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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.28 n.2 Brasília jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Discursos de usuários de um centro de atenção psicossocial-CAPS e de seus familiares

 

Speech of a psychosocial attendance center (caps) patients and their family members

 

 

Lívia Sales CiriloI,*; Pedro de Oliveira FilhoII,**

I Universidade Estadual da Paraíba
II Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda a construção do transtorno mental em discursos de usuários de um centro de Atenção Psicossocial e de seus familiares. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que teve como referencial teórico-metodológico a Psicologia social discursiva. Foram entrevistados 15 usuários de um CAPS de Campina Grande-PB e 15 familiares. Em suas elaborações sobre as causas ou determinantes da doença mental, foram detectados cinco fatores determinantes da doença mental: biológicos, socioeconômicos, psicossociais, psicológicos e sobrenaturais. Já em suas elaborações discursivas sobre os sintomas e sinais da doença mental, sobre o modo como se manifesta, predominaram descrições nas quais o doente mental aparece como um ser incapaz de autonomia, um ser de desrazão, caracterizado pelo descontrole e pela periculosidade. Em outras palavras, são discursos que descrevem o doente mental com os mesmos termos encontrados no discurso psiquiátrico usado para justificar a ordem manicomial, discursos que reproduzem os estereótipos sobre a loucura e que são dominantes no imaginário social.

Palavras-chave: Discurso, Doença mental, Família, Reforma psiquiátrica.


ABSTRACT

This paper deals with the construction of the mental disturbance in the speech of a Psychosocial Attendance center patients and their family members. It is a qualitative research that has a theoretical methodological approach related to the Social Discursive Psychology. 15 patients of a CAPS – Psychological Attendance center of campina Grande have been interviewed as well as 15 family members. Along the elaborations about the determinant causes of the mental disease have been detected biological, socioeconomic, psychosocial, psychological and supernatural causes. Besides, in the discursive elaborations about the symptoms and signals of the mental disease the way it shows up, predominated descriptions that denote that the mental patient is not seen as a person capable of independency, but as a person who’s not able to think, a person whose main characteristics are the lack of control and the criminal tendency. That means that the discourses describe a mental patient with the same terms found in the psychiatric speech used to justify the madhouse structure, discourses that reproduce the stereotype about madness that prevails in the social imaginary.

Keywords: Speech, Mental disease, Family, Psychiatric reform.


 

 

Ao longo da história humana, foram elaboradas diferentes concepções acerca do transtorno mental. Na Antiguidade, a loucura era considerada privilégio, pois era através do delírio que alguns privilegiados podiam ter acesso a verdades divinas (Silveira & Braga, 2005). A loucura seria um recurso da divindade para que seus projetos ou caprichos não fossem contestados pela vontade dos homens (Pessotti, 1994).

Podemos dizer que nesse período a loucura encontrou espaço para expressar-se, não sendo necessário controlá-la ou excluíla; ela era transformada pela cultura em um instrumento necessário para que se compreendessem as mensagens divinas e se lidasse com os limites do conhecimento; portanto, não acarretava estigma e não havia necessidade de cura, pois não era considerada doença.

Já na Idade Média, o mal da sociedade era representado pelo leproso. Encarnando o mal e representando o castigo divino, a lepra se espalhou rapidamente, causando pavor e sentenciando seus portadores à exclusão. Entretanto, com o fim das cruzadas e a ruptura com os focos orientais de infecção, os casos de lepra diminuem, deixando aberto um espaço que reivindicava um novo representante (Silveira & Braga, 2005).

Nessa época, irá predominar também a associação da loucura à possessão diabólica.Os demônios eram considerados fontes seguras de prazeres e poderes. como conseqüência, tornava-se mais fácil atribuir uma série de comportamentos pouco comuns, bizarros, à cumplicidade com o demônio (Pessotti, 2004).

O século XVII foi marcado pelo surgimento dos primeiros movimentos intelectuais, que propunham um novo modelo político que diminuísse o absolutismo dos reis e instaurasse um novo modelo econômico: o mercantilismo. Nesse século, começaram a ser encarcerados todos aqueles que não podiam contribuir para o movimento de produção, de comércio ou de consumo; assim, a repressão, predominantemente religiosa, passou a ter um caráter econômico.

A exclusão se dava devido à ordem burguesa em construção, à relação do homem com o trabalho, o comércio, à necessidade de um novo controle social. São criados, em toda a Europa, estabelecimentos de internação, denominados hospitais gerais, para onde eram enviados todos aqueles que comprometiam essa nova ordem: marginalizados, pervertidos, miseráveis e, dentre eles, os loucos (Foucault, 1978).

