Psicologia: ciência e profissão
ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.18 n.1 Brasília 1998
Loucura e direito a alteridade
Luciana Fim Wickert
Estudante de Psicologia da Universidade do Vale do Sinos UNISINOS/RS Aluna bolsista do Proyecto lntercamposlAL.E./97 de la Agencia Española de Cooperación Internacional Vários trabalhos de pesquisa sobre solução terapêutica e programas de saúde
As instituições manicomiais tendem a estandardizar os pacientes, sem considerar sua singularidade. Um panorama histórico desde a Idade Média até os dias atuais, uma reflexão sobre a inserção da loucura nas instituições e na sociedade, a necessária reconstituição de noções elementares de cidadania para os chamados loucos; constituem os eixos do presente estudo.
Este trabalho visa refletir sobre as condições homogenizadoras as quais o paciente psiquiátrico se vê submetido nas instituições manicomiais. Entende-se que estas são práticas que visam moldar a conduta do sujeito sem levar em consideração o seu desejo, a sua subjetividade, num único objetivo de exclusão e dominação social.
Para tanto analisa-se como a formação dos hospitais psiquiátricos está diretamente relacionada a uma ideologia massificadora, que visa a exclusão da diferença e da alteridade, visto que estas podem possibilitar mudanças sociais dissonantes a manutenção do status quo institucional. Na busca de uma maior reflexão sobre a instituição manicomial, aborda-se os conceitos de instituição propostos por Lapassade e Goffman.
Na seqüência discute-se sobre o tratamento oferecido àqueles que padecem de sofrimento mental, salientando-se que a atual abordagem é mantenedora deste, por não propiciar meios para que o sujeito trace o seu próprio caminho em busca da subjetivação.
Entendendo que a saúde só se dá quando o sujeito tem possibilidades de traçar o seu próprio destino, conforme o seu desejo, em direção ao seu bem-estar físico, psíquico e social e que o caminho construído nem sempre é condizente a modelagem social, questiona-se o processo dito terapêutico vigente e defende-se o direito a desrazão e a alteridade, como proposta de entendimento e de exercício da saúde.
Panorama Histórico
O que é ser louco? Em dicionário encontramos a seguinte definição: "que perdeu a razão; alienado; insensato; temerário, estróina; brincalhão; travesso; apaixonado; furioso..."(Ferreira, 7 983,p. 746). Tantas dimensões para uma só palavra.
No pensar coletivo atual, louco é aquele que não tem razão, que dá medo, que não controla seus próprios impulsos, escapando aos padrões sociais a serem seguidos e mantidos, necessitando, então, de tratamento especializado.
O ser humano tem medo de ser louco, "pois ao ser considerada "louca", a pessoa sequer tem consciência do que podem fazer com ela, o que conduz à sensação desesperante de que não consideram que ela existe. Como consequência, a pessoa não existe. É a "coisificação", a transformação da pessoa em "coisa", em objeto" (Moffatt,1991,p.22).
Na história ocidental de interpretação das pessoas que agiam de forma estranha temos a alusão a pactos com o demônio, domínio de tendências de animais selvagens, entre outros. Isto ocorria devido a característica central atribuída ao Demônio que era a desobediência ao poder centralizador, visto que a pluralidade democrática da alteridade era negada. Esta proibição foi aos poucos sendo assumida e mantida pelo conhecimento científico e assim os seres "transgressores" das normas morais passaram a ser considerados como pacientes que necessitavam de tratamento médico. Temos, desta forma, a passagem da bruxaria para a loucura, do misticismo para o conhecimento científico (Goffmann, 1996; Byington in Kramer &Sprenger,1991).
Para que este conhecimento científico fosse possível foi necessário "toda uma reorganização do campo hospitalar, uma nova definição do estatuto do doente na sociedade e a instauração de uma determinada relação entre a assistência e a experiência, os socorros e o saber; foi preciso situar o doente em um espaço coletivo e homogêneo" (Foucault, 1980, p.226). Tal parâmetro tem raízes históricas, pois a exclusão do doente, do diferente, data da Idade Média. Primeiro foram os leprosos, que foram enclausurados nos chamados leprosários, a seguir as pessoas com alguma doença venérea que por necessitarem de tratamento também foram excluídas, e por fim a loucura juntou-se a estas doenças que recebiam o ónus da exclusão (Foucault, 1989).
