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Psicologia: ciência e profissão

 ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.28 n.4 Brasília dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre a resistência na clínica a partir de Michel Foucault

 

Resistance in the clinical practicereflections based on Michel Foucault

 

Reflexiones sobre la resistencia en la clínica a partir de Michel Foucault

 

 

Daiana Paula Milani Baroni*; Cassandra Santiago da Cunha**

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão sobre o sujeito e seu lugar no contexto clínico, e, mais especificamente, sobre suas possibilidades de questionamento, crítica e subversão nessa relação de poder. Michel Foucault afirma que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência, e sugere, como uma outra maneira para se abordar essas relações, focalizá-las a partir da análise dos antagonismos das estratégias em vez de focalizá-las a partir de sua racionalidade interna. Partindo dessas colocações e considerando o contexto terapêutico como espaço também para práticas de liberdade e para resistência às posições até então ocupadas pelo sujeito na trama social e na situação clínica, acreditamos que esta experiência possa vir a colaborar com o sujeito numa possibilidade de recriação de si e de emergência de novas formas de subjetivação.

Palavras-chave: Clínica, Foucault, Michel, Relações de poder, Resistência.


ABSTRACT

This article aims to reflect on the subject and his/her position in the clinical context, more specifically on his/her possibilities to inquire, criticize and subvert the order inside this relation of power. Michel Foucault says that in the relations of power there are necessarily possibilities of resistance and he suggests as another way to study these relations the analysis of their antagonist strategies, instead of their intern rationality. Starting from this point of view and considering the therapeutic context also as a locus for acts of freedom and resistance against the positions the subject had in the social context and in the clinical situation, we believe that this practice can collaborate with the subject so that he could recreate himself and new kinds of subjectivities could emerge.

Keywords: Clinic, Foucault, Michel, Relations of power, Resistance.


RESUMEN

Este artículo propone una ponderación sobre el sujeto y su lugar en el contexto clínico, y, más específicamente, sobre sus posibilidades de cuestionamiento, crítica y subversión en esa relación de poder. Michel Foucault afirma que, en las relaciones de poder, hay necesariamente posibilidad de resistencia, y sugiere, como otra manera para abordar estas relaciones, enfocarlas del análisis de los antagonismos de las estrategias en vez de enfocarlas su racionalidad interna. Partiendo de esas colocaciones y considerando el contexto terapéutico como espacio también para prácticas de libertad y para resistencia a las posiciones hasta entonces ocupadas por el sujeto en la trama social y en la situación clínica, creemos que esta experiencia pueda venir a colaborar con el sujeto en una posibilidad de recreación de sí y de emergencia de nuevas formas de subjetivación.

Palabras clave: Clínica, Foucault, Michel, Relaciones de poder, Resistencia.


 

 

Ao nos propormos a refletir sobre a prática clínica e o sujeito a partir do conteúdo ético trazido pelas últimas conferências, entrevistas e textos de Michel Foucault (1926-1984), nós o fazemos por saber que esses dados podem nos servir como ponto de partida para indagações essenciais ao pensarmos no modo como a prática clínica, sobretudo a terapêutica, acontece na atualidade.

Optamos por nos centrarmos principalmente na temática trabalhada pelo chamado “último Foucault”, pois há, a partir de então, uma evidente mudança no foco de sua atenção: ele deixa de tratar da objetivação dos sujeitos pelos saberes e poderes e volta-se agora para os processos de subjetivação. Assim, primeiramente, vamos discorrer sobre os pontos mais relevantes apresentados nessa parte do trajeto de Michel Foucault, sobre os quais assentaremos este trabalho.

Quando nos propusemos a falar de uma experiência clínica, o espaço que caberia delimitar nosso plano de discussão dentro da objetividade proposta pelo modelo científico se ampliou, ao contrário de nossas expectativas, e nos vimos obrigados a situar um panorama mais visível do que seria a clínica sob nossa percepção.

Optamos por não nos ater a uma clínica específica, já que, dentro da dimensão da discussão do poder, visto como ação que emana das próprias relações sociais e, por isso, presente em todas elas, esta discussão engloba indiscriminadamente o que há de menos particular e de mais genérico em toda a experiência clínica. Uma vez que se estabeleça a relação par “paciente-terapeuta”, que se desenrole um jogo de verdade específico e com estratégias demarcadas para se alcançar algum estado esperado ou não, há aí o contexto onde transcorre a relação de que queremos tratar, nos domínios onde haja a possibilidade da emergência de um sujeito que resista aos imperativos de uma lógica na qual se inscreve. Sendo assim, a clínica trazida a debate não se circunscreve em uma especialidade terapêutica ou disciplinar específica.

De acordo com Fonseca (2003), o estudo do poder em Foucault deve ser compreendido sob a ótica da necessidade de uma ampliação dos conhecimentos de seus procedimentos e estratégias, para assim clarificar os processos de objetivação e subjetivação do ser humano em nossa cultura. Ele observa que, sendo o poder analisado a partir da perspectiva das estratégias utilizadas em suas relações em diversos domínios da vida cotidiana, não se faz possível pensar sobre as relações de poder sem levar em conta a constituição do indivíduo. Ao considerar as relações de forças manifestas de maneira descentralizada, e com isso, a resistência sem um local específico, esta se multiplicaria em quantos locais houvesse a afetação das relações de poder.

