de Perry (1979). O autor defende a concepção do clínico como um profissional-cientista, com ampla experiência de contacto com casos concretos e traquejo no domínio das técnicas de pesquisa. O campo, segundo ele, tenderia a crescer "na direção de uma maior maturidade profissional, afastando-se do fracionamento da psicologia visto ou desejado por tão poucos" (p. 610). Eriksen (1966), reagindo também ao surgimento de uma ideologia de formação do profissional enquanto profissional (isto é, sem contacto adequado com a pesquisa) considera que "à medida em que a psicologia profissional for separada da psicologia científica, ela estará claramente regredindo, tornando-se uma tecnologia de serviço de segunda classe" (p.953).
3) Zuckerman (1977), por exemplo, em seu estudo sobre os ganhadores do prêmio Nobel, nos Estados Unidos, ressalta a "forte estratificação" da comunidade científica.
4) Kuhn (1970) indicou o papel orientador - ou seja, restritivo - de certos "paradigmas" no desenvolvimento do fazer científico. Embora paradigmas do tipo kuhniano não possam talvez ser encontrados na psicologia de hoje, não há dúvida de que nela existem códigos mais ou menos explícitos que determinam quais conceitos, métodos ou teorias merecem entrar na categoria considerada "científica".
5) Quando o objetivo é alcançar uma modificação comportamental descrita de antemão, a incerteza recai, não mais sobre a resposta ou "saída" do sistema analisado, mas sobre o procedimento ou "entrada" a ser usado pelo pesquisador para que o organismo chegue a enquadrar-se no objetivo comportamental. Cabe portanto dizer que, mesmo num trabalho que vise o controle, existe uma cota potencial de descoberta. Seria deveras interessante analisar do ponto de vista epistemológico até onde vai a equivalência conceituai entre os dois tipos de pesquisa.
6) No Departamento de Psicologia do Instituto de Psicologia (USP) começou a ser oferecida, há alguns anos, uma disciplina optativa de "Treino de pesquisa em Psicologia". Todos os docentes do Departamento podem oferecer-se para ministrá-la e alunos de todas as séries, após o primeiro semestre de curso, são aptos a inscrever-se, passando a ter alguma participação em trabalho de pesquisa do professor ou em desenvolver um pequeno projeto próprio.
7) Encontro idéia semelhante em 0lmedo (1976) que se refere à instrução em nível de pós-graduação: "A produtividade do sistema escolar pode aumentar através de uma reforma que permita transformar a atitude consumidora, passiva e individualista do estudante numa atitude produtiva, ativa e socializada que o integre numa organização para a produção de conhecimento"(p. 5).
8) As dicotomias postuladas por Azrin não estabelecem uma fronteira intransponível entre os dois domínios. Pode-se, por exemplo, conceber uma pesquisa aplicada que tenha por objetivo, alem do resultado concreto, uma análise teórica; pode-se optar, também, no laboratório, por situações propositadamente complexas com populações heterogêneas dando-se atenção às características individuais. Concordo com Schwartzman (1979) quando diz que "o problema da diferença entre ciência e tecnologia não e um problema científico, nem epistemológico, mas sociológico"(p.13).Com isso, não quero obliterar as marcas de especificidade que poderão ser encontradas, seja na pesquisa aplicada ou na aplicação propriamente dita, seja na pesquisa "pura", mas ressaltar sua origem comum em termos da intenção de "conhecer" e "agir sobre".
9) Uma concepção semelhante se nota na descrição que Ribes (1977) fornece de uma "sistema modular" de currículo psicológico: "Um dos traços distintivos do planejamento curricular desenvolvido é a vinculação entre o laboratório experimental e a atividade institucional e o trabalho comunitário. O laboratório se coordena, desde o início da carreira, com o trabalho aplicado em contextos naturais o que permite, desde o começo, a transferência das destrezas metodológicas aprendidas no laboratório à identificação e solução dos problemas práticos. Esta relação entre o módulo experimental e o aplicado mantém-se ao longo de todo o curso, observando-se, contudo, uma mudança progressiva na atribuição do tempo dedicado a cada um dos módulos referidos" (p. 42-43).
10) Na etologia clássica, a "atividade no vácuo" é definida como um comportamento instintivo que ocorre na ausência dos estímulos externos normalmente envolvidos em sua eliciação.
11) A revista mexicana Enseñanza y investigación en Psicologia exemplifica uma maneira de se efetuar o intercâmbio acerca de experiências educacionais.
12) Um modelo interessante é o manual de Jung e Bailey (1976) que traz, além de propostas de experimentos (versões simplificadas de experimentos extraídos de revistas especializadas) um apanhado da literatura a respeito do problema teórico em questão e sugestões de pesquisas suplementares. Estes experimentos se mantêm numa faixa de viabilidade e não requerem equipamento complicado.