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Psicologia: ciência e profissão

 ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.24 n.1 Brasília mar. 2004

 

ARTIGOS

 

Fenomenologia do onírico: a gestalt-terapia e a daseinsanálise1

 

Fenomenology and dreams: gestalt-therapy and deseinsanalysis

 

 

Ívena Pérola do Amaral Santos *

Universidade Paulista-Unip
Universidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto apresenta a gestalt-terapia e a daseinsanálise enquanto abordagens representativas no trabalho clínico com o sonhar humano, tendo como base o método fenomenológico. Traz os conceitos teóricos e as aplicações práticas propostas por ambas. Por fim, traz uma análise das convergências e divergências entre as duas teorias, estabelecendo-se suas distinções e contribuições.

Palavras-chave: Sonho, Gestalt-terapia, Daseinsanálise, Fenomenologia.


ABSTRACT

The text shows the gestalt-therapy and the daseinsanalysis as representative approaches to human dreaming in the clinical practice, using as basis the phenomenological method. It brings up the theoretical concepts and the practical applications proposed by both approaches. Finally, it also presents an analysis of the convergences (similarities) and divergences (differences) of both theories, establishing therefore their distinctions and contributions.

Keywords: Dream, Gestalt-therapy, Daseinsanalysis, Phenomenology


 

 

Desde a Antigüidade, o homem preocupa-se com seus sonhos. O que eles significam? Como compreendê-los?

Temos, com Sigmund Freud, o primeiro tratamento científico-psicológico a respeito desse fenômeno humano. Sua contribuição foi bastante importante para a valorização do sonho como produção humana significativa.

Ainda na vertente analista, que considera o sonhar um produto do inconsciente psíquico, encontramos o desenvolvimento substancial de Carl Gustav Jung sobre o assunto. Não é de nosso interesse adentrar nas suas teorizações ou mesmo nas de Freud, bastando-nos, no momento, citá-los historicamente.

Como uma proposta diferenciada, surge a abordagem fenomenológica, representada primeiramente por Ludwig Binswanger. Mais do que um produto psíquico, o sonhar passa a ser entendido com base na estrutura existencial que compõe o homem enquanto ser humano.

Mais recentemente, encontramos os pensamentos de Fritz Perls, fundador da gestalt-terapia, e de Medard Boss, idealizador da daseinsanálise, que, a partir da utilização do método fenomenológico, traz entendimentos e aplicações práticas em relação ao onírico. Ambas as abordagens compreendem o sonhar como manifestação do próprio existir do sonhador, expressando seu modo de ser no mundo seja em relação consigo mesmo, com os outros ou com os demais entes que o cercam.

É nosso objetivo apresentar a teoria gestáltica e a teoria daseinsanalítica na especificidade da cada uma e nas intersecções que elas acabam por estabelecer entre si, analisando a contribuição que as duas abordagens trouxeram para o entendimento existencial do sonhar humano e sua conseqüente aplicação fenomenológica na prática clínica.

 

Sonho na Gestalt-Terapia

Perls afirma que a gestalt-terapia é uma abordagem existencial por dar importância à existência total da pessoa, sem restringir-se aos sintomas ou à estrutura da personalidade. Diz ele que “a abordagem gestaltista [...] tenta compreender a existência de qualquer evento através do modo como ocorre, [...] procura entender o vir-a-ser pelo como, não o por quê” (Perls, 1980, pp. 29-30).

Segundo Ponciano Ribeiro, a gestalt-terapia mantém o status de abordagem existencial porque, “tanto para o existencialismo, como para a gestalt-terapia, o homem é visto [...] como um ser particular, concreto, com vontade e liberdade pessoais, consciente e responsável. O existencialismo é a expressão de uma experiência individual, singular: trata diretamente da existência humana” (Ribeiro, 1985, p. 32).

Ao considerar a existência total do homem, o gestalt-terapeuta assume como pressuposto fundamental a necessidade de compreender o ser humano enquanto ser-no-mundo, sendo que, em psicoterapia, o enfoque é dado na relação que a pessoa singular estabelece com aquilo que constitui seu mundo circundante.

O conceito de existência total implica o entendimento do existir humano enquanto relação integrada, ou seja, sua ocupação no mundo ocorre de forma que o homem sempre se relacione como-um-todo com os entes mundanos. A sua realidade é sempre uma realidade total, mesmo que sua vivência seja a de uma situação específica, como, por exemplo, estar em uma festa.