Essas instituições não possuíam o tratamento como objetivo, e constituíam uma solução para o problema da miséria. As casas de internamento abrigavam uma comunidade bastante heterogênea: criminosos, prostitutas, insanos, dissipadores, etc. As pessoas eram isoladas no interior desses hospitais, que reconstituíam os velhos rituais de isolamento dos leprosos.

O que Foucault (1978) denominou de A grande internação caracteriza-se então por transformar o hospital, ao mesmo tempo, em um espaço de assistência pública, acolhimento, correção e reclusão. Para o autor, o hospital surge como uma terceira ordem de repressão, estabelecida entre a polícia e a Justiça, e a doença mental ocupava a posição de herdeira legítima do local de exclusão deixado pela lepra.

No final do século XVIII, a Revolução Francesa torna-se símbolo de uma transformação na humanidade ao suscitar a proclamação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Dessa forma, as casas de internamento passaram a ser questionadas mediante a constatação de que elas não resolviam o problema do desemprego. A indigência passa a ser visualizada como fenômeno econômico; o pobre, como força de trabalho, torna-se importante para a riqueza do Estado. Às vésperas da Revolução Francesa, exigia-se uma nova forma de contrato social, e o internamento foi criticado, principalmente no âmbito econômico, posto que detinha mão-de-obra necessária ao processo de industrialização.

Esse movimento revolucionário trouxe a necessidade de transformação das instituições sociais e a mudança dos internados, já que os que poderiam produzir deveriam ser inseridos no trabalho. Assim se inicia o processo de reforma do espaço hospitalar, liderado por Pinel, que culminou com o surgimento do hospital psiquiátrico (Amarante, 2003).

De fato, em 1973, Pinel rompe as práticas dominantes e liberta os loucos das correntes que os prendiam. Acreditando que eles precisavam de um tratamento mais humano, advogava uma terapêutica moral como base da sua medicina. com o surgimento da psiquiatria, a loucura continuava a ser um problema que se diferenciava da pobreza, e passou a merecer uma assistência que pudesse minimizar o temor por ela despertado na sociedade. Dessa forma, a loucura permanecerá dentro do campo da exclusão, agora com a diferença de estar sob a vigilância médica.

Nesse processo de apropriação da loucura pela Medicina, o conceito de alienação tem um papel fundamental, pois torna-se sinônimo de erro, algo não mais da ordem do sobrenatural, de uma natureza estranha à razão, mas uma desordem desta. A alienação é entendida como um distúrbio das paixões humanas, que incapacita o sujeito de partilhar do pacto social e deixa-o fora da realidade (Torre, 2001).

Castel (1978) ressalta que o ato fundador de Pinel foi o ordenamento do espaço hospitalar, através da exclusão e do isolamento. Pinel, que era considerado um inovador por separar o louco das demais pessoas que habitavam o hospital geral, ao fundar o hospital psiquiátrico, passou a receber uma série de críticas à sua concepção de tratamento, posto que, a partir do momento em que é isolado em seu próprio espaço, o louco aparece, sem dúvida, seqüestrado como os outros, porém por outras razões.

A partir dessas críticas e das denúncias posteriores de maus-tratos e ineficácia do tratamento nos hospitais psiquiátricos, difundiram-se inúmeros movimentos no mundo em busca de uma remodelagem na assistência psiquiátrica e nas formas de tratamento, destacando-se o movimento das comunidades terapêuticas (Inglaterra), a psicoterapia institucional (França), a psiquiatria de setor (França), a psiquiatria comunitária ou preventiva (Estados Unidos), a antipsiquiatria, a psiquiatria democrática italiana e a reforma psiquiátrica brasileira (Amarante, 1996).

 

Elementos da reforma psiquiátrica brasileira

A inauguração do primeiro hospital psiquiátrico do Brasil ocorreu no ano de 1852: o Hospício D. Pedro II, no Rio de Janeiro (Amarante, 1994; costa, 1980). com o passar dos anos, o número de hospitais psiquiátricos aumentava, a qualidade do atendimento oferecido se tornava ainda mais precária e exigia uma grande reforma na maneira de conceber e tratar a doença mental.

Somente a partir da década de 70 foram implementadas experiências inovadoras no âmbito da assistência psiquiátrica no Brasil, contra a prática excludente, o número excessivo de internações psiquiátricas e a favor da implantação de serviços comunitários. Nessa época, iniciam-se as denúncias de maus tratos, falta de higiene, superlotação, péssima qualidade dos serviços oferecidos e falta de assistência médica adequada nos hospitais psiquiátricos (Resende, 2000).

