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Psicologia: ciência e profissão

 ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.23 n.3 Brasília set. 2003

 

ARTIGOS

 

Demandas do processo psicodiagnóstico: considerações teóricas e clínicas sobre as vivências das estudantes de psicologia

 

Demands of the psycho-diagnosis: theoretical and clinical considerations about the undergraduate psychology students

 

 

Raquel Conte Poletto1

Universidade de Caxias do Sul. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo há reflexões derivadas da experiência como professora e supervisora da disciplina de Técnicas de Diagnóstico Infantil, a qual exige a realização de um psicodiagnóstico. Há o levantamento e estudo sobre as diversas demandas envolvidas no processo, por meio de exemplos vivenciados pelas alunas com as crianças e seus pais.

Palavras-chave: Formação profissional, Psicodiagnóstico, Psicologia clínica.


ABSTRACT

In this article there are reflexions derived from the experience as a professor and supervisor of the subject "Techniques of the Infantile Diagnosis" that requires the achievement of a psychodiagnosis. There is a survey and study about some demands involved in the process, trough the examples experienced by the students with the children and their parents.

Keywords: Undergraduate course, Psychodiagnosis, Clinical psychology.


 

 

Ensaios sobre Algumas Demandas das Alunas e Familiares Durante o Psicodiagnóstico

O processo psicodiagnóstico abrange demandas específicas e diversas, pois provêm de diferentes partes envolvidas no processo: a pessoa que atende (nesse artigo refere-se às alunas da disciplina de Técnicas de Diagnóstico Infantil), as pessoas que buscam ou são levadas para a avaliação clínica (as quais são atendidas pelo Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade de Caxias do Sul) e, a supervisora (que também é a professora desta disciplina).

Inicialmente pode-se descrever a respeito das ansiedades e expectativas das alunas em relação a uma primeira experiência clínica. De acordo com Aguirre (2000), a curiosidade e a emoção são fatores desencadeantes desse processo, os quais mobilizam angústias e comportamentos diversos. A preparação para o atendimento inicia com o estudo a respeito do processo psicodiagnóstico, seus objetivos, passos e finalização. Nesse momento é muito comum aparecerem as angústias confusionais, com alguns questionamentos como: "O que eu vou dizer para o pai e a mãe se eles me perguntarem o que fazer?" " Quem primeiramente eu chamo na primeira consulta?" "Como conversamos com a criança?" "Podemos opinar a respeito de algum procedimento mais adequado para os pais?"

Observa-se que o momento é de muito ansiedade pelo desconhecido, ao mesmo tempo, demonstram um desejo e um interesse das alunas de colocar em prática os conhecimentos adquiridos ao longo do curso. O estudo teórico representa um dos diversos objetos continentes necessários e importantes para o processo. Alguns outros devem estar presentes como: a possibilidade de confiar e dividir seus anseios, dúvidas, idéias e sentimentos com os colegas e supervisora; a possibilidade de identificação profissional; bem como o autoconhecimento, que se efetua com a psicoterapia. A probabilidade de tornar produtivo e acolhedor a troca de experiências com as colegas e supervisora, através da escuta desprovida de críticas e preconceitos, possibilita um maior aproveitamento dos momentos de supervisão em grupo. Há a tendência, conforme Coppolillo (1990), a preenchermos com preconceitos, teorias e crenças aquilo que não conhecemos. Portanto o exercício de ouvir o outro, percebendo suas próprias reações, sentimentos e pensamentos, bem como os das demais, possibilita o acolhimento daquilo que lhes é genuíno. É comum que as demandas das alunas assemelhem-se em muitos momentos. A identificação e a empatia, portanto, são fatores que possibilitam uma escuta afinada e promove uma maior capacidade de ajuda às demais. Nas situações onde as colegas trazem vivências novas, percebe-se que apesar destas mobilizarem ansiedades pelo impacto do desconhecido, levam à reflexão de suas próprias idéias, sentimentos e atitudes. Assim sendo, a aprendizagem do processo psicodiagnóstico é perpassada pela escuta da aluna em dois momentos: no atendimento ao paciente e nas vivências com as colegas, no âmbito da supervisão. As angústias das alunas provêm de diversas fontes: de sua própria inexperiência, das experiências em grupo com as colegas, do seu próprio funcionamento psíquico, bem como das demandas dos pais que lhes são depositadas desde o início do processo. Tais angústias precisam ser identificadas e traduzidas para que sejam assimiladas e assim, possibilitem uma maior flexibilidade de pensamento e movimento durante o processo. Uma das citações das alunas que permeiam essas reflexões é: "Como vou pedir para os pais a respeito da relação sexual deles?"