Em entrevista concedida a Dreyfus e Rabinow (1995) intitulada O Sujeito e o Poder, Foucault nos apresenta como uma diferente forma de prosseguir em direção a uma nova economia das relações de poder a análise dessas relações através dos antagonismos das estratégias, recusando, assim, análises a partir de sua racionalidade interna. Dito de outra maneira, Foucault ilumina as práticas sociais de um modo mais empírico, mais voltado à conjuntura presente, e aproximando a teoria e a prática. A esse respeito, o autor afirma que esse modo de análise:

...consiste em usar as formas de resistência contra as diferentes formas de poder como um ponto de partida. Para usar uma outra metáfora, ela consiste em usar essa resistência como um catalisador químico, de modo a esclarecer as relações de poder, localizar sua posição, descobrir seu ponto de aplicação e os métodos utilizados. (p. 234)

Cabe então, situarmos o nosso olhar sobre a esfera de ação dessa clínica como campo estratégico, em vias de possibilitar a discussão sobre a manifestação da resistência nesse contexto, e então a emergência de uma atitude ético-estética dentro dessa experiência. Ao terapeuta, surge a possibilidade de repensar a clínica com atenção permanente às configurações contemporâneas da produção de subjetivação e sua implicação nesse processo; ao paciente, emerge a possibilidade de se ajustar, criticar e recriar modos diversos de posicionamento.

Uma atitude ético-estética, no sentido foucaultiano, configuraria uma ética como operação ascética que o indivíduo realiza consigo, em seu corpo, seus pensamentos e suas condutas, de modo a produzir neles uma transformação, buscando para si um estilo de vida desejável, livre das identidades sedimentadoras e das universalizações opressivas, e em uma estética como movimento de estilização, um trabalho de constante elaboração de nossa relação com o mundo (Foucault, 1984a).

Dentro de nossa proposta de discussão, que trata justamente da possibilidade de reposicionamento e insubmissão do sujeito no processo terapêutico, o emprego do termo “clínica1”, no sentido de debruçar-se sobre o leito, já indicando com isso a delimitação das posições de forma hierárquica e inflexível, e o emprego do termo “paciente2”, estando este associado ao papel de passividade e paciência diante da situação clínica, não nos parece o mais adequado. No entanto, entendemos a importância de continuar a nos referir a esse enlace como “paciente-terapeuta” por serem esses os pontos-chave de nossa discussão e por trazerem justamente em sua terminologia seu aspecto problemático.

Pensamos que a experiência clínica para a qual voltamos nossa atenção comporta muito mais a perspectiva de uma clínica como espaço para a experiência de se colocar em questão na intencionalidade de ver e rever as localizações de seus posicionamentos, onde o dito paciente, movido inicialmente por uma condição de sofrimento, persevera nesse processo com a suposta facilitação do terapeuta. Não visamos com isso a defender ou a criticar a atividade clínica, mas a estender o plano de indagações sobre essa prática.

A nosso ver, Foucault problematiza amplamente questões que alcançam direta ou indiretamente a experiência clínica, embora em contextos diferentes, ora em uma arqueologia das ciências médicas, ora na arqueologia das ciências humanas, e, mais tarde, direcionando suas análises para as práticas psicanalíticas, o autor expõe indagações que resultam em “revirar” os lugares estratégicos de poder construídos a partir desses discursos.

 

Ética e liberdade

Seguindo a linha do pensamento de Foucault, distanciamo-nos da idéia de uma ética para todos, advinda de preceitos morais incontestáveis ou de uma ética do desejo, e nos aproximamos dessa noção como relação refletida de liberdade. A liberdade, de acordo com Foucault (1984a), em entrevista a H. Becker, R. Former-Betancourt e A. Gomez-Müller, em 20 de janeiro de 1984, é a condição ontológica da ética, e reside na capacidade de questionamento, crítica e recusa das práticas objetivantes e subjetivantes da atualidade.

Nas trajetórias éticas de Foucault, o estudo das relações de poder é ampliado de modo a incluir, em suas análises, os procedimentos de subjetivação concernentes ao sujeito. Em Porque Estudar o Poder, em parte da análise Cunhasobre o poder contida no texto de Foucault sob o nome de O Sujeito e o Poder (Dreyfus & Rabinow, 1995), Foucault afirma que o sujeito é o tema principal de suas pesquisas e que, primeiramente, ele foi analisado quando objetivado pelas práticas do saber, em seguida, quando objetivado pelas práticas do poder e, enfim, através do processo de subjetivação.

Fonseca (2003) explica que os processos de objetivação em Foucault são as práticas que tendem a fazer do homem um objeto dócil e útil através de mecanismos disciplinares. Já os processos de subjetivação concorrem para a constituição do indivíduo, fazendo dele um sujeito preso a uma identidade que lhe é atribuída como própria.

Segundo Rajchman, em texto apresentado no colóquio Rencontre Internationale – Michel Foucault Philosophe, em 1989, Foucault acreditava que ainda não havia estudado ou considerado suficientemente, na história das origens e das transformações da ética, as práticas formadoras dos modos de ser, e que, por isso, deveria estudar a história da ética e não a da moral, assunto esse de que o filósofo tratou de ocupar-se quando se dispôs a olhar para o mundo antigo a fim de pesquisar sobre as práticas de si e seu papel naquela sociedade.

