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Psicologia: ciência e profissão

 ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.10 n.1 Brasília  1990

 

Resignificando as determinações históricas da seleção de pessoal

 

 

Selmira Mainieri Paulon

Pós-graduada em Psicodiagnóstico pela PUCRS e psicóloga da INTERSECÇÃO - Trabalho e Pesquisa em Psicologia Social em P.Alegre-RS

 

 

Tomando como objeto de entendimento a Seleção de Pessoal em sua prática psicológica, podemos identificar variados caminhos de influências contextualizando o significado que assume atualmente. Numa abordagem extremamente simplista, esta atividade se justifica porque existem trabalhos diferentes e existem pessoas diferentes. Organizar tais diferenças de modo que as capacidades pessoais correspondam às exigências do trabalho, é ajudar pessoas a serem produtivas e a obterem satisfação com aquilo que fazem. Ajudar pessoas a passar bem, é trabalho do psicólogo. Por isto é que foi chamado a fazer "Seleção de Pessoal" nos locais de trabalho.

A presença do psicólogo nesta atividade se relaciona com o binômio dotação natural X complexidade de trabalhos. Basta olhar ao nosso redor para reconhecermos uma variedade de aptidões humanas e de modos de aproveitá-las em atividades socialmente diferenciadas. Portanto, o que se evidencia é que a natureza humana se coloca de modos diversos numa gama de aptidões cujo exercício resultou em atos, modos de sobrevivência, artesanatos, ofícios, técnicas, profissões. Quanto aos trabalhos existem desde "extremamente importantes — possíveis somente para pessoas com dotação especial —", aos "extremamente simples — destinados às pessoas escassamente dotadas". Estudar as aptidões humanas e entender a melhor forma de aproveitá-las no trabalho está no campo psicológico, o que configura como psicológicas as atividades em Seleção de Pessoal

Há ainda a considerar que entender a vida, os seres vivos animados e inanimados, o mundo, o universo, o concreto e o abstrato, quem tem poder sobre o quê e sobre quem, o que vale mais e o que vale menos, o certo e o errado, o possível e o impossível etc., é muito complexo. É preciso ordenar tudo, de modo a se ter um ponto de partida e um ponto de chegada. De modo a se ter positivamente certezas de que estamos no caminho certo e de que dominamos a "Verdade". Para tanto é necessário estabelecer uma hierarquia de importâncias que tenha seu cume no matematicamente certo, e não tenha lugar para o não comprovável.

Nesta linha de raciocínio, um fato expressivo a considerar na relação do homem com o trabalho é o que o homem é capaz de produzir. A Seleção para o Trabalho se explica e se esgota na produção e só há lugar para o psicólogo que souber incrementar essa produção enquanto finalidade precípua do trabalho ou... não há necessidade de psicólogo.

Mesmo colocado nessa forma rudimentar, reconhecemos verdades em tais afirmações. Tanto que são elementos de importantes desenvolvimentos teóricos que deram nome a muitos pensadores. Nas primeiras abordagens identifica-se o substrato da Psicologia Diferencial e seu correlato, a teoria das aptidões. Depois abordamos um aspecto da divisão do trabalho; por último, a linha mestra do pensamento filosófico da Escola que marca presença na maior parte das teorias psicológicas do século atual, especialmente no que diz respeito à psicotécnica e psicometria: o positivismo.

Temos aqui as grandes linhas do pensamento que determinaram o modo de ser dessa atividade psicológica que poderia ser uma excelente oportunidade de aplicar o entendimento da natureza humana, já que se situa na intersecção do homem com seu modo de sobrevivência. Mas... não é isto que ela tem sido.

Seleção e Orientação Profissionais são conseqüências práticas diretas dos estudos de Psicotécnica, que por sua vez "Consiste na aplicação do experimento psicológico às atividades humanas, tomando em conta as aptidões individuais para as distintas profissões". É, portanto, um resultado prático de estudos sobre aplicações práticas, o que aponta de per si para um afastamento da teoria. Constatação que nos leva à obrigatoriedade de retomar a teoria.

Para entender a Psicotécnica, precisamos passear nos laboratórios de Psicologia Experimental em final do século XIX. Observar a engenhosidade dos aparelhos, a proximidade entre Psicologia e Fisiologia, o entusiasmo pela medida, o interesse pela Psicofisica.

Paralelamente desenvolveu-se a Psicometria, uma conseqüência do valor dado à avaliação quantitativa das condições psicológicas.

Por outro lado, é necessário também lembrar os diversos estudos feitos entre final do século XIX e início do XX, sobre diferençass individuais. Esses estudos tanto foram estimulados nos laboratórios experimentais quanto se desenvolveram em segmentos outros, tanto da Psicologia (teorias fatoriais da inteligência, tipologias ...), quanto de outras ciências (estudos sobre hereditariedade de Galton, craniometria e antropometria, evolucionnismo de Darwin...).

