18 1Psicologia, direitos humanos e sofrimento mental: ação, renovação e libertaçãoMadre Cristina Sodré Dória 
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Psicologia: ciência e profissão

 ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.18 n.1 Brasília  1998

 

Psicologia, direitos humanos e sofrimento mental: da tragédia ao respeito

 

 

Fábio Roberto Rodrigues Belo

Estudante de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Em 1996, concluiu "O Romantismo Brasileiro e o Preconceito", projeto de pesquisa financiado pelo CNPq, pela Faculdade de Letras da UFMG

Endereço para correspondência

 

 

O artigo utiliza a tragédia grega como metáfora para a situação do mundo moderno, buscando perceber qual o papel da Psicologia frente aos direitos humanos e ao sofrimento mental.

Primeiramente, tentou-se definir o que vem a ser a psicologia, os direitos humanos e o sofrimento mental. No que diz respeito à psicologia, notou-se que ela perpassa por todo o texto sem um corte específico, mas não impreciso. De maneira geral, buscou-se perceber qual o papel desta disciplina frente aos direitos humanos e ao sofrimento mental. Utilizou-se a tragédia grega como metáfora para a situação do mundo moderno.

Para tanto, efetuou-se um corte no que tange aos direitos humanos, especificando o direito ao trabalho enquanto representante daqueles. Finalmente, procurou-se trazer conclusões sobre as idéias e as dúvidas surgidas na construção deste trabalho.

Começaremos esta monografia tentando conceituar os termos contidos no título. Afinal, o que é psicologia? O que são direitos humanos? O que é sofrimento mental? Todas as três perguntas terão respostas não conclusivas. O motivo disso parece ser o fato de o homem - ser que vem negando ao longo da história todas as conclusões a cerca de si - formar a interseção entre estes três campos.

Comecemos pela Psicologia. Poderíamos, se fosse necessário aqui, remontar aos textos de Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Bacon, Hume, para citar só alguns dos filósofos que se preocuparam com questões psicológicas. A passagem desta área da filosofia para a psicologia denominada experimental foi estimulada por Stuart Mill (1806-73), amigo de Comte, para quem a experiência era a única fonte de conhecimento, e a indução o único método científico fecundo. Foi Wundt, na Universidade de Leipzig, no ano de 1879, que organizou o primeiro laboratório de pesquisa psicológica (Melo, 1979), iniciando um processo que dura até hoje, aquele das ascensões e quedas das várias escolas de psicologia, cada uma delas com concepções distintas de homem, de sujeito e de mundo.

Se olharmos as grades curriculares dos cursos de psicologia, veremos que até hoje não se chegou a um consenso sobre qual a melhor (dizer verdadeira seria por demais audacioso) visão de homem para a psicologia moderna. Para usar uma expressão de Khun (1996 /1970), a psicologia ainda não tem um paradigma próprio, pois os psicólogos não estão de acordo quanto aos pressupostos fundamentais relacionados aos objetivos, ao objeto primeiro e aos métodos ideais (Davidoff, 1983). A psicologia ainda não é, pois se transforma dependendo da abordagem escolhida, como nos lembra Codo(1993):

Quem se dispor a escrever a história da psicologia será obrigado a reproduzir uma autêntica epopéia semelhante a um jogo de esconde-esconde, a eterna construção de um objeto de estudo que insiste em ser outro no momento em que a reflexão o detecta, e, pior, se metamorfoseia pelo exercício mesmo de congelamento que a ciência precisa compor para reconhecer-se enquanto tal. (Codo, 1993, p.32)

Tal como o homem, a psicologia é um perene vir-a-ser. O verbete do dicionário é insuficiente, pois não basta saber que a psicologia é a ciência dos fenômenos psíquicos e do comportamento; o que se deseja saber é de onde se encara aqueles fenômenos e comportamentos. Enfim, uma boa definição pode ser buscada em Codo (1993):

A psicologia moderna se desenvolve consciente que o seu objeto está na inter-relação entre o sujeito e o objeto, na dupla conformação entre o homem e o mundo, exatamente na tensão entre um e outro. (Codo, 1993, p. 84)