Esta dúvida reflete o sentimento de inapropriação da aluna no papel de terapeuta, bem como mobiliza questões edípicas internas, isto é, parece estar com a seguinte dúvida "como vou entrar no quarto do papai e da mamãe e saber o que se passa por lá?" Se as angústias forem muito intensas podem paralisar a aluna e prejudicar o processo pela inexatidão das informações.

Quanto à possibilidade de identificação profissional é possível perceber que muitas vezes há uma precariedade na recorrência a modelos identificatórios. Muitas vezes, as alunas surpreendem-se com algumas técnicas utilizadas na avaliação de crianças. Alguns questionamentos são realizados como estes: "Mas um terapeuta que trabalha com a abordagem psicanalítica pode abraçar uma criança, pegar no colo?" "E se a criança quiser me abraçar, me beijar?" "O que fazemos se recebermos um presente, a gente aceita?"

Essas questões evidenciam a tentativa de preencher com conhecimentos e vivências anteriores as situações inesperadas e inéditas que ocorrem nas sessões. As alunas recorrem a modelos teóricos e técnicos vivenciados pelas leituras, vivências com professores e colegas já formados ou pela sua própria psicoterapia pessoal, na busca de uma identificação que lhes permita a "melhor postura profissional". Preenchendo ou desviando seus pensamentos para algo já preconcebido, perdem a espontaneidade durante a sessão e, a atitude de estar atenta aos seus próprios sentimentos e percepções. Estes deveriam ser os indicadores do que está ocorrendo na sessão, para que pudessem mobilizar pensamentos a respeito de seus significados e, posteriormente, facilitar a comunicação, seja ela através de gestos, palavras ou pelo próprio brinquedo.

Zornig (2000) afirma que toda demanda do adulto para análise é por não conseguir atingir o ideal de ser adulto e dirige-se a uma pessoa sobre a qual supõe, erradamente, ter atingido esse ideal. Dessa forma, sustenta que para a psicanálise não há pessoas grandes, pois essa é uma categoria imaginária, já que aquilo que sustenta uma análise é a criança dentro do adulto. O adulto é moldado pelos conflitos, traumas, fantasias e desejos da criança. Assim sendo, o adulto precisa da análise para reconhecer a criança que há em si. Muitas vezes, as alunas recorrem apenas ao estudo da teoria e da técnica, desconhecendo a criança interior que lhes habita, fragilizando em grande parte a possibilidade de empatizar com a criança à sua frente. Conforme descreve Bernstein, I. e Glenn, J. (1992), são diversos fatores que tornam a prática de análise de crianças distinta e específica das demais análises. Iniciando pelo próprio envolvimento dos pais, o terapeuta de crianças sofre alguns estresses característicos, despertando diversas reações contratransferenciais. Outros fatores que o autor refere são: as fantasias de resgate do terapeuta, a sua identificação continuada com a autoridade de seu próprio analista ou de seus pais, a revivescência de traumas oriundos de sua própria infância pela experiência de contato com uma criança, suas reações à agressão ou sedução do paciente e o seu sentimento de culpa por achar-se muito ocupado com pacientes infantis quando ele mesmo tem crianças pequenas. Observa-se que as reações emocionais das alunas podem ser muito fortes, tanto em relação aos familiares como à criança. Freqüentemente os relatos das sessões trazem as seguintes expressões: "Ele ficou tirando sarro da minha cara, como se eu estivesse ali fazendo palhaçada." "Ela não deixava eu jogar!"

