Psicologia: ciência e profissão
ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.28 n.3 Brasília set. 2008
ARTIGOS
O Voluntariado em questão: a subjetividade permitida
Arguing the volunteerism: the allowed subjectivity
El voluntariado en cuestión: la subjetividad permitidao
Adriana Cristina Ferreira Caldana*; Marco Antonio de Castro Figueiredo**
USP, Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto
RESUMO
Em diversos países, particularmente no Brasil, observa-se um estímulo ao voluntariado como via de democratização do Estado, com o aumento da participação de todos os atores nos graves problemas sociais. considerando as diversas expressões de atuação voluntária no mundo do trabalho, o objetivo do presente artigo é discutir o exercício dessas atividades e de suas lógicas de sustentação a partir dos principais eixos de identificação com a atividade voluntária. Estudos de casos foram realizados em duas empresas com fins lucrativos e em duas organizações não governamentais (ONGs) da cidade de Ribeirão Preto (São Paulo-Brasil). Os dados indicam que o voluntariado, indiretamente, gera valor para o capital e que se deve investir na autonomia das ONGs e na superação de modelos assistencialistas, com ações particularizadas, fortalecendo os empreendimentos coletivos da economia solidária e os movimentos sociais de base. considera-se que o voluntariado seja um modo permitido de construção da subjetividade dentro da lógica do capital.
Palavras-chave: Trabalho, Voluntariado, Subjetividade, Ações sociais.
ABSTRACT
In many countries, particularly in Brazil, we have observed a stimulus in relation to the volunteer work as a way of the democratization of the State, increasing the participation of all the actors in the serious social problems. Taking into consideration the several faces of the volunteer work, the aim of the present article is to discuss the exercise of these activities and their logical of support through the main axle of identification with the volunteer activity. case studies were carried out in two companies with lucrative ends and in two Non Governmental Organizations. (N.G.Os) in the town of Ribeirão Preto (São Paulo State - Brazil). The data showed up that the volunteer work, indirectly, generates value to capital and that we can invest in the autonomy of the Non Governmental Organizations and in the overcoming of the social services models, with particular actions, strengthening collective enterprising of the supportive economy and base social movements. In this analysis, it was considered that the volunteer work is an allowed way of the construction of the subjectivity within the logical of the capital.
Keywords: Work, Volunteer work, Subjectivity, Social actions.
RESUMEN
En diversos países, particularmente en Brasil, se observa un estímulo al voluntariado como vía de democratización del Estado, con el aumento de la participación de todos los actores en los graves problemas sociales. considerando las diversas expresiones de actuación voluntaria en el mundo del trabajo, el objetivo del presente artículo es discutir el ejercicio de esas actividades y de sus lógicas de sustentación desde los principales ejes de identificación con la actividad voluntaria. Estudios de casos fueron realizados en dos empresas con fines lucrativos y en dos organizaciones no gubernamentales (ONGs) de la ciudad de Ribeirão Preto (Sao Paulo - Brasil). Los datos indican que el voluntariado, indirectamente, genera valor para el capital y que se debe invertir en la autonomía de las ONGs y en la superación de modelos asistencialistas, con acciones particularizadas, fortaleciendo las iniciativas colectivas de la economía solidaria y los movimientos sociales de base. Se considera que el voluntariado sea un modo permitido de construcción de la subjetividad dentro de la lógica del capital.
Palavras-clave: Trabajo, Voluntariado, Subjetividad, Acciones sociales.
Atualmente, as formas de atuação voluntária apresentam expressões diversas no mundo do trabalho. Na sociedade da informação (Castells, 2003) e em tempos de manipulação sutil (Lukács, 1974), vem ocorrendo uma intensa especialização do trabalhador, que permanece nas organizações continuamente pressionado pela competitividade e pelas expectativas de manutenção no mercado de trabalho. Em contrapartida, aos trabalhadores excluídos do processo produtivo restam o trabalho precário, informal, parcial e o desemprego (Antunes, 1998; Antunes, 1999; Pochmann, 1999).
