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Psicologia: ciência e profissão

 ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.5 n.1 Brasília  1985

 

REBATE

 

Considerações sobre os pressupostos de uma experiência: contratastação epistemológica

 

 

Carlos Roberto Drawin

Professor Assistente do Dept° de Filosofia da U.F.M.G.

 

 

O artigo que ora analisamos (Simonassi et alii, 1984), publicado no último número desta revista, tem um mérito inegável: a sua orientação teórica é assumida sem tergiversações, com clareza e coragem. Estas qualidades tão raras são necessárias em qualquer comunidade científica, porque possibilitam a prática saudável do debate e exorcizam o fantasma da chantagem ideológica. Estas palavras introdutórias não se pretendem um artifício retórico, o resvalar para o elogio fácil, mas querem enfatizar a necessidade da livre circulação de idéias como condição para o amadurecimento intelectual de uma categoria profissional. Condição que deve tornar-se uma prática rotineira.

É comum que as posições "behavioristas" — sobretudo quando vinculadas ao behaviorismo radical de Skinner — suscitem, de imediato, fortes reações (Rose, 1982). Não digo, infelizmente, debate, mas reações. Geram, às vezes, aberta hostilidade, ou, então, uma forma de indiferença raivosa. São reações que se alimentam de uma indignação que já ocorreu não poucas vezes na história da ciência — basta lembrarmos o caso da psicanálise — quando uma teoria qualquer colide com a opinião corrente, com os sistemas de crença do senso comum, ou com os arraigados hábitos de pensar da ciência normal (Giannotti,1974).

Prefere-se, neste caso, recusar o debate e lançar mão do uso indiscriminado do "argumentum ad hominem", que privilegia a invalidação psicológica em detrimento do exame lógico. Este expediente se torna mais perigoso quando a invalidade se torna imediatamente ideológica, isto é, recua da discussão substantiva para a adjetivação política. Assim, determinadas teorias são excluídas automaticamente, outras automaticamente favorecidas , pois o que caracteriza apolitização imediata da teoria é colocar-se sempre num ponto de vista exterior à problemática tratada, numa exterioridade inexpugnável. Esta prática estimula, como têm observado alguns estudiosos da ciência, um processo de imunização epistemológica, através do qual uma determinada teoria passa a incluir em seu aparato conceituai mecanismos de anulação prévia de qualquer crítica possível. (Antiseri, 1978).

Este processo de imunização ocorre, notoriamente, com algumas argumentações marxistas que recorrem sistematicamente à categoria de ideologia para colocar-se numa posição inexpugnável, ou com alguns psicanalistas que recorrem a conceitos como resistência, racionalização ou outros, que se prestem a semelhante função de imunização.

Pode, entretanto, suceder que se recorra a uma definição de cientificidade, como artifício para desqualificar as teorias concorrentes. Há, neste processo, o mesmo núcleo dogmático que apontamos em relação a certos marxismos e psicanálises. E isto que queremos assinalar como implícito no artigo de Simonassi e colaboradores.

Não se pode alegar que o que não está explícito está ausente, ou que se resume a puro impressionismo. Longe disso, a tarefa da crítica consiste, exatamente, em atualizar (no sentido do inglês "realize"), racionalmente, os pressuposto e/ou consequências de uma opção teórico-metodológica.

É isto que queremos mostrar nesta intervenção. No pequeno espaço que nos foi concedido, nos limitaremos apenas a duas rápidas considerações. A primeira estará diretamente referida ao supracitado artigo e a segunda se dará em nível mais genérico, pois aqui não se trata de uma polêmica, mas, o que é diferente, intenciona-se apenas fazer um contraponto.

Em primeiro lugar, os pesquisadores (Simonassi e colaboradores) construíram uma hipótese a partir de um marco teórico bem delimitado (Skinner) e, a partir dessas coordenadas, planejaram um experimento científico. O que nos surpreendeu, de imediato, na leitura deste experimento, foi a facilidade com que as coisas passaram então a se articular, sob a roupagem da cientificidade. Há qualquer surpresa na conclusão obtida? Certamente não.

A "realidade" confirmou gostosamente a hipótese anunciada no início e, por tabela, legitimou a certeza dos pesquisadores no acerto do seu marco teórico, que envolve uma epistemologia que oculta o seu caráter opcional e valorativo. Ao final, pode-se ler aliviado: o que a minha ciência confirma, que a minha ciência está certa.