Ainda de acordo com Rajchman (1993), existe uma distinção entre problemas morais que dizem respeito ao código prescritivo, seus princípios e aplicações, e problemas éticos que se orientam sobre como alguém há de se transformar no tipo certo de pessoa, ou seja, o estado moral especial que se é convidado a atingir.

 

Poder e resistência em contexto clínico

Partindo então dessa produção de Foucault voltada para a vida cotidiana dos indivíduos, lançamos um olhar perspectivo sobre a relação agonística “poder versus resistência” na experiência clínica, em uma análise das possibilidades de resistência do paciente num contexto que pode tanto ser considerado de objetivação, de caráter normalizador, quanto promotor de um espaço para questionamento da identidade reconhecida como sua e, portanto, como um espaço para práticas de liberdade.

Sob a ótica de Foucault, o saber/verdade e o poder estão intimamente associados, sendo que o saber/verdade produz poder e o poder produz saber/verdade. Foucault (2004) revela que o poder/saber atravessa os sujeitos, e que podemos compreender esse sujeito tanto como efeito de poder/saber quanto como centro de transmissão. De acordo com o autor,

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. (...) O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu. (pp. 183-184)

Na perspectiva foucaultiana, a dominação está situada como outra das tantas formas de constituição de sujeito. As relações de dominação se configuram de maneira diversa das relações de poder, exercendo-se por meio de um fechamento das possibilidades de qualquer dinâmica ou flexibilidade de reposicionamentos. Dito de outro modo, não há possibilidade de resistência nas relações de dominação, pois não há mobilidade de posicionamentos.

Uma vez que Foucault (1984a, p. 277) afirma que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência, “de resistência violenta, de fuga, de subterfúgios, de estratégias que invertam a situação” – caso contrário, não haveria forma alguma de relação com o poder, o indivíduo moderno, preso a realidades de produção, de significações e relações complexas de poder, pode vir a ocupar outras posições-sujeito na trama social a partir de estratégias de resistência.

Na concepção de Michel Foucault, o poder é analisado como um exercício de alguns a fim de estruturar o campo de ação de outros – uma ação sobre ações. Nessa apreensão, exercer poder sobre o outro em uma espécie de jogo estratégico aberto em que há a possibilidade de algum tipo de inversão, mesmo que remota, não é um mal em si. O problema estaria em saber como evitar os efeitos de dominação que podem acompanhar essas práticas de exercício do poder (Dreyfus & Rabinow, 1995).

Como clínicos, entendemos que, para exercer a liberdade, devemos ser capazes de questionar as maneiras pelas quais somos definidos por nossa história. E nessa medida concordamos com Tedesco (2006), quando ela afirma que a clínica se dirige a um processo de subjetivação onde a subjetividade se exerce como processualidade, realizada num plano histórico-político a partir do qual a forma sujeito emerge como efeito. A autora sustenta que, ao falarmos das forças de produção da subjetividade, estaremos tratando essencialmente de relações de produzir e ser produzido. Assim:

A clínica, portanto, não remete os impasses do sujeito a uma realidade essencialmente psíquica, circunscrita a conflitos intimistas, ou mesmo a estruturas subjetivas universais. Ela traz à cena o plano de forças, no qual lutas, impasses constantes, exprimem certa modalidade de funcionamento. Para além do sujeito constituído, produzido, existe a subjetividade, modo como denominamos seu plano de produção. Esse plano torna-se o real objeto da clínica. (p. 358)

A relação estabelecida no ambiente terapêutico, não se tratando de uma relação de dominação, não deixa de conter estratégias de resistência que podem subverter a ordem estabelecida no foco terapêutico e trazer novas configurações. Quando um tipo de movimento de impermeabilidade relacional opera transformando a relação terapêutica em relação de dominação, há mudanças consideráveis no processo clínico que certamente interferem na proposta do tratamento, posto que as estratégias e objetivos traçados para a modificação do quadro apresentado pelo sujeito em questão dependem da dinâmica da relação paciente-terapeuta.

O movimento rumo a uma relação de dominação por parte do terapeuta sobre o paciente se apresenta mais comum na prática clínica de viés tradicional, ligada diretamente ao discurso médico pedagógico, que entende o terapeuta como detentor de um saber e o paciente submisso ao tratamento clínico, ou seja, esse modelo estabelece relações de dominação bem definidas, com papéis hierárquicos bem marcados e imutáveis, em princípio.

Ao comentar sobre as diferentes formas de conduzir a prática clínica, Schwartzman (2000) nos fala que o terapeuta pode assumir o papel de um expert no assunto consultado ou assumir o papel de alguém disposto a ouvir e a criar estratégias em parceria para a solução de dificuldades. O terapeuta que opta pela primeira postura se apresenta como alguém superior, e a autora denomina essa atitude de abordagem vertical. O terapeuta que procura a segunda forma de agir na relação clínica toma a chamada abordagem horizontal, porque se coloca no mesmo nível do saber dos demais, abolindo a divisão hierárquica.