Com estas verbalizações pode-se pensar nas diversas vezes que as alunas reagem afetivamente ao paciente como pessoa real, necessitando desvendar através da supervisão e auto-análise os aspectos transferenciais de seu paciente, para que possam atribuir uma compreensão dos sentimentos e pensamentos que habitam o psiquismo do mesmo. Porém, muitas vezes as alunas apresentam reações contratransferenciais, as quais são descritas como reações inconscientes do terapeuta ao paciente, pela própria transferência do paciente. Um exemplo de como a contratransferência pode aparecer, refere-se a um caso de um menino que vinha sofrendo maus-tratos e, supostamente pela própria pulsão mais passiva, mobilizava na aluna uma postura ativa, de caráter sádico, onde muitas vezes questionava e insistia nas sessões para que ele pudesse contar com ela e revelar o segredo de ser maltratado pelo pai. A conduta revelada nos relatos caracterizava-se pela falta de consciência e pela sua repetição intensa. Outra aluna ao relatar sobre uma possível idéia da criança em fugir de casa, descreve o manejo que achou mais adequado, sugerindo a paciente que pensasse em como seria o oposto, se todos saíssem de casa e ela ficasse sozinha. Evidentemente em supervisão constatou-se o quanto esta atitude pode ter reforçado as angústias de separação-individuação da criança, o qual era um dos conflitos subjacentes à sua sintomatologia, promovendo fantasias terroríficas a respeito disto e um possível temor à retaliação. A intensidade e freqüência que os pacientes, em especial as crianças, depositam seus conteúdos inconscientes no terapeuta, sugerem o quanto o preparo técnico e pessoal pode favorecer o manejo da contratransferência.

Conforme Glenn, J., Sabot L. M. e Bernstein, I. (1992) é importante que saibamos como as reações transferenciais com os pais e as identificações com as crianças são extremamente prováveis, pois a partir disto é que podemos repensar na nossa prática. Os antagonismos e afeições passadas em relação aos próprios pais, quando aparecem com intensidade não excessivamente perturbadora ajudam o terapeuta a compreender os "apuros" e conflitos do paciente. Muitas alunas nas supervisões descobrem-se culpando os pais, ou, muitas vezes, numa atitude de não condená-los, deixam passar despercebido o papel dos pais na enfermidade da criança. Uma das alunas comentava a respeito da mãe de uma criança em avaliação: "Como pode esta mãe querer que a filha seja diferente, ela nunca ficou com ela!"

Outra aluna comentava, no sentido de descomprometer uma mãe: "A mãe sempre percebeu a dificuldade do filho, mas por medo ou desinformação, quem sabe, não procurou antes ajuda!"

Percebe-se que a raiva deslocada para os pais da criança também tem suas razões inconscientes, como por exemplo: "Mas fiquei tão furiosa com esta mãe, eu já tinha avisado três vezes para vir sozinha, mesmo assim, trouxe a criança junto com ela!" Neste caso a aluna evidentemente ficou muito confusa e incomodada em conduzir a sessão familiar, juntando a inexperiência com a necessidade de sentir-se aos poucos mais segura e independente, revivendo o seu próprio processo de separação-individuação. Muitas vezes a identificação com os pais reais do paciente pode ser positiva, conduzindo a uma simpatia que permite a progressão do trabalho, é o caso, por exemplo, de uma aluna que registrou a seguinte impressão da mãe: "A mãe está percebendo que o menino quer ser mais independente, mas está ambivalente, sei como isso realmente é difícil!"

Outras vezes, as alunas podem identificar-se com pais idealizados, adotando posturas que visam a substituir os pais reais, como por exemplo, no caso onde uma aluna relata que se sentiu aborrecida com a rigidez que a mãe tratava o filho e, conseqüentemente, quando o recebeu sentiu-se compelida a ser o mais amável possível. Nesse sentido, a aluna procura realizar as fantasias de resgate da mãe ideal.