Por que sublinhamos alternadamente o possessivo e o substantivo a que se refere? Para desvelar o ardil do investigador, que consiste em demonstrar cientificamente uma opção filosófica que está pressuposta na demonstração. Ora, está aí a circularidade típica da petição de princípio. E não é isso que intui logo o leitor do experimento, que a resposta já está dada no início? Mesmo sem um exame mais detido pode o leitor intuir este ardil, porque há um evidente compromisso entre a epistemologia adotada e sua suposta comprovação empírica, pela intermediação da hipótese construída.

O termo ardil não aponta, no entanto, para uma intenção maliciosa do investigador, mas para um caminho inevitável que se segue, quando se pretende demonstrar cientificamente a cientificidade da ciência. A força dessa redundância quer apenas sublinhar a necessidade da discussão epistemológica, para que não se faça a pior de todas as filosofias, a que se nega como tal.

Assim, o planejamento experimental adotado não é neutro e sua função é, antes conotativa do que denotativa. Isto é, ele não desvenda "algo não sabido", não se referencia ao real que se pretende conhecer, mas confirma uma certeza prévia, firmemente enraizada na mente do investigador. É por isso que sentimos este forte sabor de "déjá vu" na conclusão e o autor pode encerrar a sua investigação com a satisfação dogmática do "quod erat demonstrandum". O objetivo meticulosamente visado foi alcançado: confirmar e não refutar a hipótese.

Há, no entanto, um momento em que o caráter conotativo de todo o procedimento se deixa visualizar com facilidade. É quando o autor afirma: "Desta forma, parece não existirem motivos para buscar explicações mentalistas para o comportamento de escolha. Questões de liberdade podem ser estudadas experimentalmente via procedimentos de escolha". Aqui, o filósofo se revela atrás da máscara do cientista. O mesmo filósofo que termina nos advertindo para os riscos da "explicação" mentalista, explicação adjetiva , diríamos, em termos lógicos: conotada, com suas aspas carregadas de significação valorativa.

Não extrapola, aqui, claramente, o investigador? Não transgride os limites que se impôs como cientista? Pois ficamos alertados, no final, que as explicações mentalistas implicam no retorno da instrospecção como método e no possível abandono do método experimental, temendo-se, então, a regressão de psicologia a um estágio pré-científico. O rigor do operacionalista dá lugar para a expansão do filósofo, que fala com incrível complacência em "questões de liberdade".

Mas, aceitando as considerações do investigador acerca de "questões de liberdade", "comportamento de escolha" e "explicações mentalistas", não poderíamos dizer que, neste caso, o experimento é inadequado à sua própria intenção? Em outras palavras, as ditas "explicações mentalistas" visariam, prioritariamente, este tipo de comportamento de escolha, este segmento de comportamento no nível de complexidade em que o planejamento foi planejado? Ora, se é verdade que os juízes, que foram os sujeitos reais do experimento, e não as crianças, incorreram na falácia do "post hoc ergo propter hoc", também é verdade que os esperimentadores incorreram na falácia do acidente convertido, da generalização apressada, ao fundar a sua conclusão na idéia de um "continuum" explicativo para o comportamento de escolha em qualquer nível de complexidade.

Os juízes que não observaram a totalidade do experimento não puderam dar explicações "behavioristas", como, suspeito, não poderiam fazê-lo em relação a explicações "cognitivistas" ou "psicanalíticas", porque só tinham, à sua disposição, as explicações correntes do senso comum. Quanto aos outros, que acompanharam todo o processo de treinamento, foram sutilmente "guiados" em suas interpretações, não pela malícia dos experimentadores, mas pela própria lógica do experimento, que adequou previamente o fenômeno (comportamento de escolha num nível específico de complexidade) e sua explicação (história passada do treino).

Em suma, a astúcia consistiu em constatar, na realidade, o que era uma epistemologia embutida no experimento, ou seja, a "descoberta científica" consistiu em concluir com significados que já estavam postos — mas ocultos — no próprio procedimento metodológico. Mas, como toda astúcia é contraditória, esta acabou por revelar não o enigma do fenômeno (o treino prévio à escolha), mas o seu próprio enigma filosófico: a opção valorativa do experimentador.

