Psicologia: ciência e profissão
ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.7 n.2 Brasília 1987
Contribuição a uma análise da Psicologia
Dirceu Pinto MalheiroI; Rosa Maria NaderII
IProfessor do Depto. de Comunicação da UFBA
IIProfessora do Depto. de Psicologia da UFPB
A" ciência", essa instituição concebida idealmente como a produtora e detentora de um saber neutro, objetivo e imutável (portanto universal), está colocada em questão. A crise de ciências particulares, como a das ciências sociais e a da Psicologia, coloca hoje em pauta questões relativas à compreensão de como se produz o conhecimento humano a respeito do universo. Essas crises estão intimamente vinculadas à crise geral da ideologia capitalista dominante nas sociedades industriais (Castells e Ipola, 1981; Carvajal, 1984; Molano, 1978; entre outros).
A produção do conhecimento, científico ou não, é uma prática social articulada a outros processos de produção (Lefebvre,1983: 49-50). O conhecimento científico concretiza-se como práticas científicas ligadas a uma prática ideológica determinada, no interior da qual os conhecimentos são produzidos, transmitidos, apropriados, sancionados e aplicados (Castells e Ipola, 1981: 10-11).
A ciência, mantida sob o manto do universal, do absoluto e do racional, está sendo desmistificada em seus fundamentos teóricos básicos: o da neutralidade e objetividade, definidas pelo positivismo. Retomando Lefebvre, nenhum pensamento, nenhuma idéia, nenhuma reflexão que tenham objeto e conteúdo podem ser completamente neutros. Nem mesmo as matemáticas! Elas não são neutras quando estão a serviço, quando entram na prática social, quando se prestam a uma pedagogia que se dirige a determinadas pessoas e não a outras. Todo pensamento tem um conteúdo, um objeto. Ao mesmo tempo, é uma vontade. Existe alguma proposição que não implique responsabilidade? Não existe! (Lefebvre, 1983: 30):
Desta forma, está abalada a aceitação do critério de verdade de um conhecimento, baseada na definição de objetividade enquanto atitude imparcial e neutra do investigador, garantida por uma metodologia empirista que "purifica" o objeto estudado. Hoje, cientistas das mais variadas disciplinas já estão fazendo uma reflexão histórica sobre os pressupostos, os resultados e a sua utilização, o lugar e o alcance, os limites e a significação da atividade científica. Seu objetivo maior é mostrar que a ciência, como qualquer outra prática social, é produzida a partir de um referencial ideológico determinado pelas relações sociais de produção dominantes.
A ciência, como pesquisa metódica do saber, ao mesmo tempo que maneira de interpretar o mundo, é, na realidade, uma instituição que está, cada vez mais, integrada no processo social, industrial e político. Torna-se cada vez menos possível ao cientista deixar de colocar questões sobre sua responsabilidade pelas conseqüências sociais de suas descobertas e da função social que ocupa no conjunto da sociedade (Japiassu, 1979 a: 137-138). Não há, hoje, como deixar de levantar questões colocadas pela maneira como a pesquisa científica é institucionalizada, organizada, financiada, orientada e utilizada pela sociedade em que se insere.
A investigação científica se dá através de uma atuação sobre os fenômenos e coisas envolvidas nela. A construção do conhecimento torna-se uma forma de consciência social, na medida em que os homens que a realizam estão inseridos em uma cultura, em uma classe social e passam a perceber sua posição dentro deste contexto. Há que ser avaliada a postura do cientista frente ao seu objeto de estudo, a direção em que caminham as suas conclusões e modos de interpretar a realidade e, principalmente, a quem toca o controle do conhecimento produzido.
A ciência assume um caráter social, que vai além da compreensão de que é um produto resultante da ação de várias pessoas e não um produto individual. O caráter social da ciência é definido pela compreensão de que esses indivíduos que produzem o conhecimento científico, o fazem dentro de determinadas condições históricas. Esse conhecimento poduzido não terá valores absolutos, dado que ele irá variar conforme os interesses e objetivos das classes envolvidas na formulação e na acumulação de conhecimento, ou seja, na sua produção. (Fals Borda, 1981:44). Esse acúmulo de conhecimentos, fatos, dados e fatores está articulado de acordo com os interesses das classes sociais, e terá relevância dentro da luta pelo poder social, político e econômico.
