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Psicologia: ciência e profissão

 ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.23 n.3 Brasília set. 2003

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre a atuação do(a) psicólogo(a) em contextos de escolarização formal1

 

Some considerations on the psychological practice in formal education contexts

 

 

Andréa Vieira Zanella*

Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto apresenta reflexões sobre a atuação do(a) psicólogo(a) em contextos escolares a partir da análise dos múltiplos sentidos para a relação deste profissional com o contexto e população com a qual trabalha. Dessas reflexões destaca-se, a partir dos aportes teóricos da Psicologia Histórico-Cultural, a delimitação de uma perspectiva de atuação profissional ao mesmo tempo ampla e específica, que requer a crítica constante do lugar social assumido pelo(a) psicólogo(a).

Palavras-chave: Psicologia escolar, Psicologia comunitária, Escola.


ABSTRACT

This text presents reflections on the psychologist's performance within educational contexts from the analysis of multiple senses to the relation of this professional with the context and population with whom he/she works. Whit the support of Historical Cultural theory, is presented a possibility to the psychologist's performance to be ample or specific, and the necessary critics about the social role assumed.

Keywords: Educational psychology, Communitary psychology, School.


 

 

Este texto apresenta reflexões sobre as relações entre escolas, atuações do(a) psicólogo(a) e comunidades2, considerando alguns dos seus múltiplos sentidos. Justifica-se sua pertinência na medida em que cada vez mais se constata a necessidade da reflexão sobre saberes e fazeres, principalmente em um contexto econômico e político como o atual.

O cenário que se apresenta no campo da educação é o de valorização, como foco dos processos de ensinar e aprender, de determinadas competências que atendam à lógica do mercado. Desse modo, com a prevalência do modelo de acumulação flexível na organização da economia mundial (Harvey, 1989), o qual pressupõe trabalhadores polivalentes, criativos, capazes de trabalhar em equipe, enfim, flexíveis, o lema norteador das práticas pedagógicas é o "aprender a aprender" (Duarte, 2000), cuja ênfase recai sobre a busca desenfreada pela informação muitas vezes independente da crítica em relação ao que se aprende e ao próprio modelo proposto.

Em outras palavras, embora aparentemente distante da formação dos trabalhadores do início do século XX, voltada para a qualificação de mão de obra, o que se constata hoje é a capacitação técnica mais uma vez se sobrepondo à formação generalista, ou seja, à formação que se assenta sobre a necessidade imperiosa da reflexão sobre a realidade para a produção de condições e ferramentas que possibilitem sua superação.

Refazer sentidos é condição sine que non nesse processo na medida em que muitos são possíveis, porém alguns se estabilizam - os significados - e, de certo modo, se universalizam, norteando práticas profissionais nem sempre críticas de seus próprios resultados. Para explicitar a diferença entre sentidos e significados quero apresentar um trecho do livro Todos os Nomes, de José Saramago, que já usei em outros momentos mas cuja poesia justifica a repetição:

"... sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é direto, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes que se vão subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista; o sentido de cada palavra parece-me como uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições". (Saramago, 1997, p.135)

Por que trazer esse texto? Para demarcar, em um primeiro momento, a pluralidade de sentidos possíveis para essa parceria que hoje aqui se apresenta como foco de discussão. O significado - sentido que se estabiliza - é, portanto, somente um dentre um fluxo de sentidos, o que demarca a sua condição histórica e, portanto, sua possibilidade de substituição.

Em segundo lugar, resgato Saramago para explicitar de que lugar falo, ou a partir de qual referencial teórico-metodológico, o que restringe certamente o campo dos sentidos e apresenta-se na contramão de alguns significados que ainda circulam e estão presentes nas mais variadas atuações da psicologia.

O lugar de onde falo é o de professora universitária, formadora de futuros psicólogos que acredita, a partir da crítica à Psicologia enquanto ciência e da prática profissional dela derivada, na possibilidade de uma inserção profissional crítica e criativa, eticamente comprometida com a luta pela emancipação humana, o que requer superação das desigualdades sociais e produção de uma sociedade em que a riqueza econômica e cultural socialmente produzida possa ser prerrogativa de todos. A base teórico-metodológica onde essa minha prática se assenta, por sua vez, é a psicologia histórico-cultural, originada com os escritos de Vygotski, a qual procura explicar a constituição social e histórica do psiquismo humano ou, em outras palavras, do próprio sujeito3.