Em relação aos direitos humanos, se observarmos os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, tenderemos a concordar com Santos (1997) que os conceitos de direitos humanos assentam num bem conhecido conjunto de quatro pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, como se segue:

existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica como soma de indivíduos livres. (Santos, 1997, p.112)

Como nos mostram os fatos, se estas essências -a natureza humana e as autonomias - podem ser reconhecidas racionalmente, elas ainda não o foram. Se o que fundamenta os direitos humanos ainda não é constatado ou aceito, podemos imaginar o que ocorre com os próprios direitos... Bobbio (1992) mostra, muito lucidamente, que os direitos do homem são históricos e consensuais:

Direitos que foram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade sacre et inviolable, foram submetidos a radicais limitações nas declarações contemporâneas; direitos que as declarações do século XVIII nem sequer mencionavam, como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações. (...) não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas. (Bobbio, 1992, pp.18-19)

Portanto, além de ser tanto mal definível e variável, a classe dos direitos do homem é também heterogênea. O fundamento absoluto não é apenas uma ilusão; em alguns casos, é um pretexto para defender posições conservadoras.

Se a tríade "liberdade, igualdade e fraternidade" é, a todo custo, mantida, mas não exercida, para que e para quem ela permanece? Ideal a ser alcançado? (Alves, 1995, Caldeira, 1991)

Achamos que a pragmática poderia nos dar um outro caminho, pois um dos modos de justificar os valores consiste em que são apoiados no consenso, o que significa que um valor é tanto mais fundado quanto mais é aceito. Com o argumento do consenso, substitui-se pela prova da intersubjetividade a prova da objetividade, considerada impossível ou extremamente incerta. (Bobbio, 1992, p. 27)

Enfim, definir direitos humanos é também uma tarefa contínua, supondo que a história não tem fim. A todo momento, novos direitos e deveres hão de surgir, fruto da interação do homem com seu ambiente (incluindo-se aqui homem com seu ambiente (incluindo-se aqui sua própria espécie). O que deve estar bem claro, como perspectiva desta monografia, é que só entenderemos um direito humano se o abordarmos de uma forma dialética. Por exemplo: o direito de não ser torturado implica a eliminação do direito de torturar. É justamente a ausência desta oposição que, dentre outros fatores, gera o sofrimento mental. Esclareçamos melhor estas relações, juntamente com o nosso último conceito, o sofrimento humano.

Continuando com o mesmo exemplo dado há pouco, diríamos que a pessoa torturada vê-se duplamente ofendida: na violação do seu direito de não ser torturada, e na violação do direito do outro de torturar. O sofrimento, veremos na parte final deste trabalho, se traduz em vergonha: em dor perante si e seu semelhante.

O sofrimento mental pode ser entendido como aquilo que portam as pessoas enquadradas nos vários rótulos dados pelo DSM-IV, por exemplo. Psicóticos, esquizofrênicos e outros "portadores" da doença mental têm em comum os sofrimentos moral e mental. É aqui que surge novamente o problema do consenso. Quem legitima aquelas obscenas categorias nosológicas capazes de nomear os marinheiros da nau dos loucos? Quem garante que nós (supostamente) neuróticos normais, ou normalpatas, não sofremos moralmente, mentalmente? Está claro que não é o sofrimento que caracteriza a doença mental, como não é a felicidade privilégio da normalidade.

Enfim, o sofrimento mental parece-nos estar intimamente relacionado com a quebra de alguns direitos "naturais" do homem: a liberdade, principalmente. Este sofrimento exprime-se, segundo Henry Ey, em sua forma mais elementar por uma autodepreciação que pode encaminhar-se muito rapidamente para uma auto-acusação, autopunição ou sentimento de culpa. (EY, s/d, p.250)

Tudo isso não é tão simples quanto parece. E é o mesmo autor que nos adverte que estes sintomas são determinados por fatores culturais, não sendo encontrados por exemplo em tribos da Africa, onde se percebem outros sintomas. Encontramos, então, o mesmo fantasma que assombra as nossas duas primeiras investigações anteriores. Afinal, onde está a universalidade do sofrimento mental? Onde se igualam a minha e a tua dor?