Para Perls, os sonhos trazem claramente essa realidade específica do sonhador, e, por essa razão, são “o caminho real para a integração” (Perls, 1977, p. 98). Integração é um importante conceito gestáltico que estabelece a necessidade de o indivíduo harmonizar-se com todas as partes de si mesmo, tornando-se um ser unificado. Os sonhos contribuem fundamentalmente para o reconhecimento das partes que precisam ser integradas.

Segundo Perls, todos os elementos que compõem o sonho, seja uma pessoa, um objeto, um lugar ou uma situação, versam sobre o próprio sonhador. Em outras palavras, cada elemento é um fragmento da personalidade do sonhador. Portanto, a cena onírica é realizada pelo próprio sonhador em uma projeção de si mesmo.

A projeção, outro importante conceito gestáltico, consiste em um mecanismo de defesa tomado por empréstimo da psicanálise freudiana. A gestalt-terapia reconhece a projeção como um mecanismo neurótico, onde a pessoa responsabiliza o meio externo por algo pertencente a ela própria. Na relação consigo mesma, a projeção é utilizada “de modo que nos seja possível negar e não aceitar as partes de nossa personalidade que consideramos difíceis, ou ofensivas ou sem atrativos” (Perls, 1988, p. 50).

Assim, o sonho externaliza os conflitos interiores, produzidos pela alienação de aspectos da personalidade, pela atitude fóbica da pessoa ante a possibilidade de tomada de consciência de si própria. Por essa razão, o sonho mostra-se como uma mensagem velada. “Se fosse uma mensagem direta, você não precisaria sonhar. Então você seria honesto, o que significa que você seria são. Você não pode ser honesto e neurótico ao mesmo tempo”(Perls, 1977, p. 171).

Neste momento, precisamos expor outro importante conceito gestáltico, citado logo mais acima: a tomada de consciência (awareness). Conscientizar-se implica entrar em contato com o que se experiencia aqui e agora, alterando figura e fundo, na busca por um entendimento global a respeito de si mesmo. O aqui-e-agora inclui experiências passadas e projetos futuros vivenciados no presente. Figura e fundo traz as polaridades, tais como os aspectos reconhecidos da personalidade e os que estão dissociados dela. De acordo com Perls, “a total identificação da pessoa consigo própria pode ocorrer se ela estiver disposta a tomar plena responsabilidade [...] pelas suas ações, sentimentos e pensamentos” (Perls, 1980, p. 48).

A importância de se trabalhar com o sonho em terapia está justamente na constatação de que ele se trata de uma mensagem existencial. O conteúdo onírico “diz ao paciente qual é a situação de vida e especialmente como modificar o pesadelo de sua existência, tornando-se consciente e assumindo seu lugar histórico na vida” (Perls, 1977, p. 25). Do que o paciente deve tornar-se consciente são exatamente as suas partes alienadas e projetadas nos elementos do sonho, que correspondem a um potencial ainda desconhecido e que precisa ser desenvolvido para que uma maturidade existencial seja alcançada 2.

Do ponto de vista metodológico, o procedimento gestáltico é fenomenológico. Isso quer dizer que a atuação clínica do gestalt-terapeuta ante o sonhar de seu cliente se dá fenomenologicamente. Caracteriza-se por considerar os eventos humanos não em termos representacionais, mas, sim, enquanto eventos percebidos.

Em fenomenologia, o conceito de intencionalidade é fundamental. Ponciano Ribeiro diz que “é através da intencionalidade que algo se faz, se constitui espontaneamente na consciência” (Ribeiro, 1985, p. 52). Analogamente, Perls coloca que “o sonho é decididamente a nossa criação mais espontânea” (Perls, 1977, p. 98). Podemos concluir, então, que o sonho é a manifestação dos significados atribuídos à própria existência do sonhador, a partir da relação intencional da consciência do sonhador consigo mesmo e com o mundo à sua volta.

Dessa maneira, torna-se inadmissível que o sonho seja interpretado em uma busca infindável de significados do tipo como se, ou seja, algo está presente como se fosse outra coisa, significando algo distinto daquilo que está manifestando. Perls recomenda: “quanto mais nos abstivermos de interferir e de dizer ao paciente como é que ele é ou o que sente, mais oportunidades lhe damos de descobrir-se a si mesmo e não ser desencaminhado por nossos conceitos e projeções” (Perls, 1980, p. 47).

