Psicologia: ciência e profissão
ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.28 n.2 Brasília jun. 2008
ARTIGOS
Sinalizando a adolescência: narrativas de adolescentes surdos
Signing adolescence: narratives of deaf adolescents
Eduardo Scarantti Bremm*; Cláudia Alquati Bisol**
Universidade de Caxias do Sul
RESUMO
Esse trabalho visa a compreender os significados atribuídos à adolescência e às vivências no contexto da surdez, analisando narrativas de adolescentes surdos. Foram desenvolvidas entrevistas narrativas com três adolescentes surdos filhos de pais ouvintes, sinalizadores fluentes em Língua Brasileira de Sinais, que freqüentavam o ensino fundamental de uma escola especial para surdos. As entrevistas foram realizadas em língua de sinais, por uma moderadora surda, em uma sala de espelho, com tradução simultânea realizada por uma intérprete. Os dados foram analisados com base na hermenêutica de Ricoeur e discutidos a partir da psicologia e da psicanálise. Os resultados indicam que muitos conflitos experienciados por adolescentes surdos são similares aos vivenciados pelos ouvintes. As especificidades da surdez dizem respeito à reavaliação de decisões feitas pelos pais e aos níveis de dependência dos ouvintes. Percebem-se diferenças entre os adolescentes e seus contextos familiares quanto à comunicação, ao desenvolvimento emocional e à participação na comunidade surda.
Palavras-chave: Adolescentes surdos, Identidade, Surdez, Narrativas.
ABSTRACT
This study aims at understanding the meanings attributed to adolescence and to life experiences in the context of deafness, analyzing deaf adolescents narratives. Narrative interviews were made with three deaf adolescents whose parents are hearing, fluent users of Brazilian Sign Language, who have attended an elementary special school for the deaf. The interviews were made in sign language by a deaf mediator in a room with a one-way mirror, with simultaneous translation made by an interpreter. Data were analyzed using Ricoeurs hermeneutics and discussed with contributions from psychology and psychoanalysis. Results indicate that many conflicts experienced by the deaf adolescents are similar to those experienced by the hearing adolescents. Specificities regarding deafness refer to reevaluations of the decisions made by their parents and to levels of dependence from hearing people. Differences among teenagers and their family contexts could also be noticed regarding communication, emotional development and participation in the deaf community.
Keywords: Deaf adolescents, Identity, Deafness, Narratives.
A adolescência, em nossa sociedade, tornouse um campo temporal de transformações nas relações de socialização devido à transição entre a infância e o mundo adulto. Esse período convida o adolescente a elaborar seu projeto de vida, através do qual possa construir novos significados acerca de si e do mundo. Nesse momento, é importante que ele ressignifique os papéis que ocupava na infância e que procure novos referenciais além do grupo familiar.
No contexto da surdez, esse processo é posto à prova, já que o adolescente surdo porta uma marca orgânica de diferença em relação aos ouvintes. Se a construção identitária a partir de novos referenciais é uma tarefa central na adolescência, é importante para o adolescente surdo filho de pais ouvintes fazer uma negociação entre os referenciais da família à qual esteve intimamente integrado na infância e da comunidade surda com a qual partilha uma língua e uma condição. Quais os significados que adolescentes surdos filhos de pais ouvintes atribuem à surdez e à adolescência? como se deu a negociação identitária desses adolescentes que tiveram especificidades no processo de reconhecimento de si e do outro nas relações familiares?
Considerando essas questões, este trabalho tem por objetivo compreender os significados que três adolescentes surdos filhos de pais ouvintes atribuem à surdez e à adolescência, partindo de um estudo de narrativas autobiográficas na perspectiva da análise hermenêutica de Paul Ricoeur.
