Psicologia: ciência e profissão
ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.23 n.3 Brasília set. 2003
ARTIGOS
Psicologia e educação no contexto das secretarias municipais: algumas contribuições para novas práticas
Psychology and education in the municipality context: some contributions towards new practices
Beatriz Belluzzo Brando CunhaI, *; Gilmara BetiniI, **
I Universidade Estadual Paulista - Campus Assis. Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar
II Prefeitura Municipal de Florinea
RESUMO
Visando a refletir sobre diferentes formas de pensar e fazer dos psicólogos que atuam na Educação Municipal, participamos da Comissão de E-ducação do CRP-06/subsede de Assis e entrevistamos psicólogas aí envolvidas. Verificamos que suas ações - condicionadas ao modelo político-ideológico ado-tado pela gestão municipal e pela formação acadêmica recebida - caracterizam-se por práticas tradicionais e/ou compartilhadas por outros profissionais, que não vêm contribuindo para a reversão do quadro de produção do fracasso escolar. Assim, consideramos urgente a revisão dos aspectos relativos à formação dos psicólogos, às práticas atualmente implementadas e ao engajamento dos órgãos dessa classe para a consolidação de uma psicologia mais comprometida com a cidadania.
Palavras-chave: Psicologia escolar, Psicólogos da educação municipal, Formação profissional, Fracasso escolar.
ABSTRACT
The paper reports on our reflection upon the different way psychologists think and act in their practice within the Municipal Educational context. As members of the Education Committee of the Regional Board of Psychologists (Branch of Assis), we have conducted interviews of practicing psy-chologists within the education context. We have found that the practitioners' ac-tions are guided either by the political/ideological model of the city administration or by their academic background. These are characterized by traditional ways of practice and/or shared by other professionals. Such practices have not contributed to changes in the current state of school failure. Therefore, we urge the reviewing of certain aspects concerning the psychologist's professional development, the current professional practices and the efforts of professional psychologycal organizations to a consolidation of a professional practice that is committed to citizenship.Keywords: Educational psychology, Psychologists of the municipal education, Psychologist's professional development, School failure.
Compreender o significado da profissão, em suas ações e influências sociais, é uma questão de identidade dos psicólogos desde o momento da consolidação da profissão no Brasil. Assim é que, além das iniciativas de acadêmicos como Mello (1975), Neves (1989), Yazlle (1990), Nader (1990), entre tantos outros que estudaram e analisaram as práticas dos psicólogos em diferentes áreas de atuação e regiões do Brasil, encontramos trabalhos realizados pela própria categoria profissional igualmente com a finalidade de definir a identidade dos psicólogos.
O Conselho Federal de Psicologia publicou, em 1988 e 1994, pesquisas encomendadas com o objetivo de contribuir para a reflexão sobre as práticas profissionais e as identidades dos psicólogos brasileiros. Na área da Psicologia aplicada à Educação destacamos os trabalhos de Carvalho (1988) e de Maluf (1994).
Apesar da valiosa contribuição que esses trabalhos trouxeram para esclarecer quem é, o que faz e o que pensa o psicólogo brasileiro, este não é um tema esgotado, especialmente se considerarmos as mudanças recentemente ocorridas nos diversos setores das políticas públicas, que muito influenciam as práticas profissionais dos psicólogos.
Dentre as mudanças mais significativas, destacamos as medidas legais e políticas que promoveram a municipalização do ensino fundamental e estabeleceram como prioridade, para aplicação de recursos municipais à educação, o nível básico de ensino, isto é, a educação infantil e o ensino fundamental.
Esse processo de municipalização se iniciou ainda nos anos oitenta, quando a expansão das redes municipais de educação - estimuladas pela Emenda Calmon, regulamentada em 1985 (Lei 7348/85), que estipulava o mínimo de 25% de aplicação da receita municipal na Educação1 - impulsiona a participação de psicólogos na educação.
As discussões que o processo de municipalização foram, de certa forma, finalizadas com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96). Essa lei define, em seu artigo 69, o percentual mínimo da arrecadação de impostos para a União (18%) e para os Estados, Distrito Federal e Municípios (25%) aplicarem na educação. Transfere, assim, definitivamente, aos municípios a responsabilidade pela Educação Infantil e, prioritariamente, pelo Ensino Fundamental, regulamentados por um sistema educacional próprio ou vinculando aos sistemas estaduais (artigo 11).
Se, por um lado a LDB, atribuiu competências e recursos que deram autonomia aos municípios - contingências que a princípio abriram espaço para a atuação dos psicólogos na área educacional - por outro, excluíram-nos do quadro dos profissionais da educação, situando seus serviços dentre as formas de assistência social, no artigo 71, que trata das despesas com investimento educacional.
De acordo com Del Prette (1999, p. 12/13), a nova LDB
"... representa a conclusão de uma longa trajetória de debates acadêmicos aliados a trâmites políticos, ao longo dos últimos dez anos, em que se explicitaram e se confrontaram interesses de grupos, de diferentes tendências, alguns com maior respaldo na chamada sociedade organizada. O texto finalmente aprovado reflete, especialmente sobre a forma de omissões e de contradições, esse conflito de interesses, embora possa, sob alguns aspectos, ser considerado um avanço em relação à legislação educacional anterior ..."
Da expansão do quadro de psicólogos que atuam na área da Psicologia Escolar nos últimos anos em nossa região, da descentralização das ações do Estado e das diversas discussões que vêm ocorrendo a respeito das Diretrizes Curriculares para o Curso de Psicologia, surgiu nosso interesse em compreender a(s) tendência(s) da Psicologia Educacional nos municípios da região de Assis.
Assim, este trabalho visa a focalizar as diferentes formas de pensar e fazer dos psicólogos que atuam na área da Educação, junto às Secretarias Municipais, buscando delinear as tendências regionais das práticas psicológicas enquanto serviço oferecido à população.
No ano de 1999, o Conselho Regional de Psicologia, subsede de Assis, através de suas Comissões Temáticas, criou um espaço de debate a respeito da atuação do psicólogo na Educação, oferecendo oportunidade para reflexões sobre as diferentes práticas adotadas.
A partir daí, surgiram algumas questões que nos propusemos verificar através desta pesquisa: quais os modelos teóricos e práticos que os psicólogos que atuam na área da Educação no Estado de São Paulo, em especial na região de Assis, vêm adotando? Que influência a promulgação da nova LDB/96 e a conseqüente municipalização dos sistemas de ensino tiveram sobre o trabalho para o psicólogo? Estaria a Psicologia, hoje, atendendo às necessidades da sociedade ou ainda estaria restrita a alguns segmentos sociais e a algumas práticas específicas?
Considerando a amplitude da subsede de Assis, que comporta 104 cidades, propusemo-nos entrevistar uma amostra desse segmento, particularmente aqueles psicólogos que freqüentavam as reuniões da Comissão de Educação das quais participamos. Após o primeiro levantamento de dados na própria subsede, verificamos que apenas 08 (oito) municípios possuíam psicólogos vinculados, de alguma forma, à Secretaria de Educação. Definimos, então que a nossa amostra seria constituída por esses psicólogos, na verdade psicólogas.
Com uma abordagem predominantemente qualitativa, utilizamos a técnica de entrevista não-diretiva, buscando compreend er como os psicólogos representam suas práticas no campo da educação, práticas estas que, ao serem definidas pelos psicólogos, também configuram sua condição de profissional da Psicologia.
Para análise das entrevistas, concebemos o discurso na perspectiva proposta por Orlandi (2000)2. Para proceder a uma análise de discurso é preciso, inicialmente, conforme esta abordagem, constituir um "corpus", delimitando um texto em um contexto discursivo. O nosso "texto" - entrevistas das psicólogas sobre suas práticas - situa-se em um "contexto" que também nos inclui. Nesse sentido, buscamos trazer os componentes da constituição da categoria profissional dos psicólogos da Educação, tanto em um contexto histórico situado em um tempo e um espaço determinado, quanto na representação subjetiva de nossas entrevistadas; contexto e representação dos quais também fazemos parte.
Texto e Contexto no Trabalho dos Psicólogos: refletindo sobre alguns aspectos dos discursos e das instituições em que trabalham os psicólogos da edudação da região de Assis
O Conselho Regional de Psicologia - 6ª Região - Subsede de Assis
Criados em 1971, o Conselho Federal de Psicologia e os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) passaram a funcionar efetivamente em 1973 e 1974, respectivamente, com a incumbência de orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de psicólogo. Os Estados de São Paulo e Mato Grosso ficaram sob a responsabilidade do CRP 6ª Região3.
Em 1977, o CRP da 6ª Região propôs a criação de representações nos locais em que a concentração de psicólogos fosse maior. Assim, em 1979 foram instaladas as Delegacias nos Municípios de Assis, Bauru, Campinas, Lorena, Ribeirão Preto e Santos. A subsede de Assis foi fundada em 18 de agosto de 1979, conforme o "Termo de Instalação" encontrado na própria subsede.
Com o objetivo de estimular a organização profissional, através de discussões a respeito da profissão em seus respectivos campos de atuação, foram criadas as Comissões Temáticas, no início da década de oitenta:
Até 1980, o CRP-06 funcionou com base somente nas comissões "oficiais" com as de Divulgação, Fiscalização, Ética e Diretoria. Depois foram criadas novas comissões, diversificando as existentes, como as de Saúde, Educação, Trabalho, Trânsito etc. Além de estarem incluídos os conselheiros, foram convidados outros psicólogos para trabalharem junto nestas comissões, chamadas "extras oficiais"4.
A Comissão de Educação da subsede de Assis, criada em 1999, contou - durante o ano de 2000 - com a participação de vários psicólogos dessa cidade e de algumas cidades da região. Com reuniões mensais, abriu-se um espaço para compartilhar experiências sobre a atuação profissional, as demandas recebidas, a situação funcional e a formação acadêmica. Nesses momentos, esses profissionais também expuseram suas angústias decorrentes das pressões advindas tanto da comunidade atendida, quanto dos órgãos dirigentes das prefeituras municipais.
Essa troca de experiência constituiu-se em um material rico a ser explorado, pois trazia elementos da história profissional e pessoal de cada psicólogo que ali participava e, conseqüentemente, de uma parte da história desta profissão.
Os Municípios de onde os psicólogos falaram:
Esses municípios localizam-se a oeste do Estado de São Paulo, vários deles fazem divisas com os Estado do Paraná e do Mato Grosso do Sul e são acesso natural aos países que compõem o Mercosul, especialmente Argentina, Paraguai e Uruguai. Em geral, as cidades - com população variando entre 3 mil e 200 mil habitantes - desenvolveram-se a partir das lavouras cafeeiras, impulsionadas pela expansão da estrada de ferro. Possuem uma economia diversificada, que varia da agricultura (basicamente de cana-de-açúcar, soja e milho), pecuária de corte e indústria (especialmente de gêneros alimentícios), ao comércio e turismo.
Vale ressaltar que nesta região concentram-se três faculdades de Psicologia - Universidade de Marília, Universidade do Oeste Paulista, Universidade Estadual Paulista - duas particulares e uma pública, oferecendo por ano cerca de 360 vagas.
Dos municípios que participaram da pesquisa, apenas dois tinham realizado concurso para provimento do cargo de psicólogo na Educação, uma psicóloga havia sido contratada em caráter temporário e as demais eram psicólogas transferidas da Saúde.
Em relação ao processo de municipalização da educação, verificou-se que todos os municípios já assumiram a manutenção e o gerenciamento da educação infantil. A maioria deles também responde pelo ensino fundamental, alguns até a 4ª série, outros até a 8ª série.
As psicólogas5: formação e inserção no serviço público.
Das 08 psicólogas entrevistadas, 04 (quatro) atuavam na Secretaria da Educação, embora tivessem realizado concurso para o Setor da Saúde; 03 (três) eram profissionais da Saúde com ações na área da Educação e somente uma delas era psicóloga contratada especialmente para atuar na Educação.
Quanto à formação acadêmica, cinco psicólogas foram alunas de universidade pública, especificamente a UNESP - Campus de Assis - e três formaram-se em faculdades particulares: UNIMAR, UNIMEP/São Bernardo do Campo e Faculdade Objetivo/ São Paulo.
De um modo geral, as psicólogas entrevistadas consideraram que a ênfase da sua formação tinha sido na área clínica, tanto no que se referia aos aspectos teóricos, como nas práticas desenvolvidas nos estágios. Acreditavam que a faculdade não tinha oferecido uma formação adequada que as preparasse para trabalhar com a realidade social e demandas vivenciadas na prática. Consideraram que na sua formação faltaram conteúdos referentes às políticas públicas de Educação e Saúde, trabalhos institucionais voltados para perspectiva de prevenção e experiência em pesquisa, através de projetos de iniciação científica.
Referindo-se especificamente à formação em Psicologia Escolar, várias psicólogas falaram sobre o desinteresse por esta área durante a graduação e, também, sobre a falta de uma formação mais adequada que oferecesse subsídios para atuarem na Educação.
Se a graduação não preparou as psicólogas para atuarem na educação, ao verificarmos as especializações realizadas por elas - psicoterapia breve, psicope-dagogia, ludoterapia, saúde pública, educação especial - em pós-graduação lato sensu, constatamos que continuam voltadas para área clínica, visto que apenas uma direciona-se para especialidade pedagógica, como é o caso da educação especial. Vale ressaltar que os cursos de especialização na área de psicologia educacional/escolar são oferecidos em número reduzido quando comparados aos voltados para as outras áreas de atuação da Psicologia.
As práticas profissionais anteriores.
Os resultados de nossa pesquisa revelam que, quase sempre, é na área da Saúde a primeira experiência de trabalho do psicólogo recém-formado, seja com a inserção do profissional em instituições públicas ou privadas já estabelecidas, como Centros de Saúde e Ambulatórios de Saúde Mental, seja através da iniciativa dos próprios psicólogos em abrir um consultório particular.
Trabalhos em escolas especiais da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - APAE - e em creches filantrópicas também comparecem, entretanto quase sempre de caráter voluntário ou de baixíssima remuneração, oferecendo ao psicólogo iniciante tão somente a oportunidade de exercitar-se, enquanto não consegue outras oportunidades profissionais mais vantajosas.
Pereira (1997) considera que o fato de os psicólogos atuarem, em sua grande maioria, na área clínica, não significa que esta seja o campo de atuação de maior interesse profissional, mas retrata, de certa forma, que é visto como a área com maior oportunidades de ocupação.
As práticas profissionais atualmente implementadas pelos psicólogos nas Secretarias Municipais.
As práticas desenvolvidas pelos psicólogos entrevistados estão diretamente relacionadas às demandas oriundas das diferentes áreas a que estão vinculados estes profissionais. O processo de municipalização, para aqueles que atuam junto às Secretarias Municipais de Educação, constituiu-se em um elemento importante para determinar as demandas e a forma como psicólogo vem respondendo a elas.
Conseqüentemente, as ações desenvolvidas pelas nossas depoentes estão predominantemente direcionadas para o ensino básico. Entretanto, até bem recentemente, os psicólogos recebiam demandas oriundas somente das crianças de creches e pré-escola. Com a inclusão do ensino fundamental nos sistemas municipais de educação, modifica-se o tipo de problema encaminhado aos psicólogos: intensifica-se a pressão para que o psicólogo dê respostas e soluções para os graves problemas escolares herdados do ensino público estadual.
O município, ao assumir a responsabilidade pela escolarização básica, tal como recomenda a LDB de 1996, herda os problemas que de há muito padecia o sistema estadual de ensino. Não é surpreendente, portanto, verificarmos que as principais demandas referem-se às dificuldades de aprendizagem e aos problemas de comportamento dos alunos, especialmente daqueles que freqüentam o ensino fundamental.
Na urgência em encampar o ensino fundamental, como forma de garantir um aporte maior de recursos - agora regulamentados pela Lei 9.424 de dezembro de 1996, que instituiu o chamado Fundão -, a Secretaria de Educação de alguns municípios realizou verdadeiros crimes pedagógicos. Organizaram classes de 1ª série do ensino fundamental com crianças que freqüentavam diferentes níveis da educação infantil, tendo a idade cronológica como único critério. Além disso, a essas turmas foram designados professores despreparados. Eram profissionais que, embora tivessem formação compatível ao cargo, nunca haviam lecionado para as séries iniciais. Tal situação muito contribuiu para o aumento dos problemas escolares encaminhados aos psicólogos municipais.
Assim, em nossa região, podemos considerar que a promulgação da LDB, e a conseqüente municipalização do sistema de ensino, teve influência direta na mudança da demanda encaminhada aos psicólogos, que passaram a lidar com "as dificuldades de aprendizagem e problemas na alfabetização". O chamado "fracasso escolar" passou a ser objeto de reflexão e alvo das práticas implementadas pelas psicólogas que entrevistamos.
Por esta razão, as concepções sobre o fracasso escolar que essas profissionais possuem bem como as práticas que desenvolvem para responderem à demanda a elas encaminhada constituem uma questão essencial a ser considerada.
Na Secretaria da Saúde ou na Educação, ou onde quer que os psicólogos atuem no atendimento às queixas escolares, a compreensão dos problemas escolares define os diversos padrões de ação profissional, que podem variar, no caso das psicólogas entrevistadas, de um atendimento psicológico individual a uma ação mais integrada nas instituições de educação.
A análise das queixas escolares, para além da busca nos processos psico-lógicos individuais, que considere o contexto escolar - quase sempre insuficiente para uma aprendizagem adequada - é o diferencial nas práticas implementadas.
A partir dos depoimentos sobre as práticas que vêm sendo desenvolvidas por essas psicólogas, foi possível classificá-las de duas formas apresentadas a seguir.
Práticas Psicológicas Tradicionais.
Designamos de práticas psicológicas tradicionais aquelas voltadas diretamente às crianças, caracterizadas por atendimento clínico individual e/ou em grupo e por tratamento ludoterápico a partir de uma visão acrítica das queixas recebidas. Mais do que o modo de atendimento, o que caracteriza essas práticas é a concepção que os psicólogos têm sobre a queixa escolar. Assim, mesmo um atendimento grupal na escola pode ter uma ação segregadora da criança com dificuldades escolares, se essa prática não questiona a construção da queixa produzida no ambiente escolar.
Alguns psicólogos relataram que buscavam, em suas ações diagnósticas e terapêuticas, envolver o agente de encaminhamento - geralmente o professor - por meio de formulários sobre a criança, que deveriam precisar mais claramente o que estava acontecendo e qual o melhor procedimento a ser adotado.
Podemos compreender que, ao tentar implicar o professor e/ou os pais no encaminhamento de uma criança com queixa escolar, o psicólogo esteja buscando uma revisão do problema apresentado a partir desses adultos, possivelmente co-responsáveis na produção dessas dificuldades. Entretanto, quando analisamos a seqüência do atendimento, temos que concluir que vence a visão de mundo que culpabiliza a criança que fracassa. Com ela parece fracassar o psicólogo que, mesmo acreditando que a "dificuldade é mesmo a escola", continua atendendo somente a criança.
Práticas Psicológicas Compartilhadas.
Consideramos práticas psicológicas compartilhadas as que visavam a intervir no contexto escolar e social, buscando responder as queixas, não apenas no âmbito de uma ação psicológica sobre a criança vitimizada dessa situação, mas com ações mais gerais voltadas para modificações no ambiente escolar, em parceria com outros adultos envolvidos no processo educacional. Referimo-nos a ações que partiram de uma reflexão crítica das queixas apresentadas e buscaram saídas em conjunto com outros profissionais, explicitando os mecanismos sociais que determinam as condições dos indivíduos.
Nesse sentido, algumas psicólogas entrevistadas destacaram suas parcerias com o Conselho Tutelar, órgão que recorre com freqüência ao trabalho do psicólogo, nos diversos setores a que está vinculado. Via de regra, as ações psicológicas, com uma perspectiva preventiva, compartilhadas por diversos profissionais, têm sido mais viáveis aos psicólogos que atuam na Educação6. Pelos relatos encontrados, há uma indicação de que estar atuando na Educação dá mais mobilidade ao psicólogo para ações que extrapolem o modelo terapeuta/paciente de atendimento psicológico. Entretanto, a prioridade tem sido para o atendimento ambulatorial com freqüentes transferências de psicólogos da Educação para a Saúde. Ao mudarem de área, esses psicólogos tendem a lidar com a criança que já "adquiriu" o problema, isentando a escola e as outras instâncias sociais de qualquer participação na produção do fracasso escolar. Desta forma, predomina a perspectiva da psicologia clínica tradicional patologizante.
As psicólogas depoentes desta pesquisa relataram alguns trabalhos que vêm sendo desenvolvidos em equipes de profissionais. Com isto demonstraram os limites da Psicologia e a necessidade de integração das áreas profissionais e de conhecimento para reversão de problemas de exclusão social, especialmente aqueles ocorridos no contexto escolar. São trabalhos que compreendem a multi-determinação dos problemas que incidem sobre os indivíduos no plano psicológico.
Situações de trabalho integrado não são as mais freqüentes na amostra pesquisada. Essas experiências, com raras exceções, quase sempre são trunca-das com mudanças administrativas que, premidas por demandas diversas para a Saúde, deslocam os psicólogos da Educação para o atendimento emergencial nos Ambulatórios de Saúde Mental.
Tudo indica que, a despeito da importância dada a uma ação psicológica mais compartilhada, esta não tem conseguido ser implementada por um período mais longo; quase sempre tem ficado ao plano do desejo, do idealizado. Ao se referirem a essas práticas, as psicólogas entrevistadas sempre colocavam os verbos no passado ou no futuro, como algo perdido ou uma meta a ser alcançada. O que fica para ser discutido são os motivos que vêm impedindo que essas ações se mantenham ou se concretizem.
As psicólogas atestam que nem sempre têm autonomia para definir as ações que consideram mais relevantes, pois há entraves: limites institucionais, administrativos ou mesmo políticos condicionam as práticas psicológicas, levando os profissionais a sentimentos de impotência e frustração. Além dessas questões, é possível que a formação mais clinicalista determine a tendência mais individualizante das práticas apresentadas por essas psicólogas, refletindo uma bagagem teórico-prática, que inviabiliza a estruturação de projetos voltados para uma atuação mais crítica, que atinja as instituições como um todo.
A vinculação dos psicólogos à Secretaria da Saúde, com uma grande demanda de encaminhamentos de pacientes com problemas diversos, bem como a concepção sobre os problemas de aprendizagem, como decorrentes de limites individuais, vêm dificultando uma ação profissional que possa evitar que problemas escolares sejam considerados como distúrbios no desenvolvimento dos alunos e encaminhados para tratamento de saúde mental.
Com esta pesquisa verificamos que ações da Psicologia, em nossa região, ainda estão longe de contribuir para a mudança do quadro de produção do fracasso escolar de crianças oriundas das camadas mais pobres da população. Essa situação decorre de práticas que nem sempre consideram o contexto político-administrativo, tanto na determinação das condições de cidadania quanto na produção dos "problemas" sociais.
As práticas, implementadas pelos psicólogos que compuseram o universo de nossa pesquisa, estão basicamente condicionadas a dois fatores.
O primeiro, e talvez o mais determinante, refere-se à subordinação a que são colocados os profissionais da Psicologia em relação ao modelo político-ideológico adotado pela gestão municipal a que estão vinculadas. As administrações têm buscado no psicólogo da Educação uma ação a mais que "harmonize" os conflitos sociais, através da contenção de tensões originadas na escola. Como essas "tensões" não são originadas no plano psicológico, nem são efeitos exclusivamente psicológicos, o trabalho do profissional de Psicologia requer uma intervenção integrada que quase sempre as administrações não estão dispostas a assumir, resultando, inevitavelmente, em sua ineficácia. Dessa maneira, os psicólogos sentem-se incapazes, frustrados, desprestigiados e até mesmo isolados em relação aos psicólogos que atuam na área da Saúde que, de uma certa forma, conseguem corresponder às expectativas em relação ao seu trabalho.
O sentimento de impotência decorrente dessa situação tem levado os profissionais da Psicologia até mesmo a uma revisão do setor a que estão vinculados. Por iniciativa individual ou por reestruturação das Secretarias, têm sido freqüentes as transferências de psicólogos das Secretarias da Educação para as Secretarias da Saúde. Carregados de insatisfação e fracasso, alguns psicólogos refugiam-se na área da Saúde, onde as práticas são mais claramente definidas, e passam a atender as "filas" de clientes encaminhados, em sua grande maioria, pelas escolas.