A função do terapeuta passa a ser a de um facilitador, no sentido de que este orientará o paciente na reapropriação de suas características rejeitadas, projetadas para fora de si. O gestalt-terapeuta lança mão de uma técnica, chamada dramatização, em que o sonhador desempenha todos os papéis apresentados em seu sonho. O objetivo dessa técnica é favorecer o contato do sonhador com os elementos do sonho, trazendo-os para o presente por meio da ação.

“Em gestalt-terapia nós não interpretamos sonhos. Fazemos com eles algo muito mais interessante. E em vez de analisar e contar o sonho, nós queremos trazê-lo de volta à vida. E o jeito de trazê-lo de volta à vida é reviver o sonho como se ele estivesse ocorrendo agora. Em vez de contar o sonho como uma estória do passado, encene-o no presente, de modo que você realmente se envolva” (Perls, 1977, p. 101).

Então, o trabalho com sonhos na gestalt-terapia consiste em pedir ao paciente que conte seu sonho no momento presente, como se estivesse acontecendo agora. Depois, o terapeuta escolhe algum elemento do sonho que parece trazer um significado de conflito existencial e pede ao paciente para ser esse elemento, representando-o. Por identificação, o paciente percebe em si mesmo as qualidades daquilo que está representando, reconhecendo-as como qualidades até então fragmentadas de sua própria personalidade.

Em suma, a função do sonho é apontar para aquilo que o indivíduo resiste em si mesmo, manifestando “a dificuldade existencial, a parte da personalidade que está faltando” (Perls, 1977, p. 102) e que o indivíduo aliena em sua vida desperta. A compreensão do sonho promovida pelo gestalt-terapeuta objetiva um encontro do paciente exatamente com aquilo que ele necessita reassimilar. A reassimilação dá-se por um aprendizado proporcionado pela identificação, “e a tomada de consciência é o meio da descoberta” (Perls, 1977, p. 106).

 

Sonho na Daseinsanálise

A compreensão daseinsanalítica do sonhar parte de pressupostos explicitamente existenciais, na medida em que toma a analítica do Dasein 3, de Martin Heidegger, como concepção filosófica do ser humano.

O ser humano é concebido como ser-no-mundo, e isso significa que o homem já já está, desde sempre, em relação com o mundo. Os entes do mundo somente têm possibilidade de tornarem-se presença para o homem, e isso porque o homem é estruturalmente abertura. Em sua abertura, o homem encontra-se com as coisas e com os outros seres, afetando e sendo afetado por tudo. O modo como o homem é afetado revela o significado daquilo com que se encontra.

A existência humana concretiza-se em modos de estar-no-mundo. Na daseinsanálise, o sonhar “deve ser reconhecido como um modo de existência lado a lado com a vida desperta” (Boss, 1979 , p. 27). Boss sustenta que o sonhar assemelha-se aoestado desperto em razão de o sonhador poder intervir ativamente na situação sonhada. Afirma ele que, “assim como a tomada de decisão voluntária concernente a entes caracteriza tanto o estar desperto, quanto o sonhar, qualquer outro modo de comportamento aberto aos seres humanos despertos pode ocorrer também durante o sonhar” (Boss, 1979, p. 180).

A constatação dessta similaridade de experiências possíveis ao sonhador de se relacionar com os entes encontrados remete ao entendimento dos estados do sonhar e do estar desperto como “dois modos diferentes de conduzir a realização da mesma existência humana histórica” (Boss, 1979, p. 185).

Constituindo um modo diferente de a existência manifestar-se, o sonhar apresenta características específicas, ainda que compartilhe da estrutura básica inerente ao Dasein, a saber, a espacialidade, a temporalidade, a afinação, a historicidade e a corporeidade.

A primeira distinção que Boss faz entre o sonhar e a vigília é o “caráter marcadamente distinto do campo de abertura perceptiva e liberdade, aberto e mantido pela existência do sonhador em ambos os estados” (Boss, 1979, p. 191). Em sua análise sobre a natureza do sonhar, Boss depara-se com a estreiteza da abertura realizada no sonhar em oposição à amplidão da abertura presente para o indivíduo desperto.