Façamos agora, em segundo lugar, considerações mais genéricas. É óbvio que não se quis, com as observações anteriores, propugnar por uma ciência asséptica, atenta em não se deixar contaminar por elementos que lhe sejam externos, por juízos de valor. Ao contrário, partimos da opção de que é preciso reconhecer o caráter filosófico de nossos pressupostos, não para se fechar numa posição decisionista, mas para submetê-los ao crivo da crítica, pois o desejo de neutralidade é apenas um meio para se resguardar da discussão.

Se é verdade, como nos mostrou Hans Albert, com o célebre "trilema de Münchhausen", que a pretensão de uma fundamentação absoluta é inócuo e logicamente insustentável, também o é a recusa de toda possibilidade de uma avaliação racional acerca de nossas opções de princípios, porque esta recusa pressupõe uma disjunção radical entre fato e valor (Albert, 1976).

Ora, parece incorreto supor tanto que existam fatos puros, pois não há fato que não seja teoricamente mediatizado, quanto circunscrever as decisões numa esfera impenetrável pela razão, pois há, na própria decisão tematizada, um desejo de legitimação. E desta dialeticidade, entre as decisões de princípio e os processos demonstrativos, que a crítica se nutre e faz com que o reconhecimento de nossos pressupostos filosóficos não seja um ritual vazio, mas uma tarefa de auto-reflexão teórica que é constitutiva da própria prática científica: ou, melhor dizendo, é constitutiva das diversas práticas científicas possíveis, em princípio, e efetivas, por exigência da especificidade própria do campo em que são engendradas. (Toulmin, 1977).

Parece, ao examinarmos as investigações recentes da filosofia da ciência, que caminhamos para a aceitação desta pluralidade de práticas científicas e da construção de epistemologias regionais, com sua legitimidade circunscrita tanto em sentido extensivo quanto em sentido qualitativa de complexidade. Afastamo-nos, então, das concepções rígidas que pensam "a ciência" segundo o modelo unitarista dos positivismos, regulado pelo ideal da física, ou segundo o modelo dualista rígido de orientação hermenêutica, que cinde o conhecimento em explicativo e compreensivo (Kneller, 1980 a Brannigan, 1984).

Pensamos que as "Ciências do Homem" serão sempre "ciências humanas", porque a barra que interpomos entre estes dois termos, "Ciência" e "Homem", nos mostra, em sua anbiguidade gramatical, a raiz comum de ambos. Não se pode pensar epistemologicamente, perguntando pela ciência, senão pensando antropologicamente, perguntando pelo Homem &— porque "Ciência" e "Homem" são construções que convergem para um universo comum, que é o universo simbólico. Talvez a ilusão maior do empirismo, na sua versão fisicalista ou fenomenalista, consista neste desconhecimento da mediação simbólica, pois apenas no espaço significativo desta mediação é que se podem estabelecer distinções como "dentro" e "fora", "corpo"e "mente" ou, em última instância, entre "Sujeito" e "Objeto".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Albert, Hans. Tratado da Razão Crítica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976. pp. 24-28 e 76-103.        [ Links ]

Antiseri, Dario. Análisis epistemológico del marxismo y del psicoanálisis. Salamanca, Sígueme,1978.p.13-110.        [ Links ]

Brannigan , Augustine. A base social das descobertas científicas. Rio de Janeiro, Zahar, 1984. p. 15-28.        [ Links ]

Giannotti, J. A.O. O que é fazer?. In: Estudos Cebrap, n° 9, 1974. p. 8-83.        [ Links ]

Kneller, G.F. A Ciência como atividade Humana. rio de Janeiro, Zahar, 1980. p., 54-97.        [ Links ]

Rose, Júlio César C. de. Consciência e propósito no behaviorismo radical. In: Prado Junior, Bento (Org.). Filosofia e comportamento. São Paulo, Brasiliense, 1982. p. 67-72.        [ Links ]

Simonassi, Lorismário E. Causação do comportamento Humano: Acesso à história passada como determinante na explicação do comportamento Humano. In: Psicologia-Ciência e Profissão, n°2,1984. p. 16-23.        [ Links ]

Toulmin, Stephen. La compreensión humana. Madrid, Alianza, 1977, p. 17-54.        [ Links ]

 

 

Este artigo se constitui numa réplica ao supracitado artigo de Simonassi et alii, publicado no n° anterior desta revista.