O rechaço à loucura já era tão forte no século XIV que existiu a prática de colocarem os ditos loucos em navios e enviá-los ao mar, a Nau dos Loucos, como se a loucura de todos também ficasse longe dos olhos.
A exclusão se torna necessária socialmente quando a diferença e o insano que escapa à domesticação dos valores e símbolos humanos não são suportáveis. Na loucura há um saber que fascina o homem, reinando sobre tudo de bom e mau que há no próprio ser humano, nas suas fantasias, sonhos e ilusões, desvendando a raiva obscura, a loucura estéril que reside no coração dos homens. Há um entrelaçamento das relações do homem consigo mesmo. "A loucura não diz tanto respeito à verdade e ao mundo quanto ao homem e à verdade de si mesmo que ele acredita distinguir" e tal distinção é feita através da razão. (Foucault, 1989, p.25).
Como o insano não é controlável e/ou suportável nos termos morais, a razão coexiste com a loucura em contraposição, assim quem tem a razão não é louco e quem é louco não tem razão. Sendo assim, a loucura se torna a força viva e secreta da razão, a sua mantenedora. Dentro deste quadro, o louco é aquele que assegura a razão do outro, não havendo mais a existência absoluta da loucura sem a presença da razão e vice-versa (Foucault, 1989). Neste panorama, a loucura se tornou a matéria-prima da doença mental no paradigma médico (Silva Filho, 1987).
O louco que mostra que o outro não é louco, precisou ser enclausurado em um local delimitado e afastado para ser estudado, pois a história do sofrimento ao qual o doente está reduzido é necessária para que os outros, os ditos sãos, saibam quais os males que os ameaçam e busquem maneiras de evitar tal sofrimento. Assim "enquanto a cidade trancafiava os desarrazoados, o pensamento racional trancafiava a desrazão" (Perbart apud Bernardes, 1995, p.65). Dentro desta estrutura, nascem os manicômios, que tradicionalmente foram lugares onde se despejava aquelas pessoas que a sociedade, apesar de produzir, rejeitava. Os pobres, os vagabundos, os loucos... (Foucault, 1980;1989).
Neste local de despejo humano, a loucura por sua capacidade de garantir a razão do outro (através da dicotomia) necessita ser controlada pela razão-moral-saber e quem toma para si esse controle é a Medicina, que por trás de um lugar de neutralidade, encobre suas ações normativas (Silva Filho, 1987). Assim por detrás de uma internação, há o tratamento benéfico e a punição, ou seja, o sujeito passa a ser cuidado e punido por ser diferente. "A prática do internamento designa (...) de modo mais amplo, um outro relacionamento do homem com aquilo que pode haver de inumano na sua existência" (Foucault, 1989, p.56). Desta maneira, a ciência é usada para justificar um posicionamento moral, sendo que a ela é atribuída um valor inquestionável (Cohen & Segre, 1994).
Atualmente o saber-poder sobre as pessoas já não tem como objetivo guiá-las a salvação noutro mundo e sim em assegurá-la neste. Tal proposta envolve vários sentidos como saúde, bem-estar, segurança e proteção. Para abarcar esta salvação se desenvolveu uma rede de saber da família, da medicina, da psiquiatria, da educação e da burguesia (Foucault, 1988). Estes ditam as regras, sem parecerem opressores, porque a estas instituições foi confiado o saber do indivíduo. A forma de poder destas instituições é bastante sutil, porque é exercida sobre a vida cotidiana, classificando o sujeito em categorias, impondo uma lei de verdade que deve ser reconhecida por todos. As leis criam o desejo de ser algo já imposto, atua nas ações do sujeito, nas suas escolhas, o que torna as lutas contra as formas de sujeição cada vez mais imperiosas, porque a sujeição submete a subjetividade a um padrão. (Foucault, 1988).
Tal padrão é determinado pelas instituições, entendendo-se por instituição o conjunto de normas e de valores que está instituído, ou seja, que está estabelecido e cristalizado nas formas de relação, pautando-as. Lapassade coloca que a "instituição não é um nível ou uma manifestação da formação social" e sim a própria maneira como a realidade social se organiza, sobredeterminada pela mediação do Estado (apud Guirado, 1987,p.31;Guirado, 1987).