O marco do movimento brasileiro, segundo Amarante (2003), foi o episódio que ficou conhecido como a crise da DINSAM (Divisão Nacional de Saúde Mental), culminando com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental-MTSM e na posterior realização dos encontros nacionais dos trabalhadores de saúde mental e das conferências nacionais de saúde mental, eventos que consolidaram uma política de saúde mental que preconiza a busca de autonomia e a inserção social do usuário.

Num contexto de luta pela cidadania do portador de transtorno mental, a partir dos pressupostos da clínica antimanicomial, a década de 1980 assiste ao surgimento de experiências institucionais bem-sucedidas na arquitetura de um novo tipo de cuidado em saúde mental: os CAPS-centros de Atenção Psicossocial. Desde a primeira experiência, a idéia de CAPS vem modificando o ideário nacional ao ampliar os horizontes da clínica para incorporar a dimensão psicossocial.

Após as primeiras regulamentações, surgidas na década de 90, foi de suma importância para o contexto da reforma psiquiátrica brasileira a aprovação da Lei Paulo Delgado, após doze anos de difícil tramitação no congresso Nacional. A Lei nº 10.216 redireciona os cuidados em saúde mental, ressalta a importância dos serviços comunitários, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e regulamenta as internações psiquiátricas (Ministério da Saúde, 2004).

Ao analisar o percurso da reforma psiquiátrica brasileira, constata-se que seus pilares se traduzem na busca de autonomia, de cidadania e de novas possibilidades de tratamento para o portador de transtorno mental. convém, portanto, indagar: Quais as concepções elaboradas pelos usuários de um serviço de saúde mental sobre a doença mental? Quais os conceitos elaborados pelos familiares? Esses conceitos reforçam a imagem predominante do doente mental (imagem que o apresenta como um ser de desrazão, marcado por uma radical heteronomia, perigoso) ou estão mais próximos da imagem veiculada pelo discurso da reforma psiquiátrica? Os estereótipos acerca da doença mental elaborados culturalmente são reproduzidos por usuários e familiares atendidos no cAPS ou estes apresentam concepções que indicam um novo olhar sobre a doença mental?

Tentando responder a essas questões, elaborou-se um estudo com o objetivo de detectar conceitos e teorias sobre a doença mental em discursos dos usuários de um centro de Atenção Psicossocial e de seus familiares. Este estudo está inserido num estudo mais amplo, e é parte de uma pesquisa que analisou as concepções elaboradas pelos usuários e familiares sobre saúde mental e cidadania.

 

Método

O CAPS II Novos Tempos – centro de Atenção Psicossocial, onde se realizou esta pesquisa, é um serviço do SUS-Sistema Único de Saúde, que atende portadores de transtornos mentais, numa perspectiva de tratamento que engloba atendimento médico, psicológico, oficinas terapêuticas e variadas ações sociais. A escolha por esse serviço ocorreu devido ao fato de este ser o primeiro serviço substitutivo implantado no Município, com um lugar estratégico no contexto da reforma psiquiátrica municipal.

De acordo com o critério do ponto de saturação, foram entrevistados 15 usuários regulares do CAPS e 15 familiares participantes do grupo de família, de ambos os sexos, e que atendiam aos seguintes requisitos: estar inserido no programa e, em conseqüência, freqüentando o serviço por um período igual ou superior a um mês, e, no caso dos usuários, foi verificado também se o mesmo estava em condições psíquicas de participar das entrevistas, ou seja, estar num quadro estável, sem a presença dos sintomas de crise, tais como agitação intensa, alucinações, delírios.

A coleta de dados foi realizada no próprio serviço: o CAPS II Novos Tempos. O instrumento utilizado foi a entrevista semiestruturada, que seguiu um roteiro que abordava o tempo de tratamento no CAPS, as internações anteriores em hospitais psiquiátricos, o conceito de doença mental e os aspectos relacionados à cidadania. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Os sujeitos cujas transcrições de falas aparecem neste trabalho são apresentados com nomes fictícios.

Considerando que nem todos os usuários e familiares estiveram disponíveis ou demonstraram interesse em participar da pesquisa, esses foram consultados sobre os objetivos da pesquisa e convidados a participar da mesma, sendo explicados os seus objetivos. Após esse esclarecimento, foi solicitado aos participantes que lessem e assinassem um termo de consentimento.

Para análise dos dados, optou-se pela técnica de análise do discurso, com o referencial teórico-metodológico fundamentado na Psicologia social discursiva (Billig, 1985, 1987, 1991; Potter & Wetherell, 1987; Potter, Wetherell, Gill, & Edwards, 1990; Wetherell & Potter, 1992). Nessa abordagem, os discursos são vistos fundamentalmente como formas de ação social que trazem as mais variadas conseqüências. O objetivo principal não é inferir a existência de categorias cognitivas, identidades, personalidades e relações sociais a partir dos discursos dos sujeitos, mas observar como tais elementos são construídos discursivamente.

