Introdução
Indiscutivelmente, do século XIX ao século XXI, acompanhamos significativos avanços no âmbito da atenção à Educação Infantil, que concebem a criança como sujeito histórico e de direitos.
Ariès (1978) revela que, até a Idade Média, não havia uma consciência sobre o sentimento e as especificidades da criança. Tudo era compartilhado entre o mundo adulto e o das crianças: vestuário, trabalho, lazer, jogos.
O sentimento de infância é construído na Europa por volta do século XVII, já na Idade Moderna. E, a partir daí, inicia-se uma separação entre o que é de criança e o que é de adulto. Junto com essa separação, surge a necessidade de disciplinarização e uma visão de pureza e inocência atribuída à criança como parte de uma ideia da natureza infantil.
Para Priore (2013) estudar as infâncias no Brasil é remontar a um aspecto complexo da história do país, permeado mais pela ausência de referências sobre as crianças, do que pela presença, sobretudo, antes e durante o período colonial. Destaca que a concepção de infância na época do Brasil colonial não era homogênea, havendo diferenças substanciais entre classes sociais e, sobretudo, entre a criança negra, a indígena e a branca.
Com a promulgação da Constituição de 1988, a criança foi colocada no lugar de sujeito de direitos e a Educação Infantil reconhecida como responsabilidade do Estado.
A educação infantil brasileira representa desde 1996, a primeira etapa da educação básica e compreende na atualidade as creches, para crianças de até 3 anos de idade e as pré-escolas, para crianças de 4 e 5 anos.
Embora a legislação tivesse avançado nas proposições para o segmento da educação infantil, ainda coabitam o histórico acesso diferenciado a recursos, tanto de ordem material como simbólica, que caracterizam o contexto, no qual os sujeitos se desenvolvem e constroem suas subjetividades (Santos, 2014).
Sob o olhar de que os primeiros anos da infância são decisivos para a formação intelectual, afetiva e social do ser humano e, de que a escola é uma instituição social representativa no âmbito da constituição da subjetividade humana, delineou-se este estudo, que apresenta um recorte da tese de doutorado intitulada “Percepções de docentes da educação infantil sobre gênero, relações raciais e saúde” que possui entre os seus objetivos analisar as percepções de docentes da educação infantil sobre relações raciais.
Aborda-se, dessa forma, questões complexas entre a relação entre docente e aluno (a) da educação infantil, considerando que no espaço escolar as relações docente-aluno estão imbuídas de forças objetivas e subjetivas que são interdependentes e se influenciam mutuamente, e que a percepção que os professores têm sobre o mundo que os cercam podem influenciar no uso de dispositivos1 escolares que reforçam perspectivas racistas.
Para alcançarmos os objetivos do presente estudo, foram utilizados os princípios metodológicos da abordagem qualitativa, a partir de uma pesquisa de campo.
A pesquisa de campo foi realizada com 14 docentes de duas escolas particulares e de duas escolas públicas municipais do Município de Guarujá, e, contou com uma amostra por conveniência, e o fato de serem docentes do ensino público e privado que atuam diretamente com a Educação Infantil. No que diz respeito às considerações éticas, todas as fases do estudo seguiram orientações, exigências e recomendações da Resolução do CNS 466/2012, e o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Metodista de São Paulo.
A coleta de dados ocorreu primeiramente por meio de um questionário socioeconômico-cultural e, posteriormente, por meio de uma entrevista semi dirigida. Essa última transcorreu conforme eram apresentados os temas durante a própria entrevista.
Em relação a entrevista semi dirigida, as questões propostas aos docentes, foram: Você acha que tem racismo na escola? Você acha que as questões de diversidade racial devem ser tratadas: pedagogicamente pela escola, pelos movimentos sociais ou quando acontecer algum caso evidente na escola? No contexto escolar, você já ouviu ou viu alguém em situação racista? Você conhece a Lei nº 10.639/2003 ou outras ações afirmativas em prol da igualdade racial? Você considera que a cultura afro-brasileira e africana é trabalhada na escola? Você considera que as desigualdades de gênero e raciais impactam na saúde emocional e desenvolvimento da criança?
No momento de transcrição, todos os participantes tiveram seus nomes modificados e as entrevistas gravadas foram apagadas para preservar a integridade e a identidade dos participantes.
A análise e a interpretação das informações dos dados coletados na entrevista semi dirigida foram realizadas a partir da perspectiva da análise de conteúdo na perspectiva de Bardin (2011).