Para concluir esta parte de nosso trabalho, tentemos unir os três elementos discutidos aqui. O psicólogo quando se depara, seja na profissão ou no cotidiano, com a violação dos direitos humanos - geradora de sofrimento mental - não pode dissociar esta infração normativa dos problemas históricos, sociais, econômicos e filosóficos, inerentes àquela violação. A boa notícia, quando se tem consciência destas outras questões, é que o psicólogo já não se vê só. O problema não é só do profissional que lida diretamente (na clínica, na escola ou nas instituições, por exemplo) com o sofrimento mental, mas também de outras pessoas que inevitavelmente lidam com a dignidade humana.

Dentre outros sentidos, dignidade denota respeito a si mesmo, amor-próprio. Quando perco o respeito pelo outro, perco também por mim - lembrem-se do processo dialético dos direitos - quando o odeio, também odeio a mim. Finalizando, gostaríamos de citar Guimarães Rosa, no conto O espelho:

Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não tem fim. (Rosa, 1994, p.439)

O horror da tragédia

No Canto III, da Divina Comédia, Dante Alighieri aponta-nos a advertência no vestíbulo do Inferno:
Por mim se vai à cidadela ardente,
por mim se vai à sempiterna dor,
por mim
se vai à condenada gente.

Só justiça moveu o meu autor;
sou obra dos poderes celestiais,
da suma sapiência e primo amor,
Antes de mim não foi coisa jamais
criada senão eterna, e, eterna, duro.
Deixai toda esperança, ó vós, que entrais.
(Alighieri, 1360(?)/1989,p. 120)

Sobre as portas do mundo, que Forrester (1997) nos apresenta no seu livro, O Horror Econômico, também poder-se-ia ler esta advertência. A tese central da autora é que a manutenção do trabalho, enquanto realidade ainda existente, gera sofrimento humano, real, por serem negadas as consciências uma por uma. O trabalho, argumenta a autora, já não existe; isto quer dizer que uma massa imensa de humanos já não é "útil" para o sistema tal como ele é idealizado, isto é, como local de trabalho. A massa, que denominamos excluída, está, contrariando o adjetivo, incluída até a medula (Forrester, 1997). Uma pesquisa etimológica nos diz que as formas de tortura agora são outras:

A etimologia da palavra trabalho vem do vocábulo latino tripaliare, do substantivo tripalium, aparelho de tortura formado por três paus, ao qual eram atados os condenados, ou que também servia para manter presos animais difíceis de ferrar. Daí a associação do trabalho com tortura, sofrimento, pena, labuta. (Aranha, 1986, p.56)

A citação e a argumentação de Forrester, esbarram com o que Freud disse sobre o neurótico. Para Freud, neurótico é aquele sujeito que sofre por encontrar dificuldades para amar ou trabalhar. A questão é que não há dificuldade, mas uma real impossibilidade de, pelo menos, trabalhar. Se antes era o trabalho (alienado, segundo Marx) um dos fatores geradores de sofrimento mental, agora é ausência dele o principal estímulo.

Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, três artigos fazem referência ao universo do trabalho: artigo 3 - à escravidão; artigo 23 - ao trabalho propriamente dito; e artigo 24 - ao descanso e ao lazer. Vejamos o artigo 23:

1) Todos têm direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

2)  Todos, sem qualquer discriminação, têm direito a pagamento igual por trabalho igual.

3)   Todos que trabalham têm direito à uma remuneração justa e favorável que lhe assegure e a sua família uma existência compatível com a dignidade humana, e suplementado, se necessário, por outros meios de proteção social.

4)  Todos têm direito de fundar e associar-se a sindicatos para a proteção de seus interesses. (Cranston, 1979, p.90)

A virtualidade dos parágrafos deste artigo fazem do real uma tragédia, com todos os elementos a que ela tem direito, quais sejam: a hamartia, a hybris e a moira.