Dessa forma, o panorama atual apresentase de forma complexa, com processos de mundialização da economia, intensa mobilidade na organização do trabalho e a presença de diferentes modalidades de contratos de trabalho (Caldana, 2000), fazendo-se necessário analisar tais fenômenos à luz de uma teoria crítica.
Quando se cons idera o voluntário, especialmente o voluntário corporativo, percebe-se um campo marcado pela sutileza das relações. Entretanto, um levantamento dos significados desse fenômeno que considere os diferentes atores sociais envolvidos e os diferentes contextos de produção poderá contribuir para elucidar aspectos importantes dessas relações.
Em diversos países, particularmente no Brasil, tem-se observado um estímulo crescente ao voluntariado como modo de democratização do Estado e de participação de todos os atores nos graves problemas sociais. Pesquisa realizada por Lyet (1998), na França, analisou a situação do voluntariado naquele país e mostrou serem falsas as noções de que as atividades voluntárias produzem significados, reinventam a democracia e medem eficiência, revelando que as organizações marcadas pela atuação de voluntários estão com sua atenção voltada para a forma com que irão organizar e administrar esses voluntários.
O objetivo do presente artigo é discutir o exercício dessas atividades e suas lógicas de sustentação a partir dos principais eixos de identificação com a atividade voluntária. Busca-se também verificar as possíveis contradições entre voluntário corporativo, inserido em contextos organizacionais de estímulo ao voluntariado, e voluntário não-corporativo, constituído por voluntários que iniciaram espontaneamente sua atuação voluntária, sem estarem em empresas com programas de voluntariado.
Método
As análises aqui postas baseiam-se em estudos bibliográficos e documentais bem como em pesquisas empíricas, com abordagem qualitativa, visando a explicar os fenômenos estudados numa perspectiva hermenêutica-dialética.
No referencial teórico-metodológico adotado, será privilegiada a discussão dos fenômenos sociais, considerando a sua subordinação ao processo de reificação do trabalho bem como às determinações referentes ao processo de pesquisa e à interface pesquisador-pesquisado, pois este estudo caracteriza-se pela busca de sentidos atribuídos ao voluntariado, e não pela busca de uma verdade absoluta. Vale ressaltar ainda que, no presente trabalho, método é visto como caminho do pensamento (Minayo & Deslandes, 2002) que facilita a sistematização dos conteúdos analisados, permitindo a construção de um outro olhar sobre o fenômeno.
Os estudos de casos foram realizados em duas empresas com fins lucrativos, que desenvolvem programas de voluntariado corporativo (aqui discriminadas por EMPRESA A e EMPRESA B) e em duas ONGs, uma prestadora de assistência a crianças com câncer (aqui nomeada ONG A) e outra de educação ambiental (ONG B).
Como a região de Ribeirão Preto não possui muitas empresas de grande porte com programas estruturados de responsabilidade social, foram contatadas quatro empresas. Dessas, apenas duas autorizaram a realização das entrevistas com os funcionários. O critério inicial para a escolha das ONGs era a indicação das duas empresas estudadas, por terem algum tipo de atividade realizada no conjunto EMPRESA-ONG, ou seja, a EMPRESA A indicou a ONG A a partir de seus relacionamentos com a comunidade, enquanto a EMPRESA B indicaria a ONG B. Entretanto, a EMPRESA B, por estar no início de seu programa de voluntariado empresarial, não tinha ainda um trabalho estruturado com uma ONG específica, e preferiu não realizar tal indicação. Assim, a ONG B foi selecionada a partir de contatos diretos entre a pesquisadora e os dirigentes da instituição. Sua escolha deveu-se à facilidade de acesso, sobretudo quanto à avaliação da atividade-fim dessa instituição, voltada para uma das preocupações centrais de responsabilidade social das empresas A e B: o meio ambiente.
