Psicologia: ciência e profissão
ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.12 n.2 Brasília 1992
Notas sobre a nação ÉTICA-Psicologia
José Leon Crochik
Professor Assistente - Doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Oobjetivo deste texto é pensar, de forma breve, sobre a relação entre a Ética e a Psicologia na atualidade e algumas de suas possíveis implicações na prática do psicólogo. O referencial teórico a ser utilizado baseia-se em alguns trabalhos de pensadores oriundos do Instituto de Pesquisa Social vinculado à Universidade de Frankfurt, fundado em 1923, tais como Adorno, Horkheimer e Marcuse.
Estes pensadores passam a refletir, entre outros fenômenos, a relação entre o indivíduo e a cultura, tomando como uma de suas principais bases teóricas, as categorias dos filósofos do Idealismo Alemão (Kant e Hegel) e as de Marx. Eles repensaram estas categorias à luz das mudanças da sociedade moderna, cujo avanço do capitalismo, de liberal para monopolista, de um lado, e o desenvolvimento de um socialismo de cunho autoritário, de outro lado, alteraram as instituições sociais e a relação entre a cultura e o indivíduo. Embora as suas análises recaiam, principalmente, sobre o capitalismo, estão em questão tanto os princípios do ideário liberal, quanto os do ideário socialista, apesar deste último ser mais valorizado por eles, do que o primeiro.
O repensar daquelas categorias se dá com o auxílio do pensamento desenvolvido por Freud, cujas concepções são tomadas como objetos históricos. Assim, pode-se localizar o protótipo da formação do Ego na Odisséia de Homero, cujo protagonista, Ulisses, através de seus conflitos com os deuses e com a natureza, sacrifica os seus desejos de sucumbir a esta, para estabelecer-se como homem racional que a submete a si. O Ego e a Razão burguêsa nascem da astúcia e do conhecimento, no combate ao inimigo. Astúcia contida, tanto no declarar-se fraco, submisso frente ao mais forte, para iludi-lo, como na separação entre palavra e coisa, que permite ao homem se autodenominar tanto como "Ulisses" como "ninguém". Já o conhecimento resulta da perenidade da repetição dos seres míticos. O Ego e a Razão surgem da autoconservação do indivíduo e da espécie, e, assim, poder e conhecimento são inseparáveis na origem. Poder sobre a natureza, tanto a humana, quanto aquela que envolve o homem. O controle sobre a natureza envolve, a priori, domínio sobre si e sobre o outro que, ao se submeter às categorias daquela dominação, toma-se idêntico a ela.
O contrato burguês e sua ética são frutos também, da sobrevivência, ele implica a sua ruptura, através daquilo que não está previsto; segue-se o contrato, rompendo-o, ou seja, através daquilo que não consta é possível obter aquilo que o contrato proíbe sem, no entanto, contrariar as suas regras. É através dele que Ulisses consegue passar pelas sereias sem ser encantado por elas, pois não estava previsto que ele não pudesse fazer a passagem amarrado no mastro de sua embarcação, e que ordenasse a seus homens que colocassem cêra em seus ouvidos. Desta forma, ele pode ouvir o canto, sem ser encantado, enquanto os seus homens ficam embrutecidos, repetindo o mesmo movimento que impulsiona a embarcação, sem poder perceber o que se passa a seu redor. Ulisses se cinde entre o desejo e a impossibilidade de realizá-lo, impossibilidade esta garantida pela sua astúcia, já os seus homens devem desconhecer até o desejo. Adorno e Horkheimer (1985) veêm nesta cena da odisséia parte da relação moderna entre capital e trabalho.
Marcuse (1982), por seu lado, aponta para a relação entre ética e conhecimento (Razão) na Grécia Antiga: a Razão é Ética à priori, por afirmar o ser, na sua contraposição entre essência e aparência. Tomar o ser pela sua aparência e fixá-lo em fórmulas é impedir a visualização das possibilidades de transformação do homem e de sua realidade.
Assim, a Psicologia, a Ética e a Razão, de um lado, e a autoconservação, de outro lado, são inseparáveis, embora a suarealação não seja imutável. Adorno e Horkheimer (1985) apontam que na realidade contemporânea, aquela relação que engloba, também, a que existe entre indivíduo e cultura, prescinde cada vez mais das mediações do Ego e do pensamento; ambos se adaptam ao imediato, reproduzindo-o e aniquilando-se. O que está em questão é a morte do Ego e do pensamento, e, portanto, da cultura, cuja consequência é a regressão à barbárie.
Esta breve introdução já nos permite supor que a teoria e a prática psicológicas, de um lado, e as questões éticas que as envolvem, de outro lado, não podem ser consideradas pela sua imediatez, embora esta não deva ser desconsiderada por aquilo que possa trazer de novo. Assim, tanto a teoria psicológica, quanto a ética têm que ser constantemente revistas, segundo critérios estabelecidos pela constituição da realidade. Todavia, estes critérios devem ser tomados na contraposição, entre aquilo que a realidade é e aquilo que ela poderia ser para proporcionar uma vida humana digna de ser vivida.
Os valores subjacentes àquela contraposição devem ser buscados na história da civilização ocidental, particularmente, após a Revolução Francêsa, onde se defendia a idéia de um Estado racional que possibilitasse a igualdade, a liberdade e a justiça. Claro que estes valores são mais facilmente alcançáveis numa sociedade cuja produção material garanta a vida de todos, e a sociedade capitalista já demonstrou que é capaz de gerar grandes riquezas, embora, ao mesmo tempo, a produção daquela e a sua distribuição sejam guiadas por algo que tem racionalidade aparentemente própria e estranha ao homem: o lucro.
Ao se submeter aos mecanismos do mercado livre, ameaçado pelo avanço dos monopólios econômicos, que por sua vez é produto do próprio capital, o indivíduo passa a representar o capital ou o trabalho e a se identificar de tal forma com estas representações que aquilo que é deve se submeter a regras alheias a ele, e, assim, a sua constituição depende de algo que lhe é estranho. O indivíduo deve se submeter às leis do mercado, não porque a motivação para o lucro seja inata, mas porque é a única forma dele sobreviver. O que leva os homens a atuar e a defender o "mercado livre", segundo Adorno (1967), são dois medos primitivos: o medo de ser destruído e o medo de ser expulso da coletividade.
Assim, a subjetividade se constitui através de sacrifícios necessários à manutenção do todo. Isto não significa que o indivíduo se resuma à forma pela qual a sociedade se constitui, mas que certas formas de ser são privilegiadas em relação a outras. Mas, quando a cultura
toma-secada vez mais uniforme, exigindo de cada um a concordância com a sua manutenção, calcada em justificativas que a eternizam, tal como "o capitalismo é o sistema que mais convém ao homem", quando se exige cada vez mais a atuação e menos reflexão, cada vez mais competência e menos crítica, a formação do Ego e a possibilidade de pensamento são ameaçadas.
O desenvolvimento do capitalismo moderno tem mostrado que este é opositor de fronteiras. Surgiu com o rompimento do feudalismo e caminha para o transnacionalismo. A existência das multinacionais e da formação atual de blocos econômicos atesta isso. Mas, ao romper as fronteiras, causa danos à identidade nacional, que como uma reação à ruptura tende a se fortalecer. O ressurgimento do nacionalismo no final do século passado, é uma forte fonte do facismo, segundo Adorno (1973).
O conflito colocado desta forma, parece se dar entre um universal - o capital - e particulares - as nações. Mas, trata-se de uma falsa universalidade, de falsas particularidades e de um falso conflito. O capital não é um universal, mas representante de interesses particulares; as nações não são somente particulares, posto que para sobreviverem têm que se submeter ao falso universal e por fim, o conflito é falso, pois, como mostra Marcuse (1988), os estados facistas não eram contrários à propriedade privada, muito pelo contrário, e a burguesia dos países não facistas não hesitam em pedir a proteção de um Estado nacionalista, quando sentem a sua propriedade ameaçada. Aqueles que sustentaram o fascismo, segundo Adorno e Horkheimer (1985), foram tanto indivíduos pertencentes a uma elite econômica que não queriam ser confundidos com aqueles que foram julgados parasitas do sistema (os banqueiros judeus), quanto uma população despossuída, incentivada à destruição para ficar com parte do saque.
O facismo, representado pela Razão do Estado, fortaleceu uma identidade que pressupunha o direito da posse, como um direito natural do mais forte, algo que a civilização ocidental luta em combater. Mas, a naturalidade da raça é tão falsa quanto a universalidade do capital: "A raça não é imediatamente, como querem os racistas, uma característica natural particular. Ela é, antes, a redução ao natural, à pura violência, a particularidade obstinada que, no existente, é justamente o universal" (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 158).
Mas, se o fascismo é inerente ao capital e se a civilização ocidental é contrária a ele, pois nele os seus valores básicos não podem ser realizados, então, uma sociedade verdadeiramente humana não pode ser criada neste sistema social. Isto não significa que aqueles valores não devam ser defendidos, mas, ao contrário, que tudo aquilo que possa fortalecer a constituição individual, a formação de um Ego e de um pensamento que consigam contrastar o desejo com a realidade deva ser fortalecido. Conforme aponta Adorno (1973), a principal exigência da Educação, e dentro desta podemos incluir a Psicologia, é a de evitar a recaída na barbárie. Se Adorno (1973) se volta para a constituição da subjetividade, enquanto localiza as causas da barbárie na esfera objetiva, é porque supunha e ainda devemos supor que a possibilidade de alteração desta é remota.
Como dito antes, a constituição da subjetividade não se esgota na sociedade e na cultura, mas depende destas. E quando as esferas de mediação entre o indivíduo e a cultura tais como a família e a escola, se enfraquecem ou se alteram para preparar o indivíduo a não mais criticar o Todo, mas a se adaptar a ele, o Ego se fragiliza fravorecendo a formação do tipo de personalidade conhecida como narcisista.
Desta forma, a Psicologia que se quer em consonância com uma Ética digna do nome, que defenda o indivíduo, deve-se voltar contra a violência social existente. Para isto ela deve se pautar pelos seus conhecimentos específicos, mas sem considerar o homem como uma essência imutável. Assim, por exemplo, as considerações favoráveis à "pena de morte" oficial devem ser criticadas de forma veemente por ser o extremo consentido de uma morte já vivida por aquele cuja exclusão é determinada por condições sociais que dificultam-no ser diferente do que é. Poder argumentar que a constituição da subjetividade se dá sob a ameaça da morte, que se toma cada vez mais concreta é, simultaneamente, crítica à sociedade existente e defesa do indivíduo. O mesmo ocorre com a explicação que o psicólogo possa dar sobre o quê na sociedade colabora com a não evitação da agressão de um indivíduo a outro e o que a violência social causa ao indivíduo.
Da mesma maneira, o psicoterapeuta que considere o seu paciente fruto de suas idiossincrasias e da forma pela qual elas se adaptam ao meio e não, também, como fruto dos conflitos sociais, colabora com uma consciência pacificada num mundo não pacificado. Julgar que a problemática social não é também da responsabilidade da atuação do psicólogo e deslocá-la para outra esfera de atuação é assumir uma postura de descomprometimento frente ao sofrimento. Assim, a frieza de um paciente não deve ser remetida somente à cisões de afetos dele, mas, também, às condições sociais que geram a frialdade geral em que vivemos.
Para se articular as atuações frente às esferas psíquicas e sociais é necessário se refletir sobre as práticas e teorias psicológicas dentro do desenvolvimento social e pensar o quanto elas podem colaborar com a mistificação existente da autonomia do indivíduo. Por mais que se fale, é necessário frisar novamente que o homem além de produzir as condições sociais é, também, produto delas. E, necessário, portanto, voltarmo-nos para as categorias de outras disciplinas, tais como a Filosofia e a Sociologia para entendermos o especificamento psicológico.
Claro é que a observação feita sobre a atuação do psicólogo clínico se estende às outras áreas de atuação, o que implica que as categorias da Filosofia e da Sociologia deveriam permear a formação do Psicólogo, não somente enquanto disciplinas específicas, mas como conteúdos que possam nortear as outras disciplinas. Não se trata, também, de propor qualquer Filosofia ou Sociologia, mas aquelas que tenham um compromisso com uma visão histórica.
A Psicologia e os psicólogos deveriam , também, apontar para uma educação que, através da família e da escola, pudesse permitir a livre expressão da angústia e dos conflitos individuais, assim como evitasse a disciplina através do rigor que pode levar, segundo Adorno (1973) à insensibilidade.
Dá mesma forma, não podemos, enquanto psicólogos, ser insensíveis e indiferentes ao lazer que representa a violência. Os brinquedos, tais como armas, nos levam a representar a vida adulta e eles só deveriam ser utilizados se houvesse a crítica ao "mocinho que mata o bandido" ou, para estar em conformidade com os nossos dias, "o herói com a arma de laser que destrói o invasor extraterrestre". O diferente a ser exterminado conota e denota a destruição da suposta ameaça por ser diferente.
O mesmo se pode dizer dos videogames e dos filmes que suscitam a representação da violência, sem a sua necessária condenação. Mas, estes, em comparação com os brinquedos, trazem um malefício a mais: a técnica reproduz tão bem a realidade que a reprodução pode ser confundida com aquela.
O que foi dito a respeito dos brinquedos, videogames e filmes, não são afirmações categóricas, mas deve provocar estudos e reflexões sobre eles. Dizer que são necessários para a adequação da criança ao mundo existente é colaborar para a sua perpetuação. Da mesma forma que dizer que uma criança deve se conformar por não poder ter um brinquedo caro, porque ela deve se acostumar às frustrações da vida, é fortalecer o conformismo.
Num momento em que, a nível nacional e a nível internacional, a barbárie se revela, quer pelo desprezo de crianças e idosos, demonstrado no Brasil, através da matança de crianças e da aposentadoria indigna, quer pelo racismo manifestado no mundo por diversos líderes políticos, o psicólogo, mais do que nunca, deve agir a favor da formação de indivíduos que possam ter alguma autonomia para resistir à violência existente. E este é um compromisso essencialmente ético. □
Bibliografia
Adorno, Theodor W. Sociology and Psychology. New Left Review, 46, 67-80, 1967. [ Links ]
______Consignas, Buenos Aires, Amorrotu editores, 1973. [ Links ]
______e Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985. [ Links ]
Marcuse, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial: O Homem Unidimensional. Rio de janeiro, Zahar Editores, 1982. [ Links ]
______Negations: Essays in Critical Theory. London: Free Association Books. 1988. [ Links ]