É importante relembrar e frisar, novamente, a importância do autoconhecimento das alunas para a continuidade do processo psicodiagnóstico com embasamento psicanalítico. A auto-análise ainda constitui o meio de revelar o intrapsíquico do sujeito, permitindo a representação e compreensão dos aspectos infantis. Assim, retomando os desejos, conflitos e traumas infantis em si própria, a aluna permite uma maior neutralidade em seus atendimentos, com maior clareza e diferenciação entre os aspectos internos e os externos.

Apesar da complexidade das diversas emoções envolvidas no atendimento à criança e seus familiares, fica evidente a necessidade de realizar uma aliança de trabalho com os pais, assim como com a criança, para que qualquer continuidade de atendimento seja possível. Essa aliança de trabalho se faz através da motivação dos pais e da criança para o atendimento e da postura e compreensão da aluna frente ao caso.

De acordo com Coppolillo (1990), a pessoa que faz o diagnóstico deve trazer consigo para as entrevistas com os pais: uma boa dose de curiosidade, uma boa disposição para ser surpreendido, um desejo de ser ensinado pelos pais e pela criança, sem se sentir ressentido ou depreciado e, acima de tudo, humildade e respeito pela enorme complexidade do desenvolvimento e mentalidade humana. Assim, a aliança de trabalho com os pais parece iniciar-se desde a primeira consulta, diante da possibilidade de ser escutada sua demanda, acolhendo assim a sua transferência. Pensando, conforme sustenta Zornig (2000), que a criança se constitui numa estrutura familiar e que parte de sua questão em análise se relaciona ao lugar que ocupa no desejo e no discurso dos pais, uma avaliação infantil só será possível com a participação efetiva de seus pais. Zornig (2000) conclui, a partir de algumas idéias de Lacan, que há uma relação direta entre o sintoma da criança e a estrutura familiar, sendo que existe a possibilidade de uma apropriação sintomática da criança mediante suas produções fantasmáticas ou de um assujeitamento mortífero ao desejo do Outro. Bleichmar (citado por Zornig, 2000) segue além desta relação entre sintoma da criança e estrutura familiar, ressaltando que a fundação do inconsciente da criança tem relação ao inconsciente parental, porém não é um simples reflexo deste. Para a autora o discurso dos pais só pode funcionar como uma matriz simbólica de partida, que é fundamental para a constituição da realidade psíquica da criança, mas que não esgota a significação metabólica do inconsciente da criança. Assim sendo, sustenta que o sintoma da criança, embora inicialmente possa manter uma homeostase na economia do desejo parental, ele indica uma escolha ainda que forçada da criança, trazendo a marca de sua construção. Se o seu sintoma pode constituí-la como sujeito da sua própria palavra, ele comunica a sua subjetividade. Dessa forma, a avaliação infantil está intrinsicamente vinculada ao discurso dos pais.

De acordo com as experiências vividas, observa-se uma grande parte dos pais buscando espontaneamente uma avaliação para seus filhos. Alguns ainda precisam que um outro assuma a demanda do encaminhamento, representado através das escolas ou dos médicos. De qualquer forma, o fato dos pais e criança estar buscando uma avaliação, indica que todo comportamento que possa ter sido camuflado, até então, por não ter sido entendido, tem uma possibilidade de resignificação. Os pais precisam de um certo encorajamento, ao chegarem para a avaliação, a fim de re-ver o filho real e não mais o imaginário, que encontram-se em antagonismo. Freud (1914), já dizia que o amor parental nada mais é do que o retorno e reprodução do narcisismo dos pais, que depositam no filho suas aspirações narcísicas. Balbo, de acordo com Zornig, (2000), ressalta que as entrevistas preliminares, sem a presença da criança, possibilitam a elaboração de um trabalho de luto. Luto pela perda da ilusão de que uma criança real poderia corresponder à imagem da criança narcísica do desejo, da criança que os pais desejariam ter sido, mas não foram e que esperavam resgatar por meio de seu filho. Os pais esperam inconscientemente, através da queixa trazida, que uma avaliação possa reassegurar-lhes o retorno desse lugar do filho ideal. Conforme destaca Coppolillo (1990), freqüentemente os pais sentem-se culpados ou fracassados quando precisam abandonar o desejo da criança ideal. O desejo de que os filhos sejam bons precisa ser substituído e aceito pelo desejo de que os filhos fiquem bem, através da aceitação de sua subjetividade. Levando em conta todas essas questões podemos então compreender porque alguns pais apresentam maiores dificuldades em buscar e aceitar ajuda. As alunas muitas vezes expõem as expectativas que tinham com os pais, sendo que freqüentemente observa-se um descontentamento quando percebem que aquilo que lhes contam nem sempre é a verdade, ou toda a verdade, ou simplesmente quando os pais faltam às sessões. Essas são algumas atitudes muito freqüentes de acontecerem e de acordo com o que se observa durante o processo, não poderia ser diferente, uma vez que os pais sentem-se avaliados e perseguidos nesse momento de re-descobrimento.