Da comprovação de que os seres humanos são diferentes entre si veio a conclusão de que não é possível submeter todos a idênticos sistemas de estudo e trabalho, o que constitui um reforço científico para favorecer diferentes oportunidades. Ou seja, arrumou-se uma desculpa para selecionar oportunidades de acordo com as aptidões individuais.

Nessa mesma época, despertar do século XX, está ainda muito próximo o nascimento da Psicologia como ciência independente e não mais ramo da Filosofia. Para afirmar sua independência, nossa jovem ciência comportou-se como qualquer jovem em busca de autonomia: nega suas influências anteriores e entrega-se totalmente a um modelo novo que esteja em moda e lhe pareça forte. Isto correspondia a se vincular à Filosofia positivista.

Heather (3) nos oferece um excelente retrato genérico do Positivismo e de como suas influências se fizeram sentir na Psicologia, determinando seu pensamento científico até hoje: movimento intelectual que propõe uma organização sistemática e racional da sociedade e que compreende os problemas humanos, toda a complexidade dos comportamentos, das instituições, da política, através dos mesmos métodos com que desvenda os mistérios dos neutrons na Física, das fórmulas químicas, dos gens biológicos. Tal atitude intelectual disseminou-se compactamente e vem formando, condicionando o modo de pensar de várias gerações.

Tiveram efeito especial sobre a Psicologia dos acontecimentos — um teórico e um metodológico — dentre os que marcaram o progresso do Positivismo: a)-publicação do "Origem das Espécies", de Charles Darwin, em 1859, facilitador de modo determinante do entendimento do homem como organismo; b)-abertura do primeiro laboratório psicológico de Leipzig — 1879 — quando Wundt e seus discípulos criam o precedente de toda a base experimental da Psicologia acadêmica posterior.

"Segundo o postulado positivista, podem ser observados e descritos (e ser objeto de uma ciência), somente os objetos percebidos como partes do mundo físico: fatos psíquicos só se deixam examinar sob o ângulo social-dependente, pois, da Sociologia, ou sob o asvecto de suas bases biológicas-fisiológicas" (1:20). Ao adotar este modelo, a Psicologia passa a ser subsidiária da Biologia, e seu objeto de estudo, o homem, a ser visto como simples objeto. Tal postura gera consequências incontroláveis: os movimentos de correntes mecanicistas e reducionistas da Psicologia; a coisificação do humano; a crença de que é possível manter uma atitude de neutralidade numa relação homem-homem em situação de intensa mobilização emocional.

È por tais caminhos do pensamento que chegamos em 1911 na definição da Psicotécnica dada por Hugo Münstenberg (Apud 2: 20): "Ciência da aplicação prática da Psicologia posta a serviço dos problemas culturais". Cultura por ele tomada em sentido extensivo de modo que diz respeito a toda e qualquer classe de atividade. Explicitamente o autor coloca que a consideração sobre a nobreza ou não deste fim prático não é problema da Psicologia e sim de outros ramos do conhecimento — Ética, Filosofia Social, Religião. Conceito evidentemente desmoralizante e anulante da ciência psicológica, que, aliás, dentro da tese positivista nem tem lugar na hierarquia das ciências.

Por outro lado, explicar psicologicamente o homem dentro do modelo das ciências biológicas, traz importantíssimas conseqüências para as considerações que os homens tecem sobre si mesmo, para as relações que estabelecem entre si, inclusive, para a organização do mundo do trabalho.

Pois vejamos: se aquilo que o homem é, sente, faz, tem capacidade de produzir está biologicamente determinado, por mais que sua personalidade sofra influências, ele será sempre fruto daquele ponto de partida enriquecido. Se não houver ponto de partida, não há o que enriquecer. Conserva-se, portanto, uma dependência direta da natureza com o tipo de desenvolvimento que a pessoa terá. Além disto, acrescentar algo, enriquecer, implica desenvolvimento mas não transformação. Na verdade, dentro desta visão de homem, mudanças reais são essencialmente impossíveis.

Daí porque essa interpretação da Psicologia como subsidiária das ciências naturais e mais diretamente da Biologia, é tão bem aceita pelos interessados em manter as coisas tal qual estão. Não é muito difícil identificar a quem interessa a manutenção do status quo. Marx nos passa uma idéia muito clara a este respeito:          '

"As idéias da classe dominante são, em todas as épocas as idéias dominantes, ou seja a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante... Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, a consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominem como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de idéias, regulam a produção e a distribuição de idéias de seu tempo; que portanto, as suas idéias, são as idéias dominantes da época". (5:59)

Em estudo desenvolvido "Sobre o mundo do trabalho, as determinações sócio-histórico-psicológicas, e a possibilidade de escolha" (6), fizemos uma retrospectiva do conceito de aptidão e vimos que a crença na aptidão como dom natural está retomada. Isto é, mesmo que ao longo do tempo tenha se estabelecido o reconhecimento da cultura e do meio na formação do homem, mesmo definindo o homem como um ser social, continuamos a pensar que estas múltiplas influências se fazem sobre um substrato biológico e hereditário. De algum modo, este principal condicionante resulta em capacidades, limitações, interesses, gostos, num modo próprio de ser e agir, enfim, resulta em uma dada personalidade.

O que mais chama a atenção nesta revisão histórica do conceito de aptidão é que este é o entendimento que aparece já no século XV. Portanto, é o mais distanciado no tempo, o mais retrógrado, o que se faz presente. São cinco séculos de história em que o homem, através de suas aptidões, tem transformado o mundo. Mas não foi apto para descrever a transformação da própria aptidão, pois, certamente, as aptidões em si estão visceralmente transformadas. Basta lembrar, como exemplo, a aptidão para ser tecelão no século XV, e o que significa hoje ser operário, mestre ou proprietário de uma fábrica de tecidos; ou, o tipo de aptidão mental necessária ao conhecedor das matemáticas do século XV e a do nosso atual programador de computador.

Pensar estas comparações nos remete a um. importante questionamento: como se estabelece a relação entre as aptidões humanas e a complexidade do mundo do trabalho? Isto é: é o trabalho que cria aptidões mais complexas ou é a aptidão mental que cria trabalhos mais complexos? Em qualquer hipótese, se nos reportarmos às aptidões inatas, ou às influências do meio, ou à ação conjunta de ambos os fatores, não encontraremos saída para o problema. Vejamos: se o homem nasce com suas aptidões, como pode inventar trabalhos que exijam outras? Se o meio influi sobre as aptidões, quem influi sobre o meio? Se há um jogo de influências entre meio e aptidões, como se operam mudanças?

Sem pretensões de ter a resposta, mas como ponto de partida para pensá-la, adoto a opinião de que o trabalho constrói a aptidão na medida em que o homem constrói o trabalho e se constrói. Assim, é no desempenho do fazer, na ação concreta do trabalho que o homem domina o trabalho e a si mesmo, constrói sua natureza humana e constrói novas formas de agir sobre a natureza, novas aptidões, portanto. "Não existe, portanto, uma natureza humana definitiva, estável, como quer a Psicologia corrente; ela vai se constituindo histórica e socialmente pela luta do homem com o ambiente, pela interação entre os indivíduos, pelo trabalho, pela educação" (4:162).

Entendida desta maneira, a única e verdadeira natureza humana é a social e histórica e para que se constitua uma atividade humana é preciso que se desenvolva sobre o biológico funções novas e próprias da vida em sociedade; funções estas, dialética e historicamente construídas como produtos das interações entre os indivíduos, entre os grupos sociais, entre os indivíduos e a sociedade.

O homem é, portanto, permanentemente um projeto de vir-a-ser, um homem em movimento que se constrói na concretude de sua história de vida.

Esta é uma forma de ver o homem que reposiciona a presença do psicólogo na escolha da vida de trabalho.

Selecionar pessoas para assumirem determinadas posições na vida produtiva, é a forma mais direta de enfrentar o impasse dentro do qual vivemos exatamente enquanto psicólogos: Como contribuir para que pessoas se realizem, se desenvolvam, se hominizem dentro das condições de trabalho que nossa sociedade capitalista oferece?

Fazer Psicologia dentro das organizações de trabalho, é encarar de frente este problema que existe para o psicólogo em qualquer atividade que escolha. Porém, esta é uma atividade em que as contradições de nossa profissão estão ali, latejando e dificultando o "virar as costas" e o "fazer de conta" que estão alhures, em algum outro "ramo" da Psicologia.

Assim como não existe uma natureza humana definitiva, evidentemente não existe uma Psicologia definitiva. Cabe ao psicólogo defini-la enquanto faz seu trabalho, enquanto coloca no ato de trabalhar aquilo que entende sobre a natureza psicológica do homem, enquanto realiza seu projeto de ser um entendedor da natureza humana, um facilitador das relações e das realizações dos homens para que se façam e se sintam mais homens.

O homem que se esclarece sobre o vínculo que tem com o trabalho que realiza, está, no mínimo, mais perto de si mesmo, mais apropriado de si. Uma forma de contribuir para isto é fazer da atividade de selecionador de pessoal uma oportunidade de conscientizar pessoas sobre seu projeto profissional, projeto de vida e possibilidades que o mundo real lhe oferece.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BUCHER, R. Psicologia científica: Realidade ou mito? Revista Psicologia, Ciência e Profissão. Brasília C.F.P. 1 (1), jan., 1981.        [ Links ]

2. FINGERMANN, G. Psicotécnica y Orientation Profesional. Buenos Aires, El Ateneo, 1968.        [ Links ]

3. HEATHER, N. Perspectivas radicais em Psicologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.        [ Links ]

4. LIBÂNEO, J.C. Psicologia educacional: uma avaliação crítica. In: LANE, S. T.M. e CODO, W. (orgs). Psicologia Socialo homem em movimento. São Paulo, Brasiliense, 1984.        [ Links ]

5. MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Lisboa, Avante. 1981.        [ Links ]

6. PAULON, S. M. Chamado igual em classes desiguais? Revista Mundo Jovem, Porto Alegre, XXVI, (196): 2-3, abr. 1988.        [ Links ]