Dessa forma, a partir da análise de conteúdo seguindo os critérios de Bardin (2011) emergiram duas categorias temáticas, sendo elas: Racismo na escola e a Invisibilidade dos direitos.
Desenvolvimento
No Brasil, o campo de estudos sobre raça, relações raciais e racismo já foi objeto de estudo de diferentes interpretações.
De acordo com Schucman (2012, p. 15), a categoria “raça” 2 representa, ao lado de gênero e classe social, fonte “(...) que constitui, diferencia, hierarquiza e localiza os sujeitos em nossa sociedade.”.
A sociedade brasileira apresenta um quadro de desigualdades em que brancos e negros ocupam diferentes espaços sociais. Frente à estatística, a população negra apresenta os mais baixos indicadores sociais, menor nível de escolaridade e renda, menor acesso à saúde, à educação, condições mais precárias de moradia e está inserida em posições e condições de trabalho mais vulneráveis.
O contexto educacional brasileiro tem como política legal ser inclusivo e oferecer as mesmas oportunidades educacionais.
Amparado pelo art. 206 da Constituição Federal, o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino. (Brasil, 1988, art. 206)
Dentro desse espectro, a Constituição Federal prevê três conteúdos curriculares obrigatórios em todos os níveis de ensino: a língua portuguesa, as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro e a educação ambiental. Esse fato revela a importância atribuída à temática da diversidade racial como política inclusiva e afirmativa na conformação da política educacional.
Neste sentido, a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve garantir que elas cumpram plenamente sua função sociopolítica e pedagógica: preconizando a promoção de igualdade de oportunidades, respeito às diferenças e diversidades.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, 1990) assegura a toda criança o direito de igualdade de condições para a permanência na escola; de ser respeitada pelos educadores; de ter sua identidade e seus valores preservados; e de ser posta a salvo de qualquer forma de discriminação, negligência ou tratamento vexatório.
Em 1998, surge o Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI). Esse documento acata as determinações da LDB, estabelecendo critérios e parâmetros para os docentes na realização do trabalho educativo diário junto às crianças da Educação Infantil.
O RCNEI, de 1998, representou um avanço para a educação infantil, objetivando transcender o tradicionalismo assistencialista das creches e pré-escolas, servindo como um guia para os/as para trabalhadores/as que atuam diretamente com crianças com idade entre 0 a 6 anos, respeitando a diversidade cultural brasileira.
Já as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs) estabelecem que a “(...) identidade étnica, assim como a língua materna, é elemento de constituição da criança.” (DCNEI, 2010, p. 25).
Nos campos de experiências em que se organiza a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017), há o reconhecimento de que as crianças:
(...) conforme vivem suas primeiras experiências sociais (na família, na instituição escolar, na coletividade), constroem percepções e questionamentos sobre si e sobre os outros, diferenciando-se e, simultaneamente, identificando-se como seres individuais e sociais. Ao mesmo tempo que participam de relações sociais e de cuidados pessoais, as crianças constroem sua autonomia e senso de autocuidado, de reciprocidade e de interdependência com o meio. Por sua vez, na Educação Infantil, é preciso criar oportunidades para que as crianças entrem em contato com outros grupos sociais e culturais, outros modos de vida, diferentes atitudes, técnicas e rituais de cuidados pessoais e do grupo, costumes, celebrações e narrativas. Nessas experiências, elas podem ampliar o modo de perceber a si mesmas e ao outro, valorizar sua identidade, respeitar os outros e reconhecer as diferenças que nos constituem como seres humanos (BNCC, 2017, p. 40).
Entretanto, embora a reconheçamos legalmente, uma educação de qualidade para todos, com acesso e permanência na escola, só pode ser compreendida quando exposta conjuntamente com uma análise histórica, social e econômica, pois sabemos que muitas crianças e jovens estão fora das escolas. As concepções existentes sobre sociedade democrática têm o reconhecimento do sujeito como sujeito de direitos. Porém a definição de quem é ou deve ser reconhecido como sujeito de direito (quem tem direito a ter direitos) é social e histórica e recebeu diferentes respostas no tempo e em diferentes sociedades
Com intuito de reparar o acesso escolar desigual, foram adotadas algumas políticas públicas no Brasil, como a Lei no 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira em todas as etapas da Educação Básica, bem como, facilitou o acesso ao ensino superior, com medidas, como o Prouni, Fies e Reuni, além de cotas de acesso e uniformização dos métodos de seleção, por meio do Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM. Segundo esse exame, foram criados o sistema de reserva de vagas oferecidas nos concursos públicos (Lei no 12.990/2014) e o ingresso nas universidades públicas federais do país (Lei no 12.711/2012).