Em cada uma das quatro instituições participantes, foram realizadas de três a quatro visitas, com agendamentos prévios das entrevistas. Os voluntários entrevistados foram definidos pelos representantes das instituições, que além de colaborarem fornecendo dados da entrevista de caracterização, faziam as apresentações iniciais entre a pesquisadora e os entrevistados. Em alguns casos, a pesquisadora chegou à indicação de voluntários via apresentações feitas por outros voluntários já entrevistados. Apesar da escolha dos entrevistados partir de indicações dos representantes das instituições pesquisadas, o compromisso firmado entre estes e a pesquisadora deu liberdade de acesso aos voluntários entrevistados, sendo que, em nenhum momento, a entrevistadora foi impedida de entrevistar qualquer outro funcionário-voluntário da instituição.
Este projeto foi previamente aprovado pelo comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRPUSP. Todas as organizações mencionadas assinaram um termo de autorização à pesquisa e todos os entrevistados assinaram um Termo de consentimento Livre e Esclarecido antes do início da coleta de dados.
Considerando as quatro instituições pesquisadas, foram realizadas 19 entrevistas com voluntários na cidade de Ribeirão Preto (São Paulo, Brasil).
As investigações contemplaram dois níveis de análise:
A) Institucional: análise do contexto organizacional, que envolve as políticas e os processos de organização do trabalho adotados na instituição em estudo.
B) Atividade voluntária: análise da atividade de voluntariado a partir de dezenove entrevistas com voluntários realizadas nas quatro instituições pesquisadas. As entrevistas individuais foram semiestruturadas e buscaram identificar alguns dados demográficos e os seguintes eixos temáticos:
1.Significado da atividade voluntária;
2.Razões que os levaram a realizar atividades voluntárias;
3.Razões que poderiam levá-los a deixarem de realizar tais atividades;
4.Principais benefícios e dificuldades oriundas da realização das atividades voluntárias;
5.Demais atividades profissionais;
6.Perspectivas.
Todas as entrevistas foram transcritas integralmente e depois foram realizadas análises de conteúdo que permitiram a categorização dos dados em unidades temáticas, utilizadas para a discussão dos resultados.
O presente artigo tem como objetivo analisar algumas das categorias criadas a partir das entrevistas realizadas, sem, contudo, esgotar os resultados alcançados pelo roteiro proposto.
Resultados
Os quadros a seguir mostram os dados demográficos de todos os voluntários entrevistados na pesquisa e os motivos da busca de atividade voluntária apresentados pelos mesmos, o que leva a melhor compreensão do contexto da pesquisa. Posteriormente, as principais unidades temáticas criadas serão discutidas junto aos conceitos teóricos utilizados para análise.
*Com o intuito de preservar a identidade dos participantes, foram criados nomes fictícios paras os voluntários entrevistados na pesquisa.
A seguir, estão apresentadas e discutidas quatro unidades temáticas relevantes para o entendimento da questão do voluntariado contemporâneo: 1. A subjetividade e o sistema capitalista; 2. Assistencialismo e emancipação; 3. As posições de quem ajuda e o ajudado; 4. Ações locais versus ações globais.
Discussão das unidades temáticas
Unidade temática 1 - A subjetividade e o sistema capitalista
Autores, como Lukács (1974) e Antunes (1999), comentam as questões referentes à formação da consciência e da subjetividade no contexto da reificação capitalista. Lukács (1974) retoma a concepção marxista da mercadoria e aponta a falsidade de consciência sob o capital. Antunes (1999) utiliza a nome subjetividade inautêntica para se referir às manifestações da ideologia na consciência individual.
Neste estudo, criou-se o conceito subjetividade permitida, tendo em vista as possibilidades de construções identitárias no mundo contemporâneo. considerando as restrições que o sistema do capital impõe às pessoas, discutem-se aqui as perspectivas de o homem ser e realizar seu potencial num universo de determinações macroeconômicas.
O Trabalho subjugado ao capital e a reificação do processo de produção da sociedade limitam a construção da subjetividade, via identificação com o Trabalho. Nesse contexto, as pessoas buscam outros espaços para a atuação e o exercício das práticas sociais, fazendo crescer movimentos que satisfaçam necessidades que o Trabalho, sob o capital, deixou de suprir.