O pedir ajuda, revelado na busca do atendimento, alivia e divide a sobrecarga psíquica, mas também ameaça a legitimidade de seus papéis e lugares. Confrontando com a fala de alguns pais podemos relacionar essas idéias: "Nós não víamos a hora de vir aqui! Não sabemos mais o que fazer com o João (os nomes são fictícios), já tentamos de tudo. Talvez você com mais estudo possa nos dizer melhor o que fazer."

Fica explícito nesta fala o desejo de ser ajudado, porém ao mesmo tempo, a impotência que se encontram estes pais e a fantasia de que as alunas possam saber mais do que eles em relação ao que é melhor para a sua família. Essa fantasia é uma das primeiras situações equivocadas que precisa ser esclarecida, uma vez que as alunas, no papel de terapeuta em avaliação, não têm a tarefa de educar, como é função dos pais, mas sim de psicanalizar. Realizar uma compreensão dinâmica do funcionamento psíquico do paciente, compreender a estruturação do seu inconsciente, não é nada semelhante com a tarefa educativa, a qual pode confundir a criança em relação ao papel e função do terapeuta. Os pais e a criança, assim como as alunas e a supervisora, estão diante do desconhecido, portanto para eles também são assustadores as fantasias e idéias que possuem a respeito do processo psicodiagnóstico. A própria palavra avaliação diagnóstica requer alguns cuidados, pois qualquer avaliação por si só gera ansiedades e fantasias a respeito do que quer que seja, como será e como terminará. É justamente pela intensidade das emoções diversas e muitas vezes contraditórias existentes nesses pais, que o trabalho com eles torna-se fundamental, sendo muito provável que a resistência desses pais possa tornar inviável a avaliação e tratamento da criança. Assim, é imprescindível que, além de escutarmos o que estes pais trazem sobre seus filhos é necessário ouvir o que eles trazem a respeito deles mesmos, enquanto filhos de seus pais e enquanto pais. Geralmente eles referem-se à sua pré-história comparando suas atitudes com as dos seus pais, por exemplo: "Eu não sei porque o Carlos ficou assim, eu nem castigo dou, como meus pais faziam comigo. Eu não podia nem respirar fora de hora que já era castigado!"