Adolescência
À primeira vista, a adolescência apresentase como um processo que se dá no âmbito corporal, vinculado às mudanças biológicas e fisiológicas. O corpo adquire um estado e capacidades diferentes da infância, o que possibilita um novo estatuto cognitivo, físico e sexual. Esse corpo que se transforma passa a congregar novas e distintas possibilidades, distanciando o adolescente da condição infantil de outrora. Denomina-se puberdade esse conjunto de transformações esperadas no desenvolvimento biológico do ser humano. Aos 12 ou 13 anos, por exemplo, a puberdade caracteriza-se por um rápido aumento da massa corporal, pelo crescimento de pêlos pubianos, pelo desenvolvimento dos seios nas meninas e pela evolução do pênis nos meninos. A puberdade constitui um processo universal, na medida em que se apresenta no desenvolvimento esperado das pessoas em geral.
No entanto, essas mudanças não esgotam o desenvolvimento do adolescente, pois esse período passa a comportar outras significações importantes que lhe são atribuídas, implicando tarefas de construção de diferentes papéis, idéias e atitudes (Martins, Trindade, & Almeida, 2003). Se a puberdade se caracteriza por ser universal, a adolescência não constitui uma categoria natural, já que as múltiplas significações que expressam o que é ser adolescente são produzidas e transformadas em determinado contexto cultural.
Ariès (1981) afirma que o surgimento da adolescência como categoria geracional distinta se relaciona com o estabelecimento de uma relação entre as idades e as classes escolares. Na Idade Média, quando a criança ingressava no mundo da escola, entrava imediatamente na vida dos adultos. As escolas medievais, pequenas salas de aula, não eram divididas em classes, sendo freqüentadas por crianças, jovens e adultos de diversas idades. Ainda no século XVI e até mesmo no século XVII, a relação direta entre idade e classe escolar não era clara. O estabelecimento dessa relação passou a se constituir tardia e progressivamente com o advento do colégio moderno que, baseado em regras rígidas, torna-se uma instituição complexa de ensino e vigilância. A própria distinção entre juventude e adolescência só passou a existir no século XIX, com a difusão burguesa das universidades. O afastamento desse ingresso precoce das crianças no mundo adulto, ou seja, a propagação de colégios e a entrada tardia no mercado de trabalho, tornou a adolescência um período de latência social. A partir do reconhecimento da adolescência pela educação, ela passa também a ser estudada pela ciência e certificada pelo Estado:
A adolescência, portanto, é uma categoria moderna e que teve seu reconhecimento principalmente quando a educação formal, que é um dos principais projetos da modernidade, ficou sob o jugo e controle do Estado. As crianças e adolescentes, a partir desse momento, teriam o dever e o direito de ficar nas escolas. A escolarização, como conseqüência, estabeleceu um processo de separação entre seres adultos e seres em formação... (Magro, 2002, p. 65)
Logo, a retirada das crianças do mundo do trabalho torna os adolescentes um grupo etário delimitado, que vive uma fase em que o indivíduo não possui ainda as responsabilidades dos adultos, sendo tutelado pelos pais e/ou Estado e com o direito e o dever de ficar nas escolas. A educação foi um fundamento histórico para o ordenamento do mundo moderno: os adolescentes e crianças tornam-se seres em formação, e os adultos passam a representar a ordem já estabelecida (Magro, 2002). Os adultos produtivos têm o papel de transmitir essa ordem às novas gerações. Os adolescentes, como seres em formação, estão à margem da sociedade produtiva e dos meios de produção, ao mesmo tempo em que são depositários das esperanças dos adultos. Isso reforça a noção de que o adolescente ainda não alcançou uma competência crítica, social e política, e cria a necessidade de uma pedagogia do controle. Então, o lugar social destinado pela sociedade moderna ao adolescente caracteriza-se pela ambigüidade de um ideal e algo a ser modelado e adaptado (Magro, 2002; Ozella, 2002).