A partir dessas análises que incidem sobre as relações de poder no contexto clínico e as possibilidades de resistência, nós nos perguntamos: de que maneira se manifestam as formas de resistência diante desse “saber-poder” do clínico que, na utilização de métodos de exame e escuta, atua no sentido de propiciar a produção de uma verdade do sujeito em atendimento? Podemos supor que a resistência revelada na relação terapêutica pelo paciente se direciona não propriamente contra o indivíduo terapeuta, mas vai de encontro às posições até então ocupadas por ele próprio nesse jogo. Resistir contra as modificações é algo natural e esperado na prática clínica, uma vez que podemos comparar o abandono dos hábitos, mesmo que prejudiciais, mas sempre tão pessoais, a um tipo de morte. Nesse sentido, Deleuze (2005) nos oferece interessantes reflexões sobre o conceito de resistência em Foucault:

Não se pode mais nem dizer que a morte transforma a vida em destino, num acontecimento “indivisível e decisivo”, mas, sim, que ela se multiplica e se diferencia para dar vida às singularidades, conseqüentemente às verdades que essa acredita dever à sua resistência. (p. 102)

Traçando um esquema didático para dar conta das relações sociais entre o poder e a resistência, Rajchman (1993) nos apresenta, a partir de sua leitura de Foucault, três tipos possíveis de comunidades: a comunidade dada, a comunidade tácita e a comunidade crítica. A comunidade dada estaria enraizada em uma existência institucional ou material, e seria o tipo de comunidade que as pessoas pensam ter entre si. De acordo com Rajchman, Foucault chama de comunidade tácita tudo o que as pessoas necessitam fazer para manter o controle de um sistema sobre elas. Esse controle residiria na autoridade de sua própria evidência. A existência da comunidade tácita sustentaria a comunidade dada. A comunidade crítica seria instalada quando a comunidade tácita fosse exposta, ou seja, quando passássemos a não aceitar determinado sistema de identificação. A resistência tem um papel analítico e relacionado à exposição das estratégias do poder na medida em que revela algo oculto e inaceitável até mesmo para os próprios sujeitos. Nessa linha de raciocínio, a comunidade crítica seria o tipo de comunidade ou laço que só podemos ter na medida em que praticarmos a liberdade.Assim, na explicação de Rajchman (1993),

A comunidade dada provém de uma identificação: “Eu sou X.” A comunidade tácita é o sistema de pensamento radicado na materialidade que faz de X um objeto de identificação possível, e a comunidade crítica vê esse sistema de pensamento como (...) algo intolerável e começa a se recusar a participar dele. É a comunidade que problematiza a identidade e, desse modo, faz de nossa subjetividade uma questão em aberto e interminável, simultaneamente individual e coletiva. (p. 120)

Dreyfus e Rabinow (1995) apresentam a discussão de Foucault sobre o poder normalizador de uma grande quantidade de ciências interpretativas que emergiram com a expansão da tecnologia confessional. Essas ciências subjetivantes utilizam em sua clínica, como principais tecnologias, o exame e a confissão. Esses procedimentos de exame estão associados à tarefa de codificar e controlar o discurso significante do sujeito.

Nas palavras de Dreyfus e Rabinow (1995), “Enquanto as intervenções operadas sobre os corpos dóceis e mudos eram essencialmente corretivas, as intervenções sobre o sujeito eram essencialmente terapêuticas” (p. 197), e, citando a crítica de Foucault (1998) ao suposto poder curativo de determinadas terapias: “O verdadeiro, se for dito a tempo, a quem de direito e por aquele que é ao mesmo tempo seu detentor e seu responsável, cura” (p. 66).

Foucault (1988), no livro História da Sexualidade I, acrescenta importantes indagações a respeito da função dessa ciência do sujeito. Nesse texto, o autor interroga sobre esse acontecimento de se articular a produção da verdade de acordo com o modelo jurídico-religioso da confissão e a extensão da confidência segundo a regra do discurso científico. Com a difusão desse poder, o sujeito não poderia mais ser o árbitro final de seu próprio discurso, e aquele que o escuta ficaria no lugar de “mestre da verdade”. Essas ciências hermenêuticas partem do pressuposto de que há uma verdade profunda e escondida que precisa ser colocada em discurso diant de intérpretes especializados, revelando-se assim a verdade sobre nossas psiques, cultura e sociedade.

Foucault (1988) afirma que essas ciências interpretativas e a prática clínica estabelecida por elas parecem fadadas a corroborar com as estratégias de poder na medida em que destinam a um intérprete o privilégio do significado. Foucault revela que essas técnicas e saberes dentro do projeto de otimização do poder têm o objetivo explícito de conhecer a consciência das pessoas com o objetivo de dirigi-las. Assim, o sujeito é assujeitado a normas e padrões de constituição de sua subjetividade, e é auto-identificado através de regras previamente perpetradas de conduta. O que contraporia essa realidade normalizadora de controle das subjetividades seriam as lutas de resistência em torno do estatuto da individuação no sentido da produção/criação/invenção de novos modos de subjetividade, novos estilos de vida, novos vínculos e laços comunitários para além das normas de vida empobrecidas e individualistas implantadas pelas modernas técnicas e relações de poder.

Segundo Castelo Branco (2002), as lutas de resistência, no caso particular da individuação, são lutas pela autonomia e emancipação, exigindo para tal um trabalho contínuo de afrontamento dos processos de autonomização contra técnicas de individuação e normalização. Então nos perguntamos: como seria um movimento de emancipação e autonomização na experiência clínica? Como esse paciente poderia subverter a ordem de praxe de discursar sobre si enquanto sujeito e, em decorrência disso, ser examinado pelo especialista? Haveria uma clínica em que os papéis paciente-terapeuta poderiam ser alterados, dinamizados, questionados?

Tendo em vista que o que é visado pelo paciente ao buscar o caminho da terapêutica é colocar sua condição de sujeito em questão, problematizar o que é esperado dele enquanto sujeito de uma normalidade, um trabalho clínico poderia se nortear pela tentativa de utilizar da própria condição de “jogo de poder” presente no setting terapêutico e das estratégias de normalização reproduzidas nessa relação paciente-terapeuta como algo a ser problematizado, revisado, reconstruído.

É nesse caminho que somos levados a questionar o limite, a linha que separa a experiência clínica como relação de dominação da relação de poder e, então, a analisarmos as manifestações das formas de resistência na relação paciente-terapeuta. De que maneira, nesse “jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte” (Foucault, 1998, p. 88), pode o paciente criar uma situação extra ao repertório clínico e que traga a marca de uma subjetivação de si independentemente dos limites impostos pelo quadro terapêutico?

Não nos cabe perguntar o que no sujeito resiste, mas como algo no evento de sua enunciação aparece como resistência, e não como puro assentimento. Poderíamos então considerar a recusa do paciente diante da injunção de dizer a verdade sobre si mesmo como uma resistência à modalidade de subjetivação “imposta” pela técnica terapêutica? Seria esse movimento uma prática de liberdade, um movimento de questionamento do estabelecido e uma possibilidade de direcionar-se para um novo modo de subjetivação ou, conforme indicado pela práxis psicanalítica, tratar-se-ia de uma barreira que pode tanto se situar como mola propulsora para a terapia quanto defesa à não entrada no processo terapêutico?

 

Alguns apontamentos sobre a resistência à luz da psicanálise

Consideramos importante situar, a esta altura, a distinção entre o conceito de resistência utilizado por Foucault e o mesmo termo propagado no meio científico por Freud. Os dois conceitos parecem se aproximar quanto ao fato de participarem de uma “economia” em um sistema considerado por ambos como sistema de forças, mas afastam-se quando se aplicam ao contexto terapêutico, já que, para Freud, em princípio, a manifestação da resistência se traduziria em um obstáculo no desenrolar da análise, e, na perspectiva de Foucault, a resistência se apresentaria como par indissociável na dinâmica com o poder.

Segundo Roudinesco (1998), a resistência em Freud remonta a três possibilidades: a resistência à teoria psicanalítica por esta se tratar da terceira ferida narcísica da humanidade, a resistência como um movimento individual referente à manutenção do recalcado, e a resistência no processo terapêutico, primeiramente tida como um empecilho ao desenrolar da análise e mais tarde como uma peça importante, mola propulsora na dinâmica do tratamento analítico.

No final do século XIX, Freud dava passos importantes para a construção da psicanálise; nessa época, portanto, a elaboração teórica advinda de sua prática clínica encontrava-se indissociavelmente ligada à linguagem científica e filosófica de então. Isso se torna evidente na utilização do vocabulário energético em suas tentativas de descrever o aparelho psíquico humano, ainda com pretensas bases biológicas (Freud, 1990). Nessa busca, são empregados termos como força, energia, quantidade, qualidade, barreiras de contato e resistência. Muito desses termos podem ser depreendidos da trama conceitual que se constituiria na fundamentação da construção psicanalítica, e, apesar das mudanças terminológicas efetuadas ao longo do percurso freudiano, percebe-se que o termo resistência, mesmo carregando uma forte conotação bélica, o que acarretaria uma série de críticas, não foi substituído por outras noções ou conceitos que melhor expressassem o fenômeno com o qual Freud se deparava na clínica. Pode-se observar que foi justamente em referência à prática clínica, em seus Estudos sobre a Histeria, de 1895 (Freud, 1987), no Caso 5 - Srta. Elisabeth von R., que Freud emprega pela primeira vez o termo resistência; diz ele: “No curso desse difícil trabalho, comecei a atribuir maior importância à resistência oferecida pela paciente na reprodução de suas lembranças e a compilar cuidadosamente as ocasiões em que era particularmente acentuada” (p. 167).

Observando a repetida resistência da paciente em fazer determinadas associações, Freud (1976) a considera então como um obstáculo ao tratamento, e, ao longo de seu percurso, formula esse conceito em relação ao conjunto de forças que se opõem aos processos do tratamento psicanalítico, pois erguem-se precisamente contra as associações, recordações e elaborações exigidas por tal processo. Esse fato pode ser observado nas Conferências Introdutórias à Psicanálise (Freud, 1917/1976), na Conferência XIX, em que diz:

Em primeiro lugar, então, quando assumimos a tarefa de recuperar um paciente para a saúde, aliviá-lo dos sintomas de sua doença, ele nos enfrenta com uma resistência intensa e persistente, que se prolonga por toda a duração do tratamento. Esse é um fato tão estranho que não podemos esperar que as pessoas acreditem muito nele. (p. 337)

Realmente, à primeira vista, pode parecer muito estranho tal acontecimento em que o paciente, supostamente buscando um alívio para o seu sintoma, apresente uma oposição permanente ao tratamento, à possibilidade de mudança de lugar em relação àquilo que o faz sofrer. Entretanto, a resistência não deve ser percebida apenas como um obstáculo que se impõe ao tratamento e que deve ser extirpado para que esse prossiga; as resistências que se apresentam nessa situação são preciosos indícios dos meios pelos quais o sujeito resiste em sua vida cotidiana, o que pode trazer elementos importantes para serem elaborados na própria situação clínica.