Na situação onírica, os entes sonhados restringem-se a presenças concretas, ao passo que na vigília há espaço para presenças abstratas, tais como pensamentos ou qualquer outro tipo de produção imaginativa. A qualidade dos entes que surgem na abertura corresponde a uma segunda distinção entre o estado desperto e o sonhar. A temporalidade também diverge: na vigília há relação com o passado, o presente e o futuro, enquanto que a situação onírica desenvolve-se particularmente no presente.

Como terceira distinção, Boss aponta para o fato de que “as significações e o contexto referencial [...] que constituem o nosso mundo onírico se dirigem a nós predominantemente de seres ‘externos’ “ (Boss, 1979, p. 192). Com isso, ele está referindo-se ao fato de que o sonhar, mesmo trazendo uma condição existencial do sonhador, apresenta-se em princípio como um acontecimento estranho ao indivíduo. Ele pode não perceber de início o seu sonho como significações de sua própria relação com o mundo. Em outras palavras, “ao passo que se pode afirmar que a existência onírica é menos aberta do que sua correspondente desperta, com muita freqüência uma pessoa é exposta a significações não familiares pela primeira vez enquanto está sonhando. Naturalmente, as significações que até agora ainda não foram confrontadas na vida desperta tendem a aparecer em sonho, como qualquer significado, vindo apenas de presenças sensoriais de entes” (Boss, 1979, pp. 203-4).

A tarefa do daseinsanalista será exatamente a de convidar o paciente a visualizar essas possibilidades de viver ainda irrealizadas que se apresentam no sonho. Sua atitude terá o caráter fenomenológico, isto é, deverá “deixar que os elementos do mundo do sonho se conservem exatamente como eram quando se revelaram ao sonhador” (Boss, 1979, p. 42). Não promoverá qualquer tipo de interpretação para encontrar um significado latente ao conteúdo manifesto.

Em termos terapêuticos, a atitude do daseinsanalista será a de explorar o sonho na maneira como ele foi sonhado. Primeiramente, o daseinsanalista pede ao sonhador que relate o sonho buscando lembrar-se o mais possível de todos os detalhes. “A meta deve ser compor da maneira mais clara possível uma visão desperta do que realmente foi percebido no sonhar” (Boss, 1979, p. 47).

A partir de então, o procedimento consiste em ver o que surgiu no sonho e o que se ausentou, investigando a afinação com que o sonhador estabeleceu um relacionamento com os entes oníricos. Tal como explica-nos Boss,

“Devemos primeiro considerar exatamente para que fenômenos a existência do sonhador está aberta a ponto de terem penetrado no sonho e se manifestado à luz da sua compreensão. Isto por sua vez, nos conta quais os fenômenos que não são acessíveis à percepção no estado de sonhar, ou, em outras palavras, para a entrada de que fenômenos a existência do sonhador ainda está fechada. Como segundo passo, precisamos determinar como o sonhador se conduz em relação ao que lhe é revelado no seu mundo onírico, particularmente a afinação que determina essa forma de se comportar. Se estas duas coisas puderem ser acuradamente descritas, chegaremos a uma compreensão total da existência do sonhador durante o período de sonho” (Boss, 1979, p. 41).

Essa forma de trabalhar com o sonho leva a uma compreensão do sonhador sobre sua existência pela analogia que ele estabelece entre os acontecimentos oníricos e a situação vivencial que experiencia no desenrolar de sua história biográfica.

“,..os significados trazidos à luz durante a investigação daseinsanalítica de elementos oníricos podem induzir o paciente desperto a visualizar tematicamente todo significado análogo que tenha um lugar na sua vida passada, presente ou futura. Desta maneira, é claro, o conteúdo do sonho pode contribuir de modo importante para o esclarecimento existencial de um indivíduo...” (Boss, 1979, p. 66).

O objetivo do entendimento daseinsanalítico do sonhar no contexto psicoterápico é o de restituir ao paciente “a capacidade de dispor livremente de todas suas possibilidades relacionais, e de escolher de forma responsável qual delas ele levará a cabo, de modo que ele e tudo aquilo que encontra no seu mundo evoluam até a plenitude do seu ser” (Boss, 1979, p. 111). Para isso, o terapeuta convoca o paciente a descobrir o como e o quê das coisas, alcançando maior clareza sobre si mesmo.