Portanto, as definições do que é ser adolescente foram construídas, ao passo que a sociedade interpretou e reinterpreta constantemente as marcas características da puberdade. Conforme Ozella (2002), as marcas do corpo e as possibilidades na relação com os adultos vão sendo utilizadas para a construção de significações. A adolescência pode ser compreendida como uma construção social inventada, enquanto a sociedade distingue, dá significado e interpreta as marcas do corpo que envelhece. Ao dar significado a essas marcas, a sociedade passa a criar expectativas sobre os indivíduos que se enquadram nesse período em que a idade funciona como operador. Os significados atribuídos ao que é um adolescente expressam e compõem o conceito de adolescência como uma categoria geracional que, por sua vez, passa a funcionar como operador dessas significações. Quando definimos a adolescência como isto ou aquilo, estamos constituindo significações (interpretando a realidade), a partir de realidades sociais e de marcas que serão referências para a constituição dos sujeitos (Ozella, 2002, p. 21).
Considerar as condições socioculturais que possibilitaram a construção da adolescência faz com que não se incorra no erro de tornar essa categoria um princípio explicativo inequívoco que agencia determinados comportamentos. Essa compreensão da adolescência não implica negá-la, mas compreendê-la como construída a partir das significações dadas pelo social que têm importantes desdobramentos sobre aquele que adolesce. Por isso, o objetivo deste trabalho não é classificar ou encerrar as questões sobre o que é um adolescente surdo, mas, antes, conhecer outros possíveis significados que esses adolescentes constroem acerca de suas vivências no contexto da surdez.
Blöss e Ferroni (1991) afirmam que a referência explícita ou implícita de uma definição biológica ou psicológica da juventude conduz a imputar uma natureza jovem em práticas que são socialmente determinadas, ocultando as diferenças culturais. Muitas vezes, presumese uma definição rígida sobre a categoria jovem que é creditada pela idade, ou seja, presume-se a existência de uma natureza idêntica compartilhada por todos os jovens e o próprio substantivo jovem pressupõe a unidade dessa essência. A adolescência como categoria geracional remete à idade como operador de categorização, muitas vezes instituído como princípio explicativo dos comportamentos juvenis. Espera-se certos comportamentos de um adolescente de 14 anos que não são socialmente admitidos aos 20. No entanto, agrupar diferentes adolescentes em uma mesma categoria cujo principal índice seja a idade pode implicar o erro de formar conjuntos de adolescentes em que a única característica semelhante seja a idade, e não suas tarefas e realidades.
A adolescência deve ser entendida como um processo psicossociológico de transição entre a infância e a fase adulta que depende de circunstâncias sociais e históricas. Na construção desses diferentes papéis, a adolescência, em nossa sociedade, tornou-se um campo temporal de transformações nas relações de socialização:
...a adolescência é um período/processo em que o adolescente é convidado a participar, dinamicamente, da construção de um projeto seu, o seu projeto de vida. Nesse processo, a identidade, a sexualidade, o grupo de amigos, os valores, a experiência e a experimentação de novos papéis tornam-se importantes nas relações do adolescente com o seu mundo. Nessa fase, o adolescente procura se definir por meio de suas atividades, de suas inclinações, de suas aspirações e de suas relações afetivas. (Martins et al., 2003, p. 556; Blöss & Ferroni, 1991)
Espera-se que o adolescente construa um projeto de vida, ressignifique os papéis que ocupava na infância e adote novos referenciais além do grupo familiar onde estava intimamente integrado na infância. O adolescente construirá novos significados acerca de si mesmo e do mundo, enquanto seus pais passam a encará-lo de forma diferente de como o faziam na infância.
Adolescência e surdez
Com o surdo, não é diferente. considerar a adolescência no contexto da surdez implica a compreensão de que a surdez representa um fator de diferenciação nesse processo, desde que ao surdo seja possibilitado o progresso de seus potenciais. Tal como o momento da descoberta da surdez e os primeiros anos de vida, a adolescência é um momento de tensão (Shorn, 1997; Virole, 2001), pois, nesse período, a surdez é novamente percebida em seus limites. Se é difícil para todo adolescente aceitar as mudanças corporais típicas da puberdade, no caso do adolescente surdo, a tarefa é mais árdua, pois ele também tem que dar conta da falta de audição ou da dificuldade de falar (Shorn, 1997; Solé, 1998; Virole, 2005).