A escuta em relação a esse pai, bem como de muitos outros, remete à cultura na qual eles estão inseridos, no imaginário social e familiar (crenças, valores), bem como em algumas marcas que esses pais trazem em seu psiquismo. De acordo com Gomel, (em Graña & Piva, 2001), as vivências podem promover um trabalho de ligação no próprio psiquismo do indivíduo ou serem transmitidas sem novas roupagens metafórica-metonímicas para as sucessivas gerações, como herança penosa. Assim, há um transporte geracional, através de diferentes psiques, de legados indecifráveis, desligados do psiquismo e atuados nos seus vínculos. Talvez em razão disso, muitas vezes ao pensar e refletir sobre as vivências desses pais é possível compreender o que está sendo trazido de legado para o paciente, a fim de que possamos intervir nessa cadeia traumática geracional. Recordando um caso que pode exemplificar algumas dessas reflexões teóricas: "Joana busca avaliação para a sua filha em razão dos pequenos furtos que ela vem apresentando na escola. Joana tem uma relação atual com um companheiro, o qual ela não permite nenhum contato com a filha, não desempenhando, portanto, papel e função de pai. O pai de sua filha constituiu outra família, com quem a mãe prefere deixar a filha quando precisa se ausentar. A mãe relata angústia intensa só em pensar em deixar a filha com o padrasto, referindo aos modos da menina, que pode leva-lo a cometer atos impensáveis, descrevendo, por exemplo, o fato da menina quando está de saia sentar de perna aberta na frente do padrasto." A aluna, nesse momento reage com intenso desconforto, ficando perpelxa e ambivalente em relação à mãe. Relata, em supervisão, o quanto está complicado de pensar sobre o que acontece realmente nestas relações. Pensou-se em várias hipóteses, primeiramente que esse padrasto já pudesse ter tentado abusar da menina, ou então, que essa mãe parecia estar temerosa em lidar com a descoberta da sexualidade da filha, que já tinha 9 anos, ou ainda, parecia que essa mãe estava angustiada demais por tão pouco, quem sabe estava revivendo através da filha, situações traumáticas? Em conversa com o padrasto pode-se então compreender algumas questões bem importantes para a compreensão do caso: Joana havia sido abusada sexualmente por um tio, com o qual mantinha um contato próximo e afetivo. Além disso, quando sua filha nasceu, deixou-a sob os cuidados de sua mãe, que só permitiu entregar a menina de volta, quando ela se casasse novamente. Diante de todos esses dados, podemos pensar algumas significações dessa cadeia geracional traumática como: sua filha, descobrindo-se como ser sexuado, não pode ter controle nem escolha sob seus desejos e objetos amorosos, sendo assim, deve ser vigiada, protegida, para que fique resguardada e reprimida a sua sexualidade. Sua mãe se sente como não tendo controle de sua própria sexualidade, uma vez que seduziu e foi seduzida através de um abuso sexual. Assim, Joana compreendeu que desejar é algo perigoso, que pode levar a diversos caminhos, como ao abuso e a ira do objeto de amor primário. Precisa resguardar a sexualidade da filha, reconhecendo o desejo como vindo do outro, para protegê-la de sua própria ira e, desta forma, poder continuar ao seu lado. O comportamento de furtar, nada mais é do que um sinal de transbordamento da descarga pulsional, que necessita ser legitimada e significada nesse contexto. A compreensão da aluna, neste caso, perpassou por outros caminhos. Em função das demandas sobrepostas pela mãe, padrasto e criança, além do estudo teórico realizado, a aluna concluiu que o furtar seria uma forma da criança chamar a atenção da mãe para si, uma vez que a sentiu muito "carente". O estado confusional da aluna era demasiadamente intenso, pois a descarga pulsional da mãe e da filha era projetada maciçamente na terapeuta, empobrecendo a sua capacidade de pensar. Essa confusão já fazia parte de aspectos infantis da criança e de sua mãe, porém não conseguindo serem compreendidos e traduzidos, paralisou o movimento da aluna, que já não sabia mais o que pensar sobre o caso. O que pôde ser entendido era que a mãe da menina precisava estar mais com ela, dar-lhe mais atenção, mas não pode ser realizado a compreensão de que a mãe não concebia a subjetividade de sua filha, em razão de sua própria cadeia geracional.

Constata-se assim, que o filho real, ao vir para uma avaliação denuncia o que faltou ou viveram esses pais de uma forma latente. Fica visivelmente exposto a necessidade de haver muita cautela e tolerância durante a avaliação diagnóstica, pela complexidade do processo psicodiagnóstico uma vez que há diversas psiques, atravessadas por suas cadeias genealógicas, que muitas vezes precisam ser identificadas para auxiliar na compreensão de todo o processo. A partir do momento que um outro dirige a palavra a alguém há a curiosidade e necessidade de saber o que pensamos a respeito, e muitas vezes o não-verbalizado impossibilita a capacidade de ligação de fatos que não puderam até então ser compreendidos. Tanto para os pais como para a criança, a devolução daquilo que pôde ser compreendido ao longo do processo, deve ser devidamente abordado, para que possa mobilizar as resistências, preencher lacunas, e promover insights ou representações.