 

Convergências e Divergências entre a Gestalt-Terapia e a Daseinsanálise

A principal convergência, a partir da qual se torna possível unir as duas teorias em um único trabalho, é a utilização da compreensão fenomenológica como método de aproximação dos eventos humanos e, no nosso caso em particular, do sonho. A escolha desse método se deve a uma oposição dos dois autores à Psicanálise. Freud preocupou-se em procurar uma causa para a produção onírica, e encontrou-a na presença de desejos inconscientes 4. Perls e Boss não estavam preocupados com a relação causal originadora de qualquer manifestação onírica, mas, sim, com a própria experiência do sonhador. Assim, ambos defendem a idéia que os sonhos não se resumem a um desejo recalcado que necessita ser satisfeito. Freud estabelecia o sentido do sonho por meio de interpretação da cadeia associativa produzida pelo paciente. Segundo Perls, a interpretação não é função do terapeuta, que deve deixá-la a cargo do paciente, pois “acredito que ele saiba mais a respeito de si próprio do que eu tenha qualquer possibilidade de saber” (Perls, 1980, p. 45). Já Boss afirma que “a nossa nova teoria dos sonhos pode ser chamada de abordagem fenomenológica, como oposta às atitudes causais e deterministas, uma vez que se prende estritamente aos fenômenos reais do sonhar” (Boss, 1979, pp. 43-4).

Priorizando a experiência do sonhador, as duas teorias enfatizam a importância de o homem concreto ser em relação, e essa será a questão norteadora do atendimento clínico nessas abordagens. Conseqüentemente, são também coincidentes os objetivos do empreendimento psicoterapêutico, onde, tanto na gestalt-terapia como na daseinsanálise, visa-se à promoção de modos mais livres, mais maduros de o paciente existir, alcançados por maior consciência de si mesmo e pela atualização de suas potencialidades. Há ainda algumas convergências que não foram trabalhadas no decorrer do texto, mas que merecem destaque por sua importância. Uma delas refere-se ao sonho estereotipado. Tanto a gestalt-terapia como a daseinsanálise consideram o sonho estereotipado a manifestação de um entrave no processo de crescimento do paciente. Perls diz que o sonho repetido indica que “existe um problema que não foi terminado ou completado, e, portanto, não pode se retirar para o fundo” (Perls, 1977, p. 127). Boss afirma que “o sonho estereotipado, que resulta de uma interrupção no desenvolvimento do livre acesso às possibilidades existenciais, cessa uma vez que o indivíduo tome suficiente consciência desse fato em sua vida desperta” (Boss, 1979, p. 188).

Outra concordância relaciona-se com o modo como se deve considerar a presença onírica. O sonhador tem um sonho ou é seu próprio sonho? A gestalt-terapia responde a essa pergunta pontuando que dizer que se teve um sonho é o mesmo que transformá-lo em uma coisa. Para que o sonho não seja uma coisa, o sonhador deve sentir-se sendo o seu próprio sonho. Diz Perls que, “cada vez que você transforma um isso em eu, você aumenta a sua vitalidade e o seu potencial” (Perls, 1977, p. 103).

Boss, por sua vez, afirma que “eu só ‘tenho’ sonhos porque eu estou sonhando, porque estou existindo como sonhador” (Boss, 1979, p. 174). De acordo com ele, não é possível termos sonhos porque os sonhos não são algo palpável que se possa ter como se fosse um objeto. O sonhar é inerente à existência humana e o sonho é a experiência desse modo específico de estar-no-mundo.

Enfim, a principal característica que a gestalt-terapia e a daseinsanálise têm em comum está no fato de elas considerarem o sonho mensagem existencial que versa sobre o próprio sonhador, apresentando aspectos passados, presentes e futuros pertencentes à sua história.

Porém, a maneira como cada uma atribui significado a essa mensagem existencial mostra-se diametralmente contrária. Na gestalt-terapia, o sonho é uma projeção do sonhador. Essa idéia é inadmissível na daseinsanálise, pois o sonhar não pode ser uma projeção da vida desperta, já que é um mundo paralelo a esta, análogo a ela. No entendimento daseinsanalítico, os entes dos sonhos evocam possibilidades de existência e de relacionamento do sonhador, mas não representam aspectos da personalidade do sonhador, tal como postula a gestalt-terapia.

