Psicologia: ciência e profissão
ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. vol.30 no.3 Brasília set. 2010
ARTIGOS
E quando os estudantes pedem mais disciplina? Estudo de caso e reflexões sobre autonomia e vida escolar
What about students asking for more discipline? Case study and reflections on high-school experience and autonomy
¿Cuando los estudiantes piden más disciplina? estudio de caso y reflexiones sobre autonomía y vida escolar
Luiz Gustavo Silva Souza*; Sávio Silveira de Queiroz**; Maria Cristina Smith Menandro***
Universidade Federal do Espírito Santo
RESUMO
O objetivo deste artigo é discutir o papel social da escola sob o ângulo da experiência estudantil e das relações que os alunos estabelecem com as regras. Relatamos um estudo de caso feito a partir de entrevistas com duas alunas ingressantes no ensino médio. Em seu discurso, as alunas criticaram o funcionamento da escola e demandaram mais disciplina e regras mais rigorosas. Em nossa análise, refletimos sobre a construção histórica da escola como instrumento disciplinar. Em seguida, analisamos os sentidos conferidos pelas alunas às experiências escolares, à família, à adolescência, às regras e ao futuro profissional. Discutimos o pedido por mais disciplina feito pelas alunas, tendo em vista, além do contexto sociohistórico, o conjunto de suas práticas, vivências e sentidos subjetivos. Afirmamos que, para construir uma escola capaz de promover autonomia, os educadores precisam considerar esses sentidos subjetivos, e as práticas escolares devem contemplar análises da existência psicossocial. Para concluir, afirmamos que a escola deve sustentar seu lugar de autoridade e referência para os jovens e, ao mesmo tempo, abrir-se para a compreensão e para a incorporação da alteridade.
Palavras-chave: Adolescentes, Ensino médio, Disciplina, Desenvolvimento moral.
ABSTRACT
The aim of this paper is to discuss the social role of school considering the students experiences and their perceptions of the school rules. We relate a case study based on interviews with two high-school female students. In this interview, they both criticize the school procedures and ask for more strict rules and discipline. In our analysis, we examine the history of school as a disciplinary institution, and we also discuss the meaning attributed by the students to school experiences, family, adolescence, school rules and professional future. We interpret their request for more discipline regarding not only the social-historical context but also the students social practices and subjective meanings. We claim that educators must consider those subjective meanings and that school practices must include psychosocial analysis in order to enhance the autonomy of teachers and students. Finally, we conclude that school must sustain its authority and, at the same time, it must be open to understand and to incorporate differences.
Keywords: Adolescents, Secondary education, Discipline, Moral development.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es discutir el papel social de la escuela bajo el ángulo de la experiencia estudiantil y de las relaciones que los alumnos establecen con las reglas. Relatamos un estudio de caso efectuado a partir de entrevistas con dos alumnas ingresantes en la enseñanza media. En su discurso, las alunas criticaron el funcionamiento de la escuela y demandaron más disciplina y reglas más rigurosas. En nuestro análisis, reflejamos sobre la construcción histórica de la escuela como instrumento disciplinario. A continuación, analizamos los sentidos concedidos por las alumnas a las experiencias escolares, a la familia, a la adolescencia, a las reglas y al futuro profesional. Discutimos el pedido por más disciplina efectuado por las alunas, teniendo en vista, además del contexto socio-histórico, el conjunto de sus prácticas, vivencias y sentidos subjetivos. Afirmamos que, para construir una escuela capaz de promover autonomía, los educadores precisan considerar esos sentidos subjetivos, y las prácticas escolares deben contemplar análisis de la existencia psicosocial. Para concluir, afirmamos que la escuela debe sustentar su lugar de autoridad y referencia para los jóvenes y, al mismo tiempo, abrirse para la comprensión y para la incorporación de la alteridad.
Palavras clave: Adolescente, Educación secundaria, Disciplina, Desarrollo moral.
O objetivo deste artigo é discutir o papel social da escola sob o ângulo da experiência estudantil e das relações que os alunos estabelecem com as regras. Para isso, partiremos da contribuição de Souza (2007), que conduziu uma pesquisa sobre a experiência de entrada no ensino médio por parte de jovens de classe popular. O autor escolheu pesquisar essa classe porque ela constitui a maior parte da população brasileira, cliente compulsória das escolas públicas1. Pesquisar sua experiência escolar pode fornecer dados para mudanças qualitativas importantes no campo da educação.
Inspirado por uma pesquisa de desenho semelhante, realizada com alunos do ensino fundamental (Cruz, 1997), Souza comparou as expectativas formuladas pelos estudantes antes de entrarem no ensino médio com as representações sobre a escola e sobre esse nível de ensino alguns meses mais tarde. A primeira coleta de dados foi feita em fevereiro (no primeiro dia de aula), e a segunda, em setembro do mesmo ano (2006). A pesquisa pôde mostrar aspectos da evolução das representações sociais de escola e ensino médio nesses momentos iniciais de escolarização secundária. Além disso, analisou dados sobre as vivências dos alunos na escola.
Uma parte substancial dessas vivências diz respeito à relação que os alunos estabelecem com as normas escolares e com a disciplina. Apesar de fortes apelos em favor do protagonismo juvenil tanto nas políticas educacionais (Zibas, 2005) quanto na literatura da área, verificou-se que as relações com as regras escolares estavam marcadas pelo tradicionalismo. Notou-se também a ausência de canais consistentes de expressão e ação juvenis. A representação social de bom aluno, construída pelos estudantes, manteve-se constante nos dois momentos de coleta, centrada nos valores tradicionais de obediência, esforço e boas notas. As experiências de entrada no ensino médio foram caracterizadas, hegemonicamente, pela adequação a uma formatação escolar já pronta (Souza, 2007).