A atuação voluntária parece preencher tais lacunas, permitindo àqueles que se envolvem nesse movimento encontrarem diversos níveis de satisfação de suas necessidades individuais. Partindo-se de uma perspectiva dialética, que permite não dicotomizar as análises, pretende-se verificar aqui os movimentos complexos e contraditórios em curso.
Dizer algo sobre construção social da subjetividade, em Psicologia, requer algumas definições de termos. Este trabalho, inspirado em concepções de autores como Antunes (1999) e Mészáros (2002), afasta-se das concepções mentalistas clássicas de Psicologia que concebem a subjetividade enquanto processos internos, como pensamento, memória e atenção, entre outros, e aproxima-se da perspectiva construcionista social (Guanaes, 2004; Spink, 1999).
Nas primeiras décadas do século 20, a Psicologia já contava com autores da envergadura de Vigotski (1930-1936/1998) e de Mead (1934), que destacaram a relevância dos determinantes sociais na formação dos processos psicológicos. Há, ainda hoje, análises de representações sociais, na perspectiva de Moscovici (citado por Spink, 1995), que também trazem contribuições ao campo da Psicologia social, tornando-se um quadro de referência para a área. contudo, o construcionismo social apresenta-se como uma das mais recentes vertentes da Psicologia social.
Nessa vertente, encontra-se uma diversidade de posicionamentos entre os autores-chave.
Para efeito do presente estudo, são realizadas análises de práticas discursivas aplicadas ao contexto do voluntariado, de acordo com algumas proposições do construcionismo social (Guanaes, 2004; Spink, 1999).
É importante mencionar, entretanto, que a significativa diferença epistemológica entre a perspectiva do materialismo histórico, linhamestra deste trabalho, e a do construcionismo social não é desconsiderada. Para tanto, é forçoso ressaltar que, enquanto a primeira se funda em bases materiais de construção da realidade, a segunda parte da ênfase à linguagem e à interação social como bases construtoras da pessoa e do mundo, numa perspectiva não-realista.
Por princípio, há uma polarização entre ambas; entretanto, pretende-se, neste momento, a aproximação entre elas, por acreditar-se ser o construcionismo social a perspectiva de ciência psicológica contemporânea que mais enfatiza os processos sociais de construção da subjetividade, não partindo de verdades contidas em processos mentais.
Enquanto o materialismo propõe que a ideologia dominante seja reificada na superestrutura e advenha das bases materiais da sociedade (infra-estrutura), o que atua para a manutenção do status quo, o construcionismo social assume o dialogismo de Bakhtin (citado por Guanaes, 2004), pressupondo que mesmo as bases materiais são resultantes de práticas discursivas dominantes.
Para evitar possíveis impasses, parte-se dos princípios do método dialético. A lógica desse método impede a busca de causalidade e de sentido único em suas análises. considera-se aqui que as práticas discursivas dominantes constroem a materialidade daquilo que descrevemos como realidade, e as bases materiais de um dado momento histórico servem como ponto de partida aos discursos dominantes.
O materialismo histórico e o construcionismo social fornecem contribuições ao desenvolvimento da Psicologia social. Ambos partem de uma perspectiva crítica de ciência, considerando a natureza sociohistórica do ser humano, acirrando as contradições conceitos assumidos como verdade e, acima de tudo, buscando transformações no status quo.
Com esse aporte teórico, pode-se postular que o conceito de subjetividade se dirige a um conjunto particular de sentidos construídos socialmente.
Partindo da perspectiva dos trabalhos de Shotter, Guanaes (2004) propõe que os sentidos que informam a compreensão humana sejam considerados construções sociais, resultantes de trocas conversacionais, e aquilo que normalmente se descreve como self é a construção de uma história possível de si, no diálogo com os outros.
A questão do voluntariado como subjetividade permitida informa a respeito da construção dessas histórias possíveis de si no contexto do capitalismo contemporâneo. Os relatos dos entrevistados na presente pesquisa mostraram, em diversos momentos, como a realização da atividade voluntária atua para aliviar as tensões determinadas pelo sistema do capital, sem, contudo, se contrapor ou alterar tal sistema.