Entre os cientistas, o questionamento de suas respectivas disciplinas tem-se alimentado das contradições latentes e manifestas, tanto no plano da própria prática científica, quanto no plano geral da estrutura social em que tal prática se insere (1). As contradições internas ao processo de produção de conhecimentos científicos compreendem, entre outras, a dissociação entre a teoria e a prática, a investigação e a ação, o acadêmico e o social, enfim, entre a ciência e a realidade. Essas contradições se articulam as contradições da estrutura social, na medida em que a prática científica implica uma escolha, que não é feita ao acaso, mas se relaciona organicamente com uma perspectiva global da sociedade. A ótica das classes sociais (a ideologia) condiciona a seleção de problemas, o estabelecimento de conceitos, a concepção sobre o objeto de estudo, a definição do que é essencial e do que é acessório na formulação das teorias, sua aceitação e utilização (Vasquez, 1975: 20-21; Lowy, 1978:15).
Uma forma de garantir uma autonomia relativa de uma ciência em relação aos discursos ideológicos que engendram e permeiam suas práticas de produção de conhecimentos é a prática epistemológica. Identificando as condições materiais e sociais em que esses conhecimentos foram historicamente produzidos, além dos requisitos científicos de sistematicidade e ordenação lógica, é possível estabelecer seu valor de verdade e objetividade científicas, isto é, sua capacidade de reproduzir adequadamente uma realidade social. (Vasquez, 1975: 20-21).
A atividade epistemológica, através da qual se discutem tanto conceitos e meios de experimentação, como as condições históricas de produção de conhecimentos específicos, implica: (a) o estudo dos aparelhos de produção desses conhecimentos, (b) seu relacionamento com a produção do discurso ideológico (em conformidade com a tese de que a teoria existe no seio de formações teórico-ideológicas), e (c) a determinação destes aspectos pela luta de classes(Castells e Ipola, 1981: 167).
As contradições que permeiam a prática científico-profissional da psicologia devem nos levar a enfrentar um processo de reflexão, à busca de elementos para uma análise epistemológica dos conhecimentos psicológicos que utilizamos.Esse percurso reflexivo deve estabelecer algumas condições para o avanço, não apenas da crítica, mas antes, e principalmente, da superação desses conhecimentos em direção a uma outra concepção e a uma outra modalidade de prática psicológica.
O objetivo deste artigo é o de contribuir para uma análise do espaço epistemológico da psicologia que se aprende, que se ensina e que se pratica: a psicologia chamada científica. O pano de fundo para essa análise é o da função social que a psicologia cumpriu e cumpre em relação à prática social. A intenção é a de iniciar uma discussão sobre as necessárias modificações no espaço epistemológico da psicologia que se intenta colocar a serviço da transformação social.
Considerações sobre o espaço epistemológico da psicologia
Refletir criticamente sobre uma disciplina implica a consideração de como ela evolui historicamente em relação a pelo menos três aspectos que constituem e delimitam seu espaço epistemológico: os pressupostos, a definição do objeto e a função social. Esses aspectos, embora estejam didaticamente abordados em separado, não se configuram enquanto aspectos isolados, mas constituem um todo orgânico cujas partes mantêm entre si uma relação recíproca de determinação.
Esta nossa reflexão, ainda inicial e lacunar, sobre a psicologia "tradicional" constituída sobre os alicerces da filosofia idealista do conhecimento, é feita a partir de referenciais fornecidos pelo materialismo dialético e pela própria prática comprometida com a transformação das condições sociais da vida do homem.
Pressupostos
A formação das correntes teóricas nas ciências humanas, e na psicologia em particular, fundamenta-se, de acordo com Piaget, em três filosofias: o empirismo, a fenomenologia e a dialética. Estas filosofias imprimem à formação e desenvolvimento dessas disciplinas não apenas as orientações de pesquisa, mas os métodos e pressupostos fundamentais.
Na psicologia dita científica, o empirismo é a filosofia que informa a maioria das correntes e escolas, impondo a experimentação como método privilegiado. O empirismo, enquanto obstáculo epistemológico ao desenvolvimento das ciências sociais, encarna-se em uma ideologia teórica o positivismo. O positivismo impõe não apenas a necessidade de experimentação como condição de cientificidade; ele impõe também uma forma particular de interpretação da experiência: ela é reduzida a um registro dos dados observados, não considerando a estrutura ativa dos objetos estudados e suas relações com as ações do sujeito que conhece e suas tentativas de interpretação.