Ainda durante a infância, a surdez se torna uma marca constitutiva que coloca a criança num lugar de diferença, rompendo de forma abrupta os jogos de semelhanças e diferenças exercitados entre pais e filho (Bisol, 2004). A maioria das crianças surdas nasce em famílias ouvintes que, ao se depararem com a surdez de um filho, enfrentam uma descoberta compreensivelmente devastadora por não compreenderem a surdez como uma diferença cultural e não terem exemplos de surdos adultos bem sucedidos (Glickman, 1996). A ausência de audição marca a relação entre pais ouvintes e filho surdo, pois eles não compartilham naturalmente de uma mesma língua. Esse lugar de diferença destinado à criança surda torna ser surdo um traço constitutivo da subjetividade e, portanto, fundamental para os processos identificatórios da adolescência (Shorn, 1997; Solé, 1998; Virole, 2003).
A adolescência, entendida como possibilidade de construção de um projeto de vida, implica a busca de outros referenciais identitários que possibilitem ao adolescente uma definição estável, mas não encerrada, de si mesmo. Nessa transição entre infância e idade adulta, os papéis ocupados pelo adolescente no meio familiar durante a infância serão revistos e ressignificados, ao mesmo tempo em que é importante haver uma procura de outros referenciais além da família. Por isso, a construção identitária implica compartilhar significados públicos com determinados grupos. Os amigos e colegas surdos passam a exercer uma importante função nessa construção, pois permitem relações nas quais o adolescente surdo não será marcado pela falta e pela deficiência, como acontece, implícita ou explicitamente, com os ouvintes. Então, o adolescente surdo filho de pais ouvintes precisa fazer uma negociação identitária entre a cultura ouvinte de seus pais e da sociedade mais ampla e a comunidade surda (Solé, 1998; Virole, 2005).
Crianças surdas, que não compartilham de um sólido sistema lingüístico, sofrem a falta de habilidades necessárias para a construção identitária em um contexto familiar ou social (Glickman, 1996). Pelo fato de possibilitar a comunicação familiar, a língua de sinais pode tornar-se um elemento fundamental desde a infância. Além de permitir à criança surda uma forma espontânea e natural de comunicação, na adolescência, a língua de sinais constitui um elemento identitário importante. A invenção de um jeito surdo de ser, viabilizado a partir do reconhecimento da língua de sinais, inaugura para o surdo a possibilidade de compreender-se a partir de uma diferença lingüística e cultural, mais do que a partir da deficiência. A língua de sinais possibilita práticas sociais que tornam seus membros participantes de um grupo sociolingüístico e permite a interação e o compartilhamento de significados. Isso tem um efeito na construção identitária do surdo, pois permite que ele se sinta membro de uma cultura diferente e tenha a comunidade surda como um dos principais referenciais.
Identidade narrativa
Na perspectiva da análise hermenêutica de Ricoeur (1994), a narrativa é compreendida como uma estrutura de linguagem tecida pela configuração singular do narrador, que liga os eventos através da temporalidade, criando uma totalidade significante. Logo, a narrativa constitui meio privilegiado para a compreensão de si de um sujeito, já que é ele quem dá sentido à sua identidade pessoal ao contar uma história sobre sua própria vida. Essa identidade não é estável e sem falhas. Da mesma forma que é possível compor de várias formas os acontecimentos vivenciados, também é possível configurar a própria vida de formas opostas, o que torna a narrativa biográfica um campo de renegociação e reinvenção identitária. Por isso, a identidade é compreendida como identidade narrativa.