A lógica de sustentação da atividade voluntária passa pelo fato de esta ser uma ação possível dentro do sistema do capital, realizando necessidades de estima que talvez o trabalho numa empresa capitalista não proporcione. Nas entrevistas realizadas, nota-se que o voluntariado é dirigido para a resolução dos problemas gerados pelo sistema do capital sem, contudo, questionar os processos que geraram tais problemas, e que, justamente por isso, é permitido e incentivado pelo próprio sistema.
Esse incentivo pode ser captado no movimento das empresas que estimulam os seus funcionários a serem voluntários. No caso de alguns entrevistados, ser voluntário supre necessidades de estima, de ser aprovado pelo outro e de reconhecimento, o que suas funções na empresa, por si só, não são capazes de suprir. Assim, é possível supor que profissionais que ocupem cargos ou funções da empresa de elevado reconhecimento público sejam menos propensos ao envolvimento no programa de voluntariado.
Entretanto, há uma lógica de sustentação do voluntariado que não depende da função exercida, mas de convicções religiosas. Um dos elementos-chave de manutenção do voluntariado seria a concretização do amor ao próximo e o ascetismo religioso. Nessa perspectiva, o voluntariado leva materialidade ao amor, pois o amor está na ação dirigida ao outro. Um dos voluntários cita figuras de religiosos que inspiram a busca da santidade pelo voluntariado. O presente trabalho não se propõe a aprofundar a construção histórica do amor na cultura ocidental, mas possibilita identificar que essa construção discursiva pode gerar o sentido de voluntário como sinônimo de amor ao próximo, retomando os princípios judaico-cristãos e generalizando a ação voluntária para quaisquer níveis socioeconômicos e/ou funções exercidas no trabalho.
Outro aspecto constatado aponta o voluntariado como uma das dimensões da vida humana, ou seja, ser voluntário permite a inserção na comunidade. Jovchelovitch (2000) também propõe a dimensão participação na esfera pública como necessária à construção da subjetividade, mas não afirma que isso, necessariamente, deva ocorrer sob a forma de voluntariado. Há aqui, mais uma vez, a questão do permitido pelo sistema do capital, pois inserir-se na esfera pública discutindo as determinações da base material da produção de vida da sociedade geraria o confronto direto entre as partes.
O senso de dever e a lógica da reciprocidade também impulsionam o voluntariado, pois, se alguém recebeu ajuda, isso o obriga a oferecer ajuda. A naturalização da atividade voluntária, nos dias de hoje, leva a incorporação desta à rotina, como um senso de dever religioso, o que já havia sido detectado em pesquisa anterior (Landim & Scalon, 2001), e como parte do processo educacional de algumas pessoas.
A educação, ligada à transmissão de princípios religiosos, promove o fortalecimento da cultura do voluntário e constitui importante elemento de manutenção dessa lógica.
Na análise das entrevistas, também surgiram outras razões que, normalmente, sustentam a adesão das pessoas ao movimento voluntário: estimulação da mídia, sofrimento pessoal, expiação de culpas de dívidas religiosas e superação de limites pessoais.
De forma geral, questões relacionadas às necessidades afetivas foram marcantes nos discursos dos voluntários entrevistados na presente pesquisa. Entretanto, o grupo representado pelos integrantes da ONG B (ambientalista) se desviou dessa lógica, sugerindo um outro perfil de pessoas que se engajam no movimento voluntário. Todos os entrevistados dessa ONG se contrapõem à visão clássica de voluntariado. Eles se definem pela negação ao que, normalmente, define o voluntariado: ação espontânea de oferecer ajuda ao outro. Os discursos desse grupo enfatizaram, em vários momentos, a perspectiva de ação voltada para a geração de condições de trabalho mais propícias. Essa lógica parece apontar a necessidade de resgatar um espaço de atuação, de construção de identidade, perdido pelo Trabalho sob o Capital.
