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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.18 n.1 Brasília 1998
Atelier de trabalho para psicóticos. Uma possibilidade de atuação em orientação profissional
Marcelo Afonso Ribeiro
Psicólogo do Projeto S. O.S. Criança da FEBEM - SP, Mestrando em Psicologia Escolar pela USP, Especialização em Orientação Profissional pela USP, Aprimoramento em Saúde Mental pela FUNDAP, Professor Universitário (UNICSUL e Sedes Sapientiae). Pesquisador do Setor de Orientação Profissional da USP
O psicótico é um sujeito em busca de uma referência que lhe falta, ou seja, o referencial da lei não simbolizada por ele. A tentativa de um trabalho terapêutico vai no sentido de assegurar ao psicótico alguma forma de pseudo-referência, à qual ele possa se remeter. A proposta de um trabalho de orientação profissional para psicóticos teria lugar entre o momento em que a sua crise é aplacada, via terapia e/ou medicação, e o momento em que através de grupos de atividades e de convivência tenta-se sua ressocialização. O presente trabalho propõe um momento interediário, no qual através de um trabalho clínico procura-se resgatar a possibilidade de escolha e a capacidade de decisão do sujeito.
A priori cabe aqui descrever o caminho a ser tomado por esse trabalho. Será realizada uma introdução sobre o universo da psicose e suas vicissitudes, e como esse fenômeno é encarado em termos teóricos, terapêuticos e sociais, como forma de configurar o terreno onde se está pisando e onde este projeto está sendo semeado; solo teórico fértil e detentor de uma gama de possibilidades - escolhamos uma...
Na sequência vem a tentativa de localização da questão profissional/laboral como elemento estruturante para o sujeito. E como conclusão, nossa proposta de um trabalho em Orientação Profissional para todos aqueles sujeitos que se relacionem com o mundo de um modo psicótico, acompanhada de exemplos da prática, que ilustram nosso livre desenvolver.
Esse trabalho está sendo desenvolvido concomitantemente em duas instituições: tem locus no Ambulatório de Saúde Mental do Jaçanã da Rede Pública de Saúde do Estado de São Paulo e conta com a supervisão do Setor de Orientação Profissional do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Desde já deixo meus sinceros agradecimentos a toda equipe técnica e administrativa do A.S.M do Jaçanã na figura do seu diretor Dr. Leonídio Galvão dos Santos, que ofereceram gentilmente seu espaço e seus pacientes para que eu pudesse desenvolver o trabalho que aqui descrevo, como também a toda equipe do Setor de Orientação Profissional da USP na figura de sua chefe Profª Drª Yvette Piha Lehman, que incentivaram este projeto, e mais especificamente à psicóloga Maria da Conceição Coropos Uvaldo, que supervisionou . esse trabalho.
O UNIVERSO DA PSICOSE
A psicose é sempre um tema fascinante e nosso recorte se dará pela trilha que a Psicanálise nos deixou. A constituição do sujeito sempre se dá em referência a um outro, que serve como espelho, no princípio uma relação de indistinção funcional1 , que necessita a interferência de uma lei, que rompe com essa completude imaginária, instala a falta e torna o sujeito um ser desejante, não ligado ao desejo do outro. Se essa interferência falha, compromete gravemente o acesso ao simbólico (mundo da lei) e essa falta fica não simbolizada em virtude da ausência da lei, e tende a voltar na realidade. A metáfora paterna é a "encruzilhada estrutural" da subjetividade. "O nascimento de um sujeito passa assim, de uma certa forma, pela ausência imaginária de um objeto e pela marca significante que assinala sua ausência." (Mannoni, 1988, p.77). Isso é o que permite a assunção de uma subjetividade.
A ausência de uma referência a um sujeito que detém um saber, que instaura uma lei, é condição para a psicose. O sujeito neurótico está organizado ao redor de um pólo central que dá significado a sua vida. Algo assim2:
Se no neurótico tudo é remetido a essa lei central, no psicótico há uma circulação do significado que ele dá e se relaciona com o mundo, não há um eixo central e estruturador. Algo assim:
O psicótico é um sujeito livre, solto, por não estar amarrado a nenhum eixo central que lhe guie, falta um ordenador. Ele participa da lei, sem ter uma referência desta lei, sem conhecê-la; está excluído de qualquer possibilidade de intercâmbio, pois falta um sistema de referência comum, o que complica o laço social. O psicótico não está fora da linguagem, ele está fora do discurso - interdição simbólica universal da neurose.
Nesse sentido o psicótico é um sujeito errante em busca de uma referência que lhe falta, que é o universal da neurose, que coloca o sujeito no mundo, pelo assujeitamento do próprio as regras que regem o mundo, a referência que sustenta a lei. Mas como se dá a sustentação desse sujeito psicótico ?
O psicótico está sujeitado à consistência de uma referência imaginária, advinda da realidade, pela qual ele está estabilizado. É como se ele inventasse uma referência que dessa conta da ordenação que ele necessita para se relacionar com o mundo, referência muitas vezes precária e que ainda não encontrou com o referencial da lei que rege o universal neurótico. Ele vive agarrado a uma árvore, numa metáfora artesanal, sempre artificial, por isso passível de rompimento, que pode ser arrancada se o tufão da lei do mundo passar por onde ambos estão, destituindo o lugar que o sustentava nessa ordem. O desencadeamento de uma crise psicótica frequentemente está ligado a perda de um "lugar", que sustentava o sujeito. (Grandinett,1993).
O rompimento sempre surge do encontro do psicótico com a lei, que não vê significado neste encontro, perde sua referência artificial e se desestabiliza. A realidade obriga o psicótico a se sustentar num saber organizado como o saber neurótico - é o momento da injunção, que coloca seu saber em estado crepuscular, ou seja, retira a validade desse saber, deixando o sujeito sem nenhum tipo de significação do mundo, e impõe o saber neurótico, que por não estar simbolizado pelo psicótico, retorna enquanto algo real e concreto: são as alucinações e os delírios (Calligaris,1989,p.36).
Está desencadeada uma crise psicótica, que por sua riqueza fenomênica e a angústia subjacente que provoca, leva o psicótico a se tornar um paciente, configurando-o socialmente como um "doente mental", rótulo que irá acompanhá-lo mesmo após o final de sua crise. É nesse momento que ele chega a um tratamento, na maioria das vezes institucional. Mas como é encarada e tratada a psicose ?
Calligaris (1989) discute este aspecto. A psicose tende a ocupar um lugar de exclusão, já que aponta para a ausência do universal neurótico, e geralmente o trabalho com o paciente psicótico sucumbe à tentação de normalização, de neurotização do mesmo, ou pela via medicamentosa, ou pelas próprias terapias, cumprindo a instituição um papel de conservação de um bem adquirido e acorrentando a palavra livre, a imaginação do psicótico, criando certezas e apaziguando corações. Mas por que é tão difícil escapar desta tentação ?
Voltando um pouco, na crise psicótica, a lei que rege o mundo neurótico, não simbolizável na psicose, vai retornar no real, como uma tentativa de estruturação do sujeito, via constituição de um delírio. E é justamente esse delírio estruturante, que tenta ser eliminado a todo custo pela terapêutica. Por que o trabalho de constituição do delírio é um trabalho tão difícil de aguentar para a equipe que trabalha com pacientes psicóticos ?
Porque o trabalho de constituição do delírio no paciente psicótico é na verdade uma apresentação quase especular do que efetivamente comanda a estrutura neurótica, a saber, a falta que funda o neurótico como sujeito desejante, e sobre a qual ele nada quer saber. O delírio é algo tão inagüentável para o neurótico quanto o recalcado, aquilo que o constitui enquanto sujeito, mas que não pode aparecer. O ideal de normalização, frequentemente perseguido no trabalho com pacientes psicóticos, talvez seja um ideal de repressão de sua própria referência estruturante; "...não querer saber nada do que o sustenta como sujeito". (Calligaris, 1989, p.104).
O que fazer então?
A tentativa segue no caminho de assegurar que o psicótico crie de alguma forma, uma pseudo-referência a qual ele possa se remeter, na esperança de organizar um saber ao redor de um pólo central, que sempre terá lugar na realidade, nunca simbolizado. Algo assim:
Mas como suprir este vazio, esta ausência de uma referência ? Voltemos às origens da Psicanálise e da obra de Freud. Em 1923 no texto "Neurose e psicose", Freud diz que o delírio é uma tentativa de cura, de restituição. Já no artigo posterior de 1924 "A perda da realidade na neurose e na psicose", diz que o delírio é uma tentativa de substituição da realidade perdida. Não seria essa uma dica para pensarmos na idéia desenvolvida posteriormente por Lacan3 de suplência ou estabilização? Mas o que diz este conceito ?
Diz respeito a idéia de que o psicótico para se estabilizar deve construir uma metáfora análoga a metáfora neurótica (metáfora paterna), isto é, uma amarragem central que possa distribuir todas as significações subjetivas e produzir uma parada no deslizamento incessante da significação, que a partir desse momento está submetida a este pólo central (conforme nos mostra o grafo 3), mas que só é constituída pela via do delírio, portanto uma metáfora delirante.
Ser delirante não é ser inverossímil, mas antes ter o lugar central da amarragem no real, e não pertencendo ao saber do sujeito psicótico. A metáfora delirante, então, é uma suplência imaginária da metáfora paterna, da referência, se constituindo portanto numa pseudoreferência, pois o seu núcleo central não tem lugar no saber do sujeito, mas antes, fora dele próprio, no real onde ele não encontra significados, mas encontra justamente uma função, que irá ordenar artificialmente sua existência, proporcionando uma (re)apropriação de sua história, que se encontrava esburacada pela perda da referência que o sustentava, e por conseguinte irá facilitar sua aproximação do discurso que rege o mundo; discurso do universal neurótico.
Portanto, a suplência é o "afan restitutio" que tenta (re)articular a trama psicótica, sem tentar transformá-la em uma trama neurótica, mas antes utilizando de elementos da própria estruturação psicótica para se restituir, após uma crise. Ela dá condições para que o psicótico caminhe lado a lado com o neurótico, gerando somente uma aproximação e nunca uma superposição da metáfora delirante sobre a metáfora paterna, o que invariantemente levaria a uma nova crise.
Esse é o caminho para um trabalho com pacientes psicóticos; caminho onde a equipe que os atende deve caminhar lado a lado com o psicótico, facilitando, pela transferência, a construção da metáfora delirante, e não assumindo a posição de um saber, de uma referência, que vai sendo imposta ao longo do processo terapêutico, pois classicamente este é o desencadeador da crise psicótica: o encontro com a lei não simbolizada, que desestabiliza o saber do sujeito. Vale ressaltar que nem todo delírio é restitutivo e tem intento estabilizador, pois pode carecer de qualidade necessária para o estabelecimento de um novo equilíbrio.
O que quer dizer isto ? Como se dá a constituição da metáfora delirante? Ela se constitui em três momentos, os três tempos da metáfora delirante. (Grandinett, 1993, p. 23-24).
No primeiro tempo o sujeito se encontra em estado confusional, chamado de estado crepuscular, onde depois de sofrer a injunção, o encontro com a lei, ele fica sem direção e sem referência, sem ter alguém que o oriente.
No segundo tempo, o sujeito começa a se situar como destinado ("...um tempo projetado na incerteza do futuro") a um outro (referência), logo com chances de transformação. É o começo do processo de antecipação, com uma pequena visualização de futuro.
Juranville (1987) em seu livro "Lacan e a filosofia" relata que a situação fundamental do psicótico é estar fadado a um tempo sem continuidade, onde tudo aparece sem cessar, e a um mundo que falta a antecipação dos acontecimentos; antecipação proporcionada pela posse de uma referência a qual se possa basear e ordenar o saber. Essa é a situação do psicótico em crise.
Portanto o processo de antecipação e de referência a um outro são indícios de uma começo de (re)estruturação do saber psicótico. As intervenções terapêuticas são de máxima importância neste nível de decisão, garantindo, imaginariamente, via transferência, um destinatário para o sujeito, que possa assegurar seu processo de (re)estabilização (minha proposta de trabalho tem lugar neste momento).
Vale salientar que a transferência deve sempre se dirigir à instituição que está acolhendo o paciente psicótico, e nunca à indivíduos em particular, pois a instituição será, nesse momento, objeto e base da referência que o sujeito está tentando construir; base essa de caráter provisório, pois o sujeito deverá criar uma referência imaginária relativa a sua vida, ao seu saber, e não relativa a crise, a doença, as quais são representadas pela instituição que cuida delas. Se a referência permanecer ligada à instituição, sem ser (re)criada, as chances de transformação são menores. (Mannoni, 1988).
O terceiro tempo de constituição da metáfora delirante diz respeito ao ordenamento metafórico propriamente dito, onde se dá a reconstituição da referência como uma função com lugar no real, pois ela não pode ser simbolizada pelo psicótico, mas que é condição que outorgará à reconstrução delirante, seu valor de metáfora e fator de estabilização: processo de aproximação do discurso que rege o mundo, sempre com seu núcleo central no real.
A constituição da metáfora delirante é um trabalho autoterapêutico, que necessita elementos da realidade para se desenrolar, por isso que o trabalho terapêutico com psicóticos ultrapassa o nível da relação transferencial para retornar a ela com elementos imaginários da realidade - movimento fundamental em qualquer trabalho de cunho terapêutico com pacientes psicóticos. A interpretação na psicose é uma manobra da transferência orientada para a estabilização. (Calligaris, 1989, p.106).
Resumindo:
Antes da crise - O sujeito se encontra estabilizado através da produção de uma metáfora artesanal, que sem recorrer ao delírio, lhe permite inventar uma referência. Ele tem uma relação psicótica com o mundo, mas não é visto pelo mundo como psicótico, ou como "louco", vulgarmente falando.
Crise - Pelo encontro com a lei que não tem significado para o sujeito, a lei do universal da neurose, a metáfora artesanal perde sua capacidade de suplência e o sujeito fica sem referências, consequentemente se desestabilizando e entrando em crise (manifestação fenomênica desta desestabilização). Se inicia o processo de construção de uma metáfora delirante.
Minha proposta de um "Atelier de Trabalho para psicóticos" se desenrola durante a constituição da metáfora delirante e surge como auxiliar nesse processo.
Pós-crise:
a) O sujeito permanece vagando em busca dessa referência, entregue a possibilidade de novas injunções.
b) O sujeito se encontra estabilizado com uma suplência imaginária da referência que lhe falta, uma pseudoreferência.
A INSTITUIÇÃO E O PSICÓTICO
O que comumente tenho visto no atendimento ao paciente psicótico na Rede Pública de Saúde do Estado de São Paulo, é que ele passa por dois momentos. Um primeiro momento onde sua crise é aplacada, via terapia e medicação, e um segundo momento, onde através de grupos de atividades e de convivência, tenta-se sua ressocialização e também sua reinserção no mercado de trabalho. O que proponho é que haja um momento intermediário, onde através de um trabalho clínico, se possa resgatar a possibilidade de escolha e a capacidade de decisão do sujeito, e numa tentativa mais ousada tornar o "trabalho" um dos elementos concretos que organizem o saber psicótico e não um desestabilizador a mais, como acontece quando o paciente é inserido no mercado de trabalho sem uma preparação para tal. A primeira vontade do psicótico depois que sua crise desintensifica, é voltar a trabalhar, pois isso se constitui numa forma de aproximação concreta com a realidade, mas geralmente isto é ilusório e sinal de que alguma coisa ainda não vai bem. O sujeito sabe que ainda não está bem, mas vive a ilusão de que voltando às atividades rotineiras, todo resto voltará a ser como era antes da crise.
O trabalho é um importante indicador de volta à vida, de uma possível retomada do controle sobre sua vida, que se vê invadida pela doença, tomando posse do sujeito e lhe renegando a um lugar de dependência. A vida se torna a doença e a instituição que acolhe o psicótico o lugar de tratamento dessa doença.
Num primeiro momento esta é mesmo a função da instituição, ou seja, proporcionar um espaço de acolhida para o sujeito que vê sua vida desmoronar, e lhe garantir alguma sustentação, quer por via medicamentosa, quer por via terapêutica, mas sempre tendo em mente que o objetivo maior da instituição é poder restituir a vida àqueles que estão perdidos na doença.
Num segundo momento a função da instituição é permitir que o sujeito se (re)integre a vida, e justamente aí começam os equívocos. A tentativa de restituição da vida ao sujeito psicótico, que perdeu sua referência, pode ter a instituição como base, mas jamais deve permitir que o paciente transforme sua realidade na realidade da instituição, ou seja, não consiga se desvincular dela e faça da instituição, sua vida; pelo simples fato de que a instituição é o lugar da doença, e o vínculo com a instituição é o vínculo com a doença.
Qualquer ideal que vise a autonomia do paciente psicótico deve tentar quebrar com esse movimento de simples vinculação à instituição, fundamental no momento da crise, mas que só insere o sujeito psicótico num ciclo vicioso de crises e mais crises, se não visualizar a realidade externa como meta do seu trabalho.
Um grande cuidado deve ser tomado para que o próprio tratamento não seja cronificante, pois o movimento próprio do psicótico pós-crise é um movimento que tende à repetição e à estagnação, principalmente se a instituição e sua equipe não ocuparem o lugar de facilitadores no processo de criação da metáfora delirante, que sempre necessita desse apoio imaginário da realidade para se (re)constituir.
Se num primeiro momento se fala da doença e da relação do sujeito com a doença, no momento subsequente deve-se privilegiar o resgate da vida, proporcionado pela (re)construção da história e das experiências do sujeito, movimento mesmo da suplência, que leva a uma estabilização.
DIRETRIZES GERAIS DO TRABALHO PROPOSTO
O que se percebe no trabalho com psicóticos é que após passada a fase aguda de sua crise (1o. tempo da constituição da metáfora delirante), vem a tona um medo muito grande de encarar a vida (processo de construção da metáfora delirante), uma impotência associada (necessidade de uma intervenção terapêutica), um descrédito da sociedade (falta de reconhecimento pelo universal neurótico, que não suporta a falta estrutural do psicótico em crise) e uma sensação de que algo mudou e que jamais voltará a ser como antes (sensação de ter perdido sua metáfora artesanal, que após a crise, jamais voltará a ser como era, só podendo se constituir via delírio, por isso uma metáfora delirante). Se perdeu a pseudoreferência que se tinha e o trabalho de Orientação Profissional seria no sentido de reestruturá-la, tomando como ponto de partida o próprio sujeito e se chegando a uma escolha profissional, que é sua.
Revisitando Bohoslavsky, se incorpora à tarefa de Orientação Vocacional, uma dimensão ética:
"... a ética surge do fato de que, ao considerarmos o homem sujeito de escolhas, consideramos que a escolha do futuro é algo que lhe pertence e que nenhum profissional, por capacitado que esteja, tem o direito de expropriar." (Bohoslavsky, 1980, p.47).
O trabalho de Orientação Profissional combateria a acomodação e o desânimo que invadem o psicótico pós-crise (aquele que ainda não conseguiu estruturar sua pseudoreferência), que encontra duas saídas para sua vida: ou fica em casa sem fazer nada esperando nova crise, ou então arruma um emprego qualquer, que pode também levar a uma nova crise, que cada vez que é desencadeada deixa marcas e leva o sujeito ao caminho da cronificação.
Não é o trabalho em si que é estruturante, mas sim se ele é tomado como uma aproximação do discurso socialmente valorizado do universal neurótico e atua como elemento imaginário que ajude a criar uma metáfora delirante.
A solução que a sociedade encontrou foi a aposentadoria desses pacientes por invalidez, que se por um lado garantem algum retorno monetário, por outro renegam concretamente o psicótico ao plano de excluído, sem ter mais nada a oferecer ao mundo em que vivem, lhe tirando, dessa forma, qualquer possibilidade de crescimento e transformação.
A realidade age como um mecanismo de inviabilização da construção de uma pseudoreferência, tornando o espaço vazio da significância, em um espaço de paralisação e exclusão, deixando livre o caminho para o processo de cronificação. É o domínio da doença. Os objetivos básicos desse trabalho são: o resgate da cidadania do psicótico não permitindo que seja prematuramente aposentado, o combate a cronificação, tentando evitar novas crises e a possibilidade de estruturação de um saber pelo "trabalho", que é uma escolha profissional sua, e que pode funcionar como elemento estruturante do real, que o sujeito psicótico necessita como referência para sua vida.
O trabalho, encarado como um discurso socialmente valorizado, é tomado como eixo do "Atelier de Trabalho", justificando-se a nomeação conferida a esta possibilidade de atuação em Orientação Profissional, na tentativa de aproximação pelo sujeito psicótico desse discurso, visando sua estabilização. A suplência viria por uma referência imaginária ao trabalho, discurso que faz parte do mundo neurótico, o qual ocuparia o vazio de significância localizado no pólo central do saber psicótico, perfazendo-se uma pseudoreferência. Algo assim:
O trabalho é parte fundamental do discurso neurótico, ao qual o psicótico pode se aproximar na tentativa de criação de sua pseudoreferência. Este projeto visa a recuperação do paciente psicótico como um ser produtivo, retornando à condição de sujeito, perdida temporariamente com a crise, e não encarado como um peso que só atrapalha sua família e gasta dinheiro em hospitais psiquiátricos.
É bom frisar que essa possibilidade de atuação não exclui o tratamento, nem medicamentoso, nem psicoterápico, eles podem ser complementares, mas nunca excludentes. Um não pode substituir o outro, pois cada intervenção guarda suas especificidades e momentos de acontecer.
O "Atelier de Trabalho" visa a passagem de uma situação de proteção total, momento de vivência na instituição que acolhe o sujeito psicótico em crise (domínio da doença), para uma situação de desproteção parcial, momento em que o sujeito consegue organizar minimamente sua pseudoreferência, pela via do trabalho (domínio da vida), mas que se configura uma desproteção parcial, pois ele pode contar com este grupo, como referência, no caso de fracassos ou sucessos, tornando-se o "Atelier de Trabalho" um espaço permanente de sustentação, que pode ser utilizado ocasionalmente pelo sujeito. É também uma referência, que auxilia na manutenção de sua metáfora delirante. Como nos mostra o esquema 1:
LINHAS BÁSICAS DO "ATELIER DE TRABALHO"
O objetivo maior do "Atelier de Trabalho" é favorecer a (re)construção e (re)apropriação da história e experiência de vida de cada participante do grupo, acreditando que esta reconstrução é básica no processo de criação da pseudoreferência de cada um, passando de um espaço de proteção total para um espaço de desproteção parcial, passando da doença para a vida, do domínio da doença para a (re)apropriação da vida, via um trabalho (esquema 1).
A idéia de (re)apropriação da vida tem como pano de fundo a esperança de que isso proporcione mais confiança ao sujeito, fazendo com que ele resgate sua capacidade de escolha e decisão, e siga vivendo.
Para que isso aconteça faz-se necessário promover um movimento de ir e vir constante de ação e reflexão, ou seja, toda atividade (momento da ação) tem uma reflexão subsequente (momento da reflexão), ressaltando que este grupo é um espaço de valorização da história de vida de cada um, não um espaço para refletir sobre suas doenças. É um espaço de ação e de reflexão sobre a ação, não de reflexão sobre a vida, que no caso da maioria dos pacientes psicóticos se resume à doença; é um espaço outro, que tenta articular um outro tipo de relação com o mundo, visando ultrapassar o domínio da doença. A idéia de uma reflexão sobre a ação, resgata a vida indiretamente, e não diretamente, porque ela ainda se encontra sob o domínio da doença, e qualquer alusão direta à experiência do sujeito, nos oferece uma amostra opaca e sem vida dessas vivências. O objetivo é que, através de tarefas, batizadas de "projetos", a história de vida de cada um possa ir se (re)construindo e adquirindo mais cor, já que se mostram em preto e branco, e desvitalizadas.
O projeto vem com um duplo papel: primeiro de facilitador da (re)apropriação gradativa sobre si; e segundo de fonte de idéias de operacionalização e organização do projeto de vida individual de cada um, tornando a parte mais difícil, que é falar de si, recuperar sua história, num momento de mais confiança e ação, objetivo máximo deste grupo.
O grupo então terá tarefas estruturadas (projetos), seguidas de reflexão (trabalho elaborativo da experiência vivida), partindo primeiramente dos terapeutas e atingindo os participantes do grupo, para gradativamente ir partindo dos próprios participantes e atingindo suas vidas.
Outra idéia subjacente é tentar diferenciar este "Atelier de Trabalho" dos outros grupos que são desenvolvidos no interior da instituição que acolhe o psicótico, como os grupos de Terapia Ocupacional, ou as Oficinas Terapêuticas, entre outros. Para isso algumas medidas são tomadas. Primeiramente, como já foi frisado, a reflexão é em cima da ação, para indiretamente se chegar a vida; portanto a atividade não é um instrumento intermediário pelo qual se chega no paciente, mas antes um instrumental que visa (re)construir a própria história de vida dele. Em segundo, o paciente não é encaminhado para este grupo, ele é convidado a participar através de uma palestra que vai apresentar o grupo aos pacientes da instituição e escolhe estar participando. A escolha por parte do paciente é o elemento básico na filosofia deste projeto, portanto deve ser valorizada desde o seu começo.
Em terceiro, o grupo não se esgota no interior dos seus limites, sendo a ponte com o externo freqüente e imediata. Os projetos nunca se encerram dentro do grupo, mas extrapolam seus limites e atingem a realidade, para retornar posteriormente com elementos do externo que ajudem na consecução da tarefa. E como quarto ponto, o local aonde o grupo se desenrolará. Ele começará no interior da instituição onde são tratados os pacientes que participarão dele (proteção total), para aproximadamente no meio do processo mudar para um outro local fora da instituição (desproteção parcial, ainda com o suporte do grupo), com o intuito de promover um movimento concreto de passagem da instituição que acolhe a doença, para um outro local, onde começa a se delinear o domínio da vida. Inicia-se o grupo no espaço da instituição e com o movimento do próprio grupo, se avalia, em conjunto (terapeutas e pacientes), o melhor momento para se efetuar a mudança de espaço, o que já se configura como um descolamento da instituição e uma pequena inserção social, inclusive propondo como tarefa ao grupo arrumar um local para que o mesmo aconteça. Este local será fruto de uma pesquisa feita pelo grupo (terapeutas e pacientes). Novamente a escolha do paciente é ponto chave.
O "Atelier de Trabalho", como vem sendo dito, é um trabalho em grupo, pois facilita a troca entre os pacientes, recria um ambiente social, possibilita o trabalho coletivo e dilui a carga de responsabilidades em cima de uma só pessoa.
Terá um limite máximo de 10 participantes inscritos, se levarmos em conta que desistências ocorrerão no desenrolar do grupo, pois o trabalho de estabilização é árduo e demanda muita energia, coisa que muitos não conseguem agüentar. É aconselhável que o grupo se desenvolva com um mínimo de 3 e um máximo de 6 participantes, como forma de dar uma atenção mais individualizada a cada um.
O trabalho deve ser sempre feito em um sistema de co-terapia, onde os dois terapeutas tem que ter um eixo de atuação em comum, pois isso auxilia muito na estruturação dos pacientes, que estão justamente em busca de um eixo.
O grupo pode ser realizado uma ou duas vezes por semana, respeitando sempre o limite dos pacientes, que devem ter um intervalo suficiente entre um encontro (chamarei as sessões de encontros) e o seguinte, para que possam elaborar o que viveram durante o grupo e possam ter tempo hábil de realizarem as pesquisas pertinentes aos projetos que vão sendo desenvolvidos ao longo do trabalho. O grupo terá lugar sempre no final da tarde ou começo da manhã, propositadamente fora do horário comercial de trabalho, uma nova tentativa de aproximação à realidade; e com duração de média de 1 hora e 15 minutos, dependendo da tarefa que estiver ocorrendo e variando de acordo com o movimento do próprio grupo, que terá liberdade de definir o final do grupo.
Contará com um número de encontros que variem entre 18 a 22 encontros, o que resulta aproximadamente em uns 6 meses de duração, tempo necessário para os arranjos e desarranjos que terão lugar neste projeto, inclusive contando com um período de 15 dias de férias, afinal todo aquele que trabalha tem direito às suas férias, novamente com o intuito de amarragem à realidade. O tempo de duração do grupo deve ser comunicado ao próprio logo no início do processo, como forma deles irem planejando o seu percurso dentro desse referencial temporal. Informa-se que o grupo durará mais ou menos 6 meses, e que a data final será marcada quando o grupo estiver na reta final.
É fundamental que em todo começo de encontro se faça uma retomada do encontro anterior, o que promove uma sequenciação e também a construção de uma história do grupo, de suma importância na (re)construção da história individual. Por fim, o trabalho será dividido em 5 fases, que serão descritas a seguir.
AS FASES DO "ATELIER DE TRABALHO"
Apresentação
O primeiro dia do grupo tem como objetivo um conhecimento mútuo entre terapeutas e pacientes, na tentativa de configurar um caminho a ser desenvolvido pelo próprio grupo. Para tal, cada paciente relata sobre sua história relativa a vida no trabalho, vida profissional, e também suas expectativas com relação ao "Atelier de Trabalho".
Cabe aos terapeutas colocar novamente a proposta do trabalho (o que já foi feito na palestra inicial onde se apresentou o projeto aos pacientes da instituição onde ele será realizado), reforçando que este grupo é uma escolha de cada um que decidiu dele participar, e que o importante não é sair empregado, mas antes recuperar a certeza e a confiança de poder tentar traçar um novo caminho para suas vidas, o que pode ter como consequência um novo emprego. O objetivo máximo do grupo é que cada um possa elaborar seu projeto de vida particular.
Diante de tudo que foi falado, os terapeutas tem bastante material para começar a pensar sobre as formas e conteúdos dos projetos que serão propostos, sempre procurando levar em conta a experiência profissional do grupo.
É interessante notar a dificuldade que o psicótico tem em contar sua história de vida, pois ela está sem uma referência, é como se nada se fixasse, tudo está muito solto, por isso a importância da (re)apropriação das experiências vividas, que se encontram sem um colorido, estão dispersas, perdidas na memória, necessitando de algo que as recupere e as energize. Este é o principal objetivo do grupo: a reconstrução da história de cada um através da elaboração de um projeto para suas vidas, que utilizará o "Atelier de Trabalho" como auxiliar neste processo.
Outro aspecto importante é a ligação entre o tema do "trabalho", em um equipamento de saúde mental, com o lado saudável da vida. Como já foi frisado, trabalhar, ou simplesmente, participar de um grupo que reflita sobre este tema, está estritamente associado com melhorar, por isso que o pedido que geralmente vem por parte dos pacientes deste grupo se resume na fala de um deles durante o começo do processo: "Com a minha doença eu já sei conviver, conheço esta história muito bem, quero agora agir diferente...". Portanto, o conhecido é a crise, o repetido, a estagnação; e o pedido é a vida, o movimento, a ação.
Com isso começa a se traçar as estratégias de ação no grupo, ou seja, colocá-los para trabalhar, para se movimentar, criando coisas e situações diferentes do cotidiano, tanto da instituição que os acolheu, como de sua casa. O setting deve ser estruturado, pois qualquer abertura excessiva pode significar um retorno ao ciclo fechado em que eles se encontram, nesse sentido o terapeuta deve ser diretivo e propor atividades concretas nesse início de trabalho, com o intuito de atender o pedido expresso pelo próprio grupo: "Me ajude a agir diferente!".
Fica uma questão misturada com um pedido: "Minha vida eu já sei como é, não adianta repetir, mas dá para ser diferente?".
A questão se coloca, mas também desponta uma esperança da descoberta de novos caminhos, já que esse que eles vêm trilhando, já é sabido não desembocar em lugar algum, a não ser no de sempre, ou seja, na estagnação ou crise, a gosto do freguês, que não está nada contente com o menu oferecido e deseja mudar de restaurante, só não sabe como; desejo este que vem com uma força de vida muito grande, mas sem uma referência a qual seguir. Atender seus anseios nesse momento é tentar configurar um espaço outro, é a primeira tarefa que se faz presente, inclusive sendo este momento inicial fundamental para o andamento do resto do grupo.
1ª. fase
Terapeutas propõem uma atividade a ser desenvolvida pelo grupo (1 o. projeto).
A idéia é evitar o diálogo e colocar o grupo para trabalhar, não deixando espaço para a divagação, o que invariavelmente desemboca na questão da crise (domínio da doença), na repetição que eles estão acostumados e contra seu próprio pedido de: "Me mostre algo diferente". Diante disso, uma atividade estruturada deve ser planejada, no sentido de garantir um espaço de crescimento. No começo a direção do grupo deve vir dos terapeutas e não dos pacientes, para gradativamente ir se invertendo, pelo movimento do próprio grupo.
Com esse intuito a proposta é de uma atividade de construção e transformação de uma realidade concreta, com uma ação subjacente. Por exemplo: "Os terapeutas dizem ao grupo que estão com vontade de mudar de moradia e para isso tinham pesquisado muito e encontrado uma propaganda de um apartamento muito atraente no jornal de domingo, com quase tudo que eles queriam. Proposta: o grupo (coletivamente) teria que bolar uma propaganda que convencesse os terapeutas de que o que eles ofereciam era mais vantajoso do que a oferta que se encontrava no jornal (a propaganda inicial é apresentada para o grupo)."
Com essa tarefa o grupo teria que transformar a propaganda que já estava feita e é parte integrante da realidade (universal neurótico), construir algo parecido, mas mais vantajoso, e por fim convencer os terapeutas (teoricamente representantes dessa realidade saudável) de que seu produto era melhor que o outro, o que implica uma ação.
A escolha da atividade a ser desenvolvida deve partir da criatividade e experiência dos terapeutas, em cima do grupo que estão coordenando, com a única exigência de cumprir a função sugerida acima. É importante lembrar que os projetos nunca se esgotam no interior do grupo, ultrapassando seus limites sempre a fim de atingir a realidade e de lá voltar com elementos que ajudem na consecução da tarefa. A ponte com o externo é sempre freqüente e imediata.
A idéia então, para este começo de grupo, é tentar desenvolver atividades que comecem no ambiente protegido do grupo, gerem uma criação, tragam alguns elementos do exterior que auxiliem nesse processo, para finalmente irmos para a rua e conferirmos as semelhanças e diferenças entre o que eles produziram e o que eles viram no externo, na tentativa de atender o pedido que eles fazem a todo momento: "Me ajude a agir diferente!".
No exemplo citado, foi realizada uma visita a um estande que estava vendendo apartamentos, onde foram obtidas muitas informações. A idéia é comparar o que eles pensaram e planejaram com o que a realidade oferece, tentando mostrar que é possível a realização de coisas reais, não só na fantasia. A atividade começa no grupo e atinge o externo, voltando ao grupo novamente, o que dá a possibilidade de pesquisa na realidade e acréscimo de elementos à história particular. A entrada do elemento do externo (universal neurótico), geralmente é lenta e sofrida, podendo gerar paralisações, que devem ser trabalhadas no interior do grupo, mas essa entrada é uma maneira da aproximação com o próprio externo ser feita de forma gradativa, pois sem ele este trabalho com o psicótico não funciona. Esse trajeto, que parte do protegido e alcança o desprotegido parcial, voltando ao protegido, deve ser repetido seguidas vezes, com o intuito de diferenciar este grupo dos outros que eles já frequentaram, mas principalmente trabalhar com as limitações de cada um, o que aguentam fazer, o quanto agüentam caminhar, o tempo que necessitam para fazer este trajeto.
É importante nesse início de atividades o trabalho coletivo, a comparação e utilização do externo, e a valorização e utilização das experiências vividas na realização dos projetos, por isso a proposta feita pelos terapeutas deve levar em conta o relatado na apresentação, onde cada um falou de sua história de vida profissional. Através dos projetos, os pacientes vão se apropriando gradativamente de suas experiências, e consequentemente, de sua própria vida.
Reflexão
Como já foi comentado, o espaço do grupo é um espaço de ação e reflexão sobre a ação, não sobre a vida, portanto a cada final de projeto se realiza uma reflexão sobre o que aconteceu, tentando sempre resgatar as potencialidades e as experiências do grupo.
Nesse primeiro momento ainda se percebe uma dificuldade de falar da experiência vivida, mas cabe aos terapeutas apontar o que foi realizado e como foi realizado; trabalho que é facilitado, pois pode ser visto na criação que o grupo produziu. Em cima do produzido, mostra-se o envolvimento de cada um no projeto, e como é possível, simplesmente, produzir; coisa que vai em sentido contrário a doença, que favorece a estagnação. O próprio grupo tende a pedir um novo projeto.
Se percebe que os pacientes que chegam a este grupo já tem uma estrutura pré-montada, só faltando uma oportunidade e confiança para agir, pois questionados sobre seu projeto, parecem ter respostas para tudo. a força de vontade existe, mas a mudança é árdua e dá medo, parece que a única certeza é a da "crise"; e porque não inverter esta máxima, apostando que a única certeza é que "eu posso", apesar da crise, e quem sabe podendo, a crise deixa de aparecer.
2ª. fase
Terapeutas sugerem várias possibilidades de ação, mas o grupo coletivamente escolhe o caminho a seguir.
Se num primeiro momento o terapeuta tem um papel totalmente diretivo e ativo e o grupo passivo com relação à escolha do projeto a ser desenvolvido, nesta segunda fase o terapeuta traz possibilidades, ainda ativo, mas o grupo escolhe o caminho a seguir, começando sua passagem de um estado totalmente passivo para um outro mais ativo; passagem que será feita de forma gradativa. Através de elementos da realidade, que irão dar dicas para a consecução do projeto, o grupo criará alguma coisa.
Por exemplo: "São oferecidos vários exemplares da revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios, passando-se a instrução ao grupo de pesquisar numa parte da revista que se chama As Boas Idéias do Mês, onde são oferecidas várias sugestões de empreendimentos de diferentes portes e ramos de atividade, classificadas de acordo com o investimento inicial em equipamentos, instalações e capital de giro. São dicas de como montar seu próprio negócio, que o grupo vai escolher e realmente montar um negócio em conjunto, baseados nas informações advindas da revista (representante do universal neurótico)."
Reflexão
Se percebe um maior envolvimento do grupo no projeto, inclusive com maior eficiência e rapidez na sua realização. A experiência vivida fica mais próxima dos pacientes, trazendo recordações de conquistas ao longo da vida e qualidades vistas em si próprios: o processo de reconstrução da história individual começa a aparecer.
Importante o feedback que os participantes do grupo dão uns aos outros, e também a troca de experiências que ocorre, promovendo a emergência de sentimentos e situações de vida parecidas, como também soluções para problemas que alguns passaram e conseguiram encontrar saídas, e que outros estão vivendo no momento.
3ª. fase
Terapeutas sugerem várias possibilidades de ação e cada um, individualmente, escolhe um projeto a ser desenvolvido.
Se num primeiro momento o grupo funciona como suporte, e o trabalho coletivo supre as deficiências e limitações individuais de cada um, nesta 3a. fase, vai se configurando as possibilidades de cada participante do grupo, que deve realizar um projeto individualmente. Isso surge como uma tentativa gradual de aproximação e preparação para a fase final do grupo onde cada um desenvolverá seu projeto de vida.
Por exemplo: "Se apresenta a mesma revista citada no projeto anterior, só que agora cada um escolherá algo que desenvolverá sozinho, logicamente com a ajuda dos terapeutas sempre que requisitados."
Nesta fase começa a ressurgir a "doença", e as limitações que ela impõe a vida do psicótico, mas também começa a se criar novas relações com a vida, pois agora a doença já não surge como algo imutável, e sim como algo que pode mudar. Esta mudança surge da visualização concreta das produções que se está desenvolvendo, mas principalmente da (re)apropriação da história de vida. As escolhas tendem a levar em conta experiências anteriores já vividas, tanto as que levaram a um fracasso, como aquelas que resultaram em sucesso.
Um outro fator que pode ser acrescentado a partir desta fase é o inesperado, que todos enfrentam no cotidiano, a partir da colocação de situações de imprevisto por parte dos terapeutas, com o objetivo de proporcionar este tipo de vivência primeiramente num ambiente mais protegido, verificar a reação do grupo e de cada um individualmente, e também operacionalizar meios de resolver situações que não tinham um planejamento anterior e que precisam ser resolvidas rapidamente. Por exemplo: "Propor que o grupo faça uma sociedade e transforme cada projeto particular já desenvolvido, em um único projeto, agora coletivo, sem oferecer muito tempo para tal." Esta é outra forma de visualizar as limitações e potencialidades de cada um.
Reflexão
Começa a (res)surgir a doença, e cada um começa a falar mais de si, de uma forma tranqüila, até em pontos mais complexos. A doença já não é mais vista como um monstro assustador e invencível, pois se outrora dominava totalmente o sujeito, agora vê seu poder ser reduzido paulatinamente. A vontade de ação aumenta, mas ainda com um medo associado.
E neste momento que pode se pensar na mudança do local onde o grupo está se desenvolvendo, pois isto configuraria uma mudança concreta, que eles estão pedindo para vivenciar e agora, diferentemente do início do grupo, contam com mais confiança e parâmetros para tal empreitada. Esta mudança deve ser bem preparada ao longo dos encontros e deve se realizar a partir de um consenso dentro do grupo entre terapeutas e pacientes, que inclusive, irão pesquisar na comunidade um local onde poderá ter lugar o grupo com a mudança.
Como a instituição onde realizo esse projeto é pública, foi possível viabilizar contatos com as escolas públicas da região, que cederam espaços. Outras alternativas devem ser tentadas, levando em conta as especificidades e facilidades da região onde se esta desenvolvendo o trabalho. A idéia do projeto de vida como objetivo máximo do grupo deve ser trazida todo encontro, mas a partir de agora ele ganha um foco central no trajeto a ser percorrido, ganhando as atenções e permeando a direção do trabalho.
4ª. fase
Pesquisa de possibilidades concretas de ação.
Esta fase serve para investigação das possibilidades reais de conseguir um emprego, ou alguma atividade similar, que gere o movimento necessário para a estabilização do sujeito, guardadas as características de cada um; e também tentar abrir seu campo de opções de atuação. Geralmente se promove uma pesquisa em algum "listão de ofertas de trabalho" publicado nos jornais, ou alguma outra fonte que ofereça empregos, com objetivo de assinalar tudo aquilo que interessar, independente da possibilidade de realização ou não, justamente para delimitar a área de interesses de cada um. Esta fase visa operacionalizar os meios de procura de emprego, e também configurar a área de interesse dos membros do grupo.
Reflexão
Discute-se no geral como conseguir um emprego, como procurar um emprego, os meios de divulgação do seu trabalho, e o que existe além de empregos. Surge a vontade de voltar a estudar, fazer cursos de aprimoramento profissional, mas também atividades do cotidiano que possam ajudar e contribuir com sua vida, baseados na idéia de que as experiências da realidade são uma grande fonte de energia.
Abre-se o campo de opções vivenciais, que possam vir a promover a transformação e o crescimento. Essa pesquisa tende a (res)suscitar fatos da história de cada um, que são (re)significadose ganham um colorido novo.
Os momentos de reflexão servem também para se discutir sobre as oportunidades de emprego que alguém possa vir a ter durante o desenrolar do trabalho, que geralmente são acompanhadas de um misto de alegria e de medo. Alegria por se sentir em condições de voltar à ativa, e medo causado justamente por esta possibilidade de volta, que é uma aproximação ao universal neurótico, que tanto assusta e tanto encanta o psicótico.
Experiências de oferta de emprego, resultando em fracasso ou sucesso, são de suma importância nesse projeto, pois resgatam as capacidades de cada um, renovam a confiança, pois o mundo ainda acredita neles, e dão a chance de provarem seu valor à sociedade e para si mesmos. O reconhecimento do outro e o auto-reconhecimento são sensações perdidas, que devem ser resgatadas, e nada melhor que uma experiência concreta, com um suporte terapêutico, para promover a recuperação dessas sensações.
Tanto a experiência fracassada, como a bem sucedida, auxiliam no grupo, pois se acontece o fracasso, o sujeito volta ao grupo e pode trazer sua experiência aos outros, mostrando que o fracasso faz parte da tentativa, e não se constitui como uma experiência inagüentável (fantasia da maioria dos psicóticos de não suportar o fracasso e entrar em crise por conta dele). E se acontece o sucesso, é uma prova de que essa possibilidade existe, renovando a energia do grupo.
Vale salientar, que mesmo que um dos pacientes arrume um emprego, é importante que ele conclua o processo todo deste grupo, trazendo suas vitórias, que renovam o grupo, e suas derrotas, que ele pode elaborar com o suporte do mesmo.
Fazendo um breve resumo do caminho já traçado, vemos que num primeiro momento cada um mostrou seus desejos com relação ao grupo, desejos que seguiam um rumo que pedia uma ação. Diante disto as atividades foram sendo propostas: primeiro os terapeutas trouxeram algo da realidade e pediram que o grupo fizesse algo melhor (idéia surgiu dos terapeutas); depois os terapeutas trouxeram várias idéias para o grupo escolher uma e realizar (idéia surgiu dos terapeutas, que trouxeram possibilidades e o grupo escolheu qual caminho seguir); na sequência, os terapeutas trouxeram possibilidades para cada um escolher individualmente; na 4a. fase, foi realizada uma pesquisa das possibilidades concretas de ação. Agora, na última etapa, é hora de cada um trazer seu próprio projeto, desenvolvê-lo individualmente e tentar com que ele coincida ao máximo com sua realidade e tenha um retorno real, com sucesso ou não, mas que pelo menos resgate a capacidade do paciente de arriscar e sentir que pode tentar e escolher, conseguindo algumas vezes e não conseguindo em outras.
Período de férias
Antes da última etapa, é dado um período de férias, combinado entre terapeutas e pacientes, baseado na idéia de que todo trabalho dá direito a férias e um "Atelier de Trabalho" também deve tê-las, aproximando cada vez mais o grupo do universal neurótico.
5 a. fase
Elaboração do projeto de vida propriamente dito.
Até aqui o que se realizou foi uma preparação do terreno, que a partir de agora deverá ser semeado com o projeto de vida de cada um, utilizando-se dos projetos realizados nas fases anteriores, que deverão ter cumprido sua dupla função de esquentar o grupo para falar de si, lhe dando mais confiança para tal, e também de trazer idéias de operacionalização e organização da própria vida, através de um resgate e de uma (re)apropriação de sua história.
O eixo deste projeto, que não é mais fictício, mas trata da vida de cada um, se concentra no trabalho e na vida profissional. Se parte do próprio sujeito, chegando-se a uma escolha profissional, que é sua. Vale lembrar aqui o esquema que Bohoslavsky (1980) propõe para se chegar a esta escolha, dividido em três etapas: Escolha fantasista (só levando em conta o desejo do sujeito); Tentativa de escolha (onde conjugam-se interesses, capacidades, sistemas de valores com algum projeto vocacional); e Escolha realista (onde a escolha encontra respaldo na realidade). Baseando-se nesta esquema, o grupo deve passar por três eixos:
a) O que eu quero - onde será trabalhado os desejos e fantasias, bem como seus objetivos com a volta a uma atividade profissional;
b) O que eu posso - tentando pensar em todas as dificuldades e limitações que se têm, mas também as capacidades;
c) O que existe - tentativa de visualizar qual as oportunidades que meu campo de interesse e atuação está oferecendo. Dessa encruzilhada saí o projeto de vida de cada um. Esta fase acaba sendo mais reflexiva, onde são retomadas as dificuldades e qualidades experienciadas durante a vida no trabalho, que servirão para projetar as perspectivas de futuro, com base na encruzilhada entre o que eu quero, o que eu posso e o que existe. Ela deve ser encarada com mais atenção, visando o desvinculamento do paciente do grupo, e favorecendo o envolvimento com o projeto que está sendo traçado. O final do grupo deve ser marcado em conjunto, como todas as decisões tomadas anteriormente. Ele deve conter:
a) Retomada da história do grupo pelo próprio grupo, em cima de todo material que eles produziram no seu desenrolar, que deverá ser levado pelos terapeutas, inclusive informando que eles podem levar para casa o que quiserem, desde que seja um consenso do grupo;
b) Auto-avaliação do desempenho individual de cada um dentro do grupo, seguida de comentários feitos pelos demais;
c) Reflexão sobre as possibilidades de ação de cada um;
d) Retomada da história do grupo feita pelos terapeutas, que narrarão tudo que observaram e ilustrarão o processo desenvolvido;
e) Retorno por parte dos terapeutas, sobre o desempenho, possibilidades e situação atual de cada um individualmente;
f) Proposta de atividade final com o intuito de que eles levem algo concreto deste grupo e marque a existência dele para cada um, como uma referência.
g) A afirmação de que o grupo estará aberto a eles, caso necessitem, constituindo-se como um porto seguro, ao qual eles podem recorrer diante de um fracasso, ou para relatarem um sucesso.Como sugere Calligaris: "Poder explicitar (...) publicamente o caminho percorrido para chegar à construção de uma metáfora delirante, em muitos casos é algo importante para um sujeito psicótico: um momento de socialização da metáfora que está sustentando o sujeito. É um momento importante porque é a prova geral da possibilidade para ele de sustentar-se socialmente com uma metáfora delirante." (1989, p.35).
Este grupo seria então um auxiliar no processo de construção da metáfora delirante, mas também uma referência aos que dele participaram, que vêem nele a autorização para tentar de novo, e a referência que dá sustentação a essa tentativa, que gradativamente se torna algo concreto, e passa a ser o fator estabilizante para o sujeito, o elemento imaginário que propiciará a aproximação à realidade, via um saber que se localiza no real - suplência da metáfora paterna.
Conclusão
O efeito da passagem neste grupo pode ser expresso pela fala de alguns pacientes:
" Estou contente, pois estou com o pensamento em voltar a vender e praticar esporte. Vou me desembaraçar mais, pois as coisas parecem estar melhorando. Estou melhor de saúde e minha mente com os remédios já está controlada. Com Jesus quero ser e servi-lo. Posso me esforçar e ser útil. Sinto que pode haver reconhecimento."
"Para ser franco eu gostei de todo grupo, exigiu muito empenho de mim e do grupo. Para mim foi ótimo todas estas experiências, e todos os projetos, pois descobri que ainda posso ser útil."
Nada mais significativo que o próprio retorno dos pacientes, a quem agradeço de todo coração a convivência e a participação neste projeto, agora um pouco mais distantes da posição de pacientes e vivendo mais de perto o papel de sujeito atuantes.
"A psicose não é sinônimo de improdutividade, mas pode ser forçada a tal, pelo medo do diferente próprio da neurose, que dita as regras do mundo."
Referências bibliográficas
Bohoslavsky, R. (1980). Orientação Vocacional: A Estratégia Clínica. São Paulo: Martins Fontes. 3a.ed. [ Links ]
Calligaris, C. (1989). Introdução a uma Clínica Diferencial das Psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
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Mannoni, M. (1988). Educação Impossível. 2a.ed. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Endereço para correspondência
Marcelo Afonso Ribeiro
Rua Dr. João Batista de Lacerda, 159 Mooca
São Paulo - SP CEP 03177-010
1 A criança é engajada numa dinâmica desejante alienada ao desejo da mãe, pressentida faltante, e se identifica com o objeto do desejo da mãe, que lhe falta. Portanto esta relação não mas a indistinção funcional está fundamentada na falta e na existência imaginária de um objeto capaz de preenchê-la, ao qual se identifica a criança. É o objeto da falta que nutre a dinâmica da relação fusionai. (Dor, 1995, p. 11).
2 Todos os grafos foram psicoses" de Contarão Calligaris, pois representam uma forma muita clara de referência â lei que o estrutura, exceto grafo 5, fruto de uma adaptação minha.
3 Seminário XXIII - Le Sinthome (1975-1976) [inédito]