As narrativas podem relatar acontecimentos que abarcam amplos períodos de tempo ou podem ser breves, pontuais. Gergen (1996) utiliza as palavras macro e micro para se referir a perspectivas temporais diferentes. As macronarrativas referem-se a acontecimentos que abarcam períodos amplos, cuja intriga é a tentativa de dar conta do que fomos em determinado período. As micronarrativas, por sua vez, explanam acontecimentos de breve duração. A possibilidade de acontecimentos serem narrados em perspectivas temporais diferentes permite que narrativas que abarcam amplos períodos de tempo (macronarrativas) possam conter outras narrativas que tratam de pequenos episódios (micronarrativas):
Uma pessoa pode ver sua vida como parte de um movimento histórico que começou há séculos, ou em seu nascimento, ou no início da adolescência. Podemos fazer uso dos termos macro e micro para nos referirmos aos fins hipotéticos ou idealizados do contínuo temporal. (Gergen, 1996, p.251)
Narrar a própria história também implica o encontro entre a vida íntima do narrador e sua inscrição numa história cultural e social. Assim, a análise das narrativas permite investigar tanto a dimensão singular do sujeito narrador quanto o espaço social, histórico e discursivo em que este está inserido. Por fim, a narrativa se torna uma ferramenta possível para compreendermos as construções que o adolescente surdo faz sobre si e sua família e para identificarmos suas referências identitárias.
Metodologia
Utilizou-se o estudo de caso como ferramenta de investigação empírica que visa à compreensão do fenômeno em profundidade, apropriado para fontes de evidência múltiplas situadas em um conjunto contemporâneo de acontecimentos sobre o qual o pesquisador tem pouco ou nenhum controle (Yin, 2001). O mesmo se estende ao estudo de casos múltiplos, que se assemelham a experimentos múltiplos, visto que se procura buscar padrões diferentes de replicações teóricas.
Foram desenvolvidas entrevistas narrativas autobiográficas com três adolescentes surdos filhos de pais ouvintes, que possuem perda auditiva pré-lingual, entre severa e profunda, sinalizadores fluentes de Língua Brasileira de Sinais (Libras), que freqüentavam a 6ª e a 7ª séries do ensino fundamental de uma escola especial para surdos que segue uma proposta de educação bilingüe. Segundo Jovchelovitch e Bauer (2002), a entrevista narrativa é classificada como um método de pesquisa qualitativa e não estruturada, que visa a encorajar o entrevistado a contar histórias sobre algum acontecimento importante de sua vida e do seu contexto social. As entrevistas foram realizadas em Libras, por uma moderadora surda, em uma sala de espelho one way, na Universidade de caxias do Sul (UCS), com tradução simultânea realizada por uma intérprete credenciada pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS). A tradução foi gravada em fita cassete e transcrita com o devido consentimento dos responsáveis e o assentimento dos adolescentes. O tempo de duração de cada entrevista foi de aproximadamente uma hora.
Considerou-se unidade de análise a narrativa de cada adolescente acessada através da tradução. A proposta metodológica utilizada nesse trabalho está baseada em um estudo anterior realizado por Bisol (2007). A autora analisa pequenas narrativas autobiográficas escritas por adolescentes utilizando a hermenêutica de Ricoeur, com foco na questão da identidade narrativa. No presente trabalho, a análise foi realizada em quatro etapas: a) identificação e organização das informações socio-demográficas; b) seleção e análise detalhada de pequenas narrativas (micronarrativas); c) análise das entrevistas em seu todo (macronarrativas), e d) comparação com os resultados de entrevistas realizadas com os pais dos adolescentes (Pappini, Bisol, & Valentini, 2006).
Três micronarrativas de cada caso foram selecionadas e analisadas, sendo uma referente à infância e as outras duas referentes à adolescência. como a análise de narrativas pode enfocar diferentes níveis, enfatizou-se primeiramente o nível pessoal de análise. O nível pessoal considera as narrativas como expressão da vida do narrador, cujo objetivo é descrever como os indivíduos organizam suas percepções, avaliam seu contexto social e seu comportamento dentro desse ambiente (Murray, 2000). Foram detalhadamente analisados: ação, tempo, espaço e personagens.
A seguir, foram analisadas as entrevistas em sua totalidade (macronarrativas). com um caráter mais amplo, essa análise focalizou, em especial, o nível social ou ideológico. Nesse nível, a preocupação se centra nas histórias socialmente compartilhadas que são características de certas comunidades ou sociedades (Murray, 2000). Foi enfatizada a compreensão das relações entre ouvinte e surdo e adulto e jovem.