Antes de focar as relações entre escolas, atuações do(a) psicólogo(a) e comunidades, vou falar, ainda que brevemente, sobre cada um desses pólos, para que então as relações possam ser explicitadas e problematizadas.

 

Breves Considerações Sobre Escolas

Escolas são instituições e, enquanto tais, ligadas "...à cultura local, influenciando e sendo influenciadas pelos contextos social, político e econômico nos quais se inscrevem, atravessadas pelo imaginário social, incluindo aí um sistema simbólico próprio" (Nasciutti, 1996, p.103). Rituais característicos, práticas de dominação/subordinação, relações sociais hierarquizadas, valores enfim consonantes com os da sociedade na qual se insere compõem o universo escolar como ao mesmo tempo social e singular.

Social na medida em que traz as marcas da história que o produziu e produz. Em uma perspectiva crítica, porém, apesar do reconhecimento de que atua como agência promotora de exclusão social, a escola é entendida enquanto lócus de produção/socialização/apropriação de conhecimentos historicamente produzidos, o que a caracteriza como instituição singular. Assume, desse modo, importância fundamental em nossa sociedade porque pode possibilitar, aos alunos, o acesso a conhecimentos teoricamente sistematizados, os quais se constituem como importantes ferramentas na medida em que possibilitam relações mediadas, com a realidade, por critérios de análise historicamente produzidos.

Escolas, no entanto, têm assumido e cristalizado determinados sentidos para sua própria existência que a distanciam dessa possibilidade de virem a se constituir como lugares de luta, de instrumentalização teórica que permita a leitura crítica da realidade, o que se objetiva de diferentes formas: nas práticas pedagógicas promotoras de fracasso escolar, nos mecanismos de disciplinamento, na assunção dos conhecimentos veiculados enquanto verdades absolutas e negação de outros saberes que ali transitam, entre outras.

Essas questões têm me levado a abandonar, ainda que temporariamente, a intervenção em instituições escolares propriamente ditas - o que entendo como uma certa forma de resistência ao institucionalismo (conforme Guareschi, 1996), ou seja, à prática de se entender a escola como único lugar de acesso ao conhecimento - e centrar esforços em práticas educativas em diferentes contextos, como por exemplo grupos de professores em encontros de capacitação, reuniões de pais, grupos de trabalhadores em cursos de formação em serviço (Zanella e Pereira, 2001), ou então grupos outros, como de mães de crianças desnutridas (Zanella e Antunes, 2002). Apesar da diversidade de contextos e sujeitos, as atividades que os congrega é comum, ou seja, ensinar e aprender saberes e fazeres diversos, razão que me possibilita afirmar que se tratam de práticas educativas. Por não acontecerem em instituições escolares, a possibilidade de romper com rituais e práticas cristalizadas é de certa forma facilitada, embora continuem a existir e precisem ser igualmente problematizados.

 

Breves Considerações Sobre Comunidades

Comunidade é um conceito complexo, plural, posto que para esta palavra há diversos significados. Vejam bem, não estou falando de sentidos, de direções irradiantes como aponta Saramago. Falo de significados, de sentidos cristalizados e até mesmo antagônicos que a palavra comunidade veicula: audiência, grupo social, população de baixa renda, população a partir da referência geográfica.

Para delimitar o significado que adoto para o conceito de comunidade, resgato a perspectiva marxista do termo, apresentada por Guareschi (1996, p.95): "um tipo de vida em sociedade 'onde todos são chamados pelo nome'. Esse 'ser chamado pelo nome' significa uma vivência em sociedade onde a pessoa, além de possuir um nome próprio, isto é, além de manter sua identidade e singularidade, tem possibilidade de participar, de dizer sua opinião, de manifestar seu pensamento, de ser alguém".

Partindo dessa definição e entendendo a inadequação do uso indiscriminado do conceito de comunidade, posto que na maioria das vezes as relações sociais que caracterizam os grupos referidos enquanto tal distanciam-se sobremaneira dessa forma democrática que o conceito veicula, tenho feito referência às pessoas com quem trabalho como "população investigada" ou "população com a qual se trabalha" (e não para os quais, seguindo discussão proposta por Freire, 1983). Termos, provavelmente, igualmente inadequados, porém mais próximos da realidade, uma vez que se referem a pessoas que estão cada vez mais isoladas, onde laços comunitários têm se dissolvido ou nem mesmo produzido em razão do acirramento da lógica perversa que pauta o viver em nossa sociedade, ou seja, a lógica da dominação/submissão que se assenta na necessidade de acumulação desenfreada.

 

Breves Considerações Sobre a Psicologia

Ciência inaugurada enquanto tal no auge do projeto de modernidade, a psicologia foi profundamente marcada pelos pressupostos desse projeto. Para compreender essa relação é necessário apontar que, "Embora o termo 'moderno' tenha uma história bem mais antiga, o que Habermas (...) chama de projeto de modernidade entrou em foco durante o século XVIII. Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas 'para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas'(...) O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da própria natureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas" (Harvey, 1989, p.23).

A psicologia é, portanto, profundamente marcada por tentativas objetivas de explicação do que se configura como fenômeno psicológico. À ciência oficial, depositária do ideário moderno, contrapunha-se no entanto já em sua origem outras possibilidades para a psicologia (Figueiredo, 1987), cujo reconhecimento resultou na leitura de que há uma "crise" dessa ciência. Entendida enquanto negativa, esforços vêm sendo feitos no sentido de sua superação, geralmente sustentados em argumentos de poder. A crise, no entanto, pode ser entendida em sua positividade, enquanto indicadora do diálogo necessário entre perspectivas diferenciadas que, uma vez travado, pode levar ao desvelamento de suas reais diferenças e o que as fundamenta.

A crise, portanto, nada mais é senão a própria pluralidade da psicologia que, enquanto ciência e profissão, caracteriza-se pela diversidade de orientações teórico-metodológicas e possibilidades de intervenção, diversidade essa que se assenta em projetos políticos que precisam ser explicitados.

 

Voltando à Temática Principal, a Saber, às Relações Entre Escolas, Atuações do(a) Psicólogo(a) e Comunidades

Para pensar as possíveis relações entre escolas, atuações do(a) psicólogo(a) e comunidades, uma pergunta inevitavelmente precisa ser feita: a quem a psicologia presta serviços? Historicamente, em razão das orientações teórico-metodológicas que propõem, direta ou indiretamente, o ajustamento social, a psicologia presta serviços a uma parcela da população, àquela que impõe padrões de normalidade e nestes se enquadra, ainda que sua prática possa estar voltada para pessoas de baixa renda ou grupos denominados minoritários. Isso porque, se não explicitadas em relação aos seus objetivos últimos, as práticas psicológicas que atuam junto a diferentes grupos sociais podem se configurar como práticas assistencialistas, e "O assistencialismo é sempre uma política de exclusão que retro-alimenta a miséria. Ao adotarmos esse modelo como política de assistência social, nada mais fazemos do que encarnar este trem que já vem, que já vem, que já vem..."4 (Ramminger, 2001, p.43).

Possibilidades outras de atuação psicológica, porém, são uma realidade, ainda que a visibilidade destas possa ser menor. Em outras palavras, sentidos outros para as relações entre escolas, atuações do(a) psicólogo(a) e comunidades fervilham aqui e acolá, assumem direções irradiantes e estabilizam-se, ainda que às custas de muita luta para a superação de vários desafios5. Destacarei aqui o que entendo como uma possibilidade de atuação de profissionais da psicologia em contextos educacionais consonante com a perspectiva social crítica, mais especificamente a partir da psicologia histórico-cultural.

Partindo do pressuposto que a constituição do sujeito decorre da apropriação de significações6 via atividades engendradas nas relações sociais (Zanella, 2000), as atividades de ensinar e aprender, sistematizadas ou assistemáticas, deliberadas ou não, são compreendidas como fundamentais na medida em que objetivam e subjetivam os sujeitos que as empreendem. Via atividade semioticamente mediada, ou seja, atividade que veicula/produz significados e sentidos e é portanto significativa para os sujeitos que a empreendem, estabelece-se a relação inexorável com as gerações precedentes e as ferramentas por estas produzidas, o que caracteriza a especificidade histórica e social do gênero humano. Isso porque, no processo de apropriação das significações da atividade, entendidas enquanto objetivações, o sujeito na verdade se apropria da história humana e nesta imprime sua marca. Como esclarece Duarte (2000, p.123), "... uma objetivação é sempre síntese da atividade humana. Daí que, ao se apropriar de uma objetivação, o indivíduo está se relacionando com a história social, ainda que tal relação nunca venha a ser consciente para ele".

Relações sociais constituem-se, portanto, como lócus de produção da própria história humana e seus agentes, território em que a forma pela qual os homens (sujeitos genéricos) organizam o seu viver se expressa e pode ser transformada. Ou seja, as relações sociais configuram-se como território em que significados e sentidos são produzidos, veiculados, transformados e apropriados.

O contexto social em que vivemos expressa, pois, relações sociais historicamente marcadas, as quais se objetivam em todas as esferas, e nas escolas não poderia ser diferente. Não é à toa que muitos estudos vêm denunciando o caráter excludente das práticas educativas ali engendradas (Patto, 1983) e os mecanismos de dominação/ submissão adotados (Guimarães, 1985).

Significados históricos, porém, e, enquanto tal, mutáveis. Eis o que entendo como espaço para as práticas psicológicas, fundamentalmente as que se assentam em uma perspectiva crítica, ou seja, que têm como norte de ação/reflexão o compromisso com a transformação da realidade: repensar as relações sociais entabuladas no contexto educacional, visando redimensioná-las.

Várias são as possibilidades de ação que decorrem dessa premissa: relações professor/alunos, relações alunos/alunos, relações escola/pais ou responsáveis, relações professores/equipe técnico-pedagógica/direção, relações professores/alunos/faxineiras e merendeiras; e tantas outras. Cada eixo desses é marcado por significados historicamente produzidos que delineiam as posturas e ações dos sujeitos em relação, porém que podem, uma vez problematizados, ser re-significados. Em outras palavras, é possível produzir espaços de embate, troca, encontro, confronto, enfim, contextos interpsicológicos em que sentidos outros fluam e possam vir a ser compartilhados, substituindo aqueles que carregam as marcas da sociedade que se quer superar.

O que estamos apontando aqui é uma perspectiva para a intervenção junto à população com a qual se trabalha que se apresenta ao mesmo tempo como ampla e específica, porque o foco de ação pode variar, em decorrência das possibilidades de diálogo que efetivamente podem se concretizar. Possibilidades são produzidas, é certo, porém necessário se faz entender os movimentos e tempos singulares dos sujeitos com os quais se trabalha bem como os próprios, pois do contrário corre-se o risco de obliterar as trocas que sequer foram iniciadas. Nesse sentido, o trabalho em uma instituição pode começar com parceiros distintos, localizados, ou com o coletivo de uma forma geral, a depender das condições encontradas e projetos em curso.

Destacamos também que a intervenção é, ao mesmo tempo que ampla (referindo-se aos possíveis lócus de atuação), específica, pois entendo ser possível, a partir dos pressupostos da psicologia histórico-cultural, delimitar um horizonte para a intervenção psicológica que a singulariza. Psicólogo como profissional da escuta, certamente, como há muito vem sendo demarcado, entendendo escuta tal como apontado por Paulo Freire (1996, p.135), que significa "a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro". A aproximação das idéias de Paulo Freire com as contribuições de Vygotski aqui apresentadas é possível, segundo Bonin (1999), porque apesar das diferenças, há vários pontos em comum nas reflexões dos dois autores.

Escuta, porém, é somente um aspecto da atuação psicológica junto a grupos sociais. No meu entender, essa atuação é mais que isso: vejo o psicólogo como profissional que, juntamente com os muitos outros com os quais trabalha, é responsável pela constituição de espaços interpsicológicos em que sentidos possam fluir, emergir, transitar livremente, onde significados cristalizados sejam problematizados e avaliados quanto à adequação ao projeto político que coletivamente empreendem para, em conjunto, estabilizarem outros sentidos. É responsável, portanto, pela criação de espaços de troca, de diálogo, em que o direito à voz para todos seja uma realidade, bem como o reconhecimento de constituírem-se como agentes da história.

Considerando as contribuições de Vygotski, é possível compreender assim a intervenção do psicólogo como constituindo "zonas de desenvolvimento proximal", entendendo-se ZDP como "...espaço interpsicológico em que os sujeitos em relação estão envolvidos com atividades que demandam colaboração; onde há o embate, a troca, a confrontação ativa e cooperativa de diferentes compreensões a respeito de uma dada situação" (Zanella, 2001, p.112).

Em contextos pedagógicos, onde há um conhecimento reconhecido como científico a ser socializado e apropriado, portanto um significado estável, ainda que histórico, a intervenção do professor consiste em estabilizar sentidos nas relações dialógicas que se aproximem desse significado (Góes, 1997). Na atuação do psicólogo, porém, que busca a reflexão sobre as próprias relações sociais e o que estas produzem/reproduzem, o elemento balizador das discussões é outro: o projeto de sociedade e sujeitos que norteia as ações naquele contexto. Significados, portanto, nesses espaços, necessariamente precisam ser polemizados.

A especificidade da atuação do psicólogo poderia ainda assim ser questionada, posto que outros profissionais atuam nessa mesma perspectiva. Apesar de reconhecer essa possibilidade, continuo demarcando a atuação psicológica como singular, dada a questão fundamental que norteia a formação desse profissional e lhe garante especificidade, a saber, a constituição do sujeito, entendida como processo em que, via apropriação das significações produzidas e veiculadas nas atividades que engendram, sujeitos em relação se produzem enquanto singulares e, ao mesmo tempo, coletivos7.

Para finalizarmos, quero pontuar uma última questão, não menos importante que as já apresentadas. Ao contrário, creio ser a mais complexa e que demanda maiores esforços por parte dos profissionais da psicologia: o reconhecimento de que quem fala, o faz a partir de um determinado lugar social, sendo seu discurso ouvido pelos muitos outros através da assunção desse lugar. Essa questão é esclarecida por Bakhtin ao se referir à palavra: signo fundamental da comunicação humana, o que se ouve "...variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.)" (Bakhtin, 1995, p.112).

Depreende-se daí que as relações sociais que o psicólogo de certa forma procura "suspender" com o objetivo de serem re-significadas pelos sujeitos que a produzem e ali se produzem8, precisam igualmente ser analisadas sob o prisma das próprias relações travadas com as pessoas com as quais esse psicólogo pretende dialogar. Isso porque o lugar de técnico, que carrega as marcas da história como foi instituído9 e vem sendo ocupado, demarca possibilidades e limites para os diálogos. A título de exemplo, é possível afirmar que posturas que legitimam o saber psicológico e negam outros saberes, originados em vivências cotidianas, apontam para relações de silenciamento da população com a qual se trabalha e, em conseqüência, obliteram as trocas dialógicas. Por outro lado, negar o lugar social diferenciado que o psicólogo ocupa e os saberes que pode, na relação com essas pessoas, socializar, é outro silenciamento que precisa ser superado, posto a dimensão igualmente domesticadora que veicula: não mais a hierarquia pelo saber, mas a negação ao outro do acesso aos conhecimentos historicamente produzidos que, em razão de sua condição social, pôde o psicólogo destes se apropriar ou estes produzir. Essas questões apontam, portanto, para a necessidade imperiosa do próprio lugar social do profissional da psicologia e seu discurso constituírem-se igualmente como foco necessário de reflexão e crítica.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Andréa Vieira Zanella
UFSC - CFH - Psicologia
Campus Trindade
88010-970 Florianópolis - SC

E-mail: azanalla@cfh.ufsc.br

Recebido em 19/09/01
Aprovado em 23/03/03

 

 

* Professora-Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre e Doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq
1 Essas reflexões foram apresentadas à comunidade acadêmica do curso de Psicologia da ULBRA-Torres, no seminário Psicologia e Comunidade: (re)fazendo o sentido da parceria, em maio de 2001.
2 A utilização do tempo plural nesses conceitos consiste em recurso para demarcar sua dimensão histórica e contextual, ainda que organizados a partir da lógica da sociedade em que se inserem.
3 Essa questão vem sendo discutida por vários autores, entre eles Smolka, Góes & Pino (1998), Zanella, Balbinot & Pereira (2000); Zanella (2000).
4 Nesse final de parágrafo a autora faz alusão à música Pedro Pedreiro, de Chico Buarque de Holanda, a qual aponta uma característica de quem convive com a pobreza, a saber, a espera.
5 Discussão a respeito das lutas e desafios enfrentados pela Psicologia Comunitária no Brasil é apresentada por Freitas (1999).
6 "A significação refere-se a "o que as coisas querem dizer", aquilo que alguma coisa significa. Como as coisas não significam por si só e nem tão pouco significam a mesma coisa para indivíduos diferentes, depreende-se que a significação é fenômeno das interações, sendo, pois, social e historicamente produzida" (Zanella, 1997, p.58).
7 Sobre essa questão vide Zanella, Balbinot e Pereira, 2000, Zanella, 2000, e outros.
8 Ao falar em relações sociais produzidas por sujeitos que ali se produzem, demarcamos a constituição do sujeito, de suas características singulares, como inexoravelmente relacional. Nesse sentido, é via relação com outros que o eu se produz, sendo ao mesmo tempo produtor desses muitos outros com os quais se relaciona (discussão mais aprofundada a esse respeito encontra-se em Zanella, 2000).
9 Discussão a respeito dessa questão encontra-se em Coimbra, 1990.