As instituições por sua tendência histórica de tornarem-se autônomas e dominantes, servem ao processo de organização social de acordo com a classe que está no poder, servindo como formas de repressão social. O Estado, através destas, se mantém "ao penetrar em todos os poros da sociedade, ao habituar os cidadãos à obediência, ao controlar a informação, a moral pública, as maneiras de pensar e agir..." (Lapassade, 1985, p.21-22). Nota-se diante disso que, no caso dos manicômios, os prédios não constituem por si só a instituição manicomial, esta é constituída por toda a gama de valores e regras que perpassam o olhar sobre a loucura, olhar que infelizmente está constituído e calcado na exclusão, pois a capacidade revolucionária da diferença incrustada na loucura é evitada pela ideologia dominante, visto que as mudanças põem em xeque a dominação e o poder institucional.
Manicômio - Instituição Total
Goffman (1996) utiliza o termo instituição total para definir instituições fechadas, ou seja, que delimitam a relação social de seus membros com o mundo externo por barreiras simbólicas ou por proibições à saída, citando como exemplos as prisões, os conventos, as casas de recolhimento de indigentes, os quartéis, os manicômios. As instituições totais se caracterizam por três aspectos: em primeiro, todas as atividades são realizadas num mesmo local e sob uma única autoridade, em segundo, todas as pessoas são tratadas da mesma forma e obrigadas a realizar tarefas em conjunto e por fim, tais atividades são rigorosamente organizadas por um sistema de regras formais explícitas e por um grupo de funcionários (Goffman, 1996).
É importante salientarmos que nestas instituições há uma divisão básica e de pouca mobilidade social entre o grupo dos internados e a equipe de supervisão, a esta cabe a vigilância e o poder-saber sobre os internos e a estes o rótulo propriamente dito e a resistência, situação que estabelece estereótipos antagônicos (Ohlin apud Goffman, 1996). Temos então uma situação de poder nos moldes foucaultianos, onde o exercício deste consiste em "conduzir condutas" e em regular as possibilidades. Situação que só é possível quando há duplas, ou seja, quando há "aquele" que exerce o poder sobre o "outro" (Foucault, 1988).
O controle das necessidades humanas por uma organização burocrática legitimada pelo saber é fato fundamental das instituições totais, que busca com este atender os seus objetivos oficiais, que na nossa sociedade é a normatização da conduta inadequada e revolucionária do homem. As instituições totais, "... são estufas para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu" (Goffman, 7996, p. 22). Para provocar esta mudança de conduta, necessária a manutenção da ideologia massificante e dominante, a vida do paciente no manicômio é regulada por um sistema de disciplina, desenvolvido por uma equipe pequena de dirigentes para o controle de um número grande de internados, o que toma o sistema padronizado e homogenizador, não respeitando as características individuais dos sujeitos que ali estão (Goffman, 1996). Vislumbra-se desta forma o traçado da lógica institucional que basea-se no controle da alteridade e em práticas de exclusão, visto que, na ideologia dominante, as ameaças ao sistema ideológico devem ser assassinadas pela raiz.
Ao concordarmos com Dejours (1986, p. 11) que saúde "é ter meios de traçar um caminho pessoal e original, em direção ao bem-estar físico, psíquico e social", vivenciando assim os seus desejos e realizando as suas escolhas conforme os mesmos, temos que encarar que o sistema manicomial não promove a saúde do paciente, visto que não permite a alteridade do indivíduo.
O sistema institucional, da maneira que está estruturado, busca a padronização do ser humano não permitindo a sua subjetivação e a vivência do desejo. Desta forma, é um mantenedor da doença mental, ou seja, do sofrimento psíquico causado pela falta de continência simbólica, que impede que o indivíduo consiga suportar, criar e lidar com suas pulsões, frustrações, sonhos e desejos.
Eo sujeito nesta instituição?
Quando o sujeito chega ao hospital psiquiátrico, traz consigo toda uma bagagem cultural e pessoal, proporcionada por disposições sociais estáveis, que até então o sustentou na sua subjetividade. No entanto, ao entrar no manicômio este sujeito se vê tolido do apoio das disposições que o mantinham, que constituíam o seu eu (Goffman, 1996). Ao nos reportarmos que as instituições sociais "...são estufas para mudar pessoas"1, temos um processo de tratamento que visa alterar a ação do sujeito, e consequentemente, a concepção que o mesmo tem de si. Tal tratamento mortifica o homem em nome do conhecimento científico.