Na nossa opinião, os Conselhos Regionais de Psicologia poderão contribuir para a revisão deste contexto através do fortalecimento das Comissões e dos grupos de estudos já constituídos nas subsedes. Esse espaço de reflexão, menos demarcado por pressões políticas partidárias a que estão submetidos os psicólogos em seus locais de trabalho, poderia ser um locus para pensar a contribuição que a Psicologia vem oferecendo na construção da sociedade. Evidentemente, este espaço não substitui a participação nas diversas instâncias a que o psicólogo, enquanto cidadão, se vê envolvido; entretanto, abre possibilidades para fortalecimento de posições que permitam transformações sociais. Portanto, destacamos como necessário que o profissional da Psicologia que atua na educação busque caminhos que considerem as crianças não como pacientes, sujeitos, repetentes e tantas outras denominações que revelam limites e exclusões, mas como indivíduos que possam encontrar na escola um local de crescimento, dignidade e respeito humano.
O segundo aspecto que determina a forma de trabalho desenvolvido pelos profissionais da Psicologia, conforme pudemos verificar, refere-se à formação acadêmica recebida. Os depoimentos indicam um interesse inicial, que se manteve durante todo o curso de formação, pela área da psicologia clínica que condicionou - por uma iniciativa do futuro psicólogo ou por uma fragilidade do próprio curso, aqui não é possível distinguir - uma formação mais clinicalista, distanciada da realidade das políticas públicas de Educação e Saúde, que subordinam o trabalho da Psicologia. Os psicólogos atestam ainda que os cursos de formação não abordaram aspectos importantes para a prática profissional, tais como aqueles voltados para uma ação institucional, para uma prática mais preventiva na saúde mental e para a investigação científica visando à construção de novos saberes psicológicos.
Considerações finais
A partir dos resultados desta pesquisa - especialmente os obtidos por meio dos depoimentos dos psicólogos que atuam na área da educação das prefeituras municipais da região de Assis - retomamos duas mudanças que se configuram como fundamentais.
A primeira delas refere-se à necessidade de promover uma revisão na formação do psicólogo, a fim de prepará-lo para atuar em políticas públicas, através de uma formação teórica consistente e de experiências práticas em estágios que lhe permitam compreender e atuar junto ao contexto social que irá trabalhar enquanto profissional. A segunda - mas não menos importante - diz respeito à busca de novas formas de flexibilizar a subordinação a que são submetidos os profissionais da psicologia em relação ao modelo político ideológico adotado pela gestão municipal em que atuam, garantindo maior autonomia para uma psicologia que efetivamente venha atender a população que a ela recorre.
Essas mudanças revestem-se de maior seriedade para aqueles que entendem, como nós, que o objetivo da psicologia é contribuir para uma sociedade menos excludente, e que o psicólogo engajado na Educação deve buscar - juntamente com os demais profissionais envolvidos - o desenvolvimento de condições para que os alunos possam encontrar na escola um espaço plural de respeito à cidadania.
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Beatriz Belluzzo Brando Cunha
Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Assis
Rua Capitão Francisco Rodrigues Garcia, 274
19800-130 Assis - SP
14055-140 Ribeirão Preto - SP
E-mail: biabrc@assis.unesp.br
Rua Antonio José Ribeiro, 784
19800-000 Assis - SP
gbetini@zipmail.com.br
Aprovado em 23/11/02
** Psicóloga da Prefeitura Municipal de Florínea
1 Esta lei estabelecia ainda que a União nunca aplicaria menos de 13% e os Estados e Distrito Federal empregariam no mínimo 25% das receitas de impostos na manutenção e no desenvolvimento do ensino.
2 Orlandi utiliza a Teoria Pêcheux, segundo a qual o discurso é efeito de sentido entre interlocutores. Assim, o sentido não está alocado no psicólogo que entrevistamos, mas é produzido nas relações que este estabelece com seus pares, com os sujeitos com os quais atua, e nas relações de sentido que são ai estabelecidas (ver Orlandi, 1997).
3 Uma profissão chamada Psicologia. Conselho Regional de Psicologia, 6a região, 1994.
4 Jornal do CRP-06, s/d (meados de 1997) "Como se constrói a nossa história?" In: Uma profissão chamada Psicologia. Conselho de Psicologia, 6a Região, 1994.
5 Apenas psicólogas participaram das entrevistas, apesar de alguns municípios contarem psicólogos atuando na área da Educação. De qualquer forma, em sua maioria são profissionais do sexo feminino.
6 Embora atualmente na área da Saúde diversas experiências inovadoras venham sendo implementadas com sucesso, esta parece não ser a situação de nossa região.