Resultados e Discussões
A seguir, veremos como a temática sobre relações raciais são apropriadas pelos(as) docentes de Educação Infantil.
Categoria 1 – Racismo na escola
Em relação a categoria Racismo na escola é importante destacar que os(as) docentes reconhecem que há racismo nas escolas brasileiras. Mas, assim como afirma Schwarcz (2012), o racismo apresenta contornos de uma estranha invisibilidade, como se pode reconhecer nas falas dos(as) docentes, a saber:
Nunca aconteceu... (Pausa) ... Ah, com exceção, uma única vez, bem que eu entrei aqui, parece que teve uma criança do maternal que... Parece que não quis pegar na mão de uma tia que ajudava no banheiro. Uma menina que parece que não queria dar a mão. E, aí, a professora perguntou: ela falou assim ‘(...) ah, a tia tinha a mão suja, a mãozinha escura.’. Isso foi trabalhado, mas assim, foi uma única vez, a criança também era bem pequena. (Rita)
“Sim, tipo... Não para a criança, não para o aluno. Tinha que ser preto! Nossa, que cabelo é esse! Gente que horror porque não amarra esse cabelo!” (Carolina)
“Teve uma vez que uns meninos chamaram uma menina de macaca chita porque ela era negra... Mas, acho que nem foi nessa escola”. (José)
Diante das falas de José, Carolina e Rita, alguns questionamentos são levantados: Como o(a) professor(a) lida com essas questões em sala de aula? Silêncio? Mediações?
Para Munanga (2005), alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados, não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz, a nossa cultura e a nossa identidade nacional. Na maioria dos casos, praticam a “política de avestruz” ou sentem pena dos “coitadinhos”, em vez de terem uma atitude responsável que consistiria, por um lado, em mostrar que a diversidade constitui um fator de complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral e, por outro lado, em ajudar o aluno discriminado para que ele possa assumir com orgulho e dignidade os atributos de sua diferença, sobretudo quando essa foi negativamente introjetada em detrimento de sua própria natureza humana.
Sobre o silêncio dos professores, Cavalleiro (1998) destaca que:
Esse ritual pedagógico, que ignora as relações étnicas estabelecidas no espaço escolar, pode estar comprometendo o desempenho e o desenvolvimento da personalidade de crianças e de adolescentes negros, bem como, estar contribuindo para a formação de crianças e de adolescentes brancos com um sentimento de superioridade (CAVALLEIRO, 1998, p. 52).
Sobre esse aspecto, vale ressaltar que a educação e o contexto escolar se configuram como espaços privilegiados para problematizar as relações de poder embutidas na identidade e na diferença, podendo servir como instrumento ideológico para a homogeneização cultural, caso não conceba a interculturalidade dentro de um projeto de emancipação, reconhecendo as diferenças como fonte de enriquecimento.
Dessa forma, é preciso que as diferenças sejam reconhecidas e respeitadas dentro da instituição escolar. O próprio espaço escolar e o planejamento curricular precisam ser pensados e concretizados de modo a produzir a diferença e a multiplicidade (Silva, 2000; Guattari, 2005), para que possam romper com paradigmas essencialistas arraigado.
Tem que se tomar cuidado porque, às vezes, sem querer, eu tenho alunos que... um ou outro que eles ganham o material escolar aqui. Aí, você fala: ‘Pega aquela cor.’... ‘Qual cor?’... ‘Cor de pele’. Acho que, dependendo da situação, às vezes, você fala a coisa não é na maldade, inconsciente mesmo, porque é uma coisa tão assim impregnada. (Isabel)
Se você não vigiar o que fala, a criança pode entender errado. São poucas as crianças negras aqui, geralmente são poucas. Precisa de uma boa conscientização de todos. Pode começar na infantil, né? É uma formação que começa cedo. Tem muita coisa na Educação Infantil que reforça a discriminação. (Helena)
Dentro das falas da docente Isabel e da docente Helena, poderiam ser destacadas passagens da ideia da supremacia branca introjetada, e da necessidade de as práticas educacionais serem repensadas no cotidiano, pois podem reforçar o branco como norma identitária.
Em Peles negras, máscaras brancas, Fanon (2008) discute a questão da raça em sua relação colonizado e colonizador como categorias importantes para se compreender as subjetividades de sujeitos brancos e negros em relação. O autor explicita que o racismo da própria estrutura da colonização passa a dominar subjetivamente colonizados e colonizadores.
No caso do negro, o resultado seria uma não aceitação da sua autoimagem, da sua cor, provocando um “pacto” com a ideologia do branqueamento, direcionando, então, a construção das chamadas máscaras brancas, como tentativa de fuga aos estereótipos associados aos não brancos na sociedade ocidental.
Fanon (2008) sobre o negro e suas subjetividades em uma sociedade que valoriza a brancura:
(...) Se ele se encontra submerso a esse ponto pelo desejo de ser branco, é que ele vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de inferioridade, em uma sociedade cuja consistência depende da manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a superioridade de uma raça; é na medida exata em que esta sociedade lhe causa dificuldade que ele é colocado em uma situação neurótica (FANON, 2008, p. 83).
No Brasil, o branco – por ser visto como norma – não se sente e não é percebido como racializado e, assim, tem sua singularidade não apenas realçada, como também naturalizada. Em contrapartida, o negro é constantemente convocado a lidar com o fato de ser racializado e sua subjetivação historicamente negada.
Apesar da promulgação da lei 10.639 (2003) constituir-se em uma resposta às demandas do Movimento Negro e a todos aqueles que vêm lutando por uma sociedade brasileira mais democrática, a sua aplicação não tem sido uma tarefa fácil: muitas vezes, os professores não se sentem motivados em cumprir leis que consideram vir de escalões superiores, não se sentem preparados para lidar com a questão e têm aqueles que ainda acreditam no mito da democracia racial ou acreditam que tocar nesse tema é tocar ‘na ferida’, preferindo o silêncio para ‘não provocar constrangimentos’ (Souza, 2009, p. 2).
Mesmo compreendendo e destacando situações latentes ou implícitas referentes a preconceito e discriminação racial no âmbito escolar, grande parte dos(as) docentes quando perguntados sobre as questões de diversidade racial – se devem ser tratadas pedagogicamente pela escola –, há o retorno a ideia proposta por Martins e Magalhães (2014) em que romantizam a infância.
Aliada a essas questões da romantização da infância, apresentam-se dados que seguem agrupados em quatro relatos. Eis alguns exemplos de verbalizações:
Se deve ser trabalhado? Sim, eu acho que seria interessante. Não, eu acho que, na Educação Infantil, eu acho que... Não seria assim... Não teria essa necessidade, porque eles são muito pequenos ainda, sabe. Eles têm pouco vocabulário, eles não têm maturidade para isso, para entender. (Maria)
Sim, pela escola também. Não digo, talvez, na Educação Infantil porque a gente já trabalha as diferenças. No próprio livro didático tem falando é... de crianças que usam óculos, de crianças que têm cabelo cacheado, crianças que tem cabelos lisos... Fala até, às vezes, a questão da cor da pele, mas assim é uma coisinha bem sutil, talvez eu acho que deveria ser trabalhado mais talvez no fundamental. (Rita)
“Pela família... Hannnn... A escola também. Eu acho que é um pouco difícil eles entenderem. Eu acho que nós trabalhamos isso muito bem, ludicamente, temos um material rico aqui na escola”. (Patrícia)
Pior que eu não posso nem pontuar que a escola pública é diferente da escola particular, porque, às vezes, a escola particular seja muito mais racista do que na própria escola pública que eles, já vem de uma vivência mais humilde, não tem tantas oportunidades assim... E isso aí é notório... Infelizmente, acho que tá aí e é um tabu falar de homofobia, falar de racismo. E a própria pessoa com diversidade se coloca numa posição de vítima, de coitada e tudo bem... Eu nasci branca como a maioria, a maior parte dos brasileiros, porque, eu sou muito bem resolvida da minha pessoa, a última coisa que eu quero é que as pessoas olhem com pena... E não adianta você conversar com essas pessoas. Então, racismo existe, existe e tem muitas vezes o racismo ele nasce da própria pessoa... Eu vejo.... Deixa eu retornar, essa é maneira que eu enxergo, não quero dizer que todo mundo pensa dessa forma... Eu tô falando como F. (Lúcia)
As falas de Maria, Rita e Patrícia ignoram as propostas pedagógicas das DCNEI que versam sobre a diversidade:
O reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como, o combate ao racismo e à discriminação; a dignidade da criança como pessoa humana e a proteção contra qualquer forma de violência – física ou simbólica – e negligência no interior da instituição ou praticadas pela família, prevendo os encaminhamentos de violações para instâncias competentes (DCNEI, 2010, p. 21).
Embora Lúcia reconheça que há racismo nas escolas brasileiras (seja ela pública ou privada), seu discurso destaca aspectos pontuados por Santos (2001) em estudo realizado na região metropolitana de São Paulo. Esse autor relata que os educadores, mesmo identificando visões estereotipadas de negros e mulheres em livros, continuam a utilizar tais materiais sem leitura crítica; possuíam menor expectativa quanto à capacidade de alunos negros; atribuíam o problema da discriminação à família e aos próprios negros, por se conformarem com a exclusão, e não lutarem por seus espaços.
Assim, a fala de Lúcia faz pensar sobre diferentes aspectos do funcionamento racial presentes na cultura brasileira. Ela afirma que: a) falar de homofobia e racismo são assuntos tabus; b) a pessoa com diversidade se coloca numa posição de vítima, de coitada; c) eu nasci branca, como a maior parte dos brasileiros e sou muito bem resolvida com a minha pessoa; d) o racismo nasce da própria pessoa.
Nesse aspecto, é interessante trazer a perspectiva de que afirma que uma das implicações mais importantes da perspectiva da identidade racial para a prática educacional é que os professores precisam entender seus próprios níveis de desenvolvimento de identidade racial para poderem mudar as percepções e expectativas que possuem em relação às crianças brancas e em relação às crianças negras, e auxiliar na mudança do quadro de discriminação e desigualdade que constatamos hoje.
Nos(as) docentes entrevistados(as), há insistência em discursos que subestimam a infância quanto a silenciamento, falta de preparo e uso da política do checklist.3
“A escola tem projetos... Consciência negra, sim, mas é mais para o lado do fundamental. Talvez por achar que é uma coisa que não vai ter o entendimento. Mas os alunos do fundamental trabalham essa parte”. (Lúcia)
“Sim, pela escola. Mas a escola não trabalha esse assunto no dia a dia. Olha... Mas, como eu falei, não é algo geral. Nós todos, os professores, vamos abordar esse assunto. Não parte da coordenação, e sim, das atividades individuais”. (Carolina)
Schucman (2017) se refere à política do checklist para evidenciar as instituições, sobretudo as instituições acadêmicas que, em dias específicos, mas usualmente, no dia 20 de novembro,4 realiza uma palestra ou cede um pequeno espaço para discutir a temática das relações raciais: “É como uma escola aderir à Lei no 10.639/2003 e mal se preocupar em informar seus professores e alunos sobre o tema” (Schucman, 2017).
Categoria 2 – Invisibilidade de direitos
Em relação a categoria Invisibilidade de direitos, destaca-se que parte dos(as) docentes não conhece ou nunca ouviu falar a respeito da Lei 10.639/2003 ou de ações afirmativas.
A Lei 10639/03 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e, inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. O conteúdo amplia os currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica presente na sociedade brasileira. Desse modo, as Diretrizes apresentam e apontam todo o embasamento teórico e prático que auxiliarão os educadores na concepção e execução de uma educação mais igualitária e diversa.
“Não, nunca ouvi falar. Acho uma coisa importante, porque como docente, a gente precisa aprender essas coisas”. (Anita)
“Não. Não conheço essa lei, é bom saber que eu vou ler. De que ano é a lei?” (Lúcia)
Nossaaa..... Eu nunca tive ouvido falar. No ensino fundamental eles trabalham. Mas preciso saber. Você sabe que você falando me lembrou uma coisa: dia desses eu tava com a minha auxiliar, esse ano. E aí, a gente parou as duas e falo: ‘Por que a gente fala esse termo cor de pele: gente, nós tamo falando cor de pele, mas que cor de pele? Mas eu, aí, comecei a falar; tem o marrom, tem o pretinho...’. (Lúcia)
Gomes (2012) assevera que a lei 10.639 (2003) tem sido implementada, mas, de maneira irregular nas diferentes regiões do Brasil, e, revela que estamos diante de uma questão estrutural: o racismo imbricado em nosso imaginário e práticas sociais, presente na sociedade e, por conseguinte, nas suas instituições.
De fato, o não conhecimento ou o não cumprimento da Lei corrobora para a perpetuação da ideia da superioridade racial branca construída no século XIX. Além disso, impede que tenhamos referências negras nas ciências, nas artes, na política. E que tenhamos ainda a verdadeira compreensão da História do Brasil.
Sobre esse assunto, Silva (2005) explica que, para além da Lei que teoricamente garante o ensino dos conteúdos sobre a cultura afro-brasileira e africana, ainda há outras ações a serem feitas, como as referências nos livros didáticos:
O livro didático, de modo geral, omite o processo histórico e cultural, o cotidiano e as experiências dos segmentos subalternos da sociedade, como o índio, o negro, a mulher, entre os outros. Em relação ao segmento negro, sua quase total ausência nos livros e sua rara presença de forma estereotipada concorrem em grande parte para a fragmentação da sua identidade e auto-estima. (...) Não é apenas o livro o transmissor de estereótipos. Contudo é ele que, pelo seu caráter de ‘verdadeiro’, pela importância que lhe é atribuída, pela exigência social do seu uso, de forma constante e sistemática logra introjetar na mente das crianças, jovens e adultos, visões distorcidas e cristalizadas da realidade humana e social. A identificação da criança com as mensagens dos textos concorre para a dissociação da sua identidade individual e social (SILVA, 2005, p.23).
Sobre a implementação da Lei, Gomes (2017) afirma sobre a importância da formação continuada, principalmente a formação em serviço nas escolas, como principal responsável pelas práticas pedagógicas de trabalho com as relações étnico-raciais e as questões africanas, e, da importância da implementação da pedagogia das emergências, por uma educação descolonizada e antirracista.
Considerações finais
Ao longo desta pesquisa, procuramos analisar as percepções docentes sobre as relações raciais em contexto educacional.
Primeiramente, destaca-se que os anos iniciais de vida do ser humano, no quesito desenvolvimento e aprendizagem, são reconhecidos pela ciência como fundamentais.
O exercício da docência na primeira infância está diretamente articulado ao processo de construção/efetivação do direito à educação das crianças de zero a cinco anos.
Dos resultados encontrados, observamos que primeiramente, não há diferenças notórias entre a percepção dos/as docentes de escolas públicas e privadas, sobre as relações raciais.
Enfatiza-se a tendência dos(as) docentes não acreditarem ser necessário o trabalho desde a primeira infância, deslocando a importância do trabalho em prol da diversidade étnica racial para o ensino fundamental, e que os conteúdos referentes à percepção das relações raciais no âmbito escolar sugerem o silenciamento diante de situações de preconceito e discriminação. Nesse aspecto, é interessante observar a insistência em discursos que subestimam a infância. Destaca-se também a falta de preparo docente e o uso da política do checklist que, cumprem o calendário acadêmico e o feriado no dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra, mas pensam ser desnecessário o trabalho na primeira infância.
Outro dado elucidativo se refere ao desconhecimento da maioria dos(as) docentes acerca da Lei nº 10.639 (2003), que modifica a Lei nº9.394/96, estabelecendo a inclusão dos diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira. Esse fato corrobora para a perpetuação da ideia da superioridade racial branca construída no século XIX. As diretrizes da Lei versam sobre três princípios orientadores gerais das ações do sistema de ensino e dos professores, quais sejam: a consciência política e histórica da diversidade; o fortalecimento de identidades e de direitos; e as ações educativas de combate ao racismo e discriminações.
Assim, sendo a escola, juntamente com a ciência, reconhecidas como instrumentos de produção de racionalidade, as encontramos fundamentadas na ideologia racista. Embora a existência da lei, o conhecimento, e a implicação dela representa sutilmente a permanência das relações de dominação e exploração.
Conclui-se que o racismo institucional está presente nas instituições de educação, agindo de maneira imbricada em todos os seus processos. Logo, torna-se indispensável pensar a categoria raça desde a educação infantil, e na formação continuada dos/as docentes.
Espera-se que este estudo, além dos conhecimentos produzidos, possa levar os leitores a reflexões acerca do papel social da escola, e do reconhecimento de uma pedagogia que implica em transformar e emancipar a prática e o pensamento educacional.