É essa referência ao sonhar como mundo paralelo que permite a Boss tomá-lo como presença “unicamente na forma de um passado sonhado que foi presente durante o sonhar agora-passado” (Boss, 1979, p. 176). Ao contrário, a gestalt-terapia esforça-se por trazer a experiência onírica para o presente, visto que é da vivência desperta presente que ela está falando.

Além do mais, a gestalt-terapia considera o conteúdo onírico extremamente rico, visto que ele traz questões que o sonhador tenta evitar em sua vida de vigília. A daseinsanálise já considera o sonhar menos rico, apesar de reconhecer que freqüentemente surgem no estado onírico questões ainda não percebidas na existência desperta do sonhador.

Há ainda uma outra divergência: a relação entre o sonho e a psicose, tema não abordado ao longo desta exposição. A gestalt-terapia estabelece uma semelhança da manifestação onírica com a psicose na medida em que ambos os fenômenos apresentam-se de maneira absurda, porém absolutamente reais para quem os experiencia. Estabelece, no entanto, uma diferença: o sonhador lida com as frustrações surgidas em seu sonho e o psicótico as nega.

Mesmo concordando que a experiência do sonhar é sentida como real e que isso igualmente se dá na experiência do alucinar como sintoma de uma psicose, a afirmação de Boss que “cometemos uma séria injustiça com aquilo que sonhamos se [...] e ncararmos o sonhar como uma alucinação, como já foi historicamente o caso” (Boss, 1979, p. 174), contraria a afirmação de Perls. Todavia, temos de ter a clareza de que, com essa afirmação, Boss está discutindo com Freud5, que igualava o sonho às alucinações, e não com Perls.

Em contrapartida, Perls e Boss têm a idéia concordante de que o entendimento dos sonhos pode contribuir para o entendimento dos sintomas psicóticos. Segundo Perls, “relações entre sonhos e psicoses [...] valem a pena serem investigadas” (Perls, 1977, p. 175). Já para Boss, “a discussão [...] acerca das diferenças entre o sonhar e o estar desperto de um ser humano sadio pode encerrar a base para uma compreensão melhor do tipo de fenômenos patológicos despertos” (Boss, 1979, p. 203).

Além disso, os dois reconhecem a necessidade de se ter “cuidado com os sonhos e sonhadores que não apresentam seres vivos em seus sonhos” (Perls, 1980, p. 46), pois “tais experiências oníricas de dissolução completa e maligna do mundo e de si mesmo ocorrem apenas em pacientes esquizofrênicos” (Boss, 1979, p. 123).

Por fim, não podemos deixar de mencionar que Perls faz uma referência ao esquecimento dos sonhos. Ele atribui um sentido existencial a esse tipo de ausência do sonhar, considerando que “pessoas que não se lembram dos seus sonhos são pessoas fóbicas. E se você se recusa a lembrar-se dos seus sonhos, na realidade você se recusa a encarar a sua existência...a encarar o que há de errado com a sua existência. Você evita lidar com o que é desagradável” (Perls, 1977, p. 167).

Boss não toca no assunto, a não ser em uma discussão sobre a continuidade histórica6 do Dasein, comentando apenas que “mesmo no estado de sono profundo sem sonhos, nós continuamos [...] a reconhecer que somos indivíduos únicos, e que certas coisas em nossos mundos possuem significados específicos. Não fosse assim, nenhum de nós jamais poderia se reorientar ao despertar” (Boss, 1979, p. 189).

Para finalizar, considerando ambas as abordagens do ponto de vista do procedimento terapêutico, a distinção marcante aparece na presença da utilização de técnicas na gestalt-terapia, enquanto que na daseinsanálise essa prática não existe explicitamente e é até condenada. Nesta última, encontramos a clara preocupação em proceder estritamente como preceitua a regra fenomenológica, ou seja, “ater-se apenas àquilo que pode ser realmente observado no comportamento existencial do sonhador com respeito aos entes que lhe aparecem no seu sonhar” (Boss, 1979, p. 56).

A gestalt-terapia faz questão de enfatizar que ela não se resume a aplicações técnicas, e essa posição a mantém enquanto prática fenomenológica, pois a técnica é utilizada como instrumento facilitador na elucidação do sentido que o sonho traz em si mesmo, como fenômeno.