A Tabela 1 permite visualizar uma série mais específica de questões originada dos eixos de análise do nível pessoal (análise das micronarrativas) e as relações enfatizadas no nível social ou ideológico (análise das macronarrativas).
Apresentação dos casos
Os três casos analisados são apresentados a seguir através de tabelas que enfatizam os elementos investigados nas micronarrativas. Na discussão que se segue à apresentação dos casos, complementa-se a análise com considerações acerca da análise das macronarrativas. Os casos são apresentados com nomes fictícios. É importante ressaltar que os recortes das narrativas dos surdos, apresentados para exemplificar os elementos analisados, são transcrições literais da tradução feita pelo intérprete.
Discussão
Apesar das marcantes diferenças entre os casos, percebe-se uma relação entre a formação de uma identidade com os pares surdos e os contextos familiares: Gabriel e Ana constroem fortes relações com a língua de sinais e com a comunidade surda, enquanto Marcos tenta inserir-se no contexto ouvinte. Em linhas gerais, pode apontar-se que o diagnóstico da surdez de Gabriel e Ana foi relativamente precoce, assim como os encaminhamentos tomados, parecendo haver um esforço dos pais em se comunicarem com os filhos e, antes disso, restabelecendo um vínculo que amenizasse a ferida narcísica causada pela diferença entre o filho real e o filho idealizado (Mannoni, 1999). Se o nascimento de uma criança surda em uma família ouvinte causa um rompimento nos jogos de identificação entre pais e filho, a tarefa consiste justamente em estabelecer estratégias compensatórias através de uma re-significação da surdez que possibilite tanto um vínculo afetivo precoce quanto uma língua compartilhada.
No caso de Marcos, parece haver uma falta de contato afetivo adequado com os pais muito antes que pudesse haver uma desestabilização no processo de vinculação entre eles em função da descoberta da surdez. A pouca convivência com os pais, assim como a percepção tardia da falta de audição feita pela avó, o desinteresse em buscar as causas da surdez por parte dos pais e o não estabelecimento de modos eficientes de comunicação são indícios de que a surdez de Marcos parece ter sido mais um fator de fragilidade na relação familiar. Solé (1998, p. 21) afirma que a surdez marca o destino identificatório de cada sujeito, e a privação coloca em perigo a possibilidade de transmissão transgenealógica dos enunciados identificatórios, sustentados pela fala que os pais ouvintes receberam de seus pais. É justamente a transmissão desses enunciados identificatórios que Marcos parece ter perdido, o que justificaria o desconhecimento de sua própria história. Foi a recuperação de vínculos afetivos e comunicativos que permitiram que Gabriel e Ana conhecessem histórias familiares anteriores ou contemporâneas ao seu nascimento e infância, o que possibilitou a construção de identificações familiares e de referenciais identitários consistentes ainda durante a infância.
As narrativas que apontaram maior riqueza na caracterização dos personagens e dos espaços, assim como eloqüência temporal, são justamente as narradas por Gabriel e Ana, dentre as quais houve diversas histórias sobre a infância, com lembranças felizes. É característico das histórias de Gabriel e Ana a possibilidade de os personagens modificarem suas ações e comportamentos no curso dos acontecimentos que encadeiam as narrativas, demonstrando capacidade de reflexão crítica, reavaliação e mudança de comportamento. Se antes o pai de Ana era querido por brincar com a filha e levá-la na escola com a vizinha, na adolescência, ele se torna chato por não deixá-la sair, por trocar os sinais, por exigir que ela use aparelho auditivo. Gabriel mostrase arrependido e consciente de que não deveria ter pegado o dinheiro das oferendas na igreja. Em contrapartida, os personagens das narrativas de Marcos são lineares, ou seja, não sofrem grandes transformações e são caracterizados de forma pobre. Não parece haver grandes reinvenções em sua autonarração: Marcos se caracteriza como agressivo e nervoso, e esses traços seguem desde as primeiras histórias até o presente.
