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Estilos da Clinica

 ISSN 1415-7128 ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008

 

DOSSIÊ

 

O brincar como operação de escrita

 

Playing as a writing operation

 

El jugar como operación de escritura

 

 

Angela VorcaroI; Viviane VerasII

IPsicanalista, membro da Association Freudienne Internationale, professora da Universidade Federal de Minas Gerais
IIDoutora em Lingüística, tradutora, professora da Universidade Estadual de Campinas e do Centro Universitário Ibero-Americano (Unibero)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Retomam-se as propriedades lingüísticas do brincar nas quais a criança destaca-se sujeito para abordar a singularidade da operação de transposição da experiência para o registro da encenação. Tal transposição permite apontar a operação de escrita, inscrita no brincar, por meio da análise das relações entre a noção freudiana de figurabilidade e a encenação lúdica. Formula-se então a hipótese de que a encenação do brincar é operação de escrita posto que seus traços se oferecem para ser lidos, mesmo que não sejam, de todo, legíveis. As conseqüências dessa constatação para a direção do tratamento de crianças legitimam a intervenção no brincar da criança como ato que pode restituir sua potência simbólica, nas graves psicopatologias.

Palavras-chave: brincar; escrita; clínica psicanalítica com crianças


ABSTRACT

This paper considers the linguistic properties of playing, in which the child stands out as a subject, to analyze the singularity of the operation of transposition from experience to the register of enactment. This transposition allows us underscore the writing operation, inscribed in playing, through an analysis of the relations between the Freudian notion of figurability, on the one hand, and ludic enactment, on the other. A hypothesis is formulated according to which ludic enactment is a writing operation, since its traces, although not completely readable, offer themselves to be read. The consequences of this conclusion to the direction of the treatment of children legitimize the intervention in the child's playing as an act that, in serious psychopathologies, may recover its symbolic force.

Keywords:playing; writing; psychoanalytical clinic with children


RESUMEN

Se retoman las propiedades lingüísticas del jugar, en las que el niño se destaca como sujeto para abordar la singularidad de la operación de transposición de la experiencia hacia el registro de la representación. Tal transposición permite señalar la operación de la escritura, inscripta en el jugar, por medio del análisis de las relaciones entre la noción freudiana de figurabilidad y la representación lúdica. Se formula, por lo tanto, la hipótesis de que la representación del jugar es operación de escritura, ya que sus trazos se ofrecen para que se lean, aunque no sean del todo legibles. Las consecuencias de tal constatación para la dirección del tratamiento de niños dan legitimidad a la intervención en el jugar del niño como acto que, en las graves psicopatologías, puede restituir su potencia simbólica.

Palabras clave: jugar; escritura; clínica psicoanalítica con niños


 

 

Debussy

Para cá, para lá. . .
Para cá, para lá. . .
Um novelozinho de linha. . .
Para cá, para lá. . .
Para cá, para lá. . .
Oscila no ar pela mão de uma criança
(Vem e vai . . .)
Que delicadamente e quase a
adormecer o balança
– Psiu . . .
Para cá, para lá. . .
Para cá e. . .
– O novelozinho caiu.

(Manuel Bandeira, 1989)

 

"Tempo é criança brincando, jogando; de criança o reinado1". Esse fragmento de Heráclito, o filósofo do vir-a-ser, do construir e desconstruir sem finalidade, sem necessidade de uma ordem moral, está em íntima ressonância com a aventura da arte, a "feiticeira salvadora", na obra nietzschiana. É nesse tempo de começo e recomeço, que, contrapondo-se ao homem do intelecto, Nietzsche (1983) põe lado a lado o artista e a criança, que faz "montes de areia à borda do mar, faz e desmantela; de tempo em tempo começa o jogo de novo. Um instante de saciedade: depois a necessidade a assalta de novo, como a necessidade força o artista a criar....Às vezes, a criança atira fora seu brinquedo: mas logo recomeça em humor inocente. Mas, tão logo constrói, ela o une, ajusta e modela, regularmente e segundo ordenações internas." (p.36).