Mas a atitude gestáltica traz, um tipo de vantagem em relação à daseinsanalítica: na atuação gestaltista, a análise daseinsanalítica do sonho pode ser aplicada como mais uma técnica utilizada com o objetivo de revelar o sentido existencial do sonho. Na daseinsanálise, já não é possível fazer o mesmo.

Isso, no entanto, não remete a uma restrição da teoria daseinsanalítica, mas aponta com clareza sua delimitação em termos de fundamento. De certa maneira, a daseinsanálise obriga-se a uma espécie de fidelidade aos seus pressupostos teóricos, quer dizer, à atitude fenomenológica husserliana e à análise existencial heideggeriana,enquanto a origem da gestalt-terapia é mais eclética, tendo como fontes de inspiração a Psicologia da Forma, a teoria do campo, a teoria organísmica, a Psicanálise,a Bioenergética, o existencialismo, o humanismo, a fenomenologia e as religiões orientais.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ívena Pérola do Amaral Santos
SQN 312, Bloco G, apto. 214 - Asa Norte
70765-070 Brasília - DF

Tel: +55-61-340.0577

E-mail: ivena@unb.br

Recebido em 11/02/03
Aprovado em 02/01/04

 

 


* Doutoranda em Psicologia pela UnB/DF. Mestre em Psicologia Clínica pela Puc/SP. Formada em Psicologia Existencial, especializada em gestalt-terapia. professora-adjunta I da Universidade Paulista-Unip e professora-substituta da Universidade de Brasília. Psicoterapeuta.
1 Palestra apresentada no III Encontro de Psicologia Humanista do Interior Paulista, Campinas-SP,em 28/abril/2001, com o título “Abordagem Fenomenológica dos Sonhos: a Gestalt-terapia e a Daseinsanálise” e publicação do resumo do texto no Caderno de Resumos desse evento. Há também uma versão reduzida sobre o assunto publicada no Jornal do Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina, ano IV, no 41, maio de 2001.
2 “Eu defino a maturidade como a transição do apoio ambiental para o auto-apoio. Na gestalt-terapia, a maturidade é alcançada desenvolvendo-se o próprio potencial do indivíduo, diminuindo-se o apoio ambiental, aumentando-se a tolerância à frustração e desmascarando sua representação falsa de papéis infantis e adultos” (Perls, 1977, p. 23).
3 Heidegger, Ser e Tempo, 1927. O termo Dasein é usado por Heidegger para designar a estrutura ontológica do ser humano, ou seja, aquilo que caracteriza o ser do homem. O ser do homem formaliza-se nos modos possíveis do ente homem existir, constituindo sua essência em seu constante ter de ser cotidiano. Assim, está caracterizada a indeterminação do ser humano. Para evitar interpretações indevidas, informamos ainda que o termo Dasein não se iguala a homem, vida, existência ou essência. Dasein é a estrutura que possibilita todos os anteriores. Tampouco é uma propriedade do ser humano, pois configura-se enquanto possibilidade de ser.
4 “O desejo rejeitado pelas instâncias psíquicas superiores (o desejo recalcado do sonho) agita o submundo psíquico (o inconsciente) para se fazer escutar” Freud, 1960. Citado em nota de rodapé à p. 15 de A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1996).
5 Segundo Freud, “um sonho, então, é uma psicose, com todos os absurdos, delírios e ilusões de uma psicose. Uma psicose de curta duração, sem dúvida, inofensiva, até mesmo dotada de uma função útil, introduzida com o consentimento do indivíduo e concluída por um ato de sua vontade” (Freud, 1974, p. 123).
6 Boss baseia-se na perspectiva heideggeriana, onde “a acontecencialidade [historicidade] cotidiana é a dimensão na qual acontece [dá-se] a diferença entre um ser-no-mundo que está sonhando e aquele que está acordado” (Heidegger, 1987, diálogo de 2 de março de 1972, p. 289). A existência humana concretiza-se historicamente, ou seja, o homem concretamente constrói sua biografia. Esta acontece no estado desperto, onde o homem realiza seu ser-no-mundo. Fazem parte da biografia individual os momentos em que se está sonhando, e esses momentos inserem-se na vigília, portanto, na continuidade histórica. O despertar significa o retorno ao mesmo (mesmidade do mundo) deixado ao dormir, permitindo nossa reorientação.