Concebemos o discurso como uma prática social. Portanto, o sentido de um determinado discurso é derivado de seu uso em determinadas situações ou contextos sociodiscursivos (Wetherell & Potter ,1992). Nessa perspectiva, um dos principais objetivos é a análise de repertórios interpretativos, que são conjuntos de termos e descrições agrupados ao redor de metáforas, figuras, imagens e sistemas de significação utilizados para construir “versões de ações”, do “eu” e das “estruturas sociais”, recursos usados para avaliar e construir versões tidas como verdadeiras e realizar ações específicas (Wetherell & Potter, 1992, p. 90).

A metáfora da construção, na Psicologia social discursiva, refere-se fundamentalmente ao fato de termos acesso ao mundo por intermédio de construções discursivas. O discurso nos apresenta descrições do mundo e de nós mesmos, e produz, assim, sujeitos, grupos e relações sociais.

A uma abordagem discursiva, interessa principalmente o modo como o discurso é organizado para tornar determinadas versões da realidade factuais, verdadeiras. A análise, no entanto, deve ir além da versão ou do argumento que está sendo construído. Como se trata de uma abordagem atenta ao caráter retórico do discurso, procura-se focalizar o modo pelo qual uma determinada argumentação procura desacreditar uma ou mais argumentações competitivas, argumentações ou versões freqüentemente ausentes, não citadas (Wetherell & Potter, 1992).

O foco na variabilidade (inconsistência, contradição, etc.) dos discursos é fundamental na Psicologia social discursiva. Os discursos acerca de um determinado tema, por exemplo, variam tanto no interior de um mesmo grupo social quanto em diferentes intervenções discursivas de um mesmo indivíduo. Nesses discursos, não vamos encontrar somente consistência, mas também inconsistência, contradição.

A variabilidade ocorre, em primeiro lugar, porque a linguagem é usada para uma variedade de funções. Os nossos discursos são flexíveis e constroem as mais variadas versões da realidade; não são simplesmente reflexos da realidade, são versões da realidade que procuram atingir determinados objetivos (Potter & Wetherell, 1987).

A variabilidade, no entanto, ocorre também porque as pessoas atualizam em seus discursos as diversas concepções que estão em conflito no interior da sociedade. A variabilidade não é somente uma conseqüência de considerações estratégicas, é conseqüência também da própria natureza do senso comum e da existência de valores e ideologias em conflito na sociedade (Billig, 1991).

 

Perfil sociodemográfico da população

Na amostra dos usuários, participaram 11 mulheres e 5 homens, com idades que variavam de 20 a 40 anos.

Quanto ao grau de escolaridade, nove dos usuários entrevistados possuem nível fundamental, dois não são alfabetizados e três concluíram o ensino médio. No que se refere à renda familiar informada, a maior parte respondeu menos de um salário mínimo, e apenas dois usuários responderam dois salários mínimos.

Foram encontradas dificuldades em identificar familiares do sexo masculino para participar do estudo. Assim, dos familiares entrevistados, 12 deles são do sexo feminino, na sua maioria mães dos usuários, com idades entre 40 e 60 anos.

A maior parte dos familiares possui nível fundamental; quanto a informações socioeconômicas, foi identificado que os mesmos apresentam uma renda familiar que varia de R$ 60,00 a dois salários mínimos.

 

A construção discursiva da doença mental

Em determinado momento da entrevista, os usuários e familiares eram questionados acerca do significado que o termo doença mental tinha para eles. Em outros momentos, fizeram, espontaneamente, alusões ao termo supracitado ou a termos com significados semelhantes, como loucura. Dessas produções discursivas, abordaremos as explicações para a doença mental, o modo como é descrita nesses discursos e os termos utilizados para nomeá-la.

 

Explicações para a doença mental

As explicações para os diferentes fenômenos sociais jamais são apenas produtos de uma reflexão dos sujeitos sobre suas experiências, mas estão profundamente enraizadas nos discursos que circulam em diferentes contextos sociais. Nos últimos anos, tanto nos espaços midiáticos quanto nos espaços acadêmicos, o discurso biologizante tem tido uma grande visibilidade. No mundo acadêmico, o sucesso de um autor como Steven Pinker (Pinker, 2004), que busca explicar todas as diferenças individuais a partir dos genes, ilustra bem o sucesso atual das concepções biologizantes acerca do comportamento humano.

Não é surpreendente, portanto, que, tanto nos discursos de usuários quanto de familiares, tenham sido muito freqüentes as explicações do transtorno mental a partir de fatores hereditários ou orgânicos, explicações fundamentadas numa compreensão fundamentalmente biológica do sofrimento psíquico, conforme pode ser observado nestes depoimentos:

Davi-usuário - É de família, mesmo... Antes eu tive uma irmã que morreu com o mesmo problema meu, e eu tenho uma sobrinha que desde pequena tem esse problema. Já é de família.

Josefa-usuária - ...porque meu pai já teve, era esquizofrenia, o dele,... ele já tá com mais de três anos que não pára dentro de casa, aí eu posso ter herdado dele, da família dele, que tem outro doido na família do meu pai, saía de casa, não voltava mais, ninguém sabe se morreu ou ficou vivo.

Eliana-usuária - ...eu tive outra crise,eu acho que a mulher tem essa tendência a ter mais, porque é mais frágil, realmente, como dizem: é sexo frágil, e por isso eu tenho passado por essas coisas.

Patrícia-usuária - É uma coisa que dá no sistema nervoso que a gente tem hora que sabe das coisas, e tem hora que não sabe nada...

Aparecida-familiar - Eu acho assim, pra mim, é um problema do nervo, um negócio assim na cabeça, sei não... pra mim é um negócio que existe no nervo, essas coisas assim.

Nos relatos de Davi e Josefa, a doença mental aparece como “algo de família”, algo herdado pelo sujeito, e os casos de outros parentes citados como exemplos de doença mental na família procuram reforçar e tornar convincente a tese da hereditariedade como fator explicativo para a doença mental. O relato de Eliana, embora parta também de princípios naturalistas e biológicos, diferencia-se dos dois primeiros porque a doença mental nele aparece como algo intimamente associado ao sexo feminino. As mulheres seriam mais suscetíveis ao sofrimento psíquico do que os homens. É um discurso que reproduz todos os estereótipos negativos (histérica, pueril, emocional, irracional) historicamente associados às mulheres.

Nos relatos de Patrícia e Aparecida, o transtorno mental é descrito como o produto de um “problema” nos nervos, na “cabeça”, de uma “coisa que dá no sistema nervoso”. Villares, Redko e Mari (1999) também encontraram, no relato dos familiares entrevistados na sua pesquisa, uma significativa quantidade de relatos que sugerem o transtorno mental como um problema localizado essencialmente na cabeça, que acarreta um mau funcionamento do cérebro e faz com que a pessoa não seja capaz de suportar as pressões da vida.

É importante ressaltar que, embora termos como sistema nervoso e nervos não sejam simplesmente resíduos de “arcaísmo médico” na cultura popular, embora não sejam tão somente uma referência ao que os sujeitos pensam que seja o sistema nervoso da forma como é descrito pela neuro-anatomia, embora não tenham um único referente e sejam vagos e imprecisos em seus usos cotidianos, não estão totalmente despidos, nas classes populares, de sentidos organicistas (costa, 1989). Em outro relato, um dos raros relatos nos quais se afirma uma causalidade que poderíamos denominar de psicológica para o transtorno mental, a distinção entre os transtornos causados por alguma alteração nos nervos e transtornos causados por fatores psicológicos é clara:

Socorro-usuária - Doença mental é psicológico, da mente. Eu quero colocar na minha cabeça que é dos nervos, mas não é nervo, é pior, é mental... não melhora tão fácil.

Explicações da doença mental baseadas em fatores orgânicos e/ou hereditários reforçam e reproduzem o discurso médico-psiquiátrico dominante. O repertório de termos, metáforas, imagens e linhas argumentativas geralmente associado às explicações biológicas da loucura é potencialmente reprodutor de tudo o que há de pior no modelo psiquiátrico asilar.

Mas, se as teorias biológicas sobre a loucura estão historicamente associadas às posições mais conservadoras, postular uma causalidade biológica para a doença mental não implica necessariamente a defesa do modelo asilar e a negação de direitos ao portador de doença mental, pois, como afirmam Wetherell e Potter (1992), um determinado conteúdo discursivo pode ser mobilizado nas mais diferentes direções argumentativas.

Nos discursos dos participantes desta pesquisa, na sua maioria indivíduos de baixa renda, foram muito presentes as considerações sobre o transtorno mental que o descrevem como um objeto cuja gênese está associada a fatores sociais e econômicos, como no exemplo a seguir:

Eliana-usuária - ...nesse período, eu passei minhas crises, pelo fato de eu querer as coisas e minha mãe não ter condições de me dar as coisas, roupas e tal, queria trabalhar, foi a partir desse momento que tudo começou na minha vida. ...Também pela condição dos meus pais, meu pai é segurança lá na rua João Pessoa, também tem meus irmãos, todos moram dentro de casa, o mais velho tem 26 anos, condições que faltam na minha casa, que eu fui a procura, porque eu tava estudando, fazia 8ª série, e eu era, eu queria a fardinha de concluintes, aí eu fui trabalhar pra conseguir, daí tudo começou...

No século XVIII, Pinel defendia a idéia de que, além das causas orgânicas, as causas morais exerciam um papel determinante no desenvolvimento do transtorno mental. Dentre essas, destacava as paixões intensas e excessos de todos os tipos. No mesmo sentido, algumas das respostas mais citadas nesta pesquisa referem-se aos afetos desencadeados nas relações interpessoais como causa do surgimento da doença, e descrevem um tipo de causalidade que poderíamos denominar de psicossocial:

Érika-usuária - ...não tenho motivo pra ser doente: não tenho namorado, não casei, não quero casar mais com ninguém.

Alice-familiar - A minha (filha) era boa de saúde, foi por causa de um namorado...

No discurso dos familiares, identificamos um tipo de explicação ausente no discurso dos usuários: a concepção da doença mental causada por fator de ordem sobrenatural: espíritos que se apossam do indivíduo:

Valério -Ela era médium, coisa de espírito, só meu Deus é quem dá... agora é só remédio pra controlar.

Discursos bem semelhantes foram encontrados na pesquisa de Alves (2001) realizada com agricultores do cariri paraibano, na qual alguns entrevistados afirmaram que a ausência de fé em Deus pode acarretar a doença mental. A pesquisadora salienta que nessas falas se destaca a representação do transtorno mental como algo mandado por Deus, como forma de punição, como uma intervenção divina na vida do indivíduo que lhe tira os bens materiais e a saúde.

No contexto urbano brasileiro, em decorrência da penetração das igrejas neopentecostais entre as classes populares, há uma insistente e poderosa divulgação de explicações religiosas, nas quais o sofrimento psicológico aparece como produto de possessão demoníaca, da atuação de exus, pombagiras, etc. (Guareschi, 1995).

Outra temática presente no discurso de alguns dos nossos sujeitos é a concepção da doença mental como algo que acontece inesperadamente, sem causa definida e identificada:

Socorro-usuária - A gente do nada adoece, de repente adoece, tem crise.

Silvia-familiar - ...de repente, tá tudo bem, aí, de repente, vem aquela queda, do inesperado vem a queda...

Nessas falas, o transtorno mental ocorre sem que o indíviduo exerça algum controle sobre ele, sem circunstâncias que possam precipitá-lo. O surgimento da doença mental aconteceria “do nada”, sem explicação, como um mal que não é afetado por nada que o indivíduo faça, um mal caracterizado pela impotência e pelo desconhecimento de suas vítimas.

As falas supracitadas demonstram que as diversas explicações construídas historicamente para a loucura, da Antiguidade até os dias atuais, permeiam o imaginário dos sujeitos. Todas as explicações elaboradas pelos nossos entrevistados, dependendo da direção argumentativa escolhida, podem ter efeitos perversos quando se pensa na promoção da cidadania do doente mental. Isso não ocorre somente com as explicações que apelam para a Biologia. Se pensarmos nas explicações religiosas, ninguém negaria que a dimensão espiritual constitui um sistema de crenças acessório ao conhecimento popular e médico da doença, utilizado como recurso para preencher as lacunas dos processos inexplicáveis ou incompreensíveis, que traz conforto, resignação e respostas frente ao sofrimento enfrentado (Villares et al., 1999). No entanto, não é raro observar indivíduos que, por acreditarem numa causa sobrenatural para a loucura, procuram centros religiosos que vêem o sofrimento psíquico como uma decorrência do pecado, do afastamento do indivíduo em relação a Deus, o que reforça a associação entre loucura e fraqueza moral.

As explicações sociais e econômicas, por outro lado, podem aparecer em argumentos com um poder explicativo tão absoluto que terminam por desestimular a busca da autonomia, o engajamento do indivíduo no seu próprio tratamento.

 

Descrições da doença mental

Dentro da mesma temática abordada, usuários e familiares, a partir da pergunta que os questionava sobre o significado da doença mental, e, espontaneamente, no decorrer da entrevista, descreveram das mais diferentes formas o sofrimento psíquico. Vejamos alguns exemplos:

Penha-usuária - Tem a hora que a gente sabe das coisas, tem hora que a gente não sabe. Tem hora que dá uma agonia... o meu quando eu fui internada, só me deu vontade de me suicidar e matar a minha filha também. Tem vezes que a gente está deprimida, tem vezes que a gente tá calado, tem dias que está mais alegre, tem dias que dorme bem, tem dias que não dorme...

Sandra-familiar - ...a pessoa fica sem juízo, que nem ele (o filho), eu digo tá aqui... tá aqui o comer, ele não sabe, não sabe comer, uma coisa assim sem destino e só conversando besteira, o rádio fala dele... Eu não sei o que houve, só eu e Deus sabe o que eu passei, o que tenho passado, desde que ela tinha 18 anos, e olha que ele já vai fazer 30.

Renato-familiar - ...Às vezes não dá conta do que faz, e tem pessoas assim que, para sobreviver, precisa de outras pessoas, não toma conta de si, precisa de outra pessoa que acompanhe, alerte, tome as decisões pela pessoa, então aquela pessoa pra mim é menos que uma criança, que não tem emoção própria, não tem determinação própria.

Aparecida-familiar - Aí foi quando um dia, ela apertou bem, muito, tava muito aperriada dentro de casa, sem saber o que fizesse, ela tava correndo, e eu sem saber o que fazer, tava sem paciência, eu acho que eu tava ficando quase mais doida do que ela.

No que se referem às manifestações dos transtornos mentais, alguns usuários citam o desejo de morte ou tentativas de suicídio, como nos mostra o relato de Penha. A usuária relata ainda os momentos de instabilidade vividos, principalmente no que se refere ao humor e ao sono.

Nas falas dos familiares, a agressividade, a infantilidade, a inquietação, o nervosismo e a ausência de autonomia são apresentados como características definidoras do doente mental. Em estudo realizado por Barroso, Abreu, Bezerra, Ibiapina e Brito (2004)), os familiares também descrevem comportamentos desviantes, desordenados, agressivos e descontrolados quando falam de seus parentes com transtorno mental.

É importante considerar que foram inúmeras as citações dos sujeitos que caracterizaram o portador de transtorno mental como dependente, sem autonomia e fonte de preocupação para os familiares, assim como descreveram Sandra, Renato e Aparecida. Esses discursos descrevem uma relação com o doente mental marcada pelo sofrimento e pelas dificuldades no enfrentamento dos desafios associados ao sofrimento psíquico, discursos que falam de impotência e de projetos de vida não realizados.

Devemos ressaltar que a descrição do transtorno mental exclusivamente pelas caracterizações das crises, a partir de termos que indicam agressividade, de maneira implícita ou explícita reforça o mito de periculosidade associado ao portador de transtorno mental. Tal concepção reforça o estereótipo de que “louco é perigoso, e é no hospício que deve estar”, o que impossibilita as condições de reinserção social e cidadania.

 

Termos que nomeiam a doença mental

No decorrer da entrevista, foi possível identificar uma grande diversidade de termos utilizados pelos sujeitos com o objetivo de nomear o transtorno mental. Vejamos alguns exemplos:

Maria-usuária - ...Falando sobre depressão, eu tenho depressão, síndrome do pânico, o meu diagnóstico é F33, mas eu tenho síndrome do pânico, síndrome do pânico e transtorno obsessivo-compulsivo e depressão mista, meu diagnóstico é esse.

Alice-familiar - Eu acho que doença mental é assim... que o problema que R. (a filha) tem é de aprendizagem, e acho que doença mental tem diversos tipos da doença, que tem um que é louco mesmo, não é? Louco mesmo, e tem outro que é nervoso, é a depressão, e tem uns que é depressão e também é mental. Mas o mental mesmo é o que rasga dinheiro, faz um bocado de coisa, né?

Letícia-familiar - Doença mental? Acho que é, porque tem gente que não entende que é louco, porque tem uma doença mental que é louco mesmo, e tem doença mental que é somente atribulado, nervoso, mesmo. Aí eu acho que a doença mental é essa, não é de dizer é louco mesmo, é um problema, um desvio que a pessoa tem, uma doença que não é louco, porque louco já viu como é: é de jogar pedra, faz muita coisa, né? E eles não são loucos, têm uma deficiência mental, mental já tá dizendo é na mente, não é?

Eliana-usuária - ...Olha, me irrita quando uma pessoa chega pra mim e diz “você é uma doida” (diz irritada), irrita muito pra mim, ninguém merece ser chamado de doido, acho que diz na Bíblia, se não me engano, ou é um ditado popular, “não chameis o seu próximo de louco”, e isso pra mim é uma ofensa muito grande; sinceramente, não concordo com ninguém que chame uma coisa dessa com seu próximo, pode ser alguém, pode ser irmão, pode ser namorado, pode ser companheiro, o que for chamando isso, acaba magoando, machucando a gente; toda vez que uma pessoa chegava falando isso pra mim voltava meus problemas, quando chegava a dizer isso minha pessoa ficava frustrada, ficava ali, me sentia pequena, ia e voltava a fase ruim de novo, por causa disso.