Unidade temática 2 - Assistencialismo e emancipação: síndrome de primeira-dama e desenvolvimento de políticas sociais
As disputas internas no movimento de voluntariado (Salamon, 1997) surgem nas entrevistas quando são contrapostas as perspectivas dos voluntários da ONG B às dos demais, o que remete a discussão às questões relativas ao assistencialismo versus emancipação. Discute-se, a partir disso, as ajudas prestadas pelos voluntários entrevistados, analisando-se as relações de dependência-independência geradas por elas.
Demo (2001) aponta o crescimento do Estado neoliberal e o recuo do Welfare State, mesmo assumindo que este é produto liberal e que jamais vigorou de modo satisfatório no Brasil. Para esse autor, apesar de a constituição estar fundada nos princípios do Welfare State, há uma tradição do Estado brasileiro de brincar de solidariedade por meio de políticas sociais conduzidas pela primeira-dama. Nessa perspectiva, condena-se o estigma de enfeite social do papel feminino na condução de políticas dirigidas ao assistencialismo e que não redistribuem renda.
Mesmo reconhecendo que as noções de democracia e de direitos humanos também foram reificadas em mercadorias pelo movimento do capital, Demo (2001) distingue dois níveis de assistência social. O primeiro é direcionado àqueles que não são auto-sustentáveis, porque o pleno emprego é inviável na lógica capitalista, e o segundo é composto pelo grupo que não possui as condições necessárias para se auto-sustentar por meio do Trabalho (crianças, adolescentes, idosos, inválidos) e que necessitariam de soluções de sustentabilidade garantidas pelo Estado.
Segundo Demo (2001), as ONGs poderiam ser mais efetivas se combinassem o assistencialismo com uma atuação política de pressão e fiscalização do cumprimento da legislação vigente, pois o Estatuto da criança e do Adolescente (ECA) prevê que o Estado deve garantir que as crianças, mesmo as pertencentes a famílias de baixa renda, cresçam perto de suas famílias. Se tal legislação fosse levada a efeito, talvez instituições voltadas para o assistencialismo clássico, tais como asilos, creches e orfanatos, se tornassem desnecessárias.
A diferença de origem entre o movimento assistencialista clássico, ligado ao assistencialismo feminino, e o movimento ambientalista, no Brasil, reforça as naturezas distintas entre essas duas correntes de atuação social, o que impede alguns voluntários da ONG ambientalista de se descreverem como voluntários. O assistencialismo passa a ser criticado por ser um trabalho pontual e por ficar na dependência das circunstâncias pessoais daquele que o realiza, isto é, a crítica principal se refere à possibilidade de descontinuidade dessa forma de atuação social. O modelo de voluntariado crítico proposto pela ONG ambientalista corresponde ao conceito de voluntariado orgânico de Selli e Garrafa (2005). Esses autores fazem uma analogia com o conceito gramisciano de intelectual orgânico para sugerir a necessidade de formar um voluntariado voltado para uma participação politizada e que busca a democratização do Estado.
A crítica presente nos relatos da ONG ambientalista busca descaracterizar a atividade dessa entidade como mero trabalho gratuito, em substituição às atividades do Estado. Do ponto de vista desse grupo de entrevistados, atividades voluntárias nas quais não se tenha autonomia e que não produzam efeitos de longo prazo devem ser questionadas.
Nas entrevistas realizadas na ONG que presta assistência a crianças com câncer, a síndrome de primeira-dama apresentase mais fortemente. A lógica presente, na situação de algumas entrevistadas dessa ONG, remete à necessidade de encontrar sentido para a vida por meio do trabalho, não se restringindo apenas às funções femininas domésticas. A condição social de algumas dessas entrevistadas lhes permitiu viver sem a necessidade de ingressar no mercado de trabalho formal, mas o desejo de ter uma função social fora da família levou-as a buscar trabalho, mesmo que voluntário.
Entretanto, também foram identificadas ações assistencialistas entre os homens e mulheres entrevistados nas duas empresas participantes do estudo, não sendo possível presumir que o voluntariado assistencialista seja apenas uma questão de gênero. Apesar de demonstrarem certa preocupação com o caráter provisório e pontual de suas ações, as principais críticas desses funcionários de empresas que prestam serviços voluntários dirigiam-se ao imobilismo gerado, muitas vezes, por posicionamentos críticos quanto à postura assistencialista.
Não há como fazer uma análise linear para concluir, simplesmente, que o posicionamento assistencialista é mais ou menos adequado que outras políticas sociais. Há uma interface nas posturas emancipatórias e assistencialistas, pois, muitas vezes, para se atingir a emancipação, ou seja, para gerar condições que dêem autonomia (auto-sustentabilidade), passase por momentos de assistencialismo. Entretanto, criticam-se as posições de nãoenfrentamento das condições que produzem a pobreza e que desconsideram o papel emancipatório do Trabalho.
A busca emancipatória encontra resistências na tradição das políticas de proteção social. Demo (2002) ressalta que as políticas sociais brasileiras constituem restos para uma população que é resto (p. 323). Nesse texto, o autor sugere que os projetos de erradicação da pobreza no País caminham a passos lentos e ainda estão longe de redistribuir renda, além de defender movimentos sociais de base, tais como o Movimento dos Sem-Terra e o de economia solidária.
A proposta de Demo (2002), baseada nos postulados de Morin, discute as políticas sociais que imbecilizam os pobres, propondo a reinvenção da emancipação (p. 235) por meio do controle social do mercado. Tal proposta defende a formação de empresas solidárias, empreendimentos coletivos baseados em associações entre trabalhadores livres, em detrimento das políticas de responsabilidade social em curso nas grandes empresas capitalistas, como as EMPRESAS A e B pesquisadas no presente estudo. Essa lógica poderia gerar melhor distribuição de Trabalho e renda e dispensar a necessidade de programas de voluntariado corporativo.
Unidade temática 3 - As posições de quem ajuda e o ajudado
Retomando o tema de que o trabalho voluntário, da maneira em que está estruturado atualmente, ou seja, como elemento fundamental à ordem capitalista, tem gerado mais benefícios àqueles que fornecem a ajuda do que àqueles que a recebem, faz-se necessário analisar mais cuidadosamente essa dialética da ajuda (Demo, 2001).
Fica evidenciada em diversos relatos a complexidade da relação altruísmoegoísmo. Tal relação indica que a ajuda pode até mesmo ser prejudicial, pois quem a recebe não define as bases dessa ajuda e pode também se tornar dependente da mesma.
Desse modo, há que se repensar os princípios do voluntariado à luz dos processos decisórios que se fazem presentes. Se o objetivo é melhorar as condições de vida do outro, esse outro deve possuir voz nos momentos de decisão. como, normalmente, o voluntário não permite que o ajudado opine sobre a situação de ajuda, encontraram-se relatos apontando o receio de oferecer ajuda por medo das possíveis resistências oferecidas pelo ajudado.
As pessoas que estão na posição de ajudadas normalmente se sentem inferiorizadas. Isso leva os voluntários a tomarem certos cuidados para minimizar esse efeito negativo no momento da ajuda. Além disso, os entrevistados parecem não notar que as resistências encontradas podem advir do fato de o ajudado não participar das decisões referentes à ajuda que será prestada.
Vários relatos destacaram os benefícios do voluntariado para os próprios voluntários, inclusive o fortalecimento da saúde destes, mas não é possível afirmar, categoricamente, que ser voluntário beneficia mais quem ajuda do que quem é ajudado. Entretanto, analisam-se aqui as apreciações feitas pelos próprios voluntários e que sugerem os diversos ganhos que tal atividade propicia. Esses ganhos percebidos podem sustentar a continuidade das atividades voluntárias e manter a clássica lógica vigente no voluntariado que, muitas vezes, é autoritária e não considera o ponto de vista dos ajudados. Mais uma vez, a perspectiva de um dos entrevistados da ONG B critica a postura do voluntário que se insere nesse movimento para a satisfação das próprias necessidades.
Unidade Temática 4 - Ações locais versus ações globais
Uma das seis propostas básicas de alternativas ao desenvolvimento colocadas por Demo (2002), refere-se à necessidade de retorno ao local. Por mais limitadas que as ações dos voluntários sejam no que diz respeito à resolução dos graves problemas sociais em curso, elas representam a subjetividade permitida e o que tem sido possível realizar diante da ausência de políticas sociais globais mais consistentes.
De fato, a atuação de alguns dos voluntários desta pesquisa não está voltada para a resolução dos problemas, mas para ações assistencialistas pontuais que apenas os acalmam.
Alguns voluntários se engajam em campanhas de arrecadação de donativos para entidades assistenciais. Ao diferenciar ato voluntário de trabalho voluntário qualquer ação social pontual deveria ser classificada como ato voluntário, enquanto ações mais duradouras seriam trabalho voluntário um dos entrevistados apontou os limites das campanhas pontuais, mas considerou que tais iniciativas já representam um passo importante na busca da resolução de problemas, desconsiderando os possíveis efeitos negativos dessas ações.
As discussões anteriores podem ter levado o leitor a concluir que muitos dos entrevistados, por realizarem atividades de cunho assistencialista, desconsideram o papel do Estado como responsável pela apresentação de soluções para os problemas enfrentados. Entretanto, as entrevistas demonstraram que os voluntários, mesmo os assistencialistas, reconhecem a ausência do Estado nessas questões.
Em diversos momentos, foi enfatizado que o poder público deve se envolver mais na busca de soluções para os problemas sociais, mesmo que seja por meio de iniciativas de caráter mais assistencialista, tais como o Projeto Fome Zero do governo brasileiro.
Os fundadores da ONG B planejaram, por meio dessa entidade, realizar atividades que denunciassem os problemas, ambientais/ sociais, pressionando o Estado a solucionálos. Essa ONG tem buscado desenvolver alternativas aos problemas locais, mas que, por se referirem à educação e ao desenvolvimento de soluções de preservação ambiental, podem ser aproveitadas em âmbitos maiores. A expectativa é que as alternativas locais possam ser ampliadas por meio da educação dos agentes sociais, o que geraria soluções para os problemas globais.
Independentemente de perspectivas assistencialistas ou emancipatórias, é positivo pensar que o crescimento do voluntariado pode representar um resgate do senso de comunidade, perdido ao longo dos processos históricos.
Considerações finais
Ao levantar dimensões costumeiramente esquecidas nos discursos vigentes, percebese que o voluntariado não gera valor monetário diretamente para o indivíduo que o pratica, mas gera valor para o sistema metabólico do capital. Assim, não há como desalienar voluntários sem desalienar trabalhadores, pois trocas solidárias e autogeridas exigem que o modelo capitalista de trabalho seja superado.
Para isso, deve-se investir na autonomia das ONGs e na superação de modelos assistencialistas e com ações demasiadamente focalizadoras, fortalecendo empreendimentos coletivos de economia solidária e movimentos sociais de base e politizando as ações das ONGs.
O intuito desta análise não é, simplesmente, negar o trabalho voluntário, mas considerar que este é um modo permitido de construção da subjetividade, uma ação possível dentro da lógica do capital.
Mais do que discutir as práticas de responsabilidade social das empresas e as formas de trabalho voluntário encontradas, as contradições apontadas precisam ser refletidas e discutidas pelos diversos atores sociais. Essa discussão não deve se prender às abstrações imobilizadoras do capital, pois precisa chegar ao questionamento do núcleo das desigualdades sociais: a questão do lucro e da acumulação de capitais.
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Endereço para correspondência
Adriana Cristina Ferreira Caldana
Rodovia Anel Viário contorno Sul, km 318 Rua K, nº 2,Bairro Quinta da Boa Vista A
14033-016, Ribeirão Preto, SP, Brasil
E-mail: adrianacaldana@hotmail.com
Recebido 05/03/2007
Reformulado 20/03/2008
Aprovado 07/06/2008
* Doutora em ciências junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Faculdade de Filosofia, ciências e Letras de Ribeirão Preto USP
** Professor titular do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, ciências e Letras de Ribeirão Preto USP