O que se pretende, na ótica de análise da realidade fornecida pelo positivismo, é enfatizar a objetividade e o rigor científicos. O conhecimento gerado pela observação da realidade não levaria em si qualquer implicação política ou ética, na medida em que o cientista, atendo-se aos procedimentos científicos, deixasse de lado seus preconceitos subjetivos e suas intencionalidades políticas, preocupando-se apenas em constatar, medir, descrever e prever os fatos. E esses procedimentos, ao serem utilizados por uma disciplina, estarão dando-lhe um caráter de ciência e contribuindo para o seu crescimento, na medida em que se estabelece uma forma padrão, que possa ser transmitida a outros pesquisadores que, sendo competentes e treinados, estejam em condições de obter resultados idênticos. A colocação do instrumental técnico-científico entre o pesquisador e seu objeto de estudo garante, por um lado, a possibilidade da reprodução dos procedimentos e, por outro lado, possibilita um distanciamento e frieza entre os dois pólos. Na perspectiva positivista, essas condições dão a validade, a veracidade e objetividade dos resultados obtidos na pesquisa.
No positivismo, para que a cientificidade e validade dos dados objetivos não sejam prejudicadas, a neutralidade do pesquisador deve ser garantida. O que significa que ele, no processo de construção do conhecimento, em interação com seu objeto de estudo, não poderá ter seus valores interferindo na análise dos dados que estiver coletando. Porém, o que há são cientistas que estão inseridos em uma realidade histórica, pertencentes a uma classe social, comprometidos politicamente com alguma visão da sociedade e, enquanto indivíduos, com sua subjetividade; a neutralidade científica não é possível, pois declarar-se neutro já implica assumir uma visão, ou uma posição dentro do processo de conhecimento científico.
Ao estudar o comportamento, a psicologia positivista reduz o homem a um objeto como outro qualquer, despojado de qualquer atividade, funcionando como uma máquina de reação a um meio externo oposto a ele. A psicologia positivista desloca o homem para um meio abstrato, descontextualiza-o do meio histórico e social, fragmenta-o em compartimentos isolados, ocupados por qualidades psíquicas próprias ao homem, como: percepções, pensamento, vontade, sentimentos etc. Dentro da psicologia não há consideração do aspecto histórico na compreensão do comportamento humano. Seus procedimentos tradicionais de pesquisa e suas formas quantitativas de análise nos fornecem dados exploratórios para o caminhar das investigações, mas não podem ser dados conclusivos sobre o comportamento, pois fornecem o empírico e não o concreto. O concreto, ponto de partida e de chegada da investigação, vai muito além de impressões empíricas ou representações de fenômenos; ele é uma síntese de múltiplas determinações, inclusive determinações sociais e históricas.
A psicologia dita científica, através de uma psicologização do social, uma biologização do psiquismo e de uma naturalização do homem, nega o caráter fundamentalmente histórico dos fatos humanos e passa a acreditar numa natureza imutável em sua essência. Ao considerar o homem um objeto como outro qualquer, constituído pela soma de seus comportamentos e atitudes, a psicologia não consegue apreender o sentido pelo qual o homem se revela e existe. Ela não consegue unificar, nem totalizar, uma imagem de homem sujeito que se constrói constantemente por sua presença no mundo. Assim, a psicologia torna-se um conjunto de técnicas que possibilitam, no plano teórico, situar o indivíduo numa coletividade, graças a uma série de normas: normas que o reintegram, quando delas se desvia, que o excluem, quando for considerado "anormal" e que o selecionam, quando for considerado "apto" (Japiassu, 1982: 217).
As psicologias diversificam-se de acordo com os ângulos de análise do homem: há uma psicopatologia para os doentes; há uma psicologia social, se o indivíduo está em relação; há uma psicologia diferencial, se ele é sexuado; há uma psicologia genética, se ele é criança etc. Localizando-se como "uma teoria geral da conduta", a psicologia facilmente subordina-se à ideologia dominante, pois seu objeto é o homem situado em uma sociedade regulada e reguladora, à qual ele deve integrar-se e adaptar-se.