Seria possível, no caso acima, afirmar que a escola, os membros da direção, os professores, etc., não estavam dispostos a transformar, a experimentar, a ousar, etc. De fato, é provável que isso tenha acontecido e ainda aconteça, como parte da história de desencontros que marcou a construção da escola pública no Brasil (Patto, 1997). Entretanto, além de chamar os educadores e gestores às suas responsabilidades, pensamos que seja importante avaliar a participação efetiva dos alunos. Eles querem que a educação mude? Se sim, em que sentido? Eles se dispõem a participar ativamente da vida escolar? Eles querem ser protagonistas?
Os interessados em educação, grupo no qual nos incluímos, muitas vezes questionam a disciplina escolar influenciados por autores como Foucault (1998), Enguita (1989) e Ariès (1978). Entretanto, o que pensar se os alunos pedirem mais disciplina? Neste artigo, refletiremos um pouco sobre essa questão. Com isso, procuraremos oferecer uma contribuição a educadores e a psicólogos escolares, apontando caminhos para avaliar as relações entre educação e autonomia.
Relataremos uma investigação cuja meta foi analisar os sentidos subjetivos construídos por estudantes, ingressantes no ensino médio. A experiência escolar e, em especial, as relativas a regras escolares serão focalizadas.
Partimos do conceito de sentido subjetivo, decorrente do estudo de Vygotsky sobre pensamento e linguagem. Sentidos subjetivos são categorias mentais que utilizamos para compreender o mundo e nele agir, e são construídos ativamente pelos sujeitos a partir de sua inserção histórico-cultural. Para Vygotsky (1934/2000), a linguagem, artefato social, é um instrumento simbólico do qual o sujeito se apropria para construir o pensamento sobre si mesmo e sobre o mundo. Os sentidos subjetivos são construídos a partir da apropriação ativa dos significados sociais. Tal visão sobre o ser humano considera simultaneamente a generalidade dos significados sociais e a singularidade da experiência subjetiva.
Evidentemente, a cultura se torna subjetiva, fundamentalmente, pela intermediação do adulto. Assim, cabe ao adulto, na perspectiva vygotskiana, facultar à criança a possibilidade de conviver com signos e valores, elementos de ordem social e preexistentes a ambos (Vygotsky, 1988).
No entanto, neste artigo, tratamos de duas ordens teóricas aparentemente antagônicas, porém necessárias, para a abordagem do problema de pesquisa. Não se pode tratar a moralidade humana sem que se recorra a Jean Piaget, tampouco se podem categorizar sentidos subjetivos advindos do agir no mundo, considerando dimensões sociohistóricas, sem referenciar Vygotsky. Não seria razoável imaginar que a moralidade humana esteja desprovida de afetações histórico-sociais. Envidaremos esforços para reunir as duas teorias (porquanto não é objetivo de nosso trabalho), mas precisaremos nelas buscar um ponto de ancoragem comum, decorrente da natureza mesma do objeto de estudo.
Castorina e Baquero (2005) estudaram exaustivamente as teorias de Piaget e Vygotsky na tentativa de entender diferenças e aproximações de ambos na constituição de influências sobre a Psicologia do desenvolvimento. A citação de parte de seu capítulo conclusivo pode ser-nos útil para atenuar as ambiguidades (aparentes ou não) entre as duas vertentes. Para eles,
Sabe-se que, para a versão estandarte dos intérpretes da obra desses pensadores, estamos frente a dois programas incompatíveis de Psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem. Um exame cuidadoso das perguntas a que cada programa pretendeu responder, assim como à dinâmica de suas transformações, permite reconhecer que as diferenças são profundas e inelimináveis. Contudo, pode-se postular que, se consideramos o modo de colocar os problemas do desenvolvimento, da aprendizagem e da vinculação entre indivíduo e sociedade (Castorina, 1996), as hipóteses principais não são incompatíveis. Pode-se aprofundar na tese de uma compatibilidade entre eles recorrendo-se à metodologia dialética que identificamos e elucidando o modo como funcionou nos programas. Em outras palavras, os contornos da dialética, mesmo em sua diferença, destacam um referencial epistêmico básico que permite iluminar de outro modo as relações entre seus programas (Bidell, 1988). Pode-se considerar que a reconstrução do pensamento dialético de nossos autores equivale a uma reintegração do sentido global da problemática e da metodologia dos programas de pesquisa a que deram origem. (Castorina & Baquero, 2005, pp. 204-205)
Método
Basearemos nossas discussões em dados coletados por Souza, referentes à parte de dados da sua dissertação de mestrado. O autor foi conclusivo ao mostrar que, no caso da escola estudada, a experiência de ingresso no ensino médio não alterou substancialmente as representações construídas pelos alunos em torno da escola e de suas práticas (Souza,2007). O volume de dados coletados foi grande, e abarcou variados aspectos da experiência escolar, sendo que alguns dos temas pedem aprofundamento de análise. Com a pesquisa que apresentamos aqui, buscaremos aprofundar a discussão da relação dos alunos com as regras escolares.
Analisaremos duas entrevistas feitas a partir de roteiro semiestruturado. A escolha dessas duas entrevistas é explicada a seguir. O autor entrevistou nove estudantes nos meses de fevereiro e setembro de 2006. Entretanto, duas estudantes entrevistadas no início do ano mudaram de escola logo nas primeiras semanas de aula, e, em setembro, seus depoimentos diferiram sensivelmente daqueles feitos pelos outros alunos, considerando a temática das regras escolares. Chamou a atenção do pesquisador, em especial, seu pedido por mais disciplina, tópico no qual pretendemos focar nossa análise.
Apresentaremos os dados obtidos por meio das entrevistas feitas com essas duas alunas quando tinham, portanto, cerca de oito meses de experiência no ensino médio. O autor utilizou um roteiro para entrevista semiestruturada, organizado em torno de quatro eixos, como mostra a Tabela 1:
A pesquisa que apresentamos aqui é documental, uma vez que se baseou nas gravações e nas transcrições das entrevistas mencionadas. O desenho metodológico é o de um estudo de caso. Não pretende fornecer bases para generalizações, mas sim, compreender o fenômeno estudado em sua complexidade. Trata-se de uma pesquisa de tipo descritivo, feita a partir de uma abordagem psicossocial. O procedimento analítico não prevê enumeração, mas interpretação das relações entre os sentidos estudados e das relações entre sujeito e sociedade.