Lacan nos oferece ainda uma significante e não cômoda contribuição para avaliarmos a resistência no contexto clínico. Em O seminário – Livro 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise, diz Lacan (1985):

Existe apenas uma resistência, é a resistência do analista. O analista resiste quando ele não entende com o que tem de lidar. Não entende com o que ele tem de lidar quando crê que interpretar é mostrar ao sujeito que o que ele deseja é tal objeto sexual. Engana-se. O que ele imagina aqui como objetivo é apenas pura e simples abstração. Ele é quem está em estado de inércia e resistência. (p. 287)

De acordo com Lacan (1998), no texto Variações do Tratamento Padrão, em Escritos, Freud serve-se da resistência como disposição propícia para o acionamento das ressonâncias da fala, e se conforma, na medida do possível, com sua definição inicial de resistência, servindo-se dela para envolver o sujeito em sua mensagem. Com Lacan (1998), fica claro que a interpretação da resistência se distingue da interpretação do sentido – “pela qual o sujeito passa de uma cadeia para outra mais “profunda” (p. 336). Para o autor, a primeira tópica de Freud respondia à pergunta – “Quem resiste?” como sendo o Eu, ao passo que, na segunda tópica, a resistência não é um privilégio do Eu, mas também do Isso ou do Supereu (idem). Lacan ainda acrescenta que a primeira resistência a ser vencida é a do próprio discurso, porque ele é um discurso de opinião em que qualquer objetivação psicológica se revela solidária a ele.

Ainda nesse contexto, Vorcaro (1999) nos faz pensar em outra articulação da resistência: é quando a resistência do paciente nos mostra a rigidez da técnica em relação a pontos que pertencem a particularidades do caso em questão. Ao falar de análise de crianças, Vorcaro (1999) diz:

A “insubmissão” da clínica à psicanálise é, de fato uma resistência da psicanálise. A criança vem apontar, nesse lugar de objeto, uma resistência NA psicanálise - resistência que é mais que um conceito “aplicável” ao analisado ou ao analista – é a própria psicanálise que precisa se dispor à clínica com crianças e, assim, estar ao alcance delas. (p. 18)

Dessa maneira, como apresenta Freud e, mais tarde, Lacan, a resistência é um elemento invariável muito significativo, e pode ser muito proveitoso ao tratamento se não for tomada como simples obstáculo erguido pelo paciente ou obstáculo erguido pelo analista. Nesse sentido, em Foucault, a resistência assume função semelhante, uma vez que exige a problematização dos papéis de paciente e terapeuta e pode culminar na produção de uma nova possibilidade de existir enquanto sujeito.

 

A subjetivação

Nos escritos de Michel Foucault, não há alusão direta aos estudos sobre o sujeito em um texto ou trabalho feito exatamente sob essa temática, mas a subjetividade e a problemática do sujeito são temas que atravessam assistematicamente todos os seus trabalhos. A noção de sujeito não deve ser considerada sinonímia de subjetividade, mas como forma de subjetividade moderna. Michel Foucault não entende o sujeito como uma substância individual, compreendendo-o como efeito tanto das relações de poder quanto das produções do saber no percurso histórico. A história é central para a constituição do sujeito, e este é o produto de seus atravessamentos (Rajchman, 1993).

Em Foucault, o sujeito não se constitui sobre uma identidade psicológica, mas por meio de práticas de poder e de conhecimento e por técnicas de si encontradas na cultura. Foucault refere-se à produção de modos de existência como o processo pelo qual se constitui um sujeito, ou melhor, uma subjetividade: “subjetividade é a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo” (Foucault citado por Revel, 2005, p. 85). Já o termo sujeito faz referência a um objeto social e historicamente constituído, o tipo de subjetividade moderna; portanto, pode-se dizer que a subjetivação diz respeito à construção de jogos de verdade consigo mesmo, isto é, ao modo concreto pelo qual o homem moderno ocidental se constitui em sujeito de conduta moral.

Em Rajchman (1993), temos que:

...há tantas “subjetividades” quantas são as formas aceitas de auto-relacionamento. Cada um de nós pode ter mais de um tipo de subjetividade, mais de um tipo de ser social. Assim, o ser individual e o social não se opõem entre si como entidades absolutas, cada qual exigindo a dissolução do outro. Ao contrário, eles estão vinculados a uma história comum, podendo as formas de um sobreviver a mudanças nas formas do outro. (p. 119)

Michel Foucault opera a descentralização do sujeito, instaurando um novo tempo e um novo olhar nos estudos sobre o sujeito ocidental moderno. Ao recusar a universalidade do sujeito, a concepção de um sujeito cognoscente e transcendental, concebendo-o não como autônomo e heterogêneo, Foucault passa a considerá-lo um ser que não se governa e não é dono e senhor de suas próprias idéias, um sujeito efeito de vários discursos e que se constitui através das práticas de si.

Uma vez que direcionamos nossa pesquisa para os últimos dez anos do trabalho de Michel Foucault, nossas reflexões se situam no momento em que desenvolve suas observações sobre o biopoder. Para Rajchman (1993), nessa parte de seu trabalho, Michel Foucault desvia seus estudos para um novo tipo de wahrsagen (verdade), que passa pela problemática da sexualidade e por aquilo que é socialmente tido por suas perversões e desvios. É o interesse de Michel Foucault pelo biopoder, o poder sobre os corpos humanos.

De acordo com Foucault, o biopoder poderia ser designado como aquilo que faz entrar a vida e seus mecanismos no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana, sendo o homem moderno o animal em cuja política sua vida, enquanto ser vivo, está em questão (Dreyfus & Rabinow, 1995). O biopoder seria um tipo específico de prática administrativa das políticas internas e externas de Estado voltadas para a “vida” da população, uma tecnologia de poder surgida no século XVII e que persiste e opera até hoje através de dispositivos de identificação e de exclusão sociais. Foucault se pergunta, então, quem fica de fora, quem é excluído para que uma sociedade se instaure, já que só podemos nos identificar como pessoas boas, saudáveis, normais, produtivas, de discurso aceitável e pertencentes à dada sociedade apenas se pressupormos a existência de pessoas ruins, doentes, anormais.

Desse modo, nesses seus últimos anos de trabalho, Foucault situa sua crítica nos momentos iniciais do desgaste de determinado funcionamento social, e, em conseqüência, de desgaste de suas técnicas de exclusão características quando começa a pensar no poder como algo positivo e formativo, e não apenas como negativo e repressivo. É mostrado, então, que não se trataria de descobrir uma verdade no sujeito ou fazer do sujeito lugar de verdades, mas de abordar o modo pelo qual o homem é levado a crer em certas coisas e não em outras, tomando as primeiras como verdades. Trata-se, portanto, de analisar as escolhas éticas dos sujeitos que se constituem em jogos de verdade consigo mesmo.

Prado Filho (1998) afirma que as práticas de subjetivação em Michel Foucault implicam relações de verdade ao nível da cultura na medida em que aquilo que é socialmente tido como válido passa a ter valor de norma, e em relações de verdade consigo mesmo através dos jogos de verdade por meio dos quais o sujeito se reconhece como sujeito moral. A esse respeito, o autor escreve: “Os modos de sujeição são da ordem do reconhecimento, da autenticação de si por si mesmo” (p. 245).

As relações entre o sujeito e os jogos de verdade são trabalhados por Foucault a partir de dois tipos de práticas: as coercivas – como a psiquiatria e o sistema penitenciário – e os jogos teóricos – a análise da linguagem, por exemplo. Foucault (1984a) destaca que há uma espécie de deslocamento nos jogos de verdade quando eles não se referem mais a uma prática coerciva, mas sim, a uma prática de autotransformação do sujeito que ele chama de prática ascética. Assim, acentua que as práticas de libertação são diferentes das práticas de liberdade: as primeiras dizem respeito a libertar-se de jugos e prisões imputadas pelo outro, e as segundas referem-se a ser livre de fato. Desse modo, as práticas de liberação são a liberdade de direito, enquanto as práticas de liberdade são a liberdade de fato. O exercício das práticas de liberdade exige certo grau de libertação, e é nesse ponto que se marca a diferença entre relações de poder e dominação.

Ao perceber que uma das grandes questões dos últimos trabalhos de Michel Foucault foi a implicação dos sujeitos nas malhas do poder e como escapar dessa trama, nós nos deparamos com sua análise sobre a resistência. O sujeito é constituído no processo de subjetivação, e esse processo implica conjuntos de forças que se relacionam e se afetam mutuamente. Nessa relação de forças, pode-se criar a existência como forma de resistência, existência como obra de arte, uma espécie de arte da existência. E é nesse ponto que a subjetivação, em Foucault, assume um papel ético e estético.

Foucault (2007), em História da Sexualidade II: o Uso dos Prazeres, descreve a arte da existência no mundo greco-romano como práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens fixavam regras de conduta para si próprios e se mobilizavam com o intuito de transformarem a si mesmos e fazerem de suas vidas uma obra de arte com valores estéticos e com determinados critérios de estilo. Em entrevista intitulada Uma Estética da Existência, Foucault (1984b) aponta a retomada dessa técnica de si na atualidade por decorrência do desaparecimento da idéia de uma moral como obediência a um código de regras. A reflexão sobre os mecanismos sociais, seu funcionamento, as formas de repressão, permitem às pessoas na atualidade criarem novas possibilidades, se determinarem e fazerem sem estritas prescrições as escolhas para sua existência.

Em continuidade a essa reflexão foucaultiana, analisamos que resistir, para a prática clínica que defendemos, é antes um ato de “re”-existência somada a uma movimentação diante de determinada situação. É justamente nesse ato de resistir que surge a possibilidade de se produzirem novas formas de subjetivação, novas singularidades, novas maneiras de existir e de se estilizar.

E, em consonância com Tedesco (2006), acreditamos que “...cabe à clínica comparecer na interrogação da paralisia do processo, na descrença nos referenciais absolutos de julgamento da subjetividade para recolocá-la a caminho de outras formas ainda impensáveis, para fazê-la afirmar-se como real inventora de si” (p. 362).

 

Conclusão

Entendemos que as reflexões foucaultianas não são universais, mas sim, históricas, na medida em que refletem sobre determinados sujeitos, os ocidentais, em certos momentos históricos atendo-se a enunciados de determinadas épocas. Ler Michel Foucault operou certamente uma modificação em nosso entendimento da relação paciente-terapeuta e trouxe repercussões ao nosso modo de proceder na prática clínica. Sua forma de considerar as relações de poder faz com que nos voltemos para o trabalho terapêutico tratando a resistência que se manifesta nesse contexto como algo de importância indiscutível no processo de subjetivação. Ao analisarmos a relação estabelecida na clínica como relação de poder, onde se faz possível a emergência de estratégias de resistência que subvertam a ordem estabelecida pelo plano terapêutico, acreditamos que este trabalho possa ocupar a função de atividade transformadora e não apenas de atividade normalizadora, configurando-se para tanto em um exercício de desconstrução de lugares para que alguma nova experiência possa tomar corpo.

Foucault, em seus trabalhos, lança perguntas a cada uma das épocas refletindo sobre o que somos e sabemos, e também sobre o que podemos. Nesse movimento de lançar-se à análise do passado para que com isso possamos observar as tecnologias que nos produzem no presente, o autor nos apresenta o sujeito moderno em sua historicidade. Tenta, assim, analisar o que podemos ver e enunciar hoje, que poderes é preciso enfrentar e quais são nossas possibilidades de resistência hoje, decorrendo daí a reflexão sobre as nossas atuais formas de existência e processos de subjetivação.

Pensamos que esses questionamentos tão pertinentes ao universo foucaultiano sejam extensíveis à prática clínica, uma vez que nos cabe sempre indagar – a nós mesmos e àqueles que se colocam a nossa frente como pacientes – quem somos nós, o que sabemos e podemos hoje? Cremos que inquietações quanto a Que poderes é preciso enfrentar?, Quais são nossas possibilidades de resistência?, e Quais são nossos modos de existência, nossos processos de subjetivação? devam permear nossa prática e nortear nossas relações de maneira a impedir que nos fixemos em uma prática terapêutica de modulação de condutas e produção de subjetividades em série.

Foucault nos alerta que a criatividade das estratégias e das lutas de resistência decorre das artimanhas da liberdade individual, uma vez que estas são móveis e se transformam. Cabe então ao sujeito que se encontra na posição de paciente criar para si suas próprias estratégias de resistência e possibilidades de significar as experiências vividas, na contramão de aceitar que o terapeuta lhe ofereça uma verdade e prescrições prontas quanto a como se conduzir enquanto sujeito. Tal posicionamento não significa desconsiderar a necessidade de atender aos preceitos da sociedade à qual pertencemos, preceitos que nos tornam sujeitos morais, mas aponta a possibilidade de recusarmos algo do que nos assujeita, na tentativa de nos emanciparmos dessa verdade sobre nós mesmo que nos é infligida para que, a partir dessa recusa, uma certa autonomia possa ser suscitada e uma outra verdade sobre si possa ser inventada.

Sendo assim, ao tratarmos a resistência como decorrente da liberdade individual, observamos a impossibilidade de prever qual é e onde se formará, apreendendo, portanto, que, nesse processo, cabe ao indivíduo em sua experiência concreta a partir da criação de estratégias próprias, em suas práticas de si, enveredar por caminhos outros que resultem em novas formas de se conduzir. Analisamos, enfim, que resistir, para a prática clínica que defendemos, é antes de tudo um ato de “re”-existência somada a uma movimentação diante de determinada situação. É justamente nesse ato de resistir que surge a possibilidade de serem produzidas novas formas de subjetivação, novas singularidades, novas maneiras de existir e de se estilizar enquanto sujeito, restando ao terapeuta o papel de favorecer esse processo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Daiana Paula Milani Baroni
Rua Tereza Lopes, 316, ap. 302
88066065, Campeche, Florianópolis, SC, Brasil
E-mail: daianapaulam@yahoo.com.br

Recebido 30/05/2007
Reformulado 30/08/2008
Aprovado 24/09/2008

 

 

* Psicóloga graduada pela UFSJ - Universidade Federal de São João del Rei, Especialista em Saúde Pública pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, mestranda em Psicologia social pela UFSC.
** Fonoaudióloga graduada pelo IMEC - Instituto Metodista de Educação e Cultura, mestranda em Lingüística na UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: cassandracunha@terra.com.br
1 Do grego klinikòs – que tanto pode se referir à prática da medicina, a estar junto do leito, quanto ao lugar onde se atende aos clientes. Cunha e Mello Sobrinho (1982).
2 Do latim patiente, que se refere à pessoa que padece, ao doente; também pode apresentar uma conotação adjetiva remetendo-se tanto àquele que sofre física ou moralmente, ou àquele que suporta com moderação e sem queixa, o sofredor, ou ainda àquele que é perseverante. Cunha e Mello Sobrinho (1982).