A identidade narrativa se firma na consistência dos personagens e objetos no decorrer das ações (Gergen, 1996). Essas ações se centram, em sua maioria, em fatos do passado e do presente, permitindo, assim, sustentar projeções no futuro. Essa estabilidade da identidade narrativa se manteve nas narrativas de Gabriel e Ana. Gabriel pretende arrumar um emprego, fazer faculdade e casar, enquanto Ana deseja cursar Matemática. Marcos, por ter pouco para contar sobre seu passado e sua condição errante do presente, lança-se para o futuro, onde centraliza suas narrativas. Marcos quer trabalhar com aço, trabalhar engravatado, guardar dinheiro, comprar carro e moto, parar de usar drogas, casar, ficar forte e musculoso, fazer um curso, sair do País, ir para os Estados Unidos.
Os adolescentes pesquisados indicam a mãe como a pessoa com quem melhor se comunicam. Todas as mães freqüentaram aulas de Libras. Ana afirma que sua mãe sinaliza muito bem (sic); já a mãe de Gabriel é caracterizada como alguém que assume um papel importante no cuidado do filho, é ela quem descobre a surdez e, na adolescência, é quem dá conselhos e auxilia na busca por emprego. Marcos informa que a mãe não se comunica bem em Libras, e o pai se comunica oralmente e escreve. O pai de Ana é o único que fez aulas de Libras, o pai de Gabriel aparece como mantenedor da casa, dá conselhos aos filhos e fica irritado quando desobedecido, sinaliza pouco, e, por vezes, escreve. No caso de Marcos, os pais escrevem e principalmente falam com ele, que, por sua vez, pronuncia algumas palavras. A comunicação familiar parece tratar-se de uma espécie de farsa, em que os pais fingem que se comunicam com o filho, negando sua surdez, enquanto Marcos finge que compreende os pais, agindo como ouvinte.
As histórias de Gabriel e Ana também apontam a importância da figura dos irmãos na comunicação entre os membros da própria família e com outros ouvintes. Os familiares que melhor se comunicam em Libras com o membro surdo (nestes casos: a mãe ou o irmão) tornam-se intérpretes do surdo dentro da própria família e na sociedade. Mesmo assim, dificuldades de comunicação são freqüentes. Gabriel afirma que, quando há brigas, ele fica sem saber o que está acontecendo até alguém traduzir. Quando os pais discutiam, Gabriel acreditava que era ele o motivo de tais desentendimentos.
Vários autores (Bisol, 2004; Brito & Dessen, 1999; Oliveira, Simionato, Negrelli, & Marcon, 2004; Wood & Virole, 2001; Turnbull, 2004) afirmam que o nascimento de uma criança surda em uma família ouvinte pode ter impactos drásticos na vida familiar. Os adolescentes entrevistados também apontam a descoberta da surdez e os seus desdobramentos como momentos de tensão familiar e como marcos importantes em suas vidas. O diagnóstico da surdez, nos três casos, surge como o primeiro momento de tensão entre ser surdo e ser ouvinte (macronarrativa, nível ideológico de análise). É o momento em que os pais se perguntam se ser surdo é ser doente mental, ser deficiente, ser normal ou anormal.
Os encaminhamentos feitos pelos pais frente ao diagnóstico, tais como o uso de aparelho, o ingresso em uma escola especial e as sessões de fonoaudiologia, são reavaliados pelos próprios adolescentes. Fazer novas escolhas que muitas vezes podem vir a contrariar os pais é um aspecto típico da adolescência. Nesse processo de repensar as escolhas familiares, há a possibilidade de os adolescentes surdos tomarem novos posicionamentos acerca da sua surdez: Gabriel deseja casar-se com uma surda, Ana não quer mais usar aparelho e Marcos prefere estar na companhia de ouvintes. A decisão de Gabriel e de Ana de não usarem a prótese auditiva se dá em um contexto de inserção na comunidade surda e na língua de sinais. Já a decisão de Marcos ocorre numa tentativa de igualar-se aos ouvintes com quem interage.