Neste sentido, a psicologia tornou-se uma ciência do homem em geral, tomando de empréstimo os modelos da biologia, modelos estes que se equilibram em torno do conceito de "função" e "norma". O positivismo, ao partir de duas premissas essenciais (a) a sociedade pode ser epistemologicamente assimilada à natureza, e (b) a vida social é harmônica e é regida por leis naturais, invariáveis e independentes da vontade e ação humanas não reconhece que as ciências sociais, e em particular a psicologia, devem ter especificidades metodológicas que as diferenciam das ciências naturais. Estas especificidades se devem, para Lowy (Lowy, 1978: 15) a quatro fatores principais: (a)o caráter histórico dos fenômenos sociais, transitórios, perecíveis, suscetíveis de transformação pela ação dos homens; (b) identidade parcial entre o sujeito e o objeto de conhecimento; (c) o fato de que os problemas sociais suscitam a entrada em jogo de concepções antagônicas das diferentes classes sociais e (d) as implicações político-ideológicas da teoria social: o conhecimento da verdade pode ter conseqüências diretas sobre a luta de classes.
Objeto da psicologia
Profundamente marcada pela dicotomia cartesiana, a psicologia, ao destacar-se da filosofia, elegeu como seu objeto de estudo os estados da consciência, considerada distinta e independente da matéria.
A necessidade imperiosa de atender aos critérios de cientificidade, estabelecidos pela época, impõe a introdução do método experimental no estudo da consciência. A introspecção, método utilizado para o acesso direto à consciência, não respondia, sozinha, à exigência de objetividade. A relação entre o físico e o psíquico (paralelismo psicofisiológico) é reconhecida e, dessa forma, as manifestações corporais dos estados da consciência (as sensações) são eleitas como objeto de observação e mensuração, e como meios indiretos de conhecimento dos fatos psíquicos, complementando o conhecimento direto permitido pela introspecção.
De recurso auxiliar ao conhecimento da consciência, os dados exteriores a ela, passíveis de observação e mensuração, passam a constituir o objeto de estudo da psicologia. A consciência (que engloba a razão, os estados, as funções, os fenômenos psíquicos e mentais e a vida interior), admitida pelos primeiros psicólogos experimentalistas, é descartada enquanto objeto de estudo da psicologia e passa ser considerada como epifenômeno de modificações orgânicas. Sob a influência de Taylor e Bergson, Watson considera que a psicologia, para tornar-se uma ciência ao nível da física e da fisiologia, deve ater-se ao estudo da conduta (behavior) do homem, aplicando o método e o vocabulário que muitos pesquisadores consideram vantajoso para o estudo dos animais inferiores (Watson, J.B. Behaviorism, In Merani, 1972: 14). Adotando uma fórmula mecanicista da conduta, a psicologia experimental exaure a consciência de sua significação e a substitui pela ação, automática como o reflexo e finalista como o instinto. Fazendo isto, substitui a dicotomia cartesiana corpo-alma, pela divisão entre organismo e meio.
A incorporação, pela psicologia, do modelo da biologia não é fortuita: ao fazer a analogia entre meio natural e meio social, ao qual o homem nada pode fazer, além de ajustar-se, a psicologia incorpora e ajuda a consolidar a ideologia capitalista dominante.
Concebendo o homem como um universo fechado em si mesmo, com uma essência que resume suas qualidades e determina sua natureza, a psicologia aceita que as estruturas do homem são permanentes e imutáveis, cumprindo um destino inexorável, que pesa ao longo da história da espécie (a ontogênese repete a filogênese, admitiu Stanley Hall). Para a psicologia, a sociedade é considerada como algo "dado", apresentando-se como um epifenômeno que se acrescenta ao fenômeno essencial (o ser humano), sem, no entanto, alterar-lhe os rumos. A natureza histórica do homem e os fatos sociais, e a relação entre homem e sociedade não são consideradas, mascarando, assim, a existência das classes sociais, da ideologia e do poder.
Essa maneira de considerar o homem e a sociedade dão os subsídios para a orientação da prática psicológica que consiste, para a grande maioria das teorias e correntes psicológicas, em ajudar o homem a suportar e a se adaptar às engrenagens do sistema.
Contendo o modelo teórico dominante nas várias escolas psicológicas, a concepção behaviorista foi determinante para a direção tomada pela psicologia contemporânea, produzida, em sua quase totalidade, sobre o paradigma oferecido pela filosofia idealista do conhecimento. As psicologias produzidas a partir de outras concepções a respeito do conhecimento e do sujeito cognoscente são ainda praticamente inexpressivas entre nós.
Função social da psicologia
Vista por vários autores, (entre outros, Sastre, 1974; Merani, 1972; Bernard, 1974; Japiassu; Deleule, 1972), como instrumento de alienação, a psicologia construída sobre o paradigma positivista cumpre a função social de agente de adaptação dos indivíduos à sociedade e suas instituições.
