Estilos da Clinica
ISSN 1415-7128 ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.11 n.20 São Paulo jun. 2006
ARTIGO
A intimidade materna1 _ A contribuição da psicanálise na pesquisa sobre os bebês
The maternal intimacy - The psychoanalysis contribution to research about the babies
La intimidad materna - La contribución del psicoanálisis en la investigación sobre bebés
Michèle BenhaimI; Isabel Bettencourt Jano (Trad.)
Universidade da Provence, em Aix-Marseille I
RESUMO
Este trabalho parte de dois postulados para pensar a intervenção sobre a posição subjetiva materna na clínica psicanalítica com bebês. O primeiro postulado é que o campo de desenvolvimento da criança interessa à psicanálise por ter como base uma teorização e uma forma de compreensão da construção subjetiva; e o segundo postulado é que a psicanálise remete a uma clínica do sujeito. O artigo mostra como o discurso psicanalítico ordena o lugar do sujeito em sua interlocução linguageira, ou seja, a sua submissão aos significantes que o determinam e a marca da completude impossível, ou ainda, que o bebê, antes de nascer, é um significante.
Palavras-chave: Clínica psicanalítica com bebês, Posição subjetiva materna, Prevenção, Psicanálise.
ABSTRACT
This paper presents two postulates to think the intervention on the subjective position maternal about the psychoanalytical clinic with babies. The first postulate is that the field of development of the child interests the psychoanalysis for having as base a theorization and a form of understanding of the subjective construction; and the other postulate are that the psychoanalysis sends to a clinic of the subject. The article shows as the psychoanalytical speech commands the place of the subject in its language interlocution, that is, its submission to the significant that they determine it and the mark of the impossible completion, or still, that the baby, before being born, is a significant.
Keywords: Babies psychoanalitical clinic, Subjective position maternal, Prevention, Psychoanalysis.
RESUMEN
Este artículo presenta dos postulados para pensar la intervención en la posición subjetiva materna en la clínica psicoanalítica con los bebés. El primer postulado es que el campo del desarrollo del niño interesa a psicoanalisis por tener como base una teorización y una forma de comprensión de la construcción subjetiva; y lo segundo postulado es que el psicoanalisis envía a una clínica del sujeto. El artículo demuestra como el discurso psicoanalítico ordena el lugar del sujeto en su interlocution de la lengua, es decir, su sumisión al significante que lo determinan y la marca de la completude imposible, o aún, que el bebé, antes de nacer, es un significante.
Palabras clave: Clínica psicoanalitica de los bebés, Posición subjetiva materna, Prevención, Psicoanalisis.
Introdução
Partiremos de dois postulados para nortear a intervenção em que vou tentar trabalhar a questão que nos preocupa: a posição subjetiva materna – o discurso do Outro primordial no qual o bebê é imediatamente inscrito, na medida em que concordamos que esse discurso lhe é preexistente e que, de certa forma, o aguarda em um lugar a ser definido por alguns elementos que pretendo desenvolver.
O primeiro postulado é que o campo de desenvolvimento da criança interessa à psicanálise por ter como base uma teorização e uma forma de compreensão da construção subjetiva; e o segundo postulado é que a psicanálise remete a uma clínica do sujeito. Sendo assim, somos de fato induzidos a considerar que o ponto de vista sobre a construção subjetiva convoca de forma explícita o paradigma psicanalítico quanto à luz que ele lança sobre as condições de construção da subjetividade na alienação primária do sujeito ao Outro.
Tentaremos mostrar como o discurso psicanalítico ordena o lugar do sujeito em sua interlocução linguageira, ou seja, a sua submissão aos significantes que o determinam e a marca da completude impossível. Ou ainda, tentaremos dizer que o bebê, antes de nascer, é um significante; significante no desejo e no fantasma materno, talvez até parental.
No contexto atual, considerar uma clínica dos bebês a partir dos conceitos da psicanálise parece-nos mais oportuno do que nunca. Recorre-se hoje freneticamente às pesquisas genéticas e neurofisiológicas e, não desmerecendo o seu interesse, constatamos que elas costumam ser utilizadas a fim de rejeitar as hipóteses psicopatológicas em benefício de causalidades neurológicas, e a conseqüência clínica dessas extrapolações é a utilização de métodos reeducativos em detrimento do aspecto psicoterapêutico.
Não me estenderei sobre o fato de que a contribuição da psicanálise à pesquisa sobre os bebês é uma tradição antiga. Penso aqui em Freud (1905) e em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, ou nos analistas clássicos da criança, Klein, Winnicott, Dolto, etc., ou até em Lebovici, em suas descrições da interação fantasmática com sua dupla dimensão imaginária consciente ou pré-consciente e fantasmática inconsciente. Tanto uns como outros buscam definir os espaços físicos no início da vida e teorizar um mundo psíquico que daria conta da emergência da vida psíquica no bebê. Nesse ponto, eles nos interessam.
No plano da prática clínica propriamente dita, a corrente segue no sentido de reflexões em torno da prevenção: trata-se aqui de descobrir, antes que se manifestem em sua forma sintomática, o que alguns chamam de distúrbios da interação e, a partir daí, concorda-se hoje em determinar situações de risco (prematuridade, doenças físicas ou mentais, depressões, problemas sociais, etc.), cujo objetivo é acionar as medidas terapêuticas específicas.
Os pontos que vou levantar situam a questão, não sob o ponto de vista capaz de trazer, creio eu, um aspecto quase comportamental, mas inserindo-a no que o discurso materno pode assinalar; no caso, pode emitir um sinal de angústia para o terapeuta – espécie de transbordamento do analista – angústia que Freud (1926) descreve como sinal de perigo. O discurso materno preocupa, questiona a nossa posição transferencial, questiona o nosso desejo e é com esses elementos que trabalhamos.
Em um segundo plano prático, no campo mais global da prevenção referente à saúde, é com freqüência que somos levados a trabalhar em instituições em que o bebê pode precisar ser tratado, com a angústia suscitada nos terapeutas ou educadores diante do encontro com o bebê; ou seja, com o que este último suporta dos aspectos arcaicos em si, aqui marcados particularmente pelo aspecto devorador que as equipes podem demonstrar, levados pela intensidade dos cuidados suscitados pelo recém-nascido.
Nesse tipo de equipe, costuma-se fazer um trabalho de elaboração sobre o laço, quando a parentalidade – como se diz hoje – está sofrendo, e é o bebê nos indica algo a esse respeito; é por isso que a análise dos elementos de transferência que atravessam esses laços deve ser – acredito – trabalhada cotidianamente. Principalmente se todos concordam em pensar que, seja qual for o campo de elaboração teórica, o que a clínica nos revela é que é na saúde mental perinatal que se constrói o futuro de um sujeito em devir: o bebê.
Última precaução: se vamos evocar, na linha dos trabalhos de Dolto (1984), o lugar do inconsciente materno na estruturação física da criança, não se trata então de objetivar o fantasma materno, e sim de descobrir seus efeitos no discurso da mãe para que o bebê se desvincule deles, uma vez que deles depende a sobrevida do bebê, como demonstram as patologias mentais graves do bebê, tais como a anorexia precoce.
O bebê e o outro
Apresentar o sintoma do bebê como um enigma a ser analisado a partir do que a mãe investe do seu desejo nessa relação tem como conseqüência introduzir a questão do Outro. Para que um bebê possa começar a entrar no jogo, é preciso que a mãe esteja do lado do grande Outro. Resta saber como conciliar a imaturidade do bebê e essa espécie de projeção que antecipa o simbólico. Questão inexistente para Anna Freud, que concebe o desenvolvimento da criança como psicogenético; inexistente também para Melanie Klein, para quem a evolução é ontogenética; quase inexistente em Winnicott (1960), para quem – apesar de levar em conta o que chama de “meio ambiente”, no qual podemos considerar que pai e linguagem estão incluídos – é a presença da mãe, na realidade de seus cuidados oferecidos à criança, que predomina. No entanto, gostaria de ressaltar – mas esse não será o objetivo deste trabalho hoje – que podemos fazer uma leitura desse conceito de “holding” ou de objeto transicional à luz desse Outro como endereçamento.
Freud sempre deu ênfase à conjunção de fatores endógenos (pontos de fixação, por exemplo) e de fatores exógenos (frustração) na maturação e no crescimento físico do sujeito; e as suas análises de casos (penso em Hans) mostram como os distúrbios dessa maturação são exercidos no cruzamento entre o dentro e o fora, na conexão do que cabe propriamente ao sujeito e dos efeitos de seu encontro com o meio ambiente. Podemos nos basear nesse ponto de vista para explorar as implicações psíquicas que operam durante o encontro entre o Outro materno e o bebê em devir.
Partindo desse ângulo, podemos levar a clínica em consideração, mas resta saber se essa consideração pode pressupor uma perspectiva preventiva quanto às perturbações da interação mãe-filho; pode-se preferir o termo intersubjetividade, que já se encontra no discurso materno durante a gravidez ou até no anúncio do desejo de ter um filho, como primeiro indício de dificuldade ou de distúrbio em vias de se constituir ou de futuro para o bebê.
Existe uma psicanálise do bebê, clássica ou até ortodoxa segundo a psicanálise do adulto, como Freud a preconiza, e existe uma outra que se baseia no tratamento dos distúrbios infantis precoces (de expressão geralmente somática) ligados às disfunções da tríade pai, mãe, bebê. Mesmo que o analista tenha de lidar apenas com a criança ou com a sua família, devemos ter sempre em memória a obrigação ética da fala, no sentido em que Dolto (1984) propunha: o de encontrar junto ao bebê as palavras que darão sentido às suas sensações internas e o espaço palpável de suas imagens do corpo.
A questão de como fica o desejo da mãe coloca-se como elemento de reflexão fundamental, na medida em que ele implica a instalação do circuito pulsional, um impulso, um movimento induzido pelo Outro. É bom lembrar que se Freud apresenta a pulsão como primária, Winnicott afasta-se dela apresentando, por sua vez, o objeto, nesse caso, o amor do objeto como primário.
A hipótese que proponho é a de que os acasos dessa instalação do circuito pulsional formam-se dentro do que é a gestão do tratamento que a mãe fará de sua ambivalência. Se o desejo da mãe ainda é, em grande parte, enigmático – em função de sua dimensão inconsciente – mesmo assim, ele deixa rastros revelados pela clínica dos bebês, mas também pela dos psicóticos adultos, por exemplo.2 São esses rastros que teremos de ler e traduzir, para não ficarmos presos à resultante clínica deste desejo e que poderíamos resumir sob o conceito da angústia.
Citarei aqui dois trechos curtos de duas famosas falas de Lacan para Jenny Aubry, em 1969 (Ornicar? 37, 1986); falas em que Lacan evoca as posições subjetivas possíveis para a criança: “o sintoma da criança pode representar a verdade do casal familiar; este é o caso mais complexo, mas também o mais aberto às nossas intervenções”, Lacan acrescenta: “o sintoma pode sobrepujar a subjetividade da mãe. Aqui, é como correlato de um fantasma que a criança está interessada... [a criança] se torna o objeto da mãe e tem como única função revelar a verdade desse objeto”. (p. 13) .
A criança percebe a presença do que Lacan chama de objeto a no fantasma. A tomada do sujeito bebê no discurso que o precede passa por um tempo de alienação ao desejo do Outro. Ser o único objeto do desejo desse Outro do qual depende absolutamente introduz imediatamente o ódio no amor: tratar-se-á de odiar esse Outro do qual depende absolutamente, ou seja, de forma vital, mas de amá-lo, mesmo assim, por medo de que esse ódio o leve à perda; de que, por ser odiado, ela o abandone.
Eis aqui talvez um dos aspectos que situam a alienação-separação em um movimento desde já ambivalente. Se o bebê se confronta inelutavelmente ao ódio do qual se originam simultaneamente a constituição e a perda do objeto, a mãe se confronta de imediato a um movimento ambivalente, em eco. Por ter “quase falhado” (em oferecer um paliativo ao horror da Coisa, das Ding), ela se revela e se aceita como faltante, ou seja, ela se oferece como Outro materno castrado, local psíquico de onde a mensagem que pacificará desejo e lei será emitida à criança que, por sua vez, se demarcará da linha que o dividirá como sujeito.
Aceitar-se e oferecer-se castrada à criança significa aceitar que há um grito ao qual nunca se responderá. É aí que se origina um aspecto fundamental do amor materno dividido, não-todo, noção contida no “suficientemente”, tão caro a Winnicott (1969) quando ele evoca uma mãe que garante a sua função estrutura dora; também contida no conceito de ambivalência que desenvolvi, que recobre a idéia de que o amor materno seja percorrido de ódio simbólico, o que limita e impede o crocodilo lacaniano de fechar sua bocarra sobre a criança, ou seja, impede a mãe de devorar o seu bebê. Amar é devorar, propunha Winnicott. (O amor coincide com a destruição do objeto.)
De sua relação com a falta, dependerá a gestão ou o tratamento que a mãe dará à sua ambivalência; não ter sido preenchida e não ter sido preenchido é o que permite a passagem do gozo ao desejo; o que é outra forma de avançar que a estrutura psíquica do bebê dependerá do lugar que ele ocupar no fantasma materno. A partir desse tratamento da ambivalência, a metáfora paterna irá ou não operar, e permitirá ou não à criança sair desse impasse que a faria permanecer como substituto do falo materno, faltante por definição.
É justamente por admitirmos que, mesmo que ela escape à criança, existe uma anterioridade desse Outro, que podemos usar o pensamento de Lacan (1969) como referência para um trabalho clínico em torno da psicopatologia do bebê. É o que a criança adivinha do mundo imaginário materno que importa; o que conta é a resposta da criança ao enigma que constitui para ela o desejo do Outro.
Há, portanto, três posições psíquicas possíveis para a criança: continuar sendo o falo que falta à mãe; funcionar como sintoma da verdade do casal parental; ser o objeto do fantasma materno.
Um trabalho psíquico para a mãe: tratar a sua ambivalência em um confronto possível com o defeito estrutural traduz-se clinicamente pela capacidade materna de acionar uma espécie de acompanhamento da passagem do gozo ao desejo, passagem da ilusão à desilusão, acesso à ternura resultante da inibição da finalidade da pulsão; falando como Freud, acesso à posição depressiva; falando como Klein, ao estágio da “solicitude”; falando como Winnicott, essa inquietude em relação ao objeto: passagem da mãe simbólica, que doa um objeto real à criança; à mãe real, que oferece um objeto simbólico e que, em seu posto de “provedora de significantes”, é reconhecida pela criança, no auge de seu desamparo, como o primeiro Outro, aquele que – por se deixar reconhecer como hostil – pode distinguir-se como objeto, passagem de um bebê puro gozo a um bebê sujeito desejante. São muitos os conceitos articulados na relação da mãe com a sua falta, ou seja, com o que vai constituir a marca de seu desejo para a criança. O que se observa é o primeiro suporte do significante concernente à voz da mãe, mas também, sabidamente, o seu olhar, os dois objetos pulsionais a mais.
A dificuldade que algumas mães encontram nessa elaboração inconsciente de seu acesso a uma função materna reside no parado xo revelador de que a mãe é reconhecida em um período de desamparo em que o bebê a vê como hostil. O objeto se constitui para a criança justamente quando já está perdido; justamente quando a mãe, por frustrá-lo, aparece-lhe como hostil, ou seja, quando ele a odeia. Essa ambivalência é um movimento dialético que permite entender os termos de Freud, quando ele diz que o objeto nasce no ódio, e os de Winnicott, quando afirma, sem explicitar muito, aliás, que é desde o início que a mãe odeia o seu bebê.
A ambivalência baseia-se no seguinte fato: não é quando ela a preenche completamente que ela é reconhecida, e sim quando ela encerra um mal inassimilável pela criança que, por sua vez, terá como única saída começar a falar para suportá-lo. Por estar ausente, a coisa em si, esse pedaço de mãe real, passará a ser não substituída pelo significante, mas evocada por ele.
A ambivalência materna trata da questão da mãe diante do real do corpo do bebê e da luta interna da mãe entre esse real e o imaginário de seu corpo, o dela, a sua fantasmática, em suma. É nesse campo que ela corre o risco de se tornar objeto da tentação de outro gozo; portanto, é o campo no qual a sua “abnegação”, como diria Jean Bergès, tornará possível a troca com um gozo que supostamente se situa fora do corpo; o que Lacan chama de “gozo fálico”.
A clínica psicopatológica dos bebês, somática em geral e psíquica de resto (campo das psicoses, por exemplo), mostra que, se a dor permanece sendo o trauma de uma ausência impossível de se ligar ao discurso, a falha materna em sua função de elo contactual, bem antes do nascimento, não permitirá que se liguem pulsões de vida e pulsões de morte.
O amor materno, ao tornar-se mais importante do que o objeto, permitirá que a criança elabore o desamparo fundamental no sentido de uma superação, de uma simbolização da falta, em vez de que ficar presa a ele, tendo como único acordo possível o caminho do sintoma ou a perspectiva de abstrair-se do mundo. Talvez seja aí que Winnicott encontre o seu limite: não é possível contentar-se em descrever ou pensar essa função em termos de “mãe cuidadora” e sim em termos de mãe real; a mãe tal como é encarnada, a mãe em atos, no caso presente, em atos de amor não-todo, mesmo que, para Winnicott, o seio não seja apenas feito de carne e englobe a criação do bebê, o famoso objeto encontrado/criado que funda a experiência objetal do sujeito. Aqui – e este é o desacordo que Lacan evocará no seminário sobre a angústia – a constituição do objeto se faz após a experiência de satisfação (sistema de prazer/desprazer freudiano) e que essa divergência é obrigatória porque Winnicott (1988) distingue necessidade e desejo, enquanto Lacan nunca as separa, nem na “primeira vez”, laço indefectível que se sustenta pelo fato de que a pulsão está imediatamente relacionada ao significante, já que o inconsciente está estruturado como linguagem. O bebê, o seu organismo, responderia de certa forma pela pulsão a essa ocorrência primordial do significante que o divide, e toma, assim, o estatuto de corpo.
Aqui, a linguagem precede de fato o objeto transicional, seguindo a mesma linha direta do texto freudiano no “Esboço de Psicanálise” (Freud, 1940), que vê a Coisa tornar-se a falta dessa mãe, a ausência irremediável ou ainda o gozo proibido para sempre, ou, por fim, o objeto perdido para sempre.
Desse local do grande Outro materno, o bebê irá receber uma explicação, indícios sobre o Imaginário materno, sobre o lugar que lhe cabe, ao bebê, no fantasma da mãe. A partir do seio materno, a criança está inscrita na ordem simbólica dos significantes; se ela vai tomar posse dessa ordem, isso é uma outra história.
Em todo caso, é assim que ela adquire os primeiros elementos de seu psiquismo; por meio do pensamento, ela tem acesso a um primeiro grau de independência, a um primeiro apaziguamento de seu desamparo. Somente esse entendimento, esse acordo, essa compreensão mútua entre a mãe e a criança, que percebemos no Esboço freudiano, permitirá essa dolorosa passagem do gozo ao desejo.
Podemos chamar esse movimento recíproco de amor materno, cuidando em agregar-lhe necessaria mente a vertente do ódio, que o torna assim um movimento ambivalente, permitindo o afastamento, o suficiente, o sem-excesso, o justamente bastante. Se esse movimento passa a ser da ordem da necessidade é porque o grito do bebê expressa o além da necessidade, esse desamparo amplamente explorado por Freud sob o termo Hilflosigkeit, a “não-ajuda”, e que, conseqüentemente, a resposta também deve exceder a necessidade pura (a qual sabemos que não existe) e passar a concernir o campo dos significantes.
Os significantes maternos serão recebidos e aceitos pelo bebê no sentido de uma construção de sua personalidade, nos fundamentos de seu desenvolvimento, se significam para ele a sua passagem de objeto de gozo – que pode ser reduzido a um objeto de capricho materno – a objeto de amor. A função ambivalente da mãe poderia agora ser dita da seguinte forma: imprimir a falta e, ao mesmo tempo, consolar o bebê desse inelutável.
É tentador buscar fazer corresponder a simultaneidade dessa impressão e desse consolo ao esboço do que constitui um espaço físico próprio ao sujeito em devir que é o bebê, que diferenciaria mundo interno de mundo externo, esse território de ilusão que Winnicott (1988) define, de certa forma, como matriz dos processos de pensamento. Se esse cenário vem abaixo ou não pode ser convocado, o bebê permanece no caos, na não-constituição de referenciais entre o dentro e o fora de um espaço paradoxal, intermediário entre o subjetivamente concebido e o objetivamente percebido; na deses perança, ou até “na agonia primitiva” de Winnicott, esse extremo desamparo situado além da angústia, ou de uma angústia “impensável”, uma “ameaça de aniquilação”. Talvez uma espécie de trauma primário que afetaria os processos de simbolização.
A catástrofe de não ser encontrado, da qual falava Winnicott, talvez recubra essa “ausência de si” revelada por algumas patologias do bebê, nas quais o desamparo parece ser o único recurso para garantir a existência e a presença do outro. Impossibilidade de uma interioridade, de uma intimidade, da presença do outro em si, e que se originaria na impossível ligação causal que daria sentido ao desamparo: se a mãe se ausenta, não é porque ela morreu, é que ela está ocupada com o pai.
Talvez aqui não estejamos muito longe da angústia que Freud descreve em “Inibição, sintoma e angústia”; angústia da perda entendida como perda de amor do objeto do qual ele diz ser, ao mesmo tempo, angústia do bebê e angústia feminina (hoje deixaremos de lado a dificuldade própria de Freud em falar da angústia de castração na mulher). O desamparo, ao contrário da angústia, paralisa, e parece indicar que a vida psíquica situa-se fora de si, em uma abertura desesperada para o outro (portanto, não interiorizada).
Freud, assim como Winnicott depois dele, relaciona o desamparo psíquico à imaturidade do eu no bebê. Contra as ameaças de despersonalização então potenciais, o fantasma fundador do narcisismo primário: deixar a criança crer que, quando ela encontra um objeto, foi ela que o criou; ilusão oferecida à criança pelo meio ambiente, segundo Winnicott; pelo entourage; segundo Ferenczi; pela “comunicação” e, depois, pela “sedução”, segundo Freud, e, finalmente, no significante como “tesouro”, segundo Lacan.
Quer situe-se, segundo Lacan, no âmbito do defeito, ou, segundo Winnicott, no âmbito do excesso, se o objeto não pode se constituir na origem da ambivalência do Outro materno, a sua elaboração ainda é incerta e o desamparo continua sendo o que Lacan nos propõe em seu Seminário “A ética da psicanálise” (1959-60) como a base onde se produz o sinal da angústia, onde o homem em sua relação com ele mesmo, que é à sua própria morte, não deve esperar ajuda de ninguém.
A clínica do bebê repousa, em todas as formas que vier a tomar, pode-se dizer, aquém mesmo da constituição do objeto, a não-constituição do Outro materno sujeito a ser necessariamente ambivalente, de fato única ocorrência da mãe como outro além de si mesma, fazendo com que o afeto seja suportável.
Antes de ilustrar rapidamente meus argumentos, por meio de uma reflexão sobre a pulsão de morte e a anorexia do bebê, quero lembrar Freud em “Inibição, sintoma e angústia” quando afirma que a mãe foi a primeira a satisfazer todas as necessidades do feto pelos dispositivos somáticos da gravidez e continua, depois do nascimento, preenchendo a mesma função, mesmo que parcialmente, por outros meios. Freud diz que a vida intra-uterina e a primeira infância estão bem mais em continuidade do que nos leva a crer a cesura marcante do ato de nascimento e para a criança, o objeto material psíquico substitui a situação fetal biológica. Não se pode esquecer que, na vida intra-uterina, a mãe não era um objeto para o feto e que não havia objeto naquele momento.
Citei esse longo trecho porque ele me lembra o que Jenny Aubry chamava de “o dilema da função materna” e que eu traduziria por “como se separar do que nos mantém vivos, mas que nos mataria se disso não nos separássemos?”.
A simbolização, como todas as simbolizações futuras, mobiliza a pulsão de morte, já está bem claro. Em uma articulação com a questão do bebê, pode-se reconhecer esse ponto na descrição do que Lacan (1938) chamou de “complexo de desmame”, na qual ele detecta essa tendência à morte que especifica o psiquismo humano, no qual ele evoca a greve de fome do anoréxico mental.
A ambivalência gerada, como já indicamos, é pensar o ódio que limita o amor-todo: incapaz de ser pensada, esta vê a mãe desfrutar da criança em uma unidade ideal. Talvez possamos aqui adiantar que o que a anorexia do bebê nos ensina é que a pulsão de morte materna se vê inscrita na hiperpresença de seu desejo, na manutenção do objeto além da ausência: nada falta a ninguém; será esse “nada” que o bebê anoréxico incorpora, confundindo aqui desmame e morte? A clínica dos bebês traz à luz essas problemáticas oriundas da espiral pulsional não ligada à fala, mas ao excesso ou à inibição. O bebê anoréxico come “nada”, acionando assim o movimento do circuito da necessidade até o paradoxo de inscrever algo ligado ao desejo no confronto à demanda incessante do Outro materno. Tender a morrer para escapar da demanda, do capricho do Outro: “A análise desses casos [de anorexia] mostram que, ao abandonar-se à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe”, conclui Lacan (1938, p. 35).
Conclusão
Para concluir, eu diria que precisamente no ponto em que a psicanálise traz a sua contribuição à pesquisa sobre os bebês, declina-se não só o que esses bebês nos revelam, mas também as implicações psíquicas nas quais estão inscritos pelos fantasmas maternos. Intrincados na história de uma mulher que faz um filho em nome do que, às vezes, escapa à necessária ambivalência responsável pelo caminho da separação, o amor dado se vê limitado em sua imensidão pelo que sugiro qualificar de ódio simbólico, para diferenciá-lo dos efeitos de um ódio destruidor, mortíferos, perceptíveis nos aspectos maternos que provêm da onipotência. Em outras palavras, é além da singularidade dos próprios bebês, no discurso materno que os significa, que podemos esperar encontrar sinais precursores de uma eventual impossível inscrição do sujeito na ordem humanizadora da linguagem.
A poetisa Rose Ausländer (1985) tem a palavra final:
“É só na intimidade maternal do luto
Que jorra a medida plena do vivido
Ela me alimenta por muito tempo, um tempo obscuro,
De leite negro e vermute pesado.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ausländer, R. (1985). Je compte les étoiles de mes mots. Paris: L’Age d’Homme.
Dolto, F. (1984). L’image inconsciente du corps. Paris: Seuil.
Freud, S. (1905). Trois essais sur la théorie sexuelle. Paris: Gallimard, 1989. [ Links ]
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Lacan, J. (1938). Les complexes familiaux dans la formation de l’individu. In Autres Écrits. Paris: Seuil, 2001.
______ (1959-60). Séminaire, Livre VII. L’éthique de la psychanalyse, Paris : Seuil.
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Winnicott, D.W. (1960). Le processus de maturation de l’enfant. Paris : Payot.
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Endereço para correspondência
Michèle Benhaim
michelebenhaim@voila.fr
Recebido em setembro/2005
Aceito em novembro/2005
NOTAS
1 Esse texto foi apresentado no Colóquio Interuniversitário franco-brasileiro “Clínica dos bebês: o suporte da pesquisa” realizado em Paris em 21 e 22 de janeiro de 2005.
2 Apesar de, em 1970, Winnicott ter declarado: “A minha própria concepção é oriunda do estudo dos bebês e da infância.” (p. 12), ele havia escrito 10 anos antes: “A minha experiência me levou a reconhecer que os pacientes dependentes ou profundamente regressivos podem ensinar mais ao analista sobre a primeira infância, do que ele pode aprender com a observação direta do bebê.” (1960, p. 116)
I Psicanalista, maître de conférences na Universidade da Provence, em Aix-Marseille I nas disciplinas Psicopatologia da Criança e do Adolescente, autora do livro L’ambivalence de la mère, publicado em Paris pela Érès, em 2001.