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Psicologia: ciência e profissão

 ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.10 n.1 Brasília  1990

 

Instituição, educação e trabalho: elementos para uma dialética de transformação social*

 

 

Marisa Faermann Eizirik

Psicóloga e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 

Em meu convívio com instituições, ao longo de variadas experiências, pude observar o quanto as pessoas, no decurso do desempenho de suas tarefas, se encontram envolvidas por espessa rede de interesses, motivações, ambições, rivalidades, intensamente temperadas por questões de poder e agitadas por conflitos.

Julguei oportuno discorrer sobre esse subterrâneo das instituições, relacionando-as com educação e trabalho, enquanto dimensões dialéticas fundamentais a uma dinâmica de transformação social.

Pensei em utilizar, como fio condutor, um mito ou lenda que falasse sobre as origens da humanidade, seu desenvolvimento, formas de convivência e de organização, e de onde eu pudesse extrair alguns dos princípios que regem as relações entre as pessoas.

Encontrei em Ovídio (7:3-10), no capítulo I das Metamorfoses, uma forma mítica de explicar as origens do mundo, do homem e as quatro idades que marcaram a sua passagem pela terra. Em sua narrativa poética, ele descreve como aconteceu o princípio do mundo, desde o caos, "uma massa confusa e desordenada, não mais que um peso inerte e um amontoamento de germens mal unidos e discordantes", até a criação do mundo, com a separação entre céu e terra, desta as águas, rios, montanhas e mares, ventos e nuvens, cada qual com poderes específicos e funções equilibradas.

Nesta descrição, aparece sempre a contradição entre a harmonia, o equilíbrio e luta: "Tampouco aos ventos concedeu o artífice do mundo o livre uso do ar; ainda agora é difícil impedi-los na destruição do mundo, apesar de cada um dirigir seus sopros em regiões separadas: tão grande é a discórdia entre os quatro irmãos".

Após distribuir todas as coisas, os astros no céu, os peixes na água, as feras na terra, as aves no ar, "ainda faltava um ser vivente mais nobre, mais dotado de espírito, sublime e que fosse capaz de exercer domínio sobre os restantes. Assim nasceu o homem", e Ovídio salienta a diferença entre animais e homens, dizendo que, "enquanto os primeiros estão naturalmente inclinados olhando para a terra, os homens foram feitos com o rosto levantado de forma a poder olhar para o céu e para as estrelas".

Ao descrever o mito das idades do mundo, o autor fala sobre a idade do ouro, onde não havia "castigo nem temor, juízes e vítimas, soldados ou batalhas (...) A terra produzia tudo, sem a necessidade de arar os campos ou plantar sementes". Esta terminou com a morte de Saturno, destronado por seu filho Júpiter, que, ao sucedê-lo, diminuiu a duração em quatro estações — "invernos, verões, outonos inseguros e fugazes primavera". Os homens, de acordo com este mito, sentiram fome, frio e tiveram de procurar abrigo e trabalhar para se alimentar, pela primeira vez. Após essa idade, a da prata, sucederam-se a do bronze e a do duro ferro, irrompendo "toda a classe de perversidades em uma idade do mais vil metal: fugiram a honradez, a verdade, a boa fé, e em seu lugar vieram os enganos, as maquinações, a violência e a criminosa paixão de possuir (...) apareceu a guerra".

A partir deste mito, é possível encontrar vestígios de quase todos os elementos que vamos observar nas sociedades humanas e em seus agrupamentos; ele nos fala com sabedoria acerca do movimento que caracteriza o nascimento e a morte, fala das contradições e dos conflitos — entre pais e filhos, entre irmãos, entre a terra e o céu, entre os ventos, entre as divindades, dilacerados pela competição, pelo desejo de possuir, mostrando toda a importância do poder e da dominação, ora aparecendo dos deuses em relação aos homens, ora de uns deuses sobre os outros, levando ao assassinato, à morte, à guerra.

Esse texto nos fala também do amor e do ódio, do desejo e da paixão, que movem as ações humanas (e também as ações dos deuses antropomórficos gregos e romanos); traz com clareza a noção de bonança e de adversidade, tão bem caracterizadas pelas quatro estações, e ressaltando a noção de trabalho, que nada mais é do que um agir sobre a natureza, para dela extrair o sustento e a sobrevivência.

A narrativa nos fala também sobre educação, pois, a cada mudança de idade, o homem precisou aprender a viver e a sobreviver. Esta talvez seja a grande tarefa — aprender a viver — e as relações pedagógicas que se estabelecem aparecem condicionadas por uma complexa gama de fatores, desempenhando forte papel a própria realidade e a singularidade dos contextos sócio-político-econômicos de cada comunidade, em cada momento histórico.

Na medida em que a amena e agradável primavera terminou, sendo sucedida pelas agruras do inverno e do verão rigoroso, os homens precisaram buscar abrigos e providenciar alimentos. Apesar da sofisticação que esta tarefa ganhou ao longo dos séculos, os princípios permanecem, carregando a noção de trabalho com suor e sofrimento.

A idéia que aparece subjacente à idade de ouro, ou ao paraíso bíblico, ou ao ventre materno é a de prazer ligado à satisfação plena dos desejos, sem qualquer esforço. Na medida em que os homens foram obrigados a trabalhar, observa-se a organização e a burocratização deste trabalho, acompanhada de uma supressão do desejo. Nesse momento, deslizamos para outro tópico de reflexão que pretendi fazer aqui, e que se centra na discussão a respeito do amor e do desejo, forças impulsionadoras do agir humano.

Pagés (8:20) em seu livro O trabalho amoroso, examina corajosamente esta relação falando sobre a emoção e o amor, sobre a separação entre o privado e o público, ao dizer que:

"A ligação das duas esferas — a esfera privada das emoções e da vida pessoal, e a esfera socializada da teoria e da prática profissional — é, na maior parte das vezes, clandestina, subterrânea e mal identificada. Quando muito, admitir-se-ão influências tidas como perturbações, emoções sobre a prática social que serão analisadas para as eliminar e reencontrar a serenidade e a certeza das idéias. E será restaurada a separação entre as duas esferas para manter as relações sociais na assepsia que as protege da mudança, enquanto as relações privadas fervilham".

E é nessa assepsia que, freqüentemente, se encontra a maior parte do sofrimento e da insatisfação relacionados com o trabalho. Desjours (2) assinala o quanto o contato com a tarefa desinteressante, a falta de significação, o sentimento de inutilidade provocam no trabalhador a sensação de sentir-se miserável, sujo, desvalido, despersonalizado e, muitas vezes, indigno. E a própria imagem de si mesmo que fica afetada e impregna todas as áreas da vida.

Estas separações, portanto, entre emoção e trabalho, entre desejo e supressão, existem só na fachada e provocam o fechamento de canais de comunicação que poderiam tornar as relações de trabalho mais produtivas, permitindo trocas entre as pessoas, expressões mais vivas dos sentimentos e construção do trabalho social fundamentados na experiência da própria vida.

É importante falar também sobre o prazer, e sua ausência, uma vez que prazer e desejo caminham juntos nas relações sociais e provocam uma abertura para dentro de cada pessoa e para os outros, constituindo-se, dessa forma, em impulsionador de mudanças.

Se observarmos no âmago das relações entre as pessoas, desde os pequenos grupos até as organizações de trabalho, de diferentes tipos, podemos ver o quanto essa dimensão de impulso/ satisfação, de desejo/ realização, está dissociada, como que freada por delimitações burocráticas e funcionais. É o terreno do proibido, do não pode, quando tudo o que é feito, a nível subterrâneo, é a pura expressão destas paixões: poder, voracidade, inveja, corrupção, como exemplos apenas de uma ampla variedade de sentimentos e ações que prosperam nos agrupamentos humanos. E não seriam esses sentimentos manifestações de desejos, legítimos representantes do viver humano? Não estariam a serviço de determinados impulsos e prazeres? Por que a repressão e a acomodação daquilo que, desde os mitos e as lendas, demonstra ser próprio da humanidade?

Quando se diz: aquela pessoa ou aquela instituição é desumana, querendo significar que ela é impiedosa, cruel, será que não existe um equívoco nesta concepção? Não será ela humana? Não será próprio da humanidade este caleidoscópio de sentimentos e paixões, que são recodificados pela sociedade e pelas instituições?

Talvez seja preciso resgatar a natureza de alguns conceitos fundamentais, retirando do nebuloso, do secreto, do envergonhado, a noção de desejo, por exemplo, e trazendo para a claridade da discussão a sua importância para todos aqueles que trabalham com a prática social. Para Guattari & Rolnik (3: 215-6) "o desejo permeia o campo social, tanto em práticas imediatas quanto em projetos muito ambiciosos", e denominam: "(...) desejo a todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de valores (...) o desejo, em qualquer dimensão que se o considere, nunca é uma energia indiferenciada, nunca é uma função de desordem. Não há universais, não há uma essência bestial do desejo".

Segundo esses autores, "o desejo é sempre o modo de produção e de construção de algo".

Podemos, a partir daí, pensar o quanto é necessária a presença do desejo, a consciência e a manifestação da vontade, quando se fala em construção do conhecimento, em construção do saber, em trabalho social, esferas que não podem se abster desse alimento tão fundamental.

Porém, se existe a supressão dessa energia, ou libido, ou desejo, encerrada em compartimentos para os quais a prática social não permite vazão, podemos perguntar: o que acontece com a criatividade, com o entusiasmo, com o espírito inventivo, com a curiosidade, motores impulsionadores da renovação e da mudança? Como encontrar abertura para a complexidade se existe um fechamento anterior, mais primitivo, que circunscreve os limites do possível e do impossível? Como lidar com as contradições, se elas não são, muitas vezes, nem conscientes, nem visíveis, nem exprimíveis?

Ao formular estas perguntas estou procurando desenvolver idéias, ventilá-las na livre discussão, sacudindo de certa forma alguns conceitos que fazem com que nossas teorias e nossas práticas, capitaneadas pelos excessos de controle e de ordem, se tornem imobilizantes e, mais grave, imobilizadoras.

Este é um momento de pensar a complexidade, de mexer com as idéias, de desinstalar os conhecimentos de seus nichos fechados.

A complexidade, tal como é pensada aqui, se baseia na formulação de Morin (6:26), que a entende como a dificuldade de pensar (esta é a complexidade!), e a possibilidade de compreensão da dificuldade do conhecimento já é um avanço desse mesmo conhecimento. Morin alerta para a crise de conceitos fechados e de explicações mecanicistas que vivemos hoje, destacando a insuficiência dos conceitos redutores "que prendem o todo as partes que o constituem ou que prendem as partes ao todo que as engloba". Este autor defende a necessidade de "conceber a associação complexa que é feita não somente de complementaridades, mas também de concorrências e antagonismos", de forma a perceber que "todo o fenômeno em devenir requer, para a sua compreensão, a associação complexa da ordem, da desordem e da organização".

Ao falar acerca da complexidade, podemos penetrar em outra esfera de análise, que consiste na busca de estabelecer algumas das profundas e estreitas relações entre instituição, trabalho e educação e as forças impulsionadoras que regem essas mesmas relações.

Uma primeira aproximação ao sentido etimológico da palavra instituição já traz uma idéia da complexidade, como é possível observar no estudo feito por Lapassade (5:287-91), que coloca o duplo sentido do termo, juntamente com "organização", os quais, às vezes, se equivalem. Uma instituição pode significar "um sistema de normas que estruturam um grupo social, regulam a sua vida e o seu funcionamento", e dessa forma esse termo consiste num dado; se considerado como um ato, podemos dizer que existe um "ato de instituir", proveniente do sentido etimológico da palavra em latim, instituere, que quer dizer "estabelecer, construir, preparar, dispor, instruir, educar, formar".

Assim, alguns aspectos caracterizam as instituições sociais: um sistema de normas interno e externo, um sistema de avaliação, um sistema de trocas, que funciona como estruturas reguladoras e organizadoras desses sistemas.

Em meio a variadas abordagens acerca das instituições — filosóficas, sociológicas, antropológicas, jurídicas, políticas, funcionalistas — eu gostaria de salientar a dimensão simbólica. É esta dimensão que dá um significado diferente às relações que os homens estabelecem nas diversas instituições, pois partem de um primeiro símbolo que é a linguagem. Esta não tem uma dimensão só de descrição da realidade; a linguagem tem um sentido, também, de organização e de estruturação do mundo. É dentro deste princípio organizador que ocorre a comunicação; e na sua dinâmica interferem muitos processos — de percepções e interpretações — sendo uma a sua dimensão funcional, e a outra a da representação, ou seja, a do significado simbólico da função.

Anteriormente trouxe a descrição de um mito que falava acerca das origens do mundo e das quatro idades da humanidade, relatado por Ovídio (7); nada mais concreto do que observar a linguagem simbólica presente na narrativa, trazendo toda uma visão de mundo, misto de real e de imaginário, e traduzindo uma concepção de sociedade, de organização social, por exemplo, na alegoria dos ventos, quatro irmãos que viviam em contendas e necessitavam cada qual de um espaço individual para atuar, soprando em direções opostas. O quanto essas imagens simbolizam processos tão presentes na vida institucional, ligados a questões de poder e de competição?

Com freqüência, vamos encontrar separadas essas esferas — a do real e do imaginário, a do funcional e a do simbólico — assim como falávamos antes das separações entre público e privado; apesar de dissociadas, todavia, essas dimensões não deixam de existir, e nem de atuar, com intensidade, na construção e na manutenção das instituições. Essas esferas não ditas, subentendidas, permanecem agindo e constituem uma rede simbólica. "As instituições não se reduzem ao simbólico", diz Castoriadis (1:142), "mas elas só podem existir no simbólico. (...) Uma organização dada de economia, um sistema de direito, um poder instituído, uma religião, existem socialmente como sistemas simbólicos sancionados".

Esses sistemas simbólicos sancionados definem e regulam padrões de funcionamento, fórmulas de pagamento, rituais, direitos e deveres, que são estritamente vinculados à natureza e à característica de cada instituição.

Com relação à educação, por exemplo, existem os códigos que transpiram pelos canais, nem sempre formais, das instituições, e que dão a medida do permitido e do proibido, do certo e do errado, que a criança aprende bem cedo. Ela absorve e assimila esses sinais, capta os seus significados e constrói um modelo (ou é obrigada a fazê-lo) sobre o qual se orienta. Nesse modelo alguns princípios aparecem com clareza: o da autoridade (seja pelo poder de competência ou pelo uso da força), o do controle e da repressão; o do castigo (podendo às vezes se transformar em reprovação). É claro que existem outras propostas educacionais, que pregam um ensino com liberdade, com participação, estimulando a independência dos alunos: todavia, na prática, são poucos esses espaços.

Acredito que na base das relações entre instituição, trabalho e educação está a necessidade de aprender a jogar, recolocando o lúdico, o prazeroso no processo de criação, que deveria constituir a natureza da educação e do trabalho.

Conhecemos sobejamente como, bem cedo, a criança perde esta dimensão ao entrar na escola, onde começa a "ser educada"; através de uma rede de mecanismos, o espontâneo, a curiosidade, a atividade passam a ser recodificados e transformados em direção a alguma coisa que se chama socialização. Sabemos que, muitas vezes, as intenções são as melhores possíveis, porém conhecemos os resultados: a escola distante da vida, e a vida acontecendo fora da escola — nos recreios, nas entradas e saídas, nas férias, nas ausências dos professores. É claro que sempre é necessário ressalvar as exceções, que ainda seguram a "barra da escola".

O caminho para o trabalho segue naturalmente: a criança e o adolescente, disciplinados, partem para a vida profissional, onde continuam predominando, os mesmos mecanismos: tédio, frustração, impotência, conflitos, revoltas, aspirações não realizadas, expectativas sufocadas (cabe aqui também a ressalva às exceções).

E tudo isso considerando ainda aquelas pessoas que conseguem escolher o seu caminho profissional, que representam uma percentagem muito pequena da população deste país. A enorme maioria trabalha para comer, e muito mal! Este grande contingente de pessoas talvez nem tenha tido oportunidade de vivenciar o prazer e ter consciência do significado do seu trabalho e da sua vida. Muitos iniciam o contato com a vida já trabalhando, lutando para sobreviver, como mostra o grande contingente de meninos de rua de nossa realidade.

Essa dimensão dramática é algo para ser levado em conta por todos nós, trabalhadores sociais. É preciso que busquemos recursos para auxiliar na transformação social, na dimunuição das desigualdades. Porém, esse é um processo de construção coletiva; as alternativas paternalistas, ou puramente ideológicas, e até dogmáticas, não levarão a mudanças significativas, apenas talvez a radicalizações e concentração de poder que, infelizmente, estarão ainda, e sempre, distantes daqueles que realmente precisam melhores condições de vida.

É preciso fugir do determinismo, que enreda as pessoas e as instituições em mecanismos dos quais não há possibilidade de se libertar. Nós herdamos o determinismo que marcou o século XIX, e estamos na antevéspera do século XXI vivendo a complexidade, em toda a sua extensão, profundidade e perplexidade. Saímos do tecnicismo que nos dava certezas, fórmulas, técnicas, regras, dizendo o quê, como, quando e onde fazer determinadas coisas, enfrentar tal ou qual dificuldade; e agora? Essa pergunta, como base para tantas outras, nos coloca frente a frente, com a nossa ignorância, aumentando a incerteza e a insegurança que se tornou uma constante em nossos discursos e em nossas práticas.

Talvez esse não saber tenha se introduzido no nosso conhecimento juntamente com a noção de probabilidade que se acrescentou ao saber científico. Uma vez que uma verdade seria para sempre provisória, de acordo com Popper (9), as certezas foram derrubadas; todavia, nós poderíamos pensar que a introdução da idéia de probabilidade poderia pressupor, também, a capacidade de uma estrutura complexa intervir na sua própria transformação.

Para isso, porém, precisaríamos iniciar por uma transformação no próprio conceito de educação, que, ao invés de responder à idéia de fornecer, dar, ensinar (educare, do latim), passássemos a entendê-lo como educere (latim), ou seja, conduzir o aluno além dele mesmo, numa construção da qual ele seja seu próprio artífice, e o professor, aquele que lhe fornece os elementos necessários. Enfatizando a necessidade de desenvolver a espécie humana, Jacquard (4:123) propõe uma palavra para designar a sua complexidade — humanitude — e diz que a educação deveria ser "o trabalho que permitiria fazer com que uma promessa de homem feita pela natureza, com toda a sua complexidade, pudesse, um belo dia, participar do jogo da humanitude", e para tanto ele deveria ser livre, autônomo e participante de um jogo coletivo.

A idéia de jogo coletivo toma um caráter nuclear, na medida em que congrega palavras fortes como jogo — que pode traduzir prazer, fruição, imaginação, criatividade, vontade, desejo, sentimento; e também coletivo — que lembra plural (e dentro dele o individual), fala de demandas, necessidades, práticas sociais, reflexões, experiências; lembra também de composições de indivíduos dentro de um funcionamento social, econômico, institucional, político.

A idéia de educação tem um significado, aqui, de ruptura com o fechado, com o bloqueado, com o proibido, de forma a permitir a emergência de tudo aquilo que é próprio das pessoas, e que, podendo sair, permitisse a re-apropriação, por parte de cada um, de sua vida, de seu ensino, de seu trabalho; lembrando as constatações de Desjours com relação ao trabalhador, seria substituir o medo pela coragem, o sofrimento pela recupeção da dignidade e da condição de cidadania.

Essas idéias sobre educação, trabalho e instituição só podem ser entendidas contextualizadas na luta do homem contra a sociedade na qual está inserido e, ao mesmo tempo, depende; luta por transformá-la, reflete sobre ela e a reinterpreta, constantemente, numa estrutura que é sempre instável, conflitiva e complexa.

Talvez a mola impulsionadora desse caráter contraditório e complexo da luta do homem com o seu meio seja a sua paradoxal necessidade de lidar com a desordem, buscando incessantemente a criação de algo novo, através dos paradoxos e contradições da própria vida.

Essa, talvez, seja a natureza mais essencial da metamorfose que Ovídio lembra em sua descrição poética, ou seja, a concepção de que existe um movimento permanente, uma constante luta entre contrários, movidos por desejos e paixões que, não obstante, encontram novos equilíbrios, fugazes, antes de iniciar uma outra luta. A idéia retratada é a da dialética, onde não existe a supressão do desejo, ao contrário, é o mais puro e límpido fulgurar de sentimentos, ódios, paixões e desejos que move esse mundo mítico. É a força do imaginário, transparente, que conduz essa construção de homens e deuses.

Será que não precisamos trazer para o dia-a-dia de nossas práticas, no espaço institucional — do trabalho, da educação, da família, da sociedade —  esses elementos revolucionadores da ordem, da organização, da assepsia —  que são os sentimentos e as emoções? Será que não precisamos aprender a enfrentar algumas verdades que ficam ocultas — ou mais bem representadas — em mitos, ou histórias infantis, ou lendas — mas que são aspectos nucleares das próprias contradições da vida institucional e social, como a ambição, a cobiça, a competição, a inveja, a raiva — sentimentos tão humanos e tão terrivelmente rejeitados — como feios, sinistros, indesejados, porém inseparáveis, da própria condição humana?

Não serão esses sentimentos elementos fundamentais de uma dialética de transformação social? Talvez seja necessário incorporar ao individual e ao social essa dimensão, também humana, apesar dos homens terem sido feitos, segundo o mito, contrariamente aos animais, "com o rosto levantado, de forma a poder olhar para o céu e para as estrelas".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. CASTORIADIS, C. - A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.        [ Links ]

2. DEJOURS, C. - A loucura do trabalho; estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo, Cortez, 1988.        [ Links ]

3. GUATTARI, F. & ROLNIK, S. - Micropolítica; cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 1986.        [ Links ]

4. JACQUARD, A. - Le jeu de l'humanitude. in: C.R.E.S.A.S. On n' aprend pas tout seul. Paris, Les Éditions ESF, 1987.        [ Links ]

5. LAPASSADE, G. Grupos, organizações e instituições. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977.        [ Links ]

6. MORIN, E. - Penser l' Europe. Paris, Gallimard, 1987.        [ Links ]

7. OVÍDIO. - Metamorfosis. Barcelona, Bruguera, 1983.        [ Links ]

8. PAGÉS, M. - O trabalho amoroso. Lisboa, Vega Universidade, s. d.        [ Links ]

9. POPPER, K. A lógica da pesquisa científica São Paulo, Cultrix, 1972.        [ Links ]

 

 

* Conferência apresentada no I Encontro Nacional de Psicologia do Trabalho - 14 a 16 de julho de 1988, Porto Alegre, RS.