Escutamos as gravações das entrevistas e lemos suas transcrições. Utilizamos a análise de conteúdo temática como metodologia de análise (Bardin, 1977), com os procedimentos de leitura flutuante das transcrições, identificação de núcleos de sentido e interpretação dos temas. Notamos, nos discursos das alunas, os sentidos que atribuíam a suas experiências escolares, associados a conceitos, valores e crenças sobre família, adolescência, regras, escola e futuro profissional. Condensamos esses sentidos para apresentá-los no tópico resultados, a seguir, incluindo citações literais das entrevistas. Privilegiamos as questões e as respostas relacionadas às regras escolares e à disciplina, para manter o foco que selecionamos. O procedimento de análise consistiu em interpretar a relação entre os sentidos subjetivos estudados e a relação entre esses sentidos e significados socialmente construídos sobre escola, disciplina, ensino médio, adolescência e sucesso profissional.
Resultados
As alunas entrevistadas serão chamadas aqui por nomes fictícios: Bruna e Denise. Ambas tinham quinze anos, na data da entrevista. Moravam em um bairro periférico, de classe popular, localizado em um Município da região metropolitana de Vitória, ES, Brasil. Bruna morava com os pais e com uma das três irmãs mais novas, estudantes do ensino fundamental. Denise também morava com os pais e tinha quatro irmãos. Um deles ainda estudava e os outros três pararam de estudar depois do ensino médio e estavam trabalhando. As duas alunas iniciaram o ensino médio em fevereiro de 2006, em uma escola recém-construída pelo Governo do Estado. Essa escola contava com instalações e equipamentos novos, rampas, quadra de esportes coberta, etc. Seus estudantes vinham de diversos bairros do Município2, e, por isso, vamos chamá-la com o nome fictício de Escola Central.
Bruna e Denise começaram o ensino médio no turno vespertino da Escola Central, mas moravam em outro bairro. Em um prazo de mais ou menos uma semana, tiveram que trocar de escola e de turno. Foram para uma escola bem diferente, que funcionava no mesmo bairro em que residiam. Tratava-se, na verdade, de uma escola que ministrava o ensino fundamental nos turnos matutino e vespertino e que foi adaptada para o ensino médio no período noturno. Era uma escola menor, com menos salas de aula, ambientes depredados, quadra de esportes descoberta e sem iluminação, menos alunos e menos equipamentos disponíveis, que atendia quase exclusivamente os jovens do bairro onde se localizava. Por isso, vamos apelidá-la de Escola Periférica.
Bruna e Denise passaram a estudar mais perto de onde moravam, para responder a contingências relacionadas a trabalho, família e recursos financeiros. A mãe de Bruna começou a trabalhar o dia inteiro fora de casa. A adolescente teve que passar a ficar em casa durante o dia, para realizar serviços domésticos e principalmente para cuidar da irmã mais nova, que tinha quatro anos na época. No caso de Denise, ela própria começou a trabalhar fora de casa, como faxineira, em um outro Município da Região Metropolitana. Além disso, ela considerava difícil chegar até a Escola Central por meio do transporte público.
Perguntamos a Bruna e Denise o que achavam de estudar na Escola Periférica. As duas disseram que a escola era ruim porque era desorganizada. Criticaram a permissividade da escola para com os alunos, a falta de regras e de sua aplicação:
Eu não gosto de estudar aqui, não. Eu nunca gostei dessa escola. Não é por causa de professor, por causa de nada.... É porque... sei lá... eu acho muito desorganizado.... Não é obrigado a entrar de uniforme, entra se quiser, pode entrar até sete e quinze, porque tem gente que trabalha, entendeu, só que os meninos ficam matando aula no corredor, atrapalha quem tá estudando... soltam bombinha... um monte de coisa... (Bruna). Denise: Aqui aprende quem quer, né. Quem não quer... Porque lá (na Escola Central) era mais rigoroso, né. Mas, tá bom... assim... os professores... dá pra aprender... Tá sendo bom.
Pesquisador: Você disse que a escola tá assim aprende quem quer
Denise: É, porque, tipo assim, aqui tem muita gente que vem pra não estudar, entendeu. Aí, fica bem complicado.
Pesquisador: Que que você acha disso?
Denise: Ah, eu acho assim, sei lá... meio bagunçado, entendeu.
Bruna lamentou que não houvesse punições, assinatura de ocorrências: Na minha sala, só tem gente infantil, declarou. Para ela, a sala de vídeo é precária, e quase nunca é utilizada, não há laboratórios, a sala de computação também é utilizada raramente e não há instrutor de informática. Bruna se decepcionou com a escola que, segundo ela, praticava vários descasos. Percebia que a atitude da escola era do tipo se não quiser, não aprende. Ao ser questionada sobre as regras da escola, disse que as desconhecia e que não via nenhuma norma ser aplicada:
Não tem regra. Pode até ter, mas, que eu saiba, não tem. Por exemplo, quando eu fui estudar (na Escola Central), no primeiro... quando eu fui fazer minha matrícula, me deram um papel de regra. Aqui, nem um papel de regra não tinha.... uma falta... uma desorganização danada. Pelo amor de Deus. Não tem nem organização na escola. Cê vê que, uma hora dessa, era pra tá todo mundo na sala, cê tá vendo... Tem gente sentada ali na árvore, tem gente... Na minha sala, eu cheguei lá, só tem duas pessoas. (Bruna)
Para melhorar a escola, acha que todos deveriam ser obrigados a entrar de uniforme e no horário certo, a ficar dentro da sala e a respeitar todos os professores. Aplicaria ocorrências e suspensões aos alunos que desrespeitassem as regras. Não permitiria que as aulas fossem adiantadas nas sextasfeiras (isso é feito para que todos saiam mais cedo). Sintetizando, disse que, para melhorar a escola, seria preciso eles botar regra... Os professores são bons, entendeu, explica a matéria direitinho. Mas eu acho que só isso mesmo. Botar regra.
Para ela, a falta de organização impede o bom aproveitamento das disciplinas. Percebe que até mesmo os professores ficam desestimulados para explicar as matérias. Cita o exemplo de uma professora cuja palavra é desrespeitada: quando todo mundo vê que ela (a professora) tá nervosa, aí todo mundo fica quieto, aí ela começa a falar, e todo mundo começa a falar tudo de novo. Bruna passou a ficar desanimada com os estudos e passou a ter notas baixas: Eu tinha as melhores notas, sem brincadeira, sempre tive o melhor... Agora, o que eu tô caindo... porque, com aquela bagunça dos outros, o professor até desanima de explicar. Falta a muitas aulas, e já pensou em parar de estudar. Quando questionada sobre seu desempenho, disse:
Bruna: Eu tento me esforçar, mas é difícil. Sempre tem algum... alguém que te atrapalha, entendeu. Você tenta concentrar, e aí tem um falando de um lado e outro falando de outro, e você acaba desistindo... Quero nem aprender mais... Eu tô faltando muito, muito... tô faltando mesmo. Tem dia que eu penso assim ai, que vontade de ir pra escola, aí, cê chega aqui... essa desordem, aí eu ai... Eu amava estudar (na Escola Central), mas o que tava atrapalhando muito era as condição financeira... Minha mãe não podia pagar alguém pra ficar com minha irmã e eu ir pra escola. (Da Escola Central) eu não tenho nada pra falar. Do tempo que eu fiquei lá, era uma escola excelente. Pesquisador: Você acha que tinha mais regras?
Bruna: Nossa... aquilo ali era uma escola rígida. Rígida mesmo. Chegava a ser enjoada de tão rígida que era. Tava sendo bom pra caramba. E se eu tivesse condição de pagar minha passagem pra ir todo mês e minha irmã estudar na parte da tarde, então dava pra mim ir pra escola.
Diante de sua percepção sobre a Escola Periférica, seria lógico esperar que Bruna procurasse fazer algo. Afinal, a situação que ela enfrentava a tinha levado a quase desistir do ensino médio, e, na mesma entrevista, ela disse que seria inadmissível parar de estudar, porque o ensino médio significava estar quase na faculdade. Entretanto, até o momento, ela se limitara a conversar com os pais, que lamentavam não ter o dinheiro suficiente para mantê-la na Escola Central. Na verdade, sua mãe chegou a ir à escola para conversar com a diretora sobre os alunos indisciplinados, mas, segundo Bruna: a diretora passou na sala, falou umas coisinha e pronto, no mesmo dia já tava a mesma coisa. Ela tentou conversar, mas não adiantou nada.
Bruna, ela própria, não fizera qualquer denúncia ou sugestão aos responsáveis pela escola ou aos gestores da Secretaria Municipal de Educação. Alegou que não acreditava que poderia fazer algo para ajudar a melhorar a escola:
ah, acho que eu não posso fazer nada, não... Acho que eu posso fazer, mas, sei lá... Sei lá, eu sozinha... tenho vontade, não.... Ah, deixa pra lá. Eu sou mais na minha, não sou de falar. Eu sou mais quieta.
Sob a hipótese de que ela mudasse de ideia, o pesquisador perguntou quais seriam os meios que ela usaria para fazer algo. Ela sugeriu conversar com a diretora e com a coordenadora (afirmou que, até o momento, nunca havia conversado com a diretora da escola). Sugeriu também pedir a grupos de alunos interessados em mais regras que falassem com os alunos em geral. O pesquisador perguntou, então, se ela achava que isso funcionaria, e ela respondeu: ah, sei lá... acho que não. Sobre falar das suas sugestões, afirmou que eu não me prontifico em dar sugestão nenhuma. Mas, eu faço a minha parte. Em seu raciocínio, fazer a minha parte assumiu o sentido de aplicar-se individualmente aos estudos.
Denise também deu destaque à desorganização da escola e também criticou o comportamento de colegas: aqui tem muita gente que vem pra não estudar, entendeu. Aí, fica bem complicado. Os alunos ficam soltos, cada um faz sua regra. Acha que a escola é assim porque a direção e a coordenação não são duras e exigentes o bastante ou porque os alunos são muito rebeldes:
Denise: Bom, regras aqui eu não sei se tem, não. Tem, mas nem todo mundo cumpre, né, eu acho. Acho normal, mas aqui tem muito adulto, então... Ninguém vai bater em ninguém, essas coisa... Tem muito maior de idade, então... Tem gente que quer sair, pega e sai... Eles não vão poder... Então, fica na consciência de cada um. Quem tá aqui, pode-se dizer que cada um faz sua regra.... A diretora coloca regra, mas nem todo mundo... nem todos seguem ela. Por exemplo, não pode matar aula, aí tem gente que mata... é assim.
Para melhorar a escola, colocaria regras: entrar no horário, exigir permanência nas salas de aula, aplicar punições (por exemplo, não matar aula, assim, tinha que ter uma pena maior, entendeu), organizaria eventos artísticos (música, teatro, dança), para chamar a atenção dos jovens e fazêlos ter mais vontade de estudar, instalaria iluminação na quadra de esportes, faria com que todos levassem as aulas de informática e de educação física mais a sério.
Sobre seu desempenho, Denise disse que estava indo mais ou menos. Por causa de seu trabalho, só tinha tempo para estudar enquanto estava dentro da sala de aula. Tinha que acordar muito cedo todos os dias e tinha pouco tempo para os estudos. Em geral, não assistia às primeiras aulas, e, às vezes, faltava às últimas. Disse que não entendia algumas matérias. Afirmou que a escola nunca promoveu atividades para que os alunos pudessem se expressar (pra poder a gente participar e dar nossa ideia). Mesmo se promovesse, provavelmente ela não tomaria parte:
Mas, da escola, projeto da escola, nunca teve, não. Já teve... Eu acho que já teve sim, mas nunca foi assim... nunca foi... como é que fala... nunca foi falado nas salas, entendeu. E às vezes, até se fosse falado, eu não ia me interessar, porque agora que eu tô trabalhando, fica difícil ficar se envolvendo com isso, fica muita coisa de uma vez só.
Sobre a desorganização, que julga ser uma característica da Escola Periférica, e sobre a possibilidade de ajudar a melhorar a escola, acaba chegando a uma conclusão parecida com a de Bruna: Não tem jeito. Fazer o quê? Cê acaba... né... vai depender de mim. A expressão vai depender de mim é, aqui, análoga a fazer a minha parte, ou seja, significa dedicar-se individualmente aos estudos para tentar se destacar de uma realidade escolar irremediavelmente confusa e, contando com méritos próprios, cumprir os ideais da meritocracia liberal: estudar, passar de ano, fazer faculdade, ter uma boa profissão, vencer na vida.
As duas estudantes declararam perceber que o ensino médio é mais difícil que o ensino fundamental e que envolve mais compromisso: já é uma preparação para a faculdade, para o futuro. Ao mesmo tempo, sentem-se desestimuladas por causa das dificuldades apontadas e se vêem como impotentes e conformadas perante os problemas da escola.
Discussão e conclusões
Em princípio, parece-nos importante examinar as condições que levaram Bruna e Denise à Escola Periférica. Como vimos, para que as alunas pudessem continuar a estudar na Escola Central, era preciso que houvesse maior investimento, tanto da sua parte como da parte de suas famílias. Esse investimento teria que ser tanto motivacional (dispor-se a sacrifícios para estudar mais longe) quanto financeiro (manter as filhas só estudando). Guimarães e Romanelli (2002) mostraram evidências de que, nas famílias de classe popular, os pais tendem a achar que cumpriram sua obrigação de manter os filhos estudando apenas até o fim do ensino fundamental. Depois disso, tendem a incentivar os filhos a trabalhar, e há tarefas específicas para meninas (elas ficam com o trabalho doméstico e o cuidado de irmãos).
Para a mudança de escola, o pivô central foi o trabalho. Bruna devia (e também desejava?) cuidar da irmã, e Denise devia (e também desejava?) fazer faxinas. Estamos diante de casos comuns de escolarização secundária em jovens de classes populares: apresentase uma tensão permanente entre estudo e trabalho. As condições socioeconômicas das duas estudantes não permitiram que elas se dedicassem unicamente aos estudos, como fazem os jovens de classe média. Repetiu-se um velho chavão da pseudo-meritocracia capitalista: para os jovens abastados, a preparação para o ensino superior, e, para os jovens pobres, o trabalho. Autores como Romanelli (1994) mostraram que o ensino médio brasileiro assumiu feições eminentemente seletivas e propedêuticas ao longo da História, traços que reconhecemos até hoje.
As alunas esperavam ser preparadas (o ensino médio é uma nova etapa, é quase estar na faculdade), mas parece que o que se operava era uma seleção, e que elas estavam ficando de fora. Denise não tinha tempo para estudar (a não ser dentro da sala), chegava atrasada e perdia a primeira aula todos os dias; não teria tempo para participar de atividades extras que a escola pudesse oferecer, mesmo que acontecessem nos finais de semana. Bruna se declarou desiludida com a escola, faltava a muitas aulas por desânimo, e chegou a pensar em parar de estudar.
Parar de estudar era uma opção descrita como catastrófica pelas próprias alunas. No entanto, tinha sentido. O ambiente escolar não ajudava, a família parecia demandar outras atividades e o trabalho era um chamariz. No que diz respeito à construção da identidade (Ciampa, 2001), parecia haver uma oscilação entre investir na estudantevestibulanda- profissional-bem-sucedida ou investir na trabalhadora-dona_de_casaesposa- mãe. Certamente, em sua dinâmica subjetiva, as jovens viam brilhos e sombras em cada uma dessas opções.
O tipo de trabalho que colocou obstáculos ao estudo não deve passar despercebido. Eram trabalhos domésticos e subvalorizados, destinados tradicionalmente às mulheres em nossa sociedade. E eram as atividades desempenhadas pelas mães das alunas. É interessante acrescentar que o acompanhamento da vida escolar dos filhos também ficava a cargo dessas mães e de forma quase exclusiva. Os alunos entrevistados por Souza (2007) afirmaram que o pai ficava distante das questões escolares. Bruna descreve o pai como nervoso e no canto dele, e Denise descreve o seu como bravo e que não fica olhando caderno.
Tomemos um segundo ponto, a questão da disciplina3. Foucault (1998) analisa a construção da sociedade disciplinar na Europa, nos séculos XVII e XVIII. Nós (nas Américas) certamente fomos marcados por esses movimentos, na medida em que incorporamos historicamente a cultura europeia como um dos pilares de nossa maneira de viver. Segundo o autor, a sociedade disciplinar emergiu para responder a uma série de contingências históricas heterogêneas, dentre elas, por exemplo, o grande crescimento populacional. Contra a desordem das massas, era preciso impor disciplina, e a escola foi um de seus instrumentos (e um de seus efeitos). Conforme Foucault, o poder disciplinar não é centralizado, mas sim, capilar, exercido por todos nós, segundo mecanismos de vigilância e de punição específicos. Os efeitos do poder disciplinar devem ser a diminuição da potência política e contestatória das massas e o aumento de seu poder produtivo (e reprodutivo).
Enguita (1989) localiza na mesma época (séculos XVII e XVIII) o fenômeno de massificação das escolas. O autor está interessado em mostrar principalmente as relações entre os modos de produção escolar (sua face oculta) e os modos de produção fabris que deram impulso à burguesia e ao capitalismo. Faremos, a seguir, um possível resumo do que o autor nos diz sobre o funcionamento escolar. A escola de ontem e de hoje:
- valoriza a ordem e a submissão;
- inclui os jovens em relações burocráticas e de impessoalidade;
- aliena os estudantes dos processos de trabalho: eles não podem escolher o que vão estudar, nem como e nem a qual ritmo;
- institui formas padronizadas de viver o tempo, que são também heterodeterminadas;
- seleciona traços de personalidade, reforçando principalmente a obediência e a tenacidade e punindo a criatividade, a agressividade e a independência;
- contribui para a atomização social. O aluno deve aprender a estar sozinho na multidão. Favorece o individualismo e a competição. Desencoraja formas de agremiação. Fortalece a percepção de que o caminho mais seguro para a mobilidade social é aceitar a meritocracia escolar, e não unir-se a outros para questionar o que está estabelecido;
- institui sistemas de recompensas extrínsecas. As atividades e os estudos parecem, na maior parte das vezes, não possuir valor em si;
- favorece a divisão entre trabalho manual e intelectual e a crença de que esses tipos de trabalhos são inconciliáveis; acostuma à submissão a avaliações alheias e
- justifica a estratificação social por meio do discurso da meritocracia.
Esse funcionamento deve ser acompanhado pelo exercício de um tipo de autoridade por parte de pedagogos e professores que Novais (2004) chamou de autoridade autoritária, caracterizada pela imposição das normas e do saber por quem detém a autoridade, no caso, a escola. Nessa relação, os alunos são tratados como meros receptores de informação, e espera-se que simplesmente obedeçam às regras de forma automática. A imposição das normas e do saber se dá amparada pelas coações e punições: gritos, ameaças, notas baixas, advertências, suspensões, etc.
Baseando-se em Piaget, La Taille (1992) afirma que as relações sociais podem ser consideradas relações de coação ou de cooperação. As relações de coação estão associadas à autoridade autoritária que descrevemos acima. São caracterizadas pela atribuição imediata de prestígio a uma das partes, por mecanismos de obediência automática e pela definição unilateral das normas, ou seja, pela heteronomia. Já as relações de cooperação se definem pela operação coletiva sobre os objetos, pela coordenação de pontos de vista dos diversos agentes e pela construção conjunta das normas, ou seja, pela autonomia. As práticas de autonomia não excluem a disciplina, mas certamente não a sobrepõem aos sujeitos como algo externo.
Na escola disciplinar, organizada pela heteronomia, os professores ensinam e mandam, e os alunos aprendem e obedecem. E, no entanto, era isso que Bruna e Denise pediam. Ou não era?
Bruna e Denise pediam uma direção e uma coordenação mais exigentes. Pediam regras e rigor na aplicação das regras. Sugeriam uso de uniformes, respeito aos horários, obediência aos professores, aplicação de penalidades disciplinares. Demandavam práticas heterônomas (eles botar regra, etc.) certamente condizentes com o exercício do poder disciplinar e com o funcionamento da face oculta da escola. Entretanto, talvez convenha recompor seu discurso como sujeito histórico a partir de seu discurso como sujeito concreto. Com essa distinção, queremos dizer que, quando elas falam sobre a escola, não são só porta-vozes (passivas) de determinações histórico-sociais. É preciso considerar também as redes de experiências e de representações que elas próprias constroem e o caráter afirmativo de seu discurso.
Como sujeitos ativos e pensantes, o que Bruna e Denise disseram constituiu uma crítica da anomia escolar. Apostavam na escola de ensino médio para aprender, fazer faculdade e crescer na vida. Entretanto, viam essas metas se tornarem distantes, atribuindo isso ao que descreveram como falta de organização da escola. Pensamos, com Vygotsky (1934/2000), que o sujeito se constrói ativamente. Em sua experiência singular, produz sentidos subjetivos a partir da apropriação ativa de significados sociais. Todo fenômeno psicológico é, em princípio, interpsicológico (sem deixar de ser intrapsíquico). Para orientar seus comportamentos, suas ideias e seus projetos de futuro, Bruna e Denise se apropriaram das representações socialmente hegemônicas de escola, adolescência e sucesso profissional.
Dias (1999) cita estudos que mostraram que as escolas brasileiras funcionam, em geral, por modelos morais heterônomos, e Souza (2007) verificou que a escola é representada hegemonicamente pelos jovens que pesquisou como um espaço de heteronomia. Martins, Trindade e Almeida (2003) revelaram que adolescentes urbanos entendem a adolescência como uma fase de curtição, de busca de felicidade e de preparação para o futuro; o adolescente estaria naturalmente em moratória social (Aguiar, Bock, & Ozella, 2007), devendo ter uma boa família e uma boa escola para se dedicar exclusivamente aos estudos e para se preparar para um bom futuro.
Bock e Liebesny (2003) verificaram que adolescentes fazem planos de futuro que são, via de regra, individualistas e conformistas com a realidade social dada, vendo-se como adultos muito parecidos com aqueles com os quais convivem. Almejam estudar, trabalhar e constituir família seguindo os modelos vigentes, atividades que lhes proporcionem individualmente conforto, dinheiro e status. O sucesso profissional, por sua vez, é definido hegemonicamente por estudantes como fazer o que gosta, ganhar muito dinheiro e ter status (Souza, Trindade, Coutinho, & Menandro, 2007). Por meio dessas representações, operam-se muitas naturalizações: a escola como heterônoma, a adolescência como moratória passiva, o futuro como projeto conservador e o sucesso como empreendimento individual.
A escola anômica que foi apresentada a Bruna e Denise contrastava claramente com todos esses ideais. Seu pedido por mais regras e disciplina pode ser interpretado como um pedido de manter a possibilidade de uma adolescência ideal, normal (como a das classes médias), e de uma trajetória de estudo e de sucesso profissional. Mais do que se prepararem ou serem protagonistas, as estudantes queriam ser preparadas, queriam condições, algo que garantisse um caminho de sucesso. Como promover de fato o protagonismo juvenil sem considerar esses sentidos subjetivos construídos pelos jovens? Como construir a escola promotora de autonomia (que desejamos), sem entender os obstáculos que habitam o pensamento dos próprios alunos?
Zibas (2005) mostrou que a chamada Reforma do Ensino Médio, na década de 1990, atingiu as escolas apenas de modo superficial. Em consonância com esse dado, na escola de Bruna e Denise, o discurso de participação e de protagonismo parece não ter encontrado eco, e pode ter sido usado para encobrir um funcionamento predominantemente anômico, que se traduz por uma ideia de tanto faz, ou seja, é como se o Estado e a escola se baseassem no seguinte discurso: não importa que regras eles vão ou não seguir. Fingiremos prepará-los quando, na verdade, sabemos que seu destino será o trabalho mal remunerado e o exercício de uma cidadania duvidosa.
O que Bruna e Denise pediam, quando pediam regras? Talvez acabar com esse jogo de faz de conta. Talvez mostrar que não queriam repetir a trajetória das mães, sem escolarização e com trabalhos mal remunerados (poderíamos incluir também maternidade compulsória e submissão ao marido?). Entretanto, não se julgavam capazes de modificar seu contexto escolar. Diante da impotência que presumiam para si próprias, pediam uma escola normal, ou seja, heterônoma. Sua atuação parecia se limitar a estudar individualmente o quanto podiam e quando podiam. Os papéis já conhecidos, de trabalhadoras domésticas e futuras mães, apesar de desvalorizados, talvez se apresentassem como mais seguros e confiáveis.
O pedido das estudantes por mais regras também parecia chamar os adultos ao seu lugar de portadores de ideais e normas de uma determinada cultura e, portanto, de referência para os mais jovens4. Convém lembrar que, ao longo do desenvolvimento psicológico, a construção da autonomia, que implica coordenação de pontos de vista, avaliação do mérito das regras, etc., só pode se dar sobre a base da heteronomia, que implica atribuição imediata de prestígio a outrem (Piaget, 1932/1994). Na argumentação de Novais, os educadores devem abandonar o autoritarismo, mas isso não significa abandonar a autoridade. Essa autoridade não deve ser pressuposta, mas sim, construída na relação com os alunos, e o educador não deixa de ser referência no que diz respeito às normas e ao saber. Não seria esse também o sentido da indisciplina, da bagunça promovida pelos colegas de Bruna e Denise? É razoável supor que o pedido por mais disciplina, autoridade e referência que Bruna e Denise fizeram, mais claramente pela fala, pode ter sido feito pelos meninos (seus colegas) em atos.
Vimos que Bruna reivindica um papel de regra, que, segundo ela, deveria ter sido entregue pela escola aos alunos. Para analisar esse ponto, é interessante evocar a distinção feita por Macedo (1993) entre lei e regra. A lei limita os desejos, tem valor universal, é imposta a todos e associa-se à heteronomia. A regra incide sobre as relações, tem base consensual e é construída por um dado grupo, associando-se à autonomia. Consideramos que ambas são necessárias. Segundo Macedo, devemos reconsiderar o discurso das leis em favor de um discurso das regras. Mas reconsideração não significa abolição. A escola, como a sociedade, não funcionaria sem lei, e é isso que Bruna parece reivindicar. Entretanto, as leis não são suficientes. É preciso que a normatização se corporifique em determinadas relações e nos sujeitos mesmos. A lei prescreve limites ancorados na tradição, enquanto as regras o fazem a partir de sua construção pela própria inteligência de cada sujeito, em interação com seus pares. É preciso considerar também que, para apostar em práticas de promoção de autonomia (com construção de regras), a escola teria que garantir a referência a leis, que são marcos fundamentais dos quais não podemos abdicar, mas aos quais não podemos nos ater.
Se tivermos em mente o sujeito histórico e ativo que derivamos de Vygotsky (1934/2000), constataremos que, de certa forma os estudantes são sempre protagonistas. O que cabe perguntar é: eles são protagonistas de quê? O que estão fazendo com suas vidas? Estão cientes do que estão fazendo? Têm oportunidades de refletir sobre isso?
Tais reflexões e perguntas nos levam a um terceiro ponto, o das funções da escola. O que a escola de ensino médio pode e deve oferecer a alunas como Bruna e Denise? Responderemos sem dificuldade que a escola deve cumprir integralmente seu papel de transmissão cultural e de promoção de cidadania. Se estivermos interessados nesses objetivos, é claro que devemos ultrapassar tanto as formas anômicas quanto as heterônomas. No caso da escola que conhecemos neste estudo de caso, parece urgente que os educadores discutam com os alunos quais os significados de suas práticas cotidianas. É claro que isso poderia ser feito de inúmeras formas, e poderíamos sugerir que essa discussão se desse em uma semana de avaliação, com sistematização de resultados e de propostas. Por outro lado, podemos argumentar que se trata de um empreendimento que cada professor deve realizar com cada turma, de maneira contínua.
Qualquer que seja a forma, o essencial é que não haja imposição de normas externas, anacrônicas ou incompreensíveis, que os alunos participem efetivamente da discussão, que suas ansiedades, expectativas e planos sejam de fato ouvidos e considerados, e que os educadores afirmem e justifiquem seu projeto pedagógico, mostrando consistência entre discursos e ações.
Podemos reconhecer esses objetivos na comunidade justa, de Kohlberg, que serve de referência para numerosos trabalhos nacionais e internacionais (McDonough, 2005; Oser, Althof, & Higgins-DAlessandro, 2008; Sampaio, 2007, para citar apenas alguns trabalhos mais recentes). Segundo Biaggio (1997), essa técnica de educação moral pretende unir coletivismo e justiça. Admite que há papéis diferenciados para professores e alunos, mas os coloca em pé de igualdade para decidir as regras que regem o grupo escolar, o que implica uma reorganização da escola, que deixaria de ser uma associação pragmática (que tem por mote principal a consecução de metas individuais) para ser uma comunidade de fato, cujo objetivo maior seja o bem coletivo. Para Bruna e Denise, não seria possível oferecer meios de avaliar criticamente sua condição subjetiva de adolescentesmulheres- estudantes-trabalhadoras? Se respondermos que sim, seremos levados a constatar que não basta prescrever estratégias de autonomia relacionadas ao saber e às regras escolares. Obviamente, essas estratégias são essenciais, mas seria preciso também promover a autonomia no campo da análise da existência psicossocial, do sentido da vida. A esse respeito, gostaríamos de concluir este artigo com a importante contribuição de La Taille (2006).
Esse autor elabora uma teoria afetiva que complementa as ideias de Piaget e de Kohlberg sobre a moralidade. O desenvolvimento moral, assim como o desenvolvimento cognitivo, caminharia em direção a estágios mais avançados (presentes no desenvolvimento psicológico de cada sujeito como virtualidades). A visão apresentada pelo autor reabilita utopias relativas ao ser humano, às sociedades e ao mundo. No que diz respeito ao plano moral, pode-se trabalhar para a construção de sujeitos e de sociedades cada vez mais regidas pelos valores de justiça (igualdade e equidade), generosidade (altruísmo) e honra (autorrespeito). Mesmo que estejamos longe de uma hegemonia desses valores nas sociedades humanas e na política internacional, eles aí estão presentes como virtualidades.
O autor define o plano da ética como o da procura por uma vida boa, pela felicidade, pela vida que vale a pena ser vivida. No nível psicológico, o plano moral se manifesta como sentimento de obrigatoriedade, e o plano ético, como necessidade de autoexpansão, de se ver como pessoa de valor.5 Ele adota a visão de Ricoeur sobre uma perspectiva ética, definida como a vida boa, com e para outrem, em instituições justas (citado em La Taille, 2006, p. 64). Para realizar essa perspectiva ética, a busca pela felicidade pessoal só pode fazer sentido se contemplar a felicidade coletiva, a existência só pode valer a pena se considerar a alteridade. A ação moral obtém sua força, sua energética, no plano da ética, tendo em vista a busca do sujeito por gerar e/ou manter representações positivas sobre si mesmo. O sentimento que articula os planos moral e ético é, portanto, o autorrespeito.
Cada sujeito, cada instituição, cada sociedade pode se perguntar sobre as condições de realização dessa perspectiva ética e, em nossa opinião, têm a responsabilidade de trabalhar em direção a ela. Somos, portanto, da opinião de que a escola, os educadores, alunos, psicólogos escolares, etc., podem e devem refletir sobre o sentido da vida, ou seja, sobre os valores que orientam suas práticas, sobre a vida que vale a pena ser vivida e sobre como integrar felicidade individual e felicidade coletiva. Esse raciocínio apoia a prescrição de promover, no âmbito da escola, análises de nossa existência psicossocial, embasadas em uma visão crítica sobre a sociedade.
Foucault (1998), desconfiado das ciências humanas, nos adverte que a Psicologia escolar pode funcionar apenas como uma estratégia para suavizar a disciplina, constituindo mais uma forma de controle dissimulado. Mas pensamos que, ao trabalhar pela construção da autonomia e da perspectiva ética, a escola pode escapar de sua vocação histórica ou reinventá-la. Para responder aos desafios contemporâneos, a escola teria que sustentar seu lugar de referência para os jovens, exercitar a democracia em seu funcionamento interno e apostar na compreensão e na incorporação da alteridade.
Referências
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Endereço para correspondência
Luiz Gustavo Silva Souza
Universidade Federal do Espírito Santo, Cemuni VI. Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Av. Fernando Ferrari, n. 514, Goiabeiras
29075-910, Vitória, ES
E-mail: luizsouza@hotmail.com
Rebido 15/2/2009
1ª Reformolaçãoo 14/3/2009
Aprovado 02/4/2010
* Mestre em Psicologia. Doutorando em Psicologia pelo Programa de Pos-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espirito Santo, Espírito Santo ES Brasil.
** Doutor em Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem, Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, ES Brasil. E-mail: savioqueiroz@terra.com.br
*** Doutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, ES - Brasil. E-mail: crismenandro@uol.com.br
1 Segundo dados apresentados por Santos (2005), cerca de 73% da população brasileira têm renda média mensal (do principal trabalho) inferior a 500 reais. Os estudantes pesquisados por Souza (2007) habitavam um bairro caracterizado como de baixa renda, seus pais possuíam baixa escolaridade e ocupações de baixa remuneração (doméstica, auxiliar de serviços, pedreiro, vigilante, etc.).
2 Considerando os 120 estudantes que participaram da pesquisa de Souza (2007), 42% deles moravam no mesmo bairro onde essa escola se localizava. Os outros 58% moravam em outros 17 bairros (incluindo localidades de outros Municípios).
3 Estamos cientes de que os autores que utilizamos para essa análise, Foucault e Enguita, têm diferentes influências filosóficas e, por isso, diferentes maneiras de ver a História. Não abordaremos essas diferenças para não fugir ao escopo do artigo e consideramos que elas não inviabilizam pontos de encontro entre os autores.
4 Cabe lembrar aqui os argumentos de Arendt (1954/2007) a favor da autoridade no campo da educação, nas relações adultocriança, educadoraluno: A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele... é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos (p. 247). Para a autora, a manutenção da autoridade do educador é condição para a abertura para o novo e para a transformação.
5 Vale a pena conferir a argumentação elegante e consistente de La Taille (2006) para justificar esses conceitos.