Nota-se que muitos conflitos experienciados por esses adolescentes surdos em relação aos adultos são semelhantes às vivências dos adolescentes ouvintes. Questões referentes à dependência financeira, ao uso de drogas e à sexualidade, por exemplo, são comuns tanto a ouvintes quanto a surdos. As especificidades da surdez dizem respeito à reavaliação das escolhas acerca da surdez feitas pelos pais na infância e à sua dependência do ouvinte. Os três adolescentes relatam episódios no quais aparece, em certa medida, a dependência com o ouvinte: Gabriel sentese envergonhado quando necessita recorrer a ouvintes na rua, Ana reclama de depender da tradução do irmão e da mãe para entender o que se passa na televisão, e Marcos reclama por seus pais ligarem para o primo quando necessitam lhe dar um recado.
Percebe-se que, em algum grau, os três adolescentes fazem uma negociação de referenciais identitários nos quais são agregados tanto aspectos da comunidade surda, como o uso de Libras, e de outros referenciais que os igualam a qualquer outro adolescente, como praticar esportes ou participar do movimento hip hop. Marcos, no entanto, tem mais amigos ouvintes do que surdos, e vive menos integrado à comunidade surda do que Gabriel e Ana. Marcos parece procurar reparação através do envolvimento com os ouvintes, no entanto, quando busca suporte imaginário entre iguais, só encontra diferenças, o que reforça a noção de surdez como deficiência. Essa incessante marca imaginária de diferença, percebida pela incapacidade de escutar e de comunicar-se eficazmente, parece dificultar a construção de uma própria imagem positiva de si mesmo. Isso se relaciona à forma vulnerável com que enfrenta a realidade, expondo-se a fatores de risco. Os gestos bruscos, o porte de arma, o uso de drogas e o envolvimento em brigas são os meios de auto-afirmação que Marcos utiliza, reafirmando a agressividade que o caracterizava desde a infância. cabe questionar: por que Marcos não encontrou no grupo de pares surdos um ponto de apoio? Por que ele não conseguiu superar a imagem de si próprio, assentada na deficiência?
Nos casos de Gabriel e Ana, é assegurada a função estruturante da comunidade surda como importante meio de acolhimento e de formação identitária do surdo, principalmente como suporte nos momentos de tensão. No entanto, deve-se lembrar que isso se dá a partir das relações primeiras entre os pais ouvintes e a criança surda, ou seja, todo esse processo pressupõe um período inicial no qual estão em cena os pais ouvintes e a criança.
Considerações finais
Algumas escolhas metodológicas demandaram uma reflexão acerca da ética em pesquisa. A coleta de dados foi feita através de gravação em fitas cassete, portanto, o acesso às narrativas dos adolescentes surdos se deu através da tradução simples e simultânea em Libras para língua portuguesa a partir da fala da intérprete. Tal escolha se justifica por assegurar o sigilo dos participantes, já que uma gravação em vídeo (mais adequada para pesquisas com surdos em função da língua de sinais) mostrou-se pouco viável por implicar a dependência exclusiva de intérpretes que convivem na pequena comunidade surda em questão e são conhecidos pelos participantes.
É importante ressaltar as contribuições deste trabalho para a compreensão da importância da comunidade surda na construção identitária de jovens surdos. Os três casos indicam a importância de criar formas efetivas de intervenção a partir de uma rede de apoio entre a família, a comunidade surda e outras instituições que permitam um diagnóstico precoce da surdez, o estabelecimento de vínculos familiares, a construção de possibilidades efetivas de comunicação e a constituição de referenciais identitários capazes de sustentar o adolescente nesse período de transição.
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Endereço para correspondência
Departamento de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul
Sala 117 Bloco-E - Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130
95070-560, Caxias do Sul, RS, Brasil
E-mail: bremm07@hotmail.com
Recebido 26/06/2007
Reformulado 03/01/2008
Aprovado 14/03/2008
* Estudante do 9° semestre do curso de Psicologia da Universidade de caxias do Sul.
** Professora do curso de Psicologia da Universidade de caxias do Sul; doutora em Psicologia pela UFRGS.