A hamartia é o que desencadeia a tragédia no coração ou na vida do homem. É também chamada de falha trágica. Esta falha pode estar no herói, ou em situações anteriores que envolvem a sua vida. Se tomarmos como herói da tragédia real o povo - lembremos do nosso olvidado hino nacional -, veremos que esta falha trágica se dá antes do seu nascimento, como nos diz Vidal (1993):

(...) as relações sociais intersubjetivas estão emolduradas em suas possibilidade por outras, as relações sociais de produção, preexistentes aos indivíduos, independentes de sua vontade e que fixarão de ante mão sua localização na classe social. (Vidal, 1993, p. 83,)

Quando o autor diz serem as relações de produção as que fixam certo número de pessoas a tal destino, ele diz, necessariamente, de um outro número de pessoas. É Forrester (1997) quem as caracteriza:

Uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de seres humanos encontra-se assim sem razão razoável para viver neste mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida. (Forrester, 1997, p.27)

O pequeno número do qual fala Forrester pode ser, nesta metáfora, equiparado ao que chama-se de moira, ou destino. O destino, ou fatalidade, é tudo aquilo que é consequência ou efeito inevitável de algum acontecimento. Fatalismo e fatalidade são termos de origem latina que levam a fatum, mesma raiz do verbo falar. Enfim, as palavras deste destino giram em torno da manutenção do trabalho, seja enquanto tabu ou enquanto ideal, e são assim recebidas pelo nosso herói:

Esses discursos, essas ameaças assestadas sobre grupos enfraquecidos, cujas capacidades críticas e cuja lucidez são reduzidas de maneira mais ou menos sub-reptícia, se não encontram o assentimento, encontram, pelo menos, em forma de mutismo, o consentimento dos corpos sociais tetanizados. (Forrester, 1997, p.32)

Finalmente, a hybris fala que todo homem tem uma medida na qual se encontra confinado pela vontade dos deuses. Como explica Abbagnano(1963):

Com este termo, que não se pode traduzir para as língua modernas, entenderam os gregos uma violação qualquer da norma da medida, isto é, dos limites que o homem deve manter nas suas relações com os outros homens, com a divindade ou com a ordem das coisas. A injustiça não é mais que uma forma de Hybris porque é a transgressão dos justos limites em relação com os demais homens. (Abbagnano, 1963, p. 631. Nossa tradução)

Que violação da norma da medida foi feita pelos excluídos, pelos que sofrem? A norma da medida ideal para os excluídos é uma regra que os mantém passíveis. A hybris, portanto, seria a atividade, a ação-atuação. Numa linguagem marxista, quase demodé, poderíamos dizer que o conflito social, advindo da exacerbação de contradições e desequilíbrios na estrutura social, acentuando a luta pela divisão das oportunidades que são requeridas para satisfazer muitas necessidades e aspirações das classes sociais, que são a expressão natural e direta dessas contradições. (...) esse conflito entre classes sociais, que se inicia por uma necessidade histórica - na qual participou a atividade coletiva dos homens, mas surge independentemente da vontade de qualquer homem individual -, somente se pode manifestar por meio desses sujeitos individuais das classes sociais (e dos grupos que se identificam com elas), originando diferentes formas de práxis políticas que terão como objetivo expresso a conquista ou detenção do poder que dá o Estado. (Vidal, 1993, p.84)

Esta tentativa de conquista do poder, entretanto, como numa boa tragédia, é sempre punida pelo destino. No nosso caso, o povo que cai na desmedida, negando a passividade, rende-se, pois a potência exercida é tanta, seu domínio é tão arraigado, sua força de saturação é tão eficaz que nada é viável nem funciona fora de suas lógicas. Fora do clube liberal, não há salvação. (Forrester, 1997, p.45)

A rendição do nosso herói frente àquela potência, veremos mais adiante, se dará como vergonha: ao invés de furar os olhos, nosso herói se verá inútil.

Usemos as conclusões de Boal (1975) para esclarecer todos os pontos até agora levantados:

A tragédia imita as ações da alma racional do homem, suas paixões tornadas hábitos, em busca de felicidade, que consiste no comportamento virtuoso, cujo bem supremo é a Justiça, cuja expressão máxima é a Constituição. (...) Podemos agora concluir que, quando o homem falha nas suas ações, no seu comportamento virtuoso em busca da felicidade, através da virtude máxima que é a obediência às leis, a arte da Tragédia intervém para corrigir essa falha. Como? Através da purificação, da catarse, da purgação do elemento estranho, indesejável, que faz com que o personagem não alcance os seus objetivos. Este elemento estranho é contrário à lei, é uma falha social, uma carência política. (Boal, 1975. p. 35,)

Onde nosso herói, o povo, falha na sua busca de felicidade? O que é esta falha social, esta fratura social? Eis a tragédia: a ação do nosso herói tocado pela hybris:

O que têm eles [o povo] a perder se nada receberam, a não ser modelos de vida que tudo os impede de imitar? Modelos oriundos de uma sociedade que os impõe sem permitir que eles se adaptem. Esta impossibilidade de reproduzir os critérios de meios sociais que lhes são proibidos e que os rejeitam é imediatamente repertoriada como uma defecção, como uma recusa brutal, um sinal de inaptidão, uma prova de anomalia da parte deles, e como o pretexto ideal para continuar a negá-los e renegá-los. Para esquecê-los lá, renegados, proscritos. (...) Fora do jogo! (Forrester, 1997, p.64)

O movimento de querer entrar no jogo é o conflito social, muitas vezes, ponto de partida para problemas psicopatológicos ligados à repressão política. Podemos ser bem claros: tocados pela hybris (a impossibilidade do trabalho) estes "destinados à sofrer" chegam a nós - psicólogos e estudantes de psicologia - a procura de respostas. O que fazer perante o sofrimento mental, diante da ausência dos direitos humanos? Não adiantaria supor que a hamartia do mundo moderno, que deu início a nossa tragédia, foi o iluminismo ou, até quem sabe, ofordismo. Temos que encarar os fatos: as respostas ainda não estão claras.

Claro está que os "deuses modernos" não podem esquecer dois pontos: o lado catártico das tragédias, e a existência de um duplo herói: o ator e a platéia. As funções pedagógicas (por que não repressoras?) da tragédia produzem a catarse, seu efeito principal. Estamos numa fase de mutação plena, ao mesmo tempo assistindo e atuando - passando ao ato, na linguagem psi.

Não há porque sermos pessimistas por enquanto, pois podemos prever que desta tragédia também advenha a catarse, a construção de um novo sentido, uma nova ordem das palavras e das coisas.

Lembremos ainda que há um traço comum a diversos teorizadores: a idéia de que a tragédia desperta os sentimentos de terror e piedade. Pensamos que estes sentimentos estejam bastante presentes no dia a dia, não só de nós, psicólogos, mas de todos. Terror frente a ausência dos direitos humanos, piedade por aqueles desprovidos de direitos.

Especificamente, o caso do direito ao trabalho é ainda mais torturante. Numa sociedade em que quase sempre "ser" equivale a "ter", os impedidos ao acesso deste gozo capitalista se vêem inúteis. Forrester (1997) diz vir daí, desta sensação de inutilidade, a deificação, a sublimação, enfim, a glorificação do trabalho.

Citemos a autora mais uma vez:

Se o Padre Eterno lançasse hoje a maldição: "Canharás o pão com o suor do teu rosto!", isso seria entendido como uma recompensa, como uma bênção! Parece que se esqueceu para sempre que, até bem pouco, o trabalho era muitas vezes considerado opressor, coercitivo. Infernal, geralmente. Mas será que Dante imaginou o Inferno daqueles que clamariam em vão pelo Inferno? Aqueles para quem a pior danação seria ser expulso dele? (...) A libertação do trabalho obrigatório, da maldição bíblica, não deveria logicamente levar a viver o tempo de maneira mais livre, com uma disposição para respirar, para sentir-se vivo, para atravessar emoções sem ser tão comandado, tão explorado, tão dependente, sem ter que suportar também tanto cansaço? Desde a noite dos tempos, não se esperou por uma mutação como essa, considerada um sonho inacessível, desejável como nenhum outro? (Forrester, 1997,p.112-4)

Estas inúmeras indagações servem como uma conclusão parcial do que trata esta monografia. Sabemos que até aqui fizemos um corte bastante específico de um tema difícil de ser definido (como vimos na primeira parte). Para tanto, valemo-nos de uma metáfora - a tragédia grega - e de uma tese assustadora - o fim do trabalho. O objetivo principal desta segunda parte foi situar o sofrimento mental e a ausência dos direitos humanos perante a psicologia.

Ocupando um locus incômodo, e ao mesmo tempo privilegiado de ator-atuante, o psicólogo pode indagar e ser indagado, sem esperar receber ou dar respostas. O mal-estar dos habitantes deste entre-lugar fomenta a evidência de que os crimes contra a humanidade são crimes da humanidade e perpetrados por ela.

Passemos agora à parte final do trabalho, onde vamos apontar outras dúvidas e, através delas, buscar possíveis soluções.

 

Da vergonha ao respeito

Na forma como são agora predominantemente entendidos, os direitos humanos são uma espécie de esperanto que dificilmente se poderá tornar na linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões do globo. Compete à hermenêutica diatópica proposta neste artigo transformá-los numa política cosmopolita que ligue em rede línguas nativas de emancipação, tornando-as mutuamente inteligíveis e traduzíveis. Esse projeto pode parecer utópico. Mas, como disse Sartre, antes de ser concretizada, uma idéia tem uma estranha semelhança com a utopia. Seja como for, o importante é não reduzir o realismo ao que existe, pois, de outro modo, podemos ficar obrigados a justificar o que existe, por mais injusto ou opressivo que seja. (Santos, 1997, p. 122)

Esta citação é parte da conclusão do artigo anteriormente citado. Conclusão que merece breves explicações. O que Santos oferece como solução é o emprego da hermenêutica diatópica. Mas o que viria a ser isto? É um conceito que se baseia na idéia de que os topoi - lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura e que servem de premissas (evidentes e indiscutíveis) de argumentação -  de uma dada cultura, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Esta incompletude, invisível no interior da cultura, não é passível de ser suprida. O que a hermenêutica diatópica pode fazer é ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo entre duas culturas. Este tipo de interpretação da realidade, a nosso ver, só vem reafirmar a tese de Bobbio (1992):

A Declaração Universal contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstraía dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstraía, mas também ela concreta, dos direitos posilivos universais. (Bobbio, 1992, p.30,)

O que estamos querendo mostrar com esta solução hipotética, que possibilita o dialogo entre duas culturas, é que o consenso é o primeiro passo para a legitimação dos direitos humanos. Temos que buscar uniformizar criticamente - e a antítese é necessária, pois já sabemos que a uniformidade, além de perigosa, é indesejável - os jogos-de-linguagem (para usar uma expressão de Wittgenstein) a fim de que a conversa entre culturas e entre os homens seja produtiva. Por exemplo: a noção de dignidade humana é a mesma para todos que falam e legislam sobre ela? E ainda: os carentes desta noção, como podem eles acessar esse jogo-de-linguagem? E o que é mais importante: tem o psicólogo um papel, engajado socialmente, capaz de catalisar esse acesso? Se tem, até que ponto, e em que se baseia ele para esse seu engajamento?

Antes de refletir um pouco mais sobre estas questões, gostaríamos de voltar a um ponto da tese de Forrester (1997), bem caracterizado pela citação abaixo:

enquanto alguém diverte assim a platéia, milhões de pessoas (...) têm direito apenas à miséria, (...) à perda de toda consideração social e até mesmo de toda autoconsideraçâo. Ao drama das identidades precárias ou anuladas.

Ao mais vergonhoso dos sentimentos: a vergonha. Porque cada um então se crê (é encorajado a crer-se) dono falido de seu próprio destino, quando não passou de um número colocado pelo acaso numa estaíísíica. (Forrester, 1997,p. 10)

A autora trata de uma das conseqüências da ausência de trabalho ao nível do sujeito. A vergonha passa a ser um valor sólido, como o sofrimento (mental) que a provoca ou que ela suscita.

Não nos enganemos ao afirmar que, na clínica do psicólogo, encontraremos só o paciente envergonhado, desmoralizado. O próprio psicoterapeuta vai, por alguma via, ser "vítima" deste sentimento. Explica-nos Amati (1993):

Como é sabido, a experiência do processo terapêutico com paciente, vítimas da violência institucionalizada põe o terapeuta diante de vivências pessoais que exigem uma elaboração afetiva intensa. Considero que algumas vicissitudes emocionais na contratransferência, em particular o desalento, ou seja, um sentimento de perda de sentido ou de significado na convicção terapêutica, assim como também os sentimentos contratransferenciais de vergonha podem ser considerados como indícios ou sinais patognômicos do tipo de experiência interna vivenciado pelo paciente. (Amati, 1986, 1993,p.25)

Através da citação acima, podemos aceitar a hipótese de que a via usada pela vergonha, do paciente para o psicólogo, é a contratransferência. Qual a forma de ação da vergonha no caso do psicólogo? Além da descrença no processo terapêutico, Amati diz haver uma certa inibição em expor as violências sofridas pelos pacientes. Segundo a autora, falar de feitos humanos tão degradantes, que rompem as regras mínimas de convivência, é perturbar os interlocutores: é dizer-lhes o que não queriam ouvir (...) (Amati, 1993,p.29)

Mas esta vergonha, além de sintoma, como já foi dito por nós, é vista, por Amati, como signo de recuperação:

O sentimento de vergonha que existe tanto no paciente como também no terapeuta, é um precioso indicador da resistência interna da pessoa à corrupção imposta a seus funcionamentos psíquicos. (...) Se a vergonha sentida pelo terapeuta pode ser interpretada como um fenômeno de contratransferência, indica então o intenso sentimento de dissociação e conflito que vive o paciente entre a experiência traumática que o "ocupa"e sua realidade atual, entre o que pode perceber dentro de si mesmo no momento da experiência traumática e a idéia que fazia de si mesmo antes dela. (Amati, 1993,p.29)

Aquela resistência interna de que nos fala Amati é, sem dúvida, reação à tomada de consciência pelo paciente de aspectos desconhecidos de sua própria passividade. A partir daí, passando da relação terapêutica para o contexto social, não é de se espantar o furor inconsciente, digamos instintivo, para reconstruir aquilo que está na sua origem: um sistema falido e extinto, mas cujo prolongamento artificial permite aplicar sub-repticiamente castigos e tiranias de alto quilate, protegendo a "coesão social". (Forrester, 1997, p.12)

Uma relação pode resumir o que dissemos até agora: perceber que esta coesão social já não existe está para a tomada de consciência do funcionamento psíquico passivo, assim como a vergonha está para a resistência.

A manutenção desta coesão social não parte só de "cima para baixo", isto é, de quem tem o poder para os que não o têm, mas também "lateralmente", quer dizer, dentro do mesmo grupo social. Um exemplo interessante é a reação das pessoas frente ao noticiário, sempre sangrento e frio, vista assim pela autora: Indiferença pela massa de viventes sacrificados; alguns minutos de emoção, porém, quando a televisão divulga duas ou três imagens desses abandonos, dessas torturas, e nós nos enlevamos discretamente pela nossa magnânima indignação, pela generosidade de nossas emoções, pelo nosso coração apertado e pela satisfação, mais discreta ainda, de ser apenas espectadores - mas dominantes. (Forrester, 1997, pp. 38-39)

Esta opinião não é nova e nem exclusividade de uma ensaísta francesa. Busquemos na poesia outro parecer semelhante, este do poeta Mário Quintana:

Não, não tenhas escrúpulos: se, alta noite, meteres uma bala no ouvido, os vizinhos pensarão, - polidamente - que foi apenas um pneu que estourou. (Quintana, 7975, p. 71)

Este descaso pela alteridade é sintoma que, como sabemos, contém aspectos políticos, psicossociais, biológicos e cronológicos.

Estamos presenciando uma afecção social que, além deste sintoma, apresenta um outro: o desrespeito. Como sabemos, respeitar, vem do latim respectare, ou seja, olhar muitas vezes para trás. Das inúmeras acepções que toma o termo em nossa língua, a maioria faz referência à alteridade. Quando há desrespeito, nega-se o outro. Não olhar, muitas vezes, para trás é, insistentemente, tornar invisível o semelhante. Pergunta-se, então:

Seria insensato esperar, enfim, não um pouco de amor, tão vago, tão fácil de declarar, tão satisfeito de si, e que se autoriza a fazer uso de todos os castigos, mas a audácia de um sentimento áspero, ingrato, de um rigor intratável e que se recusa a qualquer exceção: o respeito? (Forrester, 1997, p.145)

Frente a tantas interrogações, somos obrigados a pensar numa conclusão, mesmo adotando o clichê de que "não tivemos a pretensão de esgotar o problema". Usaremos uma passagem de Nietzsche que, narrando as aventuras de Zaratustra, elabora uma belíssima metáfora que poderíamos transpor para nossa problemática.

Trata-se de um excerto um pouco longo, mas que vale a pena ser lembrado. Assim falava Zaratustra, quando passava pelo deserto: Nunca vi nada semelhante ao que ali presenciei. Vi um moço pastor a contorcer-se anelante e convulso, com o semblante desfigurado, e uma forte serpente negra pendendo-lhe da boca.

Quando vira eu tal repugnância e pálido terror num semblante? Adormecera, de certo, e a serpente introduziu-se-lhe na garganta, aferrando-se ali?

A minha mão começou a tirar a serpente, a tirar... mas em vão! Não conseguia arrancá-la da garganta. Então saiu de mim um grito: "Morde! Morde! Arranca-lhe a cabeça! Morde!" Assim gritava qualquer coisa em mim; o meu espanto, o meu ódio, a minha repugnância, a minha compaixão, todo o meu bem e o meu mal se puseram a gritar em mim num só grito.

Valentes que me rodeais! Exploradores, aventureiros! Vós outros que apreciais os enigmas, adivinhai o enigma que eu vi então e explicai-me a visão do mais solitário.

Que foi uma visão e uma previsão: que símbolo foi o que vi naquele momento? E quem é aquele que ainda deve chegar?

Quem é o pastor em cuja garganta se introduziu a serpente? Quem é o homem em cuja garganta se atravessara assim o mais negro e o mais pesado que existe?

O pastor, porém, começou a morder como o meu grito lhe aconselhava: deu uma dentada firme! Cuspiu para longe de si a cabeça da serpente e saltou para o ar.

Já não era homem nem pastor; estava transformado, radiante; ria! Nunca houve homem na terra, que risse como ele!

Ó! Meus irmãos! Ouvi uma risada que não era risada de homem... e agora devora-me uma sede, uma ânsia que nunca se aplacará.

Devora-me a ânsia daquele riso. Ó! Como pude eu viver ainda? E como poderia agora morrer? (Nietzsche, s/d., p.138-9)

Antes de começarmos a transposição referida, deveremos nos questionar qual o local do psicólogo (e o estudante de psicologia) frente ao sofrimento mental - a indignidade humana -e frente à ausência de direitos humanos. Temos duas respostas possíveis a esta questão. A primeira, é dizer que ele tem um papel a cumprir - diminuir o sofrimento mental e lutar pela efetividade dos direitos humanos. Só a ele caberia descobrir como fazê-lo. A segunda, é dizer que o psicólogo não tem aquele papel, mesmo ao se deparar, no seu trabalho, - ou na ausência deste -, com os fatos aqui mostrados.

A resposta mais adequada seria a primeira, e é a partir dela que faremos a transposição da metáfora nietzschiana relacionando-a ao cotidiano do psicólogo. Ter um papel é cumprir certas funções sociais. É importante salientar este aspecto da questão: o social. Afinal, julgamos que ninguém pode se excluir deste aspecto. Quais são então estas funções sociais?

É, de alguma maneira, gritar àquele que tem a serpente na boca - lembrem-se do mutismo de que nos fala Forrester (1997, p. 32) - para morder, para falar.

Não podemos correr o prepotente risco de igualar o psicólogo a Zaratustra, mas ter o segundo como referencia ao primeiro é de grande auxílio. Além deste perigo, temos outro: igualar o povo - herói e espectador da tragédia moderna - ao pastor mudo e asfixiado. Esta igualdade é pertinente, mas não permanente. Assim como o pastor, o povo pode rir.

O que gostaríamos de dizer, do modo mais claro possível, é que temos o dever e o direito de sermos engajados socialmente. As formas deste engajamento são várias, tal como ocorre com a psicologia. Nas clínicas, nos hospitais, nas escolas ou nas empresas, o psicólogo deve deixar sua marca pragmática, e não uma melopeia inútil de que "tudo vai melhorar".

Esperando que, com esta monografia, tenhamos contribuído o mínimo para que ouçamos mais vezes esses risos da transformação, risos que já não serão do bicho homem, mas do ser humano. Citamos mais uma vez, e para concluir, Guimarães Rosa, agora em O Grande Sertão: Veredas:

Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco - que de tão grande se comparece - parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não ? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. (Rosa, 1985, p. 568)

 

Referências bibliográficas

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Fábio Roberto Rodrigues Belo
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