Há um saber que move incessantemente a criação, um saber fáustico, que leva o cientista Freud (1907/1992a) a buscá-lo na arte; no Goethe que o conduz à Medicina, mas também nos segredos de Dichtung und Warhreit (Poesia e verdade), em que o poeta põe a brincar o menino de quatro anos, em suas lembranças de atirar louça pela janela.

É o "brinquedo" atirado fora que aparece para Freud (1920/ 1992b) como a atividade enigmática e repetida constantemente por seu neto; como o "hábito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los quase sempre dava bom trabalho." (p. 14). Para Freud, a criança brinca de "ir embora", de jogar-se fora com os objetos; como um objeto ela também, quando brinca de fazer-se desaparecer agachada sob um espelho, numa nota de rodapé2. O avô confirma essa especulação em outra cena, paradigmática, em que o menino brinca com um carretel preso por um barbante. O brinquedo vai e vem, ritmicamente, dividindo a criança entre o impulso de jogar (-se) e a surpresa do retorno, entre vida e morte, no cenário de fim de guerra que serve de pano de fundo à neurose traumática e ilumina a cena (Veras, 2005) que se escreve, nesse momento, com o brincar.

O que resta do que Freud captou na brincadeira do neto? Resta que, afinal de contas, o imitar não prevalece – como princípio ou como finalidade –, uma vez que o carretel não é tomado ainda como imagem, miniatura de um carrinho, um brinquedo no sentido usual, mas apenas como mínimo objeto brincado – "para cá, para lá"... "para cá, para lá" –, figurando a mãe repetidamente partida. Freud afirma, então, que "é supérfluo supor uma pulsão particular de imitação como motivo do jogar." (p 17).

No curso de toda a obra freudiana, o brincar tem função decisiva de repetir e elaborar a vivência. Na discussão do caso clínico de Hans, Freud (1909/1992c) registra, entre os relatos de Max Graff, pai do pequeno, que a nova empregada deixa Hans brincar de cavalo montado nela, enquanto limpa o assoalho. Um mês depois, contudo, as posições estão alteradas, e é Hans quem brinca de cavalo, trotando, caindo, esperneando e relinchando. "Certa vez prendeu no rosto um saquinho, parecido com a sacola de focinheira dos cavalos. Repetidamente, vem correndo até mim e me morde." É nessa brincadeira que o menino aceita, "com mais determinação do que lhe era possível fazer com palavras", as últimas interpretações de Freud, "mas naturalmente mediante uma troca de papéis, de vez que o jogo se desenrolava em obediência a uma fantasia plena de desejo. Por conseguinte, ele era o cavalo, e mordia seu pai; assim, ele se identificava com seu pai." (p.45).

O meio do brincar, a encenação, adquire, na estratificação das análises de Freud (1926/1992d) sobre o brincar, um lugar prevalente que culmina em sua teorização sobre a angústia; ocasião em que afirma que "no caso de 'Little Hans' o fato comprovado de que o pai costumava brincar de cavalo com ele sem dúvida determinou sua escolha de um cavalo como um animal causador de angústia." (pp. 219-220).

Freud colecionou episódios do brincar ensinando-nos a interrogar sua função e dando a eles um lugar numa série substitutiva; a mesma que conjuga a alucinação da satisfação, o pensamento, a fantasia, o devaneio, o sonho, o chiste e, até mesmo, a ambivalência totêmica de Árpád3, então com cinco anos, cujo jogo favorito era brincar de matar galinhas que beijava e acariciava em seguida; um comportamento estranho, que o menino traduzia "da linguagem totêmica para a da vida cotidiana (meu pai é um galo ou quero comer fricassée de mãe)." (p.133). Essas manifestações teriam em comum o fato de fazerem vigorar, por deslocamentos substitutos, a realização de desejos4.

No efeito prazeroso da rima e do ritmo, Freud (1905/1992e) localiza o traço comum entre o brincar da criança e o chiste; que na criança vigora até que a forma constituída de inibições, a estrutura, ponha em reserva (Veras, 1999) a cantilena em que permanecem latentes essas escritolalias. Vale retomar o apontamento de Lacan sobre o essencial da satisfação no chiste: "o essencial não consiste na graça, mas na evocação daquele tempo da infância em que a relação com a linguagem é tão íntima que por isso nos evoca diretamente a relação da linguagem com o desejo." (1999, p.132, itálicos nossos). A coerção da estrutura e a intervenção pontual da criança tornam tangível o nascimento do símbolo; em pulso, para cá, para lá... o novelozinho caído, coisa assassinada, morte que "constitui no sujeito a eternização de seu desejo." (Lacan, 1998, p. 320).

Freud (1907/1992a) também constata a continuidade substitutiva da imaginação do poeta em relação ao brincar infantil, apontando entre eles o que há de comum com o desejo de recuperar o prazer perdido, capaz de reproduzi-lo e, portanto, com a insistência da mesma prática lúdica nos devaneios.

Em seu estudo sobre Leonardo da Vinci, Freud (1910/1992f) retoma o tema, afirmando que todo grande homem conserva algo de infantil. Os jogos e brincadeiras5 que ocupavam a imaginação do gênio italiano parecem estranhos aos seus contemporâneos, e mostram, diz Freud, que mesmo quando construía complicados brinquedos mecânicos, que exibia em festejos e em recepções promovidas pela corte, Leonardo continuava, de fato, a brincar. Em 1925, é Freud quem se vale de um brinquedo, conhecido na época como Bloco Mágico, para apresentar o aparelho psíquico como aparelho de escrita. Nesse mecanismo, o cientista encontra a possibilidade de conjugar a recepção de novas percepções (a folha de papel registra, mas tem capacidade limitada) e a sua conservação em memória (a lousa permite que se escreva e se apague o escrito, mas não conserva seus traços); contudo, a magia do brinquedo infantil feito de um pedaço de cera coberto com duas camadas – uma de papel transparente e outra de papel encerado, que adere à cera – é tão somente parte de sua ficção teórica; o bloco mágico é uma Metáfora, como diz Gilberto Gil, "onde tudonada cabe", e na qual o Freud artista "vai fazer caber o incabível"6.

A rememoração, a repetição e a elaboração distinguidas por Freud no jogo do neto, suportado pela oposição fonemática no "Fort-da", operam a transposição da passividade na experiência para a atividade no jogo, evidenciando a natureza desagradável de uma vivência de perda que pode tornar-se material inigualável para a brincadeira (1920/ 1992b, p.17). Os ressublinhamentos de Lacan (1995,1998) ampliaram a leitura freudiana, conferindo caráter estrutural aos movimentos lúdicos da criança, no que tange à prática lingüística que aí se mostra – não apenas pela articulação significante, mas também pela circulação de posições e pelo funcionamento simbólico em que se convocam mutuamente presença e ausência. Em Função e Campo (1998), Lacan destaca no jogo de ocultação produzido pelo neto a genialidade de Freud. Na cena, o objeto ganha corpo, e sua eficácia está no fato de que traz em si como brinquedo, como um objeto manipulável, a com-vocação de ritmo, intervalo pulsional. O carretel – que nos faz imaginar facilmente uma criança brincando de puxar um carrinho – torna-se outra coisa, a coisa que no brinquedo se abre à figurabilidade e permite que a ela incorpore-se imediatamente o par simbólico de "dois dardejamentos elementares" (p. 320), assimilados à estrutura da língua como fonemas.

Posteriormente, Freud (1926/ 1992b) recorre à brincadeira estruturada pelo agente materno para fazer face à angústia da perda do objeto. Poderíamos aqui para frasear Lacan (1998) para, desta vez, fazer referência à relação íntima entre a linguagem, a dor e a angústia, naquele tempo da infância. A retomada dessa brincadeira talvez nos permita localizar algo de essencial na função lúdica.

Freud parte da análise do que ocorre quando a criança exibe angústia ao encontrar, em vez de sua mãe, um estranho. E acrescenta: que ela tenha angústia, disso não resta dúvida, mas a expressão em seu rosto e a sua reação de chorar indicam que ela está também sentindo dor. Por não distinguir ausência temporária de perda permanente, nela estariam reunidas coisas que serão posteriormente separadas. Ao perder a mãe de vista, comporta-se como se a tivesse perdido, e vive a ameaça de perder-se, abandonada, caída; e repetidas experiências consoladoras são necessárias para que ela aprenda que o desaparecimento da mãe pode ser seguido de seu reaparecimento: "A mãe encoraja esse conhecimento tão importante para a criança, jogando com ela a brincadeira conhecida de recobrir diante dela o seu rosto e de descobri-lo de novo, para seu grande gozo. A criança pode então sentir, por assim dizer, o anseio desacompanhado de desespero." (Freud, 1926/1992b, p. 284).

A partir daí, diante do perigo constituído pela ausência da mãe, a criança dará o sinal de angústia, antes que a temida situação econômica se estabeleça. Essa mudança constitui, para Freud, o primeiro passo dado pela criança para a sua autopreservação, representando, ao mesmo tempo, uma transição do novo aparecimento automático e involuntário da angústia para a reprodução intencional da angústia como um sinal de perigo. A leitura de Lacan (1995) permite tomar essa experiência como a reprodução metonímica da articulação presença/ausência que culmina com a produção da metáfora, em que presença significa ausência potencial e ausência significa presença possível.

As observações freudianas sobre o brincar não deixam dúvidas quanto a seu caráter rememorativo, repetitivo e elaborativo, causados pelo motor da inquietante articulação angústia-desejo. A leitura de Santa-Rosa (1993) também oferece o testemunho da potência simbólica do brincar como função interpretativa e autocurativa. Para a autora, o brincar tem a função fundamental de abertura para a organização da linguagem; possui dimensão ontológica, uma vez que é capaz de produzir o movimento constituinte da realidade psíquica, de promover as relações do sujeito com a realidade e de ter função significante na medida em que seus elementos circulam na combinatória das trocas entre inconsciente e pré-consciente. Enfim, para Santa-Rosa, o brincar aproxima-se dos devaneios e da criação artística por tecer a fantasia, reconciliar o inconciliável e realizar desejos (p.144).

Efetivamente, o brincar convoca a uma disposição para transitar nessa temporalidade em que os traços da experiência se realinham ineditamente. Afinal, brincar é antecipar novas combinações de traços e de lugares anteriormente escritos, é a via do movimento progrediente e regrediente que desloca os termos de suas posições prévias atribuindo-lhes outras perspectivas, uma vez que se associam, agora, a termos e posições longínquos e imprevistos.

Apesar de partirem de posições e termos estabelecidos pelas condições do organismo e pelas experiências subjetivas, a combinatória desses elementos no brincar dissolve e realinha sua ordem, subvertendo a imitação, imitando sem ser um imitador, figurando.

Uma constelação de termos e de posições encontrará fixidez graças ao estrangulamento de certas circulações e da facilitação de outras – por meio das inibições que se edificam na diferenciação subjetiva – localizando uma estrutura defensiva que chamamos sujeito e que decide pelo impedimento da livre circulação entre termos e posições. Ela estabelece ordem, distingue a gramática de funcionamento que constringe o campo lúdico com a eficácia necessária para que esta se transmita entre gerações, impondo a marca das combinações próprias à singularidade das experiências. Nas belas palavras de Benjamin (1994, p. 253) sobre as brincadeiras, mesmo nas formas mais enrijecidas do hábito "sobrevive um restinho de jogo até o final. Formas petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade e de nosso primeiro terror".

Ao comparar o sonho ao brincar, Freud (1900/1992g) permite ler a transmissão dos resíduos do jogo: "O método primário de funcionamento do aparelho psíquico foi abandonado por ser ineficaz. O que outrora dominava a vida de vigília, enquanto a mente ainda era jovem e incompetente, parece ter sido banido para a noite – tal como as armas primitivas, os arcos e as flechas que foram abandonados pelos homens adultos, surgem mais uma vez no quarto de brinquedos." (p. 557).

A herança simbólica se faz valer no brincar, balizando, nos elos possíveis e impossíveis aos jogos, as relações interceptadas e as fluidas entre as posições e os termos postos em jogo, dando a ver, como diz Agamben (2005), relações significantes residuais entre diacronia e sincronia. Para o filósofo italiano, a morte, