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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

 ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.42 no.102 São Paulo jan./jun. 2022

 

I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO

 

"Brincando com os sonhos": técnica terapêutica para crianças baseada no contexto onírico8

 

"Playing with dreams": therapeutic technique for children based on the dream context

 

"Jugando con los sueños": técnica terapéutica para niños basada en el contexto onírico

 

 

Michel Alexandre FillusI; Liliana Liviano WahbaII

IDoutor e Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Vínculo: Pontifícia Universidade Católica do Paraná – Curso de Psicologia – Coordenador do curso de especialização em Psicologia Analítica da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: michelfillus@gmail.com. Contribuição: autor principal. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1837-154X
IIDoutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Vínculo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Curso de Psicologia - Programa de Estudos Pós Graduados de Psicologia Clínica – São Paulo – SP. E-mail: lwahba@pucsp.br. Contribuição: autora secundária - orientação da tese e elaboração conjunta do artigo. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6316-2010

 

 


RESUMO

O presente artigo visa apresentar uma técnica interventiva breve, lúdica e grupal, denominada Oficina "Brincando com os sonhos", para crianças, baseada no contexto onírico. Trata-se de um recorte da pesquisa de doutorado do autor, que objetivou avaliar sua efetividade em crianças vítimas de violência, visando à adaptação psicológica dos participantes do estudo. São apresentados os fundamentos teóricos da intervenção e um exemplo ilustrativo da aplicação do recurso em crianças vítimas de violência, cujas produções simbólicas, expressas nas verbalizações e nos desenhos, constituíram material de análise dos aspectos gráficos/plásticos e uma elaboração interpretativa utilizando-se raciocínio clínico e o método da amplificação conforme a perspectiva hermenêutica junguiana. Um exemplo ilustrativo mostra no campo terapêutico da brincadeira em grupo indícios da construção de recursos favoráveis ao desenvolvimento psíquico e atenuação de efeitos traumáticos. A técnica visa ampliação das abordagens psicoterapêuticas disponíveis, com ênfase na concepção autorreguladora da psique aplicadas grupalmente. Destaca-se o uso desta técnica pela possibilidade de inserção do psicólogo em contextos que envolvem prementes necessidades sociais, especialmente quando não há acesso e nem condições para psicoterapias individuais e em ambientes socioeducativos, a fim de fortalecer o suporte oferecido e favorecer a regulação emocional das crianças.

Palavras-chave: técnicas psicoterapêuticas; crianças; sonhos; Psicologia Analítica.


ABSTRACT

This article aims to present a brief, playful and group intervention technique, called Workshop "Playing with dreams", for children, based on the dream context. This is an excerpt from the author's doctoral research, which aimed to evaluate its effectiveness in children victims of violence, targeting at the psychological adaptation of the study participants. The theoretical foundations of the intervention are presented and an illustrative example of the application of the resource in children victims of violence, whose symbolic productions, expressed in verbalizations and drawings, constituted material for the analysis of graphic / plastic aspects and an interpretative elaboration using clinical reasoning and the amplification method according to the Jungian hermeneutic perspective. An illustrative example shows in the therapeutic field of group play indications of the construction of resources favorable to psychic development and attenuation of traumatic effects. The technique aims to expand the available psychotherapeutic approaches, with an emphasis on the self-regulating conception of the psyche applied as a group. It's use stands out due to the possibility of inserting the psychologist in contexts that involve pressing social needs, especially when there is neither access nor conditions for individual psychotherapies and in socio-educational environments, in order to strengthen the support offered and favor the emotional regulation of children.

Keywords: psychotherapeutic techniques; children; dreams; Analytical Psychology.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar una técnica de intervención breve, lúdica y grupal, denominada Taller "Jugar con los sueños", para niños, basada en el contexto onírico. Este es un extracto de la investigación doctoral del autor, que tuvo como objetivo evaluar su efectividad en niños víctimas de violencia, con el objetivo de observar la adaptación psicológica de los participantes del estudio. Se presentan los fundamentos teóricos de la intervención y un ejemplo ilustrativo de la aplicación del recurso en niños víctimas de violencia, cuyas producciones simbólicas, expresadas en las verbalizaciones y dibujos constituyeron el material para el análisis de los aspectos gráficos/plásticos, así como una elaboración interpretativa utilizando el razonamiento clínico y el método de amplificación según la perspectiva hermenéutica de Jung. Un ejemplo ilustrativo muestra en el campo terapéutico del juego grupal indicios de la construcción de recursos favorables al desarrollo psíquico y mitigación de los efectos traumáticos. La técnica tiene como objetivo ampliar los abordajes psicoterapéuticos disponibles, haciendo énfasis en la concepción autorreguladora de la psique aplicada grupalmente. Se destaca el uso de esta técnica, debido a la posibilidad de insertar al psicólogo en contextos que involucran necesidades sociales urgentes, especialmente cuando no hay acceso ni condiciones para psicoterapias individuales y en ambientes socioeducativos, con el fin de fortalecer el soporte brindado y favorecer la regulación emocional de los niños.

Palabras Clave: técnicas psicoterapéuticas; niños; sueños; Psicología Analítica.


 

 

Introdução

O presente artigo visa apresentar um recurso interventivo breve, lúdico e grupal para crianças, denominado Oficina "Brincando com os sonhos", baseado no contexto onírico. Trata-se de um recorte da pesquisa de doutorado do autor principal, que objetivou avaliar a efetividade do referido recurso em crianças vítimas de violência, visando à adaptação psicológica dos participantes do estudo. São apresentados os fundamentos teóricos da intervenção, pautados no valor terapêutico do trabalho com os sonhos, o contexto dos sonhos de crianças, a importância da expressão simbólica e um exemplo ilustrativo da aplicação do recurso em crianças vítimas de violência. Cumpre salientar que a pesquisa original está adequada aos requerimentos éticos em pesquisa envolvendo seres humanos preconizados pela Resolução CONEP 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, pela Resolução CNS/MS 510/2016 e pelo Regimento dos Comitês de Ética em Pesquisa da PUC-SP que apresentam as diretrizes e regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos (o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUCSP na data de 14 de março de 2018, com Parecer no: 2.542.849).

 

O valor terapêutico do trabalho com os sonhos

A literatura junguiana confere justa importância ao papel dos sonhos na regulação da psique e ao trabalho com os conteúdos oníricos. Jung (1928/2015), em seu modo particular de compreender as manifestações oníricas, considera o sonho um produto natural da psique. O autor enfatiza que os sonhos, por terem expressão livre e espontânea sem interferência do ego, adquirem uma espécie de objetividade quanto à expressão dos conteúdos inconscientes. Tal objetividade reside em condensar em uma imagem inúmeros significados subjacentes à consciência junto a emoções e afetos pujantes. Quanto à sua capacidade de informar "de dentro para fora", considera-se que as imagens oníricas não são aleatórias e que sua linguagem afetivo-emocional obedece à lógica do pensamento-fantasia ao invés do pensamento factual e racional. Por fim, por constituir um processo de orientação finalista (que o autor prefere ao termo "teleológica") e exponente do processo psíquico, pode fornecer acesso às emoções, ideias, percepções e demais conteúdos inconscientes que interferem na atitude do ego. É perceptível que a obra junguiana acentua duas características primordiais do sonho: a produção espontânea de símbolos, revelando a situação psíquica atual, e o seu valor compensatório das atitudes conscientes. Tais aspectos podem ser unificados compondo uma teoria geral sobre os sonhos. O inconsciente formaria um amplo e holístico panorama da personalidade total, em comunicação eminentemente simbólica com o ego, apoiando a concepção da psique como um sistema autorregulador (Roesler, 2018). O processo de individuação, alavancado pelos sonhos, revela-se promotor de equilíbrio psíquico na medida em que os opostos da experiência humana, podendo ser simbolizados, adquirem a possibilidade de serem suportados pelo ego. O efeito restaurador dos sonhos deriva do modo pelo qual a psique, no movimento de autorregulação, apresenta à consciência de maneira simbólica situações, afetos e prognósticos que podem vir a ser "digeridos", pois, em sua maioria, os elementos oníricos personificam complexos (Von Franz, 1993; Gallbach, 2000). O insight proporcionado pelo trabalho com os sonhos não é um ato puramente cognitivo, mas traduz-se em mudanças na vida cotidiana, reforçando a utilidade do recurso. A transformação dos conteúdos oníricos do indivíduo durante o processo analítico fortalece a ideia de permeabilidade entre o inconsciente e a consciência (Roesler, 2018). Inúmeros exemplos teóricos e clínicos são encontrados na literatura da psicologia analítica destacando a importância dos sonhos no fazer psicoterapêutico e enfatizando seu aspecto curativo. Esses estudos baseiam-se em uma prática de interpretação que segue princípios técnicos específicos. É notória a contribuição dos pós-junguianos (Von Franz, 1993; Gallbach, 2000; Hall, 1986; Roesler, 2018) no desenvolvimento de um procedimento de análise de sonhos que não é aleatório, mas exige técnica, treinamento e familiaridade no trabalho com as imagens: um processo geralmente experimentado anteriormente pelo terapeuta que se propõe a analisar o sonho de outra pessoa. Um dos métodos principais para a interpretação dos sonhos na análise junguiana é chamado de amplificação. Pieri (2002) o descreve com um método introduzido por Jung e acrescido ao das associações livres, ao qual se contrapõe de certa maneira. A amplificação permite o desenvolvimento, em amplitude e intensidade, das imagens do inconsciente a fim de permitir uma leitura psicológica não apenas da psique pessoal, mas da coletiva (grupal e arquetípica). A associação pessoal remete o paciente às suas dinâmicas pessoais. Já a amplificação estabelece paralelos culturais, naturais e míticos de modo a ampliar o significado metafórico dos conteúdos examinados. Basicamente, coloca-se a imagem onírica como centro da investigação e se realiza um movimento de circum-ambulação (andar em torno de) permitindo que uma série de ideias, afetos e percepções possam emergir a partir da imagem. Inicia-se com as associações pessoais, que são consideradas as mais elementares e ligam a imagem a algo próprio do indivíduo. Após tais associações procede-se ao método denominado amplificação, tanto em relação à natureza como à cultura na qual a pessoa está inserida; a amplificação se vincula à psique familiar, regional e cultural, ou seja, o indivíduo indubitavelmente está ligado ao inconsciente grupal. A natureza elementar, seja ela considerada materialmente ou espiritual e arquetipicamente, busca nos temas universais correspondências que ligam a pessoa aos temas fundamentais do ser humano. Ao amplificar as distintas dimensões, percebe-se que uma situação, apesar de ser sentida pelo indivíduo como exclusiva, é também compartilhada em outras configurações psíquicas. A consciência, ao se deparar com os elementos suscitados pela amplificação, poderá ter uma atitude de consideração, seja de confronto ou de "deixar acontecer", o que colabora para a elaboração de conteúdos impulsionando o processo de desenvolvimento do ego e a ampliação da consciência. Considerar os sonhos em um processo psicoterapêutico adquire relevância, visto que o acesso aos conteúdos desconhecidos ou pouco conhecidos tende a favorecer o processo de autorregulação na psique. Ademais, vivências emocionalmente impactantes poderão, indiretamente, expressar-se simbolicamente, apresentando-se à consciência de modo menos literal configurando uma alternativa para o trabalho com conteúdos desestabilizadores e de difícil elaboração. Roesler (2018) sintetiza resultados de diversas pe squisas empíricas que indicam que o sonho influencia a regulação emocional durante o estado de vigília, auxilia na recuperação do indivíduo que passou por situações com potencial traumático, é ativo no processo de consolidação da memória, e seu emprego no processo analítico é associado à redução de sintomas depressivos e à melhora do bem-estar subjetivo. O autor endossa o caráter adaptativo dos sonhos, tendo em vista a função que desempenham na regulação das emoções, do estresse e da memória, bem como a influência que exercem nos processos criativos.

 

Os sonhos de crianças

As crianças também sonham, o que é empiricamente observável. Ablon e Mark (1980) enfatizam que os sonhos são ricos de afetos e podem ser reveladores, pois indicam problemáticas relativas ao desenvolvimento psicológico da criança. Sonhos refletem a criatividade infantil e as habilidades da criança bem como apresentam os desafios a serem enfrentados ao longo do desenvolvimento. Sob uma perspectiva desenvolvimentista, tais desafios não representam necessariamente patologias. A respeito de sonhos de crianças, Siegel (2010) afirma que são, geralmente, mais curtos e com menor desenvolvimento da trama, havendo menor propensão, em crianças menores, de o personagem associado ao sonhador estar no controle das situações. Mais comumente, o assim chamado ego onírico infantil se apresenta como vítima de forças adversas ou envolvido em perseguições e com menor capacidade de autocuidado. Agargun et al. (2003) também consideram que há uma prevalência de pesadelos durante a infância, ressaltando, contudo, que os enredos oníricos podem sofrer a influência de eventos traumáticos. Em estudo realizado, os pesquisadores observaram que indivíduos que haviam sofrido traumas na infância apresentaram maior recorrência de pesadelos. Os autores concluem que os sonhos com conteúdos perturbadores teriam uma função adaptativa e auxiliariam a lidar com vivências traumatizantes. Siegel (2010), por sua vez, aponta que eventos traumáticos e dinâmicas familiares disfuncionais podem influenciar os sonhos infantis, sonhos esses que também fornecem informações a respeito das etapas de vida do indivíduo. Esse autor considera, ainda, que traumas podem provocar pesadelos, sobretudo no contexto do estresse pós-traumático ou de relacionamentos abusivos. Essas experiências tenderiam a desencadear sonhos vívidos que também apontam para tarefas psicológicas do desenvolvimento ou surgem em momentos de transição na vida. Valli et al. (2005), em revisão da literatura sobre o tema, sintetizam que os sonhos são afetados por experiências de risco e os pesadelos que retratam experiências traumáticas são relatados por crianças que sofreram ameaças na vida real. Os autores ressaltam que, após experimentarem situações terríveis, as crianças podem ter sonhos com perseguições nos quais se veem prejudicados ou agredidos; quanto mais grave a situação vivida, maior seria a intensidade dos pesadelos. Sobre a expressão dos conteúdos oníricos, Murray (1995) conclui que o fato de crianças verbalizarem os sonhos favoreceu que compreendessem melhor as próprias emoções, auxiliando na elaboração de experiências e na diferenciação entre conteúdos da fantasia e da realidade concreta. Siegel (2010) assinala a importância do trabalho com sonhos no sentido de apoiar a compreensão clínico-diagnóstica na psicoterapia infantil, além de contribuir para a diminuição da frequência de pesadelos, melhorar o desempenho acadêmico e modificar comportamentos problemáticos. Os sonhos para as crianças são um recurso de expressão de conteúdos simbólicos, a partir dos quais é possível investigar o desenvolvimento psíquico. A apresentação dos enredos oníricos elucida o modo pelo qual a criança está lidando com suas emoções, permitindo ao terapeuta e cuidadores aventarem experiências traumáticas mediante a persistência de temas. Sobretudo, o método junguiano de centrar-se na imagem, trabalhando diretamente com o símbolo e com a amplificação constitui-se uma alternativa para a dificuldade encontrada no trabalho associativo com crianças, mencionada por autores psicanalíticos. O trabalho com as imagens e com seu animismo característico é mais lúdico, favorecendo o trabalho com quem ainda não possui recursos cognitivos para associar livremente.

 

Expressão simbólica

A capacidade de simbolizar diz respeito à possibilidade de configurar mentalmente algo que não esteja, necessariamente, no campo perceptivo do indivíduo e que poderá ser representado por algum registro simbólico. Sua importância reside no fato de que a expressão das emoções em imagens auxilia na criação de uma nova atitude consciente perante essas emoções (Jacoby, 2019). As imagens simbólicas não são criadas conscientemente, mas emergem dos processos inconscientes e possuem vitalidade. São expressão de um fato espontâneo, de caráter finalista, que ultrapassa o limite da intencionalidade consciente (Pieri, 2002). De outro lado, a expressão plástica, como o desenho, permite que esses conteúdos possam emergir na consciência, favorecendo sua ampliação (Furth, 2006). No trabalho com os sonhos, o material assimilado e fragmentos da personalidade podem ser reunidos, simbolicamente, por meio da livre expressão (Jung, 1931/2012). Segundo Jung (1920/2013a) a produção espontânea e transformadora do inconsciente, expressa no sonhar e no fantasiar, poderá auxiliar na adaptação e ter uma função compensatória quando é necessário o enfrentamento de situações desfavoráveis. A brincadeira, tendo como base a fantasia, é um espaço fecundo para as crianças aprenderem a expressar, processar, modular e regular emoções, de modo a usá-las de maneira adaptável (Russ, 2004; Shields & Cichetti, 1998; Mennin et al., 2002). A simulação de algo em forma de brincadeira se origina junto à fantasia e é carregada de emoções: o afeto e o brincar de faz de conta estão entrelaçados (Piaget, 1945/2017; Singer, 2014). Na teoria de Vygostky (1996), compreende-se que a atividade de brincar da criança é uma reformulação criativa, necessária ao desenvolvimento infantil e da regulação emocional para o envolvimento de modo adaptativo com o ambiente. Consequentemente, Jung (1910/2013b) enfatiza que impulsionada pelo brincar, a atividade da fantasia ganha força de modo a possibilitar a criação de meios para afastar ou remover um obstáculo. A fantasia da criança dedicada a uma brincadeira envolvente propiciará que os afetos negativos possam ser expressos sem serem acompanhados, necessariamente, de estados de humor negativos fixados (Singer & Singer, 1990). O caráter compensatório das fantasias tem seu valor justificado quando uma solução parece distante, sobretudo diante do contexto de repressão, coerção, violência, em que os recursos pessoais se mostram insuficientes e as possibilidades de transformação e superação do sofrimento parecem ser mínimas. O brincar de faz de conta comunica sobre a vida emocional da criança e, no âmbito da psicoterapia infantil, constitui-se importante promotor de mudanças. Relaciona-se aos processos cognitivos e afetivos importantes para a criatividade, de modo que tal prática amplia possibilidades cognitivas, desenvolve metáforas e constrói um estoque rico de símbolos afetivos (Fein, 1987). Estes poderão auxiliar em situações de escassez simbólica, quando situações concretas paralisantes impedem a simbolização.

 

A técnica "Brincando com os Sonhos"

Trata-se de um recurso interventivo grupal criado pelo autor principal. A inspiração surgiu da necessidade de contar com um recurso para grupos, de modo a contribuir para os esforços da psicologia diante da problemática da violência contra crianças. Atrelada a essa preocupação, conjecturou-se uma proposta que unisse uma prática grupal e os pressupostos da psicologia analítica, sobretudo o trabalho com sonhos e recursos expressivos, conhecimentos que embasam a prática de psicólogo clínico infantil do pesquisador. Os trabalhos de Gambini (2000), Fillus (2010, 2013) e Gallbach (2000) foram um ponto de partida para estipular a modalidade e embasar as noções que o recurso interventivo contemplaria. O procedimento abrange três fases. A fase 1 visa ao estabelecimento de vínculo e regras bem como à coleta dos sonhos. Busca-se estimular a vinculação com dinâmicas de apresentação com os terapeutas para as crianças e com as crianças entre si, fundamental para formatação do grupo. Em conjunto, são estabelecidas as regras de funcionamento. Posteriormente, é explicado para as crianças o contexto dos sonhos e inicia-se a coleta de sonhos das crianças, na forma do relato e do desenho. Na fase 2 é proposta uma atividade em grupo durante a qual o sonhador sorteado apresenta seu sonho e o grupo estabelece uma brincadeira e/ou produz plasticamente um desenho/ modelagem em consonância com o relato e instruções do sonhador. Objetiva-se estimular a expressão dos conteúdos psíquicos das crianças, estabelecer um ambiente de segurança e acolhimento, favorecer a contribuição mútua entre os participantes e a coesão do grupo e estimular a participação das crianças na atividade. A fase 3 objetiva uma atividade lúdica na qual as crianças expressam suas opiniões sobre sua experiência com a técnica. Seu objetivo é realizar o fechamento da atividade. Nesta técnica consideram-se: o papel do grupo (promovendo apoio, união e criatividade diante das problemáticas expostas), a brevidade (portanto, aplicável à realidade das instituições marcadas por alta rotatividade de crianças) e os conteúdos oníricos (sua peculiaridade de expressar aspectos inconscientes, emoções e vivências).

 

Um exemplo clínico ilustrativo no contexto da violência contra a criança

Dentre as possíveis aplicações da técnica destaca-se sua inserção em instituições ligadas ao enfrentamento da violência contra as crianças. O caso ilustrativo é de Miguel, uma criança atendida por uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), na modalidade de contra turno escolar, que permanecia residindo com seus familiares. Possuía histórico de violência identificado pela rede de proteção da cidade e, por esse motivo, foi encaminhado à Instituição. Miguel é um menino de nove anos. Estudava em escola pública, no quarto ano do ensino fundamental. Seu histórico é de negligência e abandono materno. Era uma criança muito sensível ao comportamento da mãe, não compreendendo o fato de ela não procurar por ele ou por seus irmãos. Vivenciou e foi vítima de situações de violência física no lar paterno, passando a residir com a avó. Segundo a observação dos terapeutas, durante os encontros da oficina, apesar de aliar-se ocasionalmente à conduta opositora de alguns participantes, envolveu-se nas atividades expressando-se sem dificuldades. Demonstrava empatia e vinculou-se positivamente com os terapeutas. A criança participou da pesquisa sobre a efetividade da técnica e realizou, como os demais participantes, testes psicológicos a fim de mensurar a modificação de fatores relacionados ao estresse, a aspectos cognitivos e aos comportamentos internalizantes e externalizantes antes e depois do grupo de sonhos. Antes do grupo, foi aferido, nos resultados das suas avaliações na Escala de Estresse Infantil (ESI), fase de "resistência" ao estresse, praticamente em fase de "quase exaustão", o que se caracteriza como uma fase grave, quando a resistência aos estressores fica comprometida e o indivíduo pode chegar a adoecer física e psiquicamente. Nos resultados da Escala Wechsler Abreviada de inteligência (WASI) os resultados indicaram dificuldades nas habilidades de conhecimento verbal, no desenvolvimento da linguagem, dificuldades em manipular mentalmente símbolos abstratos e perceber a relação entre eles. Nas escalas gerais do Teacher Report Form (TRF), observou-se escore de pontuação clínica na Escala de comportamento Externalizante e, na categoria Escalas orientadas para o DSM do TRF, escore de pontuação clínica no item Transtorno Opositor. Compreende-se, em sua avaliação inicial, que os comportamentos externalizantes parecem constituir uma espécie de defesa contra o ambiente por meio da oposição e da agressividade, pois, para o menino, vincular-se pode representar um grande risco de abandono. Os mesmos sinais externalizantes podem sugerir depressão infantil, corroborados pela percepção de que o alto estresse inicial, que contribui para significativa propensão a um quadro depressivo e ansioso, caracteriza fases graves de estresse nas quais a resistência fica comprometida e o indivíduo pode adoecer física e psiquicamente. Estes sinais também podem apontar para a presença de transtornos relacionados a trauma e a estressores na categoria de trauma complexo. A seguir é descrito um encontro grupal e a participação nele de Miguel com o sonho que contou ao grupo, com a sequência de produção gráfica e das brincadeiras dele e do grupo.

 

 

Relato do sonho: "É um carro atirando no zumbi. Ele voa numa rampa, ele passa por cima do zumbi bem gigante, ou múmia gigante. Estava caindo chuva porque estava triste. Todo mundo virou zumbi, menos o atirador".

A partir do sonho de origem (desenho e relato), foi realizada a produção grupal apresentada a seguir.

 

 

A produção nessa sessão foi inicialmente setorizada. No final, houve interação e colaboração entre as crianças. Foram evidenciados os elementos que havia no sonho de Miguel como o carro, o dia chuvoso e as cores escuras que remetem ao ambiente de perigo e tristeza. Outros elementos emergiram da brincadeira, como árvores, árvores negras, muralhas, portais, diamante, cruz, coração e sangue. As produções de Miguel no grupo, na figura 2, foram os desenhos 8, 9 e 10.

Para a confecção do cartaz 11 formou-se uma brincadeira na qual todas as crianças começaram a carimbar a cartolina com suas mãos cobertas de tinta preta (Figura 3). Todas ficaram muito eufóricas, apresentando muita vitalidade. Depois de concluído o cartaz, elas percorreram a instituição mostrando o que haviam feito e dizendo: "Eles vão ver o que as crianças são capazes de fazer com tinta", referindo-se às demais crianças e às professoras da instituição.

 

 

 

 

 

 

Análise e intepretação do caso

A análise a seguir considera, sequencialmente: a) as características do material gráfico; b) a análise dos elementos simbólicos; c) a síntese interpretativa do material analisado. As produções simbólicas, expressas nas verbalizações e nos desenhos, constituíram material de análise clínica seguindo os critérios propostos por Furth (2006) para análise gráfico/plástica e uma elaboração interpretativa utilizando-se raciocínio clínico e o método da amplificação conforme a perspectiva hermenêutica junguiana.

Características do material gráfico/plástico

Apresentam-se a seguir os desenhos feitos por Miguel no grupo e aqueles realizados das outras crianças, todos a partir do sonho relatado por ele.

No desenho 1, feito individualmente por Miguel (figura 1), do qual derivaram as demais produções das crianças, há uma primeira impressão, como sentimento transmitido, de uma ação, um combate, uma agressividade. O carro tem uma centralidade, ou seja, indicando o que é mais importante para ele. Há um sol no canto superior esquerdo da página, sem preenchimento, sugerindo algo que ainda não tem energia suficiente. Um dos nomes11 está encapsulado, como se estivesse dentro de uma nuvem verde. Há uma rasura feita por Miguel que parece esconder um segundo nome, depois daquele que está escrito fora da nuvem. As palavras no desenho trazem o nome do sonhador, reforçando para o observador a identidade de quem fez o desenho do sonho. Não há predominância de cores no desenho. Reforça-se apenas que o carro desenhado por Miguel é colorido, o que pode evidenciar um aspecto infantil vital. Nas produções grupais, realizadas por Miguel e pelas outras crianças (figura 2), como sentimento transmitido, há um misto de confusão e um princípio de estruturação. Observa-se nos desenhos do grupo a categoria "o que é central": o diamante (desenhos 4 e 5), um quadrado escuro (desenho 3), um portal com muralha (desenho 6), uma cruz (desenho 7). Nos desenhos de Miguel (8, 9 e 10) é observada uma sequência com um desenho geométrico central que ele chamou de diamante, culminando em uma espécie de coração com chifres. Sentimentos de opressão transparecem em: árvore preta contida ou aprisionada (desenho 4), céu escuro e espesso (desenho 3). Sentimento de vazio como baixo nível de energia (desenho 5). Nos desenhos de Miguel a nuvem carregada no desenho 1 pode indicar algo opressor. O abstrato aparece nos desenhos 8 e 9, sugerindo algo incompreensível, difícil, obscuro ou uma fuga. A cor mais proeminente nos desenhos é o preto, o que indicaria ameaça e medo. O vermelho também aparece, remetendo a um problema abrasador, emoções arrebatadoras ou perigo, nos desenhos 8, 9 e 10.

Análise dos elementos simbólicos

Serão analisados a seguir os elementos simbólicos dos desenhos de Miguel:

Carro: aparece no desenho 1 (figura 1), com várias cores, dando a impressão de estar se dirigindo para a direita. O carro tem rodas grandes. Miguel disse que há momentos tristes e alegres; os momentos alegres seriam porque "o herói está dentro do carro e é um salvador". "Sadaler" é um personagem do mal, com fogo. O momento triste "é quando todos morrem". O carro pode simbolizar o ego do sonhador e a consciência, assim como a identidade com aspectos masculinos de força e agressividade (Fillus, 2013).

Armas: no desenho 1 (figura 1), a arma é um acessório do carro, parecendo uma metralhadora que surge com poder de fogo. Como instrumento do herói ou do guerreiro é símbolo do seu poder de atacar, defender-se ou proteger-se (Lexikon, 1998).

Rampa: no desenho 1 (figura 1), aparece como um obstáculo que está frente ao carro. No relato do sonho: "Ele voa numa rampa, ele passa por cima do zumbi bem gigante ou múmia gigante", o que sugere que ela é um potencializador da ação contra os zumbis.

Zumbi: este elemento não foi desenhado, presente apenas no relato do sonho: "É um carro atirando no zumbi. Todo mundo virou zumbi, menos o atirador". Segundo Nasi (2016), esse símbolo pode apontar para o medo do desconhecido, de algo morto que pode ter vida própria. Imagens ameaçadoras de zumbis podem aparecer nos sonhos como aspectos que assombram e sugam a energia.

Coração: o desenho 10 (figura 2), hipoteticamente considerado uma evolução dos desenhos 8 e 9, assemelha-se a um coração com duas formas pontiagudas, lembrando chifres. Miguel disse ter desenhado o coração do diabo que ele chama de "Sadoler". Comentando a respeito do "coração do Diabo" disse que sonhava cinco anos "com a mesma coisa" e que esse sonho repetido "nunca terminava". Posteriormente, Miguel disse: "hoje estou muito feliz", referindo-se à obra concluída. Há a presença de cores fortes novamente (vermelho e preto). O coração, como órgão, alude à noção de um centro vital, associado no Ocidente à sede dos sentimentos (Chevalier & Gheerbrant, 2009; Prates, 2005).

Sangue: aparece nas falas de Miguel enquanto realizava os desenhos 8, 9 e 10 (figura 2). Durante a sua produção verbalizou: "Quero que vire sangue de verdade", repetindo e confirmando o símbolo do sangue que pode ser amplificado como veículo da vida, das paixões, um princípio corporal (Chevalier & Gheerbrant, 2009). O sangue vampirizado representa a psique emocional afetiva, como um complexo drenando a energia psíquica (Nasi, 2016).

Nuvem: aparece em verde no desenho 1 e contém o nome dele (figura 1). No desenho 2 (figura 2), aparece bem central, em azul escuro, parecendo carregada e no desenho 3, apesar de não haver o formato de uma nuvem, uma camada espessa está formada na parte superior do desenho, na cor azul misturada ao vermelho o que resultou em uma espécie de roxo, e ocupa mais de um terço da folha. Nuvens espessas podem simbolizar ameaças ou pressão sobre o indivíduo (Querol & Paz, 1997).

Chão: no desenho 1 (figura 1), aparece como uma linha, sem cor e sem preenchimento abaixo. No desenho 2 (figura 2), está em verde, mas parece delgado e com espaços em branco. Uma linha de solo ausente ou delgada pode referir-se a dificuldades de contato com a realidade. (Loureiro & Romaro, 1988).

Abstrato: no desenho 2 (figura 2), há uma linha de lã de onde saem elementos vermelhos pontiagudos. O desenho 8 (figura 2) é abstrato, formado por partes que lembram um coração e outras que lembram um diamante. O desenho 9 (figura 2) parece ser uma evolução do desenho 8, no qual há uma massa vermelha e preta, abstrata. Parece haver dentro dela um pentagrama ou uma estrela de Davi. O desenho 10 (figura 2) parece ser uma evolução dos desenhos 8 e 9, assemelhando-se a um coração, com duas formas pontiagudas. Segundo Furth (2006), o abstrato, tanto em uma parte quanto em todo o desenho, pode aludir ao incompreensível, a algo obscuro, a uma fuga.

Diamante: enquanto realizava o desenho 8 (figura 2), Miguel verbalizou que fez um "diamante de asas dos zumbis", muito colorido, e que é um "diamante que os zumbis cuidam". Símbolo de pureza e perenidade, ao diamante podem ser associados poderes de cura, de combate a venenos e de afastamento de animais perigosos, fantasmas e bruxas (Lexikon, 1998; Lurker, 1997). Outras crianças o representaram: no desenho 4 (figura 2), em formato geométrico, nas cores verdes e azul, com dois pequenos pontos (um preto e outro amarelo) e é central na página; no desenho 5 (figura 2) está sem preenchimento, ainda que central.

• Sol: no desenho 1 (figura 1) aparece apenas um contorno do sol, sem cores, e no canto superior esquerdo da página. Pode simbolizar a consciência ou aspectos paternos (Chevalier & Gheerbrant, 2009; Cirlot, 1984).

Palmas da mão: na sequência da produção conjunta (desenho 11, figura 3) na qual Miguel participou, as mãos são carimbadas em preto e vermelho, resultando em um cartaz tomando pela cor preta. Sua estampagem pode aludir a uma forma de demarcar presença ou domínio, imprimindo identidade ao conteúdo expresso.

Junto aos desenhos de Miguel, nas interações das crianças, houve desenhos/produções com os seguintes símbolos: a) igreja (desenho 5 – figura 2): pode apontar para o simbolismo materno, no sentido de buscar a proteção da mãe contra o vazio interno, e a cerca pode simbolizar o elemento protetor e o limite (Golfeto, 1989); b) muralha: na produção 5 (figura 2) está no alto da página, com quatro partes; na produção 6 (figura 2) aparece como uma muralha com um portal ao centro. Muralhas podem simbolizar proteção (Cirlot, 1984; Golfeto, 1989), ao passo que os portais são o oposto, permitindo a passagem (Cirlot, 1984); c) cruz: aparece no centro do desenho 7 (figura 2), em vermelho. Dela parecem emanar raios em preto. Uma das imagens para a representação do Self na psique é a imagem da cruz (Golfeto, 1989); d) árvore: está encapsulada por uma linha preta e tomada pelo preto no desenho 4 (figura 2); aparece sem preenchimento, empobrecida e parecendo apenas um esboço no canto esquerdo da página do desenho 5 (figura 2); está representada na produção 7 (figura 2) com um trabalho feito em argila. Ha um tronco estruturado e uma copa com frutos. A árvore pode figurar um autorretrato do sujeito, expressando sentimentos profundos e inconscientes (Van Kolck 1984; Retondo, 2000). Uma expressão negativa do símbolo pode indicar que o sujeito se sente inferior, psicologicamente inadequado, deprimido, culpado ou alguma combinação desses sentimentos (Buck, 2003).

Síntese interpretativa do material analisado

O sonho do qual a atividade em grupo decorre expõe um carro que atira em zumbis e que possui qualidades heroicas, como voar sobre os zumbis. As armas, como artefatos para defesa, estão presentes e auxiliam para que a realidade de morto-vivo dos zumbis não contamine ou mate o sonhador. Portanto, um aspecto heroico aparece como mobilização para combater o que é ruim. Alude-se que, para Miguel, o carro, como representante do ego, possui vitalidade quando pode agir, quando seu senso de agência é expresso no seu ataque e na sua potência. O herói, dentro do carro, é um salvador. Símbolo de autonomia e poder, o carro, também como identidade masculina (Fillus, 2013), expressa sua "alegria" ao agir. A impotência, seu avesso, é associada à tristeza e à morte, como na verbalização "o momento triste é quando todos morrem". O menino se referiu a um personagem do mal, batizado por ele de Sadoler, que tem poder de fogo. Pode-se compreender, de alguma forma, a agressividade de Miguel como potência de reação contra o mal. Miguel produz uma sequencia de desenhos de impacto simbólico significativo para ele: o "coração do diabo" (desenho 10 – figura 2) que é uma evolução dos desenhos 8 e 9. Os desenhos são abstratos e, aos poucos, transformam-se em um coração com chifres. A abstração aparece frequentemente nos desenhos do menino, retomando a ideia de que algo incompreensível, difícil e obscuro para ele está sendo expresso. O desenho geométrico 9 é tomado pelo preto e pelo vermelho, revelando um problema abrasador, com emoções abrasadoras relacionadas a medo e perigo. O desenho 10 completa a evolução, assemelhando-se a um coração com duas formas pontiagudas, entendidas como chifres. Tal associação emerge da fala de Miguel, que disse ter desenhado o coração do diabo a quem deu o nome de Sadoler. O diabo, que tem nome no imaginário da criança, representaria a identidade ferida e prejudicada que não lhe permite ser a criança feliz que gostaria de viver. Ao desenhar, Miguel se refere repetidas vezes a sangue ("quero que vire sangue de verdade"). O "coração do diabo" simbolizaria o centro da maldade que oprime, maltrata e faz sofrer. O fato de uma criança expressar algo tão terrível indica a possível perturbação que uma série de sofrimentos causa e assedia o mundo infantil como o centro do representante do que é mau, o próprio diabo. Podemos inferir que o abandono materno vivido seja um trauma no desenvolvimento de Miguel, e somente um demônio para ele poderia perpetrar tal ato. A dor e a incompreensão vagam de modo perturbador em seus sonhos, pois Miguel disse que sonhava havia cinco anos "com a mesma coisa" reclamando que esse sonho repetido nunca terminava, o que pode apontar para a busca de elaboração de um afeto importante. Havia um resgate necessário, pois seu potencial está nas mãos de zumbis, como um diamante alado, que precisa ser recuperado. Miguel demonstrou seu sofrimento em suas produções e, também, o que tem feito para se proteger da terrível carga vivenciada como maldade que marcou sua história. Quando Miguel disse, ao concluir sua obra, "Hoje estou muito feliz", estaria expressando o alívio de ser visto e ouvido, de expor sua dor. As produções das demais crianças também indicaram emoções intensas, acompanhando a tonalidade afetiva do sonho de Miguel. Observa-se que, ao lado do diamante, surge a árvore preta do mal (desenho 4 – figura 2) como símbolo da morte em vida, de estar absorvido pela maldade. O céu que despenca sobre o mundo aludindo à tensão, à preocupação, ao medo ou a uma espécie de ideia de castigo presentes no pensamento e na fantasia dessas crianças. Emergem temas importantes como o diamante, que está em posse do zumbi e é um elemento a ser conquistado. Representante de uma joia interior, da força e unidade, a pedra preciosa precisa ser resgatada do seu sequestro. São erigidos cercados e portais como proteção contra as ameaças; ainda que modelados com certa precariedade, indicam defesas, escudos importantes diante do perigo. Nos desenhos das crianças, no 7, oposto à arvore do desenho 4, há uma árvore com vida e cheia de frutos e uma cruz vermelha, como símbolo da necessidade de cura ou de salvação que paira sobre uma espécie de carro infantilizado, como que compensando o caos no mundo concreto. A sequência de imagens culmina com um cartaz em que as crianças carimbaram suas mãos com tinta preta. A euforia tomou conta delas que diziam: "Eles vão ver o que as crianças são capazes de fazer com tinta". A cartolina virou uma grande mancha preta que as crianças se sentem com poder de manipular. A expressão e a denúncia do sofrimento grupal parecem ter contribuído para o entusiasmo delas e o final da brincadeira assemelhou-se a uma catarse. Miguel participou da atividade de modo intenso. A brincadeira com seu sonho foi muito prazerosa para ele.

 

Resultados após o grupo de sonhos

Na segunda avaliação de Miguel, quanto aos resultados da ESI (Escala de Estresse Infantil), evidenciou-se que, apesar de permanecer a propensão para um quadro depressivo, houve diminuição de estresse geral. Nos aspectos cognitivos, aferidos pela WASI (Escala Wechsler Abreviada de inteligência), os resultados indicaram ampliação da capacidade de manipular símbolos abstratos, que requer raciocínio dedutivo não verbal. Esse resultado é indicativo de que a inteligência fluida se aprimorou, ou seja, haveria maior capacidade de solucionar situações e problemas novos, identificar relações complexas e compreender implicações e inferências. Nos comportamentos avaliados pelo TRF (Teacher Report Form), verificou-se melhora em comportamentos externalizantes, confirmando estudo de Rosa et al. (2018), sobretudo, no item Transtorno Opositor, que deixou de apresentar escore de pontuação clínica. Miguel relatou, uma semana depois do encontro no qual desenhou o coração do diabo, que seus pesadelos repetitivos pararam de acontecer. Ele relatou esse fato informalmente comentando estar muito feliz com isso. Alude-se que o abandono materno, cujas razões não são compreendidas, é algo difícil de elaborar e parecia assombrar o menino como um evento traumático. Um sonho que se repetia e nunca terminava, mas que não mais se manifestou, é indicativo de uma situação traumática que pôde ser transformada no campo terapêutico da brincadeira em grupo. Haveria, portanto, indícios de um primórdio de construção de recursos favoráveis a seu desenvolvimento psíquico e atenuação de efeitos traumáticos, ressaltando-se a importância de o menino prosseguir em acompanhamento psicoterapêutico, o que não pode ser efetivado dado às características da instituição.

 

A importância de recursos interventivos não verbais

Diante da importância das ações psicoterapêuticas dirigidas a crianças, em especial aquelas em situação de violência, ressalta-se, na literatura, o efeito de meios lúdicos e não verbais. Rocha, Prado e Carraro (2007) apontam que o brincar terapêutico promove o aumento da capacidade de expressão de sentimentos e o desvelar da ansiedade e da violência da qual a criança foi vítima. No caso apresentado observou-se a presença de emoções intensas e disruptivas de terror e medo acompanhadas de forte tensão e sofrimento, que foram entendidas como uma espécie de denúncia inconsciente de fatos concretos vividos. O estudo de Giacomelo e Melo (2011) buscou compreender, por meio de sessões com o brinquedo terapêutico, o universo da criança institucionalizada. Ao brincar, as crianças expuseram as situações de seu cotidiano familiar, de modo tranquilo, mas também de maneira violenta. Percebeu-se que essa modalidade de terapia oferece a possibilidade de um canal de expressão de sentimentos de forma segura. A Oficina que eles realizaram permitiu observar o movimento de expressão de emoções e conflitos. Destacou-se a insegurança e o sentimento de ameaça à preservação da inocência infantil que deveria ser protegida por um lar estável e seguro. Tais emoções estariam relacionadas à presença de situações estressoras na vida das crianças. Os movimentos de expressão também foram relacionados à diminuição do estresse, pois, à medida que as fantasias foram externalizadas nos desenhos e nas brincadeiras, ocorreu uma descarga de energia psíquica advinda de conteúdos inconscientes perturbadores. As crianças, diante da situação de violência, sofrem um sequestro de seu mundo interno quando são lançadas em situações extremas de tensão, abandono e sofrimento. Imaginar, acreditar em si, achar-se capaz, sentir segurança e ter paz são fatores essenciais que sofrem a interferência do ambiente violador. O aspecto não verbal das atividades favorece a integração, pois nem sempre a palavra pode expressar a totalidade dos conteúdos subjacentes à consciência, principalmente quando se trata de emoções de forte intensidade. Autores como Van der Kolk e outros (2005) e Howe (2005) alertam que emoções muito intensas, como raiva, vergonha e medo podem ser revividas quando há uma ênfase na verbalização de situações traumáticas. As memórias implícitas e demais sensações ligadas ao trauma, quando ativadas, podem ser prejudiciais em vez de terapêuticas e, por isso, os autores não recomendam nesses casos terapias cujo recurso mais utilizado seja o verbal. As produções de Miguel e das crianças do grupo apontaram, simbolicamente, vivências psíquicas com alta possibilidade de traumatização e, inclusive, possíveis falhas do ambiente em garantir a eles a proteção necessária. Quanto à relevância do trabalho grupal, Habigzang e outros (2009) enfatiza que, além da efetividade da terapia em grupo na redução dos sintomas de depressão, ansiedade e TEPT, os participantes do estudo que realizou sentiram-se respeitados e apoiados, o que os ajudou na reestruturação de crenças. No caso presente, o contexto grupal ajudou no estabelecimento da confiança mútua, representando um espaço seguro e oferecendo um novo modelo de relacionamento interpessoal. Isso foi visto na construção do cartaz que exibiram com entusiasmo. A respeito da dinâmica grupal na busca por recursos e defesas para conter o sofrimento, foram observados movimentos simbólicos de busca por proteção e de fortalecimento egóico, de modo que a possibilidade de agir, defender-se e criar soluções emergiu nas produções conjuntas e verbalizações de Miguel e dos participantes. Percebeu-se a ativação das características do herói, símbolo de força e de energia para a agência do eu, expressas nas brincadeiras de ser o herói, forjar espadas e construir máscaras e instrumentos para ataque e proteção representados e utilizados em grupo durante os encontros. Furniss (1993) destaca as vantagens da terapia de grupo sobre a psicoterapia individual, pois as vítimas, tendendo a se definirem pela experiência de abuso, se sentem culpadas, isoladas e diferentes dos seus próximos. O grupo ajudaria a quebrar o isolamento. Padilha e Gomide (2004) sintetizam os pressupostos para o trabalho em grupo com adolescentes que sofreram abuso e apontam que esse modelo terapêutico auxilia no desvelamento da situação traumática.

 

Considerações finais

A técnica da Oficina "Brincando com os sonhos" visa promover um espaço seguro e protegido para a expressão de sentimentos e conteúdos psíquicos. A ênfase dada aos aspectos imagéticos e lúdicos do sonho relaciona-se à capacidade de ativar a plasticidade mental, de modo que novas possibilidades possam surgir a partir da elaboração simbólica. Uma proposta lúdica e que trabalhe com símbolos pode ser importante para que não se revivam sentimentos desconfortáveis ou retraumatizantes.A técnica proposta visa à ampliação das abordagens psicoterapêuticas disponíveis aplicadas grupalmente, com ênfase na concepção autorreguladora da psique. A técnica "Brincando com os Sonhos", no âmbito da psicologia clínica, destaca-se, principalmente, pela possibilidade de inserção do psicólogo em contextos que envolvem prementes necessidades sociais. Portanto, o recurso é aplicável em vários contextos nos quais a intervenção em grupos seja possível, especialmente quando não há acesso e nem condições para psicoterapias individuais. Além do âmbito da psicoterapia, destaca-se sua inserção nos ambientes socioeducativos, viabilizando sua aplicabilidade em instituições a fim de fortalecer o suporte oferecido e favorecer a regulação emocional das crianças.

 

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Recebido: 14.12.21
Corrigido: 16.01.22
Aprovado: 14.02.22

 

 

8 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento: 88887.148057/2017-00. Artigo oriundo da tese: Brincando com os sonhos: recurso interventivo grupal breve a partir de conteúdos oníricos – Uma proposta para crianças vítimas de violência. Autor: Michel Alexandre Fillus. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2019.
11 Nomes ocultados nas figuras, para preservar o sigilo.

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