Na criança, a expectativa de saber quem somos, como somos e o que pensamos sobre ela aparece através do brincar. Apesar da demanda da criança para o processo psicodiagnóstico estar subjetivada à demanda de seus familiares, muitas vezes elas vêm às entrevistas expressando de diversas formas porque estão ali. Coincindindo ou não com a queixa trazida pelos pais, representam, através de suas atitudes, o desejo de serem escutadas, ou ao menos de serem reconhecidas e aceitas em sua subjetividade. No término das horas de jogo, muitas crianças manifestam interesse e prazer em continuar ali, porque ali se fazem representar, mesmo que seja através da inibição, desorganização e impulsividade no seu brincar. O que para algumas este comportamento pode significar resistência ou intolerância à frustração, para muitas crianças o fato de estar conectada a alguém promove o desejo de continuar sentindo-se viva, tentando ao máximo prolongar essa experiência. A forma de expressão do seu mundo interno (desejos, fantasias, angústias e defesas) é empregada no brincar, cabendo à aluna a capacidade de comunicar-se através dessa linguagem. Através dessa comunicação que se estabelece entre a aluna e a criança que há a continência para os aspectos infantis, sendo que mais uma vez o não-dito também pode ser representado como uma violência ou ataque ao vínculo. De acordo com Franch (em Graña e Piva, 2001) a mente do terapeuta muitas vezes necessita ser emprestada, para que possa pensar os conteúdos expressos no brincar da criança, a fim de que possa ser internalizado, posteriormente pelo paciente. Caper, citado por Franch, também acrescenta a importância de que muitas vezes através do brincar a criança projeta aspectos seus para a mente do terapeuta para observar como ele reage, que poder tem sobre ele, bem como sua possibilidade de dominá-la e controlá-la onipotentemente. Em razão disso, muitas vezes ouvimos algumas pessoas comentarem da importância do terapeuta infantil gostar de brincar, pois é a forma de tornar produtiva qualquer comunicação e entendimento do psiquismo da criança.