A concepção de homem que a psicologia ainda utiliza atribui ao ser humano uma substância homogênea e permanente, com qualidades próprias e inalienáveis, qualquer que seja o meio em que viva. Para a psicologia, o homem, como o inseto, terá maior grau de desenvolvimento e de equilíbrio quanto maior for sua adequação às formas das relações fundamentais existentes na sociedade, que são invariáveis e independentes da vontade do homem.
Com tais pressupostos a respeito do homem e sociedade e, sendo produzida numa sociedade em que os imperativos do mercado de trabalho fazem apelo a um tipo de "racionalidade" e "produtividade", a psicologia pode ser concebida a partir do modo como é utilizada. A função de servilizar os indivíduos se explicita e o discurso ideológico adaptacionista fica evidente.
O discurso adaptacionista parece constituir a unidade básica dissimulada sob a aparente heterogeneidade e antagonismo entre as escolas e correntes da psicologia. Ele existe nas várias versões do behaviorismo, passando pelo movimento psicometrista de fundamentação cognitivista e humanista, até a teoria piagetiana, o psicodrama, as teorias da personalidade e as de terapia (Patto, 1984:93).
É necessário que os próprios psicólogos, já alienados pelas escolas de psicologia que os formam, compreendam que a psicologia, desde o início deste século, está dividida em duas correntes: a dos técnicos que exercem função de saber, e dos tecnocratas, que exercem função de poder (Merani, 1.972:2). Os psicólogos nem podem suspeitar que essa divisão é produto da pressão do sistema industrial. Esclarecê-lo é um dever, denunciá-lo é uma obrigação moral (Merani, 1972:2). A preocupação maior da psicologia foi a de se desenvolver no campo da prática, convertendo-se mais em instrumento de poder, do que em elaborar um corpo teórico de conhecimentos a respeito do homem, exercendo secundariamente sua função de saber.
Em decorrência dessa opção, a psicologia deve seu desenvolvimento atual às possibilidades práticas que ela coloca à disposição das atividades mais diversas: na readaptação, na orientação educacional e profissional, na empresa, no comércio, na propaganda, nos meios de comunicação de massa etc.
Porém, esse discurso e essa função social não são inerentes à psicologia. Eles foram encontrados por necessidades históricas de consolidação do capitalismo, que orientaram toda a dinâmica das relações sociais, incluindo-se a produção de conhecimentos científicos. A função histórica da psicologia é compreender o homem concreto, definir o ser real, o vivente, e não apenas as qualidades desse ser, como se faz com os conceitos abstratos (Merani, 1972:5).
A piscologia deve ser a ciência do sujeito e de sua libertação, e não a ciência do homem em geral e da integração social; a ciência do sentido, e não da palavra modelada pelas estruturas; a ciência do subjetivo e da criatividade, e não das mentalidades esteriotipadas exigidas pela racionalidade técnica e tecnocrática. Seu projeto não pode deixar de ser o de uma ciência da compreensão, da comunicação e do encontro do homem e do mundo (Japiassu, 1979 8: 27).
Pensar o homem como um sujeito presente no mundo, como subjetividade em conquista permanente de seu mundo e de sua personalidade, como um existente cujo sentido precisa ser manifestado, é o primeiro passo que a psicologia deve dar para abrir-se à possibilidade de tornar-se um conjunto de conhecimentos que facilitem ao homem reconhecer-se como sujeito de sua própria libertação.
Abrir-se a essa possibilidade implica a construção de conhecimentos sobre a dimensão psicológica da realidade a partir de uma outra opção de função social da psicologia: a de agente de transformação. Assumi-la com a possibilidade de contribuir socialmente para a transformação das relações sociais baseadas na exploração, implica assumir outros conceitos fundamentais a respeito do homem, de sociedade, de métodos de produção de conhecimentos, enfim, uma outra concepção de ciência.
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(1) Esse questionamento, que tem levado à discussão sobre a psicologia, surgiu na Europa, através das obras de Politzer, Vigotsky, Leontiev e Wallon, entre outros: e alcançou a América Latina na década de 60, intensificando-se a partir de um Congresso de Psicologia em Miami, em 1976. No Brasil, as obras de autores como Silvia Leser, Fúlvia Rosemberg, Maria Helena S. Patto e Silvia T. M. Lane, entre outros, foram decisivas para a abertura dessa discussão.