O discurso de Maria caracteriza-se pelo uso do vocabulário da psicopatologia, vocabulário (“síndrome do pânico e transtorno obsessivo compulsivo e depressão mista”) cuja aura de cientificidade produz no ouvinte, de maneira intencional ou não, a impressão de distanciamento afetivo e de objetividade em relação aos seus sintomas.

Nos discursos de Alice e Letícia, são registrados dois significados para o termo doença mental: doença mental como termo que nomeia fenômenos psicopatológicos mais leves e doença mental como termo que nomeia o “louco mesmo”, aquele que “é de jogar pedra”. Termos como “atribulado”, “nervoso”, “desvio”, “distúrbio”, “depressão” e “deficiência mental” são mobilizados para diferenciar graus de evolução do transtorno mental. Aqui o termo loucura está associado a tipos mais graves de transtorno mental, como o comportamento agressivo, perturbador, bizarro.

Para Villares et al. (1999), a definição do transtorno mental como “nervoso” ou “dos nervos” é a mais freqüente elaboração da doença por familiares de portadores de transtornos mentais. O termo nervoso pode remeter, na perspectiva popular, ao sintoma ou à conseqüência de uma determinada doença, à resposta a um evento traumático ou também à denominação de uma doença propriamente dita, com etiologia e tratamento específicos.

O uso do termo “nervoso”, nos discursos de Alice e Letícia, faz evitar o uso de terminologias que podem ser estigmatizantes, possibilitando que o problema seja minimizado; afinal, certo grau de nervosismo pode atingir todas as pessoas, mas, com essa tentativa de afastar simbolicamente os filhos de um grupo social estigmatizado, terminam por reproduzir preconceitos sociais. Essas falas, cujo objetivo é defender seus filhos do preconceito social, terminam por reproduzir o velho e opressivo esquema que segregou aqueles tidos como a personificação da insanidade e da desrazão.

 

Considerações Finais

Este trabalho teve como objetivo identificar os conceitos elaborados sobre a doença mental nos discursos dos usuários de um centro de Atenção Psicossocial-CAPS e seus familiares e discutir quais as implicações das concepções elaboradas diante dos pressupostos da reforma psiquiátrica.

Ao descrever a doença mental, grande parte dos usuários descreveu a sintomatologia das crises, que reforça o mito de periculosidade do portador de transtorno mental. Podemos considerar que, ao estimular o preconceito, o medo e a discriminação em relação ao doente mental, aspectos como o resgate ou a aquisição da sua cidadania, objetivos dos serviços de saúde mental de base comunitária, são dificultados.

A questão do conceito e da compreensão da doença mental surge como um dos pontos principais no embate entre o modelo antimanicomial e o modelo hospitalocêntrico. Nos discursos dos entrevistados, a noção de doença mental abrigou uma série de sentidos, desde a sua causalidade aos termos utilizados para nomear o transtorno mental.

Os repertórios interpretativos elaborados sobre a doença mental pautaram-se em determinantes biológicos, socioeconômicos, psicossociais, psicológicos e sobrenaturais. A concepção do transtorno mental marcada pela descrição da sintomatologia das situações de crise, evidenciando-se momentos de agressividade, delírios e desejos de suicídio, foi recorrente ao longo dos discursos.

Ao evitar o uso de termos como louco e doido, os entrevistados podem estar afastando questões ligadas ao estigma social e ao comportamento de periculosidade apresentado pelo “louco”, caracterizado pelos nossos sujeitos como o transtorno mais grave dentro da psicopatologia.

Além do uso dos termos, a descrição do peso da doença mental na família nos revela as reais necessidades dos familiares no que se refere às possibilidades de escuta, orientação e apoio, e reforça a importância da realização de grupos de família, que devem se tornar práticas sempre presentes no cotidiano dos serviços de saúde mental.

 

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Endereço para correspondência
Lívia Sales Cirilo
Rua Paulino Maia de Souza, 36, Bairro: Cruzeiro
58107-343, Campina Grande, PB
E-mail: liviasalesc@gmail.com

Recebido 20/12/2006
Reformulado 07/05/2007
Aprovado 30/05/2007

 

 

* Mestre em Saúde coletiva-Universidade Estadual da Paraíba.
** Doutor em Psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: pedroofilho@ig.com.br.