Ainda deve-se fazer algumas considerações a respeito da demanda das alunas em relação à supervisora durante o processo. Tal como a demanda dos pais pode intensificar ou não as reações emocionais das alunas, as demandas das alunas em relação á supervisora também podem favorecer ou muitas vezes dificultar o processo. Primeiramente é importante ressaltar que além de ser a primeira experiência clínica das alunas, elas encontram-se em avaliação nesse processo, a qual representa uma exigência parcial para a obtenção do término de uma disciplina teórico-prática. Ocorre maior flexibilidade durante a supervisão, quando há a humildade da aluna enquanto aluna e enquanto terapeuta, bem como a humildade da supervisora enquanto professora e supervisora. A aluna quando aceita que está em processo de aprendizagem, permite uma maior reflexão de sua própria prática, bem como aceita com mais facilidade a intervenção da supervisora, que tem uma experiência e um conhecimento mais amplo a respeito do assunto. Aquelas alunas que também já realizam uma psicoterapia parecem perceber e lidar melhor com suas inquietações e dúvidas, sem que dessa forma haja uma ferida narcísica sentida como irreparável. O que ocorre com muita freqüência é que algumas alunas esperam mais da supervisora do que de si mesmas, esquecendo-se de que quem está participando ativamente do processo são elas, portanto os sentimentos despertados nas sessões são os instrumentos de maior valia. Porém pela própria insegurança, parece haver uma desconsideração disso tudo e demandam para a supervisora a tarefa de reflexão e compreensão do caso, para que, posteriormente, elas possam pensar o impensável e devolver ao paciente da melhor forma o que ficou compreendido. Vejam bem quantas traduções e quantos intérpretes nesse processo! Dessa forma, pode-se pensar e concluir a respeito da grande necessidade do ser humano em necessitar de um outro, ao nascer precisa de um intérprete, e, posteriormente em outras situações de desamparo, angústias e sofrimentos, recorre-se novamente aos intérpretes, que nem sempre estão internalizados. O primeiro movimento de ajuda da supervisora parece ser o de oferecer condições da aluna pensar, para que esse processo de ligação e interpretação possa ser realizado internamente e não depositado maciçamente no outro. Há também aqueles casos em que as alunas não depositam na mente da supervisora os conteúdos dissociados, desligados, ou simplesmente ignorados. Nessas, predominam muitas vezes a exclusão total de qualquer sentimento de desamparo, não porque não os tenham, mas porque de diversas forma excluem de sua consciência. Geralmente esses casos são trazidos pelas alunas com total ausência de ansiedade, dúvidas, onde a capacidade para pensar está provavelmente comprometida. E como em toda forma de psiquismo, em que as emoções não transitam pelo pensamento há muitas condutas e posturas inadequadas. Toda a angústia que não pode ser traduzida em palavras é manifestada no processo, através de questionamentos que não foram positivos ou que ficaram incompletos. Na devolução, há informações que são precipitadamente verbalizadas ou mal elaboradas. Durante as sessões de avaliação, há também uma confusão de papéis, onde a aluna assume a postura de terapeuta em tratamento, confundindo os objetivos relativos ao processo, trabalhando demasiadamente com a sua intuição. Observa-se que essas alunas protegem-se demais de qualquer sentimento que venham expor sua inexperiência, pois isso parece significar sinais de fracasso, de falhas, com as quais não podem lidar. Essa defesa narcísica empregada procura evitar o desamparo que outrora viveram, pois nem sequer permitem a inclusão da supervisora nesse processo, uma vez que as discussões ficam empobrecidas e distantes.

Desde o momento que a supervisora é responsável perante o Conselho Regional de Psicologia pelos atendimentos aos pacientes, é necessário que haja uma exigência no sentido de acompanhar os casos integralmente, bem como apontar sugestões e equívocos que necessitem ser revisados. Tais aspectos merecem ser apontados antes que ocorra a devolução de informações para o paciente, a fim de que a finalização do processo e/ou outros encaminhamentos, possam ser realizados com maior comprometimento e compreensão da terapeuta e do paciente.

No momento da supervisão é extremamente importante que além de estabelecer critérios, como bem cita Aguirre (2000), como freqüência e pontualidade dos alunos nas supervisões e atendimentos ao paciente, cumprimento das tarefas e prazos estabelecidos no curso, através dos relatos e trabalho final do caso atendido, também precise acima de tudo prezar um bom atendimento à aluna e ao paciente. Os critérios de avaliação parecem justificar e permitir uma nota adequada às alunas, durante todo o processo. Contudo, não se pode esquecer que há, sobretudo, um paciente à nossa frente, com seu narcisismo constituído (positivamente ou não), com suas transferências que revelam acerca de suas relações objetais e com a necessidade de um intérprete que possa dar um sentido aquilo que ele sente, mas não compreende, percebe mas não consegue denominar e deseja sem se apropriar. A supervisão parece que nesse processo pode representar o espaço transicional, de Winnicott, onde através desse lugar o mundo interno das alunas perpassado pelo dos familiares e criança pode encontrar expressão e vida, a fim de poderem receber uma forma e serem expressos na realidade externa, através da conduta e da compreensão que poderá ser dada ao paciente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Raquel Conte Poletto
Rua Ângelo de Carli, 1110/201
95055-090 Caxias do Sul - RS

Tel: +55-54-229 2860. +55-54-3027 5688. Cel. +55-54-998 50260

E-mail: raquelcpoletto@uol.com.br

Recebido em 22/01/02
Aprovado em 22/11/02

 

 

1 A autora é psicóloga, especialista em psicoterapia psicanalítica e psicanálise da configurações vinculares: casal e família. Mestre em psicologia do desenvolvimento. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul.