Psicologia: ciência e profissão
ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.23 n.3 Brasília set. 2003
ARTIGOS
Saúde das professoras das séries iniciais: o que o gênero tem a ver com isso?
Elementary school teachers' healthy: how is gender related to it?
Maria Juracy Toneli SiqueiraI, 1; Edirê S. Ferreira2
I Universidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Psicologia
RESUMO
Este trabalho caracteriza-se por uma reflexão sobre a saúde das professoras das séries iniciais. Sua origem localiza-se na constatação do chamado absenteísmo neste universo profissional, concretizado pelas faltas reiteradas ao trabalho por motivos de doença. Profissionais dos órgãos gestores, no entanto, atribuem-no à "fuga de sala de aula". Tomando por base uma investigação que tinha como intuito ir ao encontro das professoras para ouvi-las sobre a situação, este texto pretende discutir alguns aspectos envolvidos nessa problemática considerando a relação historicamente estabelecida entre magistério e trabalho feminino.
Palavras-chave: Magistério das séries iniciais, Saúde ocupacional, Gênero.
ABSTRACT
This work is intended to be a reflection on elementary school teachers healthier. Its starting point was the observation of the called absenteeism in this professional universe, for illness reasons. Administration staff, though, attribute it to "classroom escape". Based on an investigation that was intended to listen to the teachers, this text aims to discuss some elements involving this issue, considering the historical relation between elementary education and female work.
Keywords: Elementary school teachers, Occupational health, Gender relations.
Revendo a literatura especializada, pode-se constatar que a preocupação com o tema da identidade entre magistério e trabalho de mulher não é recente. No Brasil, já desde o final da década de 60 do século passado, surgem trabalhos com esta temática (Pereira, 1967, 1969; Gouveia, 1970; Saffioti, 1969). Estes estudos analisam, entre outros aspectos, a história do magistério como possibilidade de educação feminina secundária, sua consolidação como profissão feminina, a constituição de uma hierarquia profissional neste campo através de decisões administrativas e a origem de classe de sua clientela.
Investigações realizadas na década de 80 acrescentaram novos temas e/ou apuraram suas análises (Bruschini, 1978; Novaes, 1984; Mello, 1981, 1984; Barreto, 1980; Ribeiro, 1983; Louro, 1987; entre outros). No entanto, segundo Bruschini e Amado (1988), a maior parte das dissertações e teses realizadas no período de 1975 a 1985 no campo da educação, indicava que, para os pesquisadores, o magistério "é uma profissão neutra do ponto de vista do gênero".
O fato de o magistério no Brasil ser exercido primordialmente por mulheres já está suficientemente destacado e comprovado, desde a década de 70 do século passado (Mello, 1977, 1981; Barreto, 1981; Bruschini, 1985; Novaes, 1981; Bruchini & Amado, 1988; entre inúmeros outros). Esta incidência permitiu Bruschini (1984, 1985, Bruschini & Amado, 1988) caracterizar o magistério como um dos guetos ocupacionais das mulheres. Para esta pesquisadora, são vários os elementos que contribuem para esta situação. Entre eles, ela aponta: a divisão sexual do trabalho como princípio organizador, a predominância feminina no magistério nas regiões menos desenvolvidas, a capacidade de outros setores da economia absorverem ou não as mulheres e a presença do setor público como empregador. Para Novaes (1981), a feminização do magistério está associada à taylorização da educação que, por sua vez, é acompanhada pela burocratização e pela perda de prestígio. Outros estudos (Novaes, 1981; Rosemberg & Amado, 1992; Hypólito, 1997) demonstram, também, a deterioração do salário à medida que aumentou a participação feminina. Por outro lado, há evidências de que o magistério teve a função de estratégia de ascensão social para certas mulheres (Mello, 1981), o que favoreceu sua procura como possibilidade profissional.
A atividade docente, segundo Apple (1995), tem como componentes principais a maternagem e a servidão que, por sua vez, são associadas no imaginário social a uma menor qualificação e a um valor menor do que outros trabalhos. Neste sentido, há uma reedição, neste campo, das hierarquias patriarcais e das divisões horizontal (os ramos e tipos de atividades destinados às mulheres são aqueles que oferecem menores salários e menor prestígio social) e vertical (as mulheres ocupam os cargos e posições de menor poder e prestígio dentre de um mesmo ramo de atividades) do trabalho.
Com efeito, o exercício do magistério das séries iniciais do ensino fundamental caracteriza-se historicamente como uma extensão das atividades domésticas das professoras em seus lares. A própria relação das professoras com seus alunos confunde-se com a relação mãe-filhos. A organização e o funcionamento da escola também possuem características do trabalho doméstico: a organização do trabalho freqüentemente baseada no improviso, o exercício simultâneo de tarefas e funções diferentes, a troca constante de funções (Carvalho, 1995).
Ademais, cabe destacar que o limite entre os universos público e privado das professoras é tênue, sendo que elementos da domesticidade parecem estar sempre presentes modelando o espaço e o funcionamento da escola. Carvalho (1995, p. 411) aponta que a escola de ensino fundamental acaba se constituindo como uma instância de transição nem totalmente pública, nem totalmente privada. Este fato, segundo esta autora, encontra-se relacionado com o processo histórico de exclusão das mulheres da esfera pública.
O trabalho de Carvalho (1995, 1996) é esclarecedor no sentido de mostrar a relação entre a maternagem/trabalho doméstico e a forma como as professoras percebem o trabalho docente, como organizam o tempo e o espaço na escola e como estabelecem relações com os alunos e suas famílias. A maneira como se estrutura o cotidiano do trabalho docente neste contexto parece constituir-se numa bricolagem da dimensão pública e da dimensão privada. Esta bricolagem não se caracteriza apenas pela maioria feminina predominante no campo educacional, nem pela tão bem identificada dupla jornada de trabalho das professoras. A domesticidade na escola engendra relações sociais de tal forma que, muitas vezes, têm-se a impressão de se estar em um ambiente privado e não em uma instituição pública de ensino. São poucos os trabalhos que se preocupam em investigar o trabalho docente sob a ótica da domesticidade. Muito menos, ainda, os que tentam analisar esta relação com questão da saúde da trabalhadora.
Conforme denunciam Aquino, Menezes e Marinho (1995), existia e, em nosso entender, permanece existindo, um desconhecimento generalizado sobre os efeitos do trabalho feminino na saúde da mulher. Segundo estas autoras, este desconhecimento deve-se, ao menos em parte, à invisibilidade do trabalho feminino, uma vez que até bem pouco tempo o trabalho produtivo era considerado masculino, exercido preponderantemente nas indústrias.
Associa-se a isto, o fato das mulheres serem historicamente vistas como mães e, assim, os poucos estudos existentes sobre a saúde da trabalhadora centravam-se nos efeitos nocivos do trabalho sobre o ciclo da reprodução. Uma das conseqüências destes estudos é a legislação protetora da mulher vista como sempre potencialmente grávida. Rattner (1993), em pesquisa bibliográfica sobre a produção científica sobre os efeitos do trabalho na saúde das mulheres, envolvendo os artigos indexados sobre saúde ocupacional publicados entre 1986 e 1993, encontrou apenas 27,4% que mencionavam as palavras women ou female. No Brasil, a situação, se não é igual, é pior, uma vez que a produção científica sobre o tema é fragmentada e dispersa.
Até muito recentemente, o trabalho das mulheres, no Brasil, era visto como complementar na sustentação da família, mesmo que seu salário fosse maior que o dos homens e que estivesse presente desde o início do processo de industrialização no país. As próprias mulheres o concebiam como secundário ou complementar. Isto teve como conseqüência seu caráter intermitente, em geral em atividades de baixa qualificação e baixa remuneração. No entanto, houve uma crescente, acelerada e contínua incorporação das mulheres no mercado de trabalho formal. Esta tendência vem ocorrendo de maneira sistemática na América Latina, nas últimas décadas do século passado (Nash, 1985; Safa, 1987), em decorrência, entre outros aspectos, do empobrecimento geral da população e da conseqüente degradação das condições de vida que colocam em cheque o papel masculino de único provedor da família. Outra hipótese explicativa refere-se a uma possível mudança nos valores relativos ao trabalho feminino, o que poderia apontar uma provável irreversibilidade do fenômeno (Hirata apud Lavinas & Castro, 1990).
Esta inserção, no entanto, continua se dando de forma diferenciada da masculina. A força de trabalho feminina foi particularmente atingida pelo processo de terciarização da economia, concretizado pelo subemprego em atividades de baixa produtividade, baixa remuneração e baixo prestígio (Barroso, 1982). No setor social, por exemplo, que corresponde às atividades da saúde e educação, a participação das mulheres era de 73% (Médici, 1989). Este mesmo estudo de Médici, demonstra que a atividade feminina é marcada por um refluxo no período de maior cuidado e educação dos filhos e pelo regime de tempo parcial, também associado às tarefas domésticas e aos cuidados com a prole. O contingente feminino que trabalha em período integral, por sua vez, não se vê isento da dupla jornada de trabalho (Barroso, 1982; Lavinas & Castro, 1990).
A relação do trabalho feminino na esfera produtiva com o trabalho na esfera da reprodução mantém-se tão presente que, entre os critérios das possíveis escolhas de ramo, turno, e jornada de trabalho, estão aqueles que permitem a conciliação com o cuidado da casa e dos filhos. Para Hirata (apud Lavinas & Castro, 1990), no entanto, apenas o ciclo de vida como explicação desta situação não é suficiente. Cumpre incluir aqui as relações homem-mulher no interior do casal e a importância do salário feminino para a sustentação do grupo familiar. Há que se acrescentar, ainda, o número crescente de mulheres chefes de família que, em 1989, correspondiam a 20,1% das famílias (IBGE, 1992). As mulheres nesta situação, como apontam Valdes e Gomariz (1993), são as mais pobres entre as pobres, encontrando-se, embora em sua maioria no norte/nordeste do país, em todas as regiões.
As ocupações tradicionalmente femininas têm sido negligenciadas como objeto de estudo no campo da saúde ocupacional. O fato destas ocupações terem sido vistas como perfeitamente ajustadas ao feminino através das tarefas de cuidados, parece ter contribuído para uma visão idealizada da profissão que, por sua vez, coloca obstáculos à identificação dos efeitos nocivos de tais atividades sobre a saúde das mulheres.
Segundo Codo (1999), a apatia, a desistência, o desânimo e a impotência diante das dificuldades no trabalho, são alguns dos sentimentos que caracterizam a síndrome de Burnout, que, conforme este pesquisador, consiste em um dos principais problemas de saúde que aflige na atualidade os profissionais encarregados de cuidar (caregivers): principalmente os professores e os profissionais da saúde. A síndrome de Burnout caracteriza-se por uma reação à tensão emocional crônica decorrente de um contato direto e desgastante com outras pessoas, principalmente quando estas possuem problemas e o profissional encarregado de cuidar percebe que em nada pode ajudá-las. Embora não se tome Burnout como referência neste texto, as considerações a seu respeito mostram-se importantes no universo investigado, em especial no que diz respeito às falas das professoras sobre seu trabalho.
A Pesquisa
Com o intuito de investigar melhor o absenteísmo docente na escola de ensino fundamental, lançou-se mão de um percurso de pesquisa que utilizou uma triangulação metodológica. Em sua primeira etapa, buscou caracterizar o universo das professoras das séries iniciais da rede pública de ensino de Florianópolis, selecionadas da população total de docentes segundo os critérios: exercício de classe, docência em uma das quatro séries iniciais do ensino fundamental e pertencimento ao quadro efetivo. Este material foi obtido junto à Secretaria de Educação de Florianópolis. Procedeu-se, então, a uma classificação conforme o nível e o tempo de carreira, o estado civil e a idade, de um total de 150 docentes, efetuando uma análise simples de freqüência e média. Na segunda etapa, analisou-se os prontuários destas docentes que haviam gozado licença para tratamento de saúde, obtendo-se o total de 99. Estes prontuários encontram-se arquivados na Gerência de Saúde do Servidor, órgão responsável pelas licenças dos servidores públicos municipais e estaduais. Aqui também foi realizada uma análise de freqüência e média, com o intuito de verificar as ocorrências dos sintomas e seus respectivos diagnósticos, bem como o número e a duração das licenças gozadas. Na terceira e última etapa, foram entrevistadas nove destas docentes, selecionadas dentre aquelas que apresentavam quadros depressivos em seus prontuários e se dispuseram a participar da pesquisa.
Pode-se constatar, pela análise de prontuários de professoras que tiraram licenças para tratamento de saúde, que as causas mais freqüentes indicadas são (em ordem decrescente): doenças do aparelho respiratório, problemas do aparelho locomotor, problemas de saúde na família e problemas psicológicos e/ou psiquiátricos.
As doenças do aparelho respiratório correspondem a desde simples resfriados até problemas crônicos como amigdalite, laringite, faringite e lesões nas cordas vocais. Os dados obtidos junto aos prontuários indicam que a maioria destes problemas ocorreu fora dos meses de inverno, o que permite associá-los às condições de trabalho que incluem longos períodos em ambientes fechados, a convivência com um grande número de crianças e o uso permanente da fala.
Os problemas do aparelho locomotor abrangem entorses, cervicalgias, lumbago e, principalmente, desvios de coluna. Verificou-se, pela análise do material, que estes problemas possuem uma relação direta com o tempo de serviço das professoras, ou seja, quanto maior este tempo, mais problemas deste tipo ocorrem.
Já os problemas psicológicos e/ou psiquiátricos correspondem, em sua maior parte, a quadros depressivos e estresse. Estes quadros parecem ter relação com as frustrações profissionais e/ou pessoais associadas às ansiedades decorrentes das tentativas de conciliação impostas pela dupla jornada de trabalho, como pode ser verificado pelas entrevistas realizadas. O médico responsável por este setor, não hesita em responder, quando perguntado sobre os motivos das licenças para tratamento de saúde por parte das professoras: "aqui tem muito caso de neurose, de psicose, de depressão".
Finalmente, constatou-se um número razoável de procura do setor para tratamento de familiares, em geral, filhos. Novamente aparece aqui a função cuidadora da mulher. Se alguém precisa cuidar de um familiar doente ou acompanhá-lo ao médico, certamente será uma mulher.
Há prontuários tão repletos de indicações de licenças, seus diagnósticos e respectivos CID, que salta aos olhos o grande número de períodos fora de sala de aula, muitas vezes pelos mesmos motivos. Chamam a atenção, também, as observações constantes de alguns destes prontuários: "indivíduo simulando doença" e "consulta sem motivo aparente". Parece que não são apenas os encarregados da gestão pública da educação que desconfiam das licenças para tratamento de saúde. Os próprios profissionais da área, muitas vezes, suspeitam das queixas femininas associando-as, com freqüência, à histeria.
As entrevistas, por sua vez, tiveram um caráter semi-estruturado e foram realizadas em locais escolhidos pelos sujeitos. Duraram em média duas horas, tendo sido gravadas. Este material foi submetido a uma análise de conteúdo temática que possibilitou verificar as recorrências intra e interdiscursivas. Foram entrevistadas nove mulheres. As entrevistas obedeciam a um roteiro flexível que se iniciava pelos aspectos mais gerais de ordem demográfica (idade, estado civil, número de filhos, nível de escolaridade, nível e tempo de carreira, unidade de lotação). Seguiam-se blocos temáticos: trabalho, relações familiares e sociais, saúde, lazer.
O discurso acerca de si muitas vezes apresentava enunciados sobre o corpo. É certo que o conteúdo discursivo, bem como a sua construção, passam por características da subjetividade de cada pessoa. Chama atenção, entretanto, a maneira problemática como, com freqüência, referem-se ao corpo - o próprio corpo, suas transformações no tempo e no espaço, as relações com outros corpos, suas limitações, suas "patologias", enfim, como percebem este corpo e o vivenciam.
Este relato aparece sistematicamente em tom queixoso, como um lamento, muitas vezes como "colado" a questões relativas às condições de trabalho e à condição feminina. Quando nos aproximamos destas mulheres algumas evidências surgem ao nosso olhar: corpos precocemente envelhecidos, enrijecidos, encurvados, muitas vezes parecendo assexuados, como tendo perdido traços de feminilidade. Além disso, o estresse faz parte do cotidiano destas mulheres. Essas "queixas" podem ser sintetizadas na fala que segue:
"Eu não sei mais se eu consigo distinguir o estresse da depressão. Estresse... Não é normal dizer que o professor não se estressa em uma sala de aula todos os dias oito horas por dia. Só se ele é um superprofessor, né?... Porque eu chego em casa sempre muito cansada. Tu vai até acostumando com o 'tranco' como dizem, mas eu sinto muito de quarta pra quinta, eu sinto que o meu gás tá acabando". (40 anos, solteira, sem filhos, nível superior completo, 16 anos de carreira)
São mulheres que, em sua maioria, cumprem uma jornada de oito horas de trabalho com seus alunos, em classes muitas vezes superlotadas, percebendo um salário aviltante, em condições precárias de atuação e aperfeiçoamento. Relatam histórias que remetem não a uma "dupla jornada de trabalho" como tematizam alguns, mas a uma única jornada de labuta diária, uma vez que o trabalho das professoras das séries iniciais do ensino fundamental freqüentemente toma uma configuração de extensão das lidas diárias em suas próprias casas. As tarefas do magistério, por outro lado, invadem a intimidade de seus lares como a maioria relata. Segundo elas, são, no mínimo, duas horas a mais, por dia, despendidas em correções e preparação de tarefas, sem contar aquelas que ocupam os finais de semana. A opressão aqui mostra sua face, entre outros mecanismos, na sintomatologia expressa no corpo.
Quando perguntadas sobre as dificuldades que enfrentam, surgem aspectos de natureza diversa: os baixos salários e as precárias condições de trabalho, as relações com as famílias dos alunos, as dificuldades em conciliar as necessidades da casa e da própria família com o trabalho, como diz esta professora:. "Meu problema é o excesso de trabalho: em casa e na escola" (31 anos, casada, um filho, nível médio, seis anos de carreira). Conciliar as demandas dos dois âmbitos, incluindo aqui ainda as tentativas de freqüentar cursos de pós-graduação e/ou aperfeiçoamento (que podem permitir ascender degraus na carreira), para muitas é uma tarefa hercúlea que tem como decorrência freqüente a irrupção de sintomas como: ansiedade, distúrbios do sono, dificuldades de concentrar a atenção e falta de apetite.
Algumas relatam que seus companheiros desqualificam sua atividade profissional e não as apóiam. A falta de apoio aparece, também, com relação à escola e às famílias dos alunos. As que permanecem solteiras ou são separadas mencionam, também com freqüência, o sentimento de estarem sós, abandonadas à própria sorte. A solidão parece acompanhá-las, casadas ou não. Algumas relatam as confusões e conflitos interpessoais no trabalho, fazendo referência à rede informal de comunicação que atravessa as unidades de ensino, ou seja, a rede de fofocas. Ressentem-se da falta de solidariedade entre os pares e do ambiente competitivo que, por vezes, instaura-se na escola.
A desqualificação do magistério é percebida por elas e tem decorrências em seu cotidiano. Esta desqualificação aparece não apenas nos aspectos relacionados ao sistema educacional, como baixos salários e condições precárias de trabalho. Queixam-se de algo que atravessa os vários setores da vida social, incluindo os alunos e suas famílias. Não se sentem respeitadas e valorizadas pelo/no que fazem. Esta idéia pode ser sintetizada na seguinte fala: "Bom, isso que eu te disse. É muito difícil tu trabalhares se ninguém liga a mínima para o que tu fazes" (43 anos, casada, dois filhos, nível médio, 21 anos de carreira).
Com relação à escolha pelo magistério, pode-se constatar o que foi encontrado na literatura: não se trata, em muitos casos, de uma escolha propriamente. A seguinte fala retrata bem a situação:
"Eu fui levada ao magistério. Não, eu não escolhi, não foi uma livre escolha. (...) Não que eu não me identifique com a profissão, gosto muito do que faço hoje, mas eu sempre penso assim: não sei se gosto porque só sei fazer isso ou se faço porque gosto. Mesmo assim, não sei" (40 anos, solteira, sem filhos, nível superior completo, 16 anos de carreira).
Após tantos anos de trabalho, fazendo praticamente as mesmas coisas, é compreensível a dificuldade desta mulher em diferenciar aquilo de que gosta, do que faz e está habituada a fazer.
Discussão
Se por um lado não se pode afirmar que as condições do trabalho docente nas série iniciais derivem imediatamente das relações de poder/dominação de gênero, pode-se, no entanto, identificar as interconexões entre inúmeros elementos que compõem estas condições e as relações sociais de dominação e exploração, em especial a dominação masculina. A própria desqualificação do magistério das séries iniciais está atrelada à sua proletarização e à sua delegação às mulheres. A ideologia da maternagem e da domesticidade garantem o caráter de "natural" à associação do magistério neste nível com o trabalho feminino. No entanto, a exploração do trabalho feminino não tem nada de natural. Ela inclui-se nas estratégias de dominação de um mundo organizado sob a ótica masculina. São estas estratégias, por exemplo, que garantem aos homens os postos de comando nos sistemas de ensino, embora a maioria de seus profissionais seja composta por mulheres. Na realidade, este o cenário foi descrito anteriormente por Gatti, Esposito & Silva (1994), embora estas pesquisadoras não tenham atentado para as questões de gênero nele envolvidas.
Importante considerar novamente que as próprias mulheres, muitas vezes, consideram-se incompetentes para ocupar determinados lugares e funções. Para Bourdieu (1995, 1996), existe uma certa constância das estruturas simbólicas sobre as quais se sustentam nossas representações da divisão do trabalho entre os sexos. Tal divisão existe não apenas na materialidade das práticas mas, sobretudo, nas estruturas mentais que organizam a percepção das objetividades materiais.
Essas mulheres, imersas em seus "pequenos mundos" (Heller, 1985), alienadas em uma relação de trabalho que lhes dificulta a construção de uma identidade profissional e a transcendência da esfera privada, exercem atividades que poderiam ser descritas como "cuidar de". O magistério, como profissão feminina, explora as diferenças de gênero socio-historicamente construídas, apoiando-se na indiferenciação entre maternidade e maternagem.
No entanto, a alta incidência de licenças de saúde, as doenças psicossomáticas, os corpos encurvados, marcados, parecem indicadores (sintomas) de que algumas outras características da relação destas mulheres com seu trabalho devam ser perspectivadas. Esses indicadores apontam o corpo como alvo, como talvez o receptáculo das marcas da frustração, da insatisfação, da opressão. Por outro lado, os órgãos gestores e os próprios profissionais de saúde "desconfiam" dos sintomas, atribuindo-os à histeria ou à irresponsabilidade.
Tronto (1997), contesta o significado que geralmente é atribuído aos cuidados sob a perspectiva de gênero. Distingue dois tipos de cuidados: o cuidar com e o cuidar de, partindo do pressuposto de que cuidar implica em responsabilidade e compromisso com relação a algo ou alguém. Cuidar é relacional e a distinção entre cuidar com e cuidar de baseia-se no objeto dos cuidados e na forma de cuidar. "Cuidar com" refere-se a objetos menos concretos e/ou personalizados e a uma maneira mais geral de compromisso. "Cuidar de" refere-se a objetos mais específicos e a maneiras de atender às necessidades de um outro (ou outros) particular.
Em nossas organizações sociais, o "cuidar de" localiza-se no âmbito das famílias ou em profissões que as apóiam ou substituem - no Estado e no mercado. Tronto (1997) considera que as mulheres podem ter sido instadas a "cuidar de" por uma questão de sobrevivência em condições opressivas e não meramente por um atributo biológico, constituindo uma ética mais apropriada numa posição social subordinada, ética esta que inclui uma atitude de "estar atento a" como uma potencialidade possível de ser desenvolvida nestas situações.
É preciso, no entanto, rever e ampliar a compreensão do significado do cuidar de outros, recolocando as questões morais de forma a repensar inclusive como as instituições políticas e sociais configuram as formas de cuidar. Cuidar dos outros não pode implicar em não se cuidar, assim como as mulheres precisam ser cuidadas pelos outros para além de possíveis rótulos oriundos das relações de saber-poder engendradas social e historicamente. Ademais, todos precisam desenvolver a possibilidade de cuidar dos outros, e não apenas as mulheres.
A doença pode ser utilizada para escapar da opressão que as mulheres sofrem como trabalhadoras e esposas. No entanto, a doença engendra novas formas de opressão no campo do domínio médico. Manifestamos nosso descontentamento através da doença, assim como interpretamos as rebeliões como atitudes "doentes". O problema não é nosso corpo, não é a biologia, mas o poder em todas as formas pelas quais nos afeta. Não é a constituição biológica que nos oprime, mas um sistema social baseado na opressão de classe, gênero, etnia/raça e geração, entre tantas outras formas.
Desvendar as especificidades do trabalho das mulheres no Brasil e seu impacto sobre a saúde, num contexto de desemprego, trabalho informal, baixos salários, fragilidade das organizações sociais e sindicais, bem como de relações ainda tradicionais na família e no casamento, onde cabe às mulheres prioritariamente o cuidado da casa e dos filhos, parece tarefa urgente.
Não parece bastar aqui a indicação apenas de elementos de ordem sócio-econômica e administrativa. A compreensão dos significados do trabalho como produtores de subjetividades torna-se imprescindível para o elucidamento do processo de constituição do sujeito nesse universo.
Referências
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Endereço para correspondência
Maria Juracy Toneli Siqueira
Av. César Seara, 192
88040-500 Florianópolis - SC
E-mail: juracy@cfh.ufsc.br
Recebido em 10/10/01
Aprovado em 08/05/03
1 Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano/USP. Professora-adjunta do Departamento de Psicologia/Universidade Federal de Santa Catarina
2Psicóloga, na época da pesquisa foi bolsista de Iniciação Científica/CNPq