Na estrutura manicômio-instituição total, o paciente é obrigado a despir-se de sua história, passando por processos que acabam sufocando a sua subjetividade. A entrada no hospital é marcada por "rituais de iniciação", onde o sujeito não se despe somente de suas roupas, mas também de sua individualidade, tornando-se um simples "CID"2 . Tais rituais podem ser denominados de "enquadramentos" ou "arrumações", pois tem como função munir o paciente das regras que devem ser respeitadas para a entrada no manicômio. A instituição, desta forma, despe o paciente de suas roupas, de seus sonhos e desejos, incutindo o padrão institucional, não existindo espaço para a individualidade e para a privacidade. (Goffman, 1996; Moffatt, 1991).
O processo de internação pode ser encarado como uma despedida e um começo, visto que as barreiras que separam o manicômio do mundo externo, acarretam em perdas de papéis sociais e na aquisição de um padrão de comportamento homogenizado a ser seguido.
O sujeito passa a ter todas as suas atividades planejadas, hora para comer, dormir, falar... Até os horários de ociosidade são programados, sem que haja respeito aos enquadres sociais dos quais o sujeito fazia uso antes da internação. Fato que por si só é uma agressão a individualidade e a subjetividade (Goffman, 1996). As perdas dos papéis sociais são um ataque ao paciente. E no que tange a internação num manicômio, existe ainda a perda do rótulo de saudável, de quem "tem a razão". O sujeito passa a não ser senhor de si mesmo, pertencendo então a instituição, pois na concepção manicomial o louco não tem razão e precisa de quem cuide dele, de quem lhe dê o molde de ação, o que lhe causa enorme sofrimento, pois o sujeito passa a desconhecer o seu destino, situação que gera forte insegurança (Goffman, 1996).
Neste padrão, a fronteira entre o indivíduo e o ambiente fica extremamente difusa, conseqüentemente, as informações que pertencem somente a aquele indivíduo são abarcadas pelo ambiente e deixam de ser propriedade da subjetividade do paciente. Há uma "violação da reserva de informação quanto ao eu" (Goffman, 7996, p. 31). Isto se verifica claramente nos prontuários dos pacientes, que dentro da instituição tornam-se uma fonte de denúncia dos atos e exposição do sujeito, pois as informações que ali constam são manipuladas para afirmar e rotular a sua loucura. Nota-se um aumento da comunicação de alguns fatos que condizem com o papel de louco, ao mesmo tempo, que se dá uma diminuição da circulação dos aspectos saudáveis do sujeito, num objetivo de manutenção da definição das representações já situadas e de controle institucional.
Tendo em vista que "a informação a respeito do indivíduo serve para definir a situação, tornando os outros capazes de reconhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar" (Goffman, 1985, p.11), têm-se um estabelecimento de papéis impeditivos à saúde, pois dos sujeitos são extirpados o saber e a alteridade. Tudo passa a ser interpretado como ato de louco e a busca do desejo deixa de ser possível, fato que caracteriza a doença (Dejours,1986).
Mas a exposição arbitrária não se limita a equipe terapêutica, todos os integrantes do hospital de uma forma ou de outra acabam tendo acesso a informações extremamente pessoais, visto que esta invasão da privacidade do paciente, que dificilmente foi autorizada, se estende por todo um processo."... O paciente não possui nada que possa ser sentido como próprio, nem sequer sua própria roupa (...). Contudo, e fundamentalmente, a amputação mais dolorosa é a amputação da dignidade pessoal..." (Moffatt, 1991, p.15).
Verifica-se tal amputação em diversos âmbitos do meio manicomial, mas esta escancara-se na perda da privacidade, fato que por si só é desestruturante, pois o ser humano necessita de um espaço privado para poder organizar o espaço do Eu, ou seja, para a manutenção de sua identidade pessoal. Se pensarmos que os sujeitos que se encontram com um perturbação mental, estão com sua identidade pessoal de certa forma desorganizada, o espaço coletivo será um mantenedor desta perturbação (Moffatt, 1991).
A falta do espaço privado está diretamente ligada às características das instituições totais, pois nestas há um grupo pequenos de pessoas que precisam controlar, vigiar o paciente, para tentar assim programar as condutas adequadas a demanda institucional. Num espaço coletivizado tais práticas são facilitadas e a equipe passa a ter mais funções de guarda do que terapêuticas (Moffatt, 1991; Goffman, 1996).
O controle exercido é tão cruel e mantenedor da doença mental, que impossibilita qualquer tentativa saudável de individualização, da vivência do desejo. A falta do espaço privado, evidenciado pelos quartos coletivos, banheiros coletivos, pela sala de visita coletiva, sustenta a doença mental num objetivo de poder e exclusão. É mais fácil controlar um grupo homogêneo do que um grupo de pessoas que buscam ter saúde e é por isso que o sistema tenta "catequizar" o louco numa moral de sanidade mental.
O sujeito que é hospitalizado num manicômio, tem que "entrar no jogo", ou seja, precisa seguir as regras da instituição e dificilmente estas regras estão de acordo com o seu desejo. No entanto, a ele foi designado o papel de louco, num script totalmente obstruidor da saúde.
Loucura com Alteridade e Cidadania: é possível?
O sujeito hospitalizado por doença mental, tem seu trajeto dali por diante marcado pelo rótulo de louco, de "sem razão", pois dizer socialmente "...doente mental é dizer doente para o resto da vida..." (Rickes, 1996, p.85), tendo em vista que as perspectivas hipocráticas, que retiram do mundo externo a etiologia da doença e a colocam no corpo do sujeito, condicionam o passado e o futuro do paciente a doença, marcando-o para toda a vida (Lobato, 1987).
A localização da doença mental no corpo legitimou e legitima, no paradigma hipocrático, o desenvolvimento de procedimentos e técnicas intervencionistas, afinal este corpo encontra-se "...corroído pelas intempéries e infortúnios da natureza" (Bernardes, 1995, p.61).
Temos no discurso médico a legitimação da intrusão na vida do paciente, com relações de poder bem estabelecidas. De um lado, os detentores do poder-saber que podem interferir como julgarem apropriado, de outro o paciente que passa a ser o único responsável por tal situação, afinal é nele que está a doença. O discurso que perpassa as instituições manicomiais "capacita" o técnico de saúde a invadir e interferir na conduta e na subjetividade do paciente.
O manicômio tenta arrancar todas as marcas que diferenciam o sujeito como tal; a sua subjetividade, a conduta e os desejos passam a ser encarados como coisas de louco, reduzindo o indivíduo a objeto de estudo do outro, visto que não mais se garantem os direitos à cidadania. Aliás Camille Paglia (1992) coloca que a transformação de pessoas em objetos é uma das especialidades de nossa espécie, numa tentativa de abarcar o fluxo pavoroso da natureza. A sociedade deseja negar a cidadania dos que escapam aos padrões sociais, porque a alteridade destes ameaça a manutenção do status quo.
Quando se nega a este indivíduo o direito a cidadania, o direito a subjetividade, se escancara socialmente o quanto a diferença não é suportada na nossa cultura, fato que motivou a sua marginalização e transformação em doença (Naffah Neto, 1994). O personagem Zaratustra, de Nietzsche (in Naffah Neto, 1994, p.57) explicita de uma excelente forma, o porquê disto, afinal "todos querem o mesmo, todos são iguais. Quem sente de maneira diversa se condena ao hospício".
O pensar e o sentir diferente nos mostra que a cultura não dá conta de tudo, que a subjetividade escapa aos padrões sociais e que o saber psicológico não abarca nenhum ser humano em sua totalidade. E neste quadro, escancara-se a impotência do discurso frente a animalidade do homem.
É claro que o indivíduo que está com o seu Eu desorganizado sofre com isto, porque não consegue abarcar simbolicamente tal pulsão criadora. Mas o pior é que as suas tentativas de dar conta de tal sofrimento são encaradas como sintomas que justificam a doença. O delírio e a alucinação poucas vezes são vistos como os "solos de apoio" da loucura, aqueles que possibilitam o acolhimento negado pela sociedade (Naffah Neto, 1994). O que se vê como sintoma da loucura é o que de melhor aquele sujeito está conseguindo realizar para abarcar a sua dor e deve ser valorizado como campo onde se dá a saúde.
Mas por que aos "artistas" é permitido o delírio e a viagem alucinatória? O que os difere? Talvez seja a proliferação do discurso massificante ao qual estamos submetidos, discurso que afirma que precisamos ser diferentes, modernos... Desde que estejamos dentro de um padrão preestabelecido de diferença. Estamos submersos num discurso perverso que nos impõe uma "diferença massificada" que de forma alguma é sinônimo de alteridade e de vivência do desejo. É como se a instituição abrisse brechas para o escape de um certo grau de diferença incapaz de causar grandes malefícios ao sistema. A instituição se "elastifica" para não perder o poder e o saber, assim temos a falsa ilusão que aceitamos as diferenças e a alteridade. E neste discurso, o louco continua nos garantindo uma razão com falsa alteridade e permanece como o desarrazoado.
Além disso, não podemos negar que a nossa sociedade é marcada pelo Capitalismo que vincula o ser humano a produção de capital e que o sujeito que não está produzindo, torna-se dispensável ao sistema. Se o indivíduo não produz e assim não auxilia na manutenção do sistema, é tido como louco. O discurso veicula: Seja como todos, trabalhe, produza, multiplique o discurso dominante ou seja louco.
"Muitas são as teorias no universo psicológico que, na realidade, em muito auxiliam a reprodução dos valores dominantes e sustentação de relações de dominação, portanto, ideológicas" (Bernardes, 1995, p.11). Para mudar tal quadro, não basta abrirmos as portas dos manicômios e retirarmos todos os sujeitos que ali estão, a exclusão da loucura está inserida no discurso que nos rodeia e é este discurso que precisa ser modificado, temos que destruir os muros da exclusão que estão internalizados em nossas mentes. É necessário que possamos introjetar em nossas vidas a pulsão criadora da loucura, com toda a sua desrazão e que isto possibilite o respeito e o direito a cidadania do sujeito que hoje é tido como louco.
Desta forma, os locais que querem tratar o sujeito dito louco, deveriam não tanto pensar na mudança de conduta quanto em proporcionar um ambiente acolhedor que possibilite que o sujeito se organize na sua subjetividade, objetivando a minimização do sofrimento psíquico, causado pela falta de continência simbólica. Salienta-se que os processos de subjetivação não combinam com a instituição manicomial que tem por princípio a padronização da conduta e a minimização dos sintomas que levaram à baixa hospitalar (Viana, Wickert & Gusmão, 1997).
Considerações Finais
Este trabalho não teve por objetivo dar respostas definitivas e totalitárias para a mudança da situação vigente, apenas buscou-se refletir sobre o discurso moralizante e excludente que embasa o tratamento que está sendo oferecido a aqueles que padecem de sofrimento mental.
Atualmente, vê-se o crescimento do movimento anti-manicomial3 que basea-se em políticas de inserção do paciente psiquiátrico na sociedade, no desenvolvimento de uma rede de atendimento não hospitalocêntrica e no direito a cidadania. Entretanto, precisamos nos questionar até que ponto tais procedimentos abalam a instituição manicomial ou a mantém de forma mais elástica. Tal questionamento se faz necessário, porque como coloca Aguiar "não é possível tratarmos direitos humanos (...) sem que nos refiramos a ideologias, valores, projetos históricos, opções existenciais coletivase pessoais" (1993, p.66).
Este trabalho traz em sua essência o desejo de pensar sobre a nossa prática clínica, sobre as instituições que nos perpassam, sobre os nossos valores como trabalhadores que visam a saúde. O pensar criticamente é necessário para que não caiamos em falsas ilusões de alteridade, para que não reproduzamos o sistema dominante com outra fachada. Talvez seja uma utopia o que escrevo, mas é imperioso que pensemos em como auxiliar o indivíduo no seu processo de subjetivação sem impormos os padrões dos ditos "sãos", pois estaríamos incutindo doença ao invés de saúde, já que o caminho e as escolhas deste sujeito estariam marcados pelo nosso olhar, não sendo resultado de sua escolha pessoal, nem de seu próprio desejo. Para tanto, o homem necessita ter garantido o direito a alteridade e a loucura, para que possa expressar a sua força criadora e o seu eu.
A derrubada dos muros manicomiais é necessária, mas de nada adianta derrubá-los no mundo exterior se estes continuarem internalizados na nossa conduta profissional e de cidadãos. O manicômio reflete o padrão social cartesiano marcado pelas dicotomias certo-errado, desrazão-razão, louco-são... São estas distorções que devem ser repensadas na busca de um mundo melhor, ou pelo menos, mais justo e humanitário. É preciso um novo olhar e a psicologia tem sua parcela na composição deste novo discurso, uma fala que inclui o diferente, respeitando-o e porque não dizer desejando-o.
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Endereço para correspondência
Luciana Fim Wickert
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1 Ver Referência Bibliográfica Anterior
2 Código Internacional de Doenças
3 Ver Lei de Reforma Psiquiátrica do Rio Grande do Sul, n" 9.716 de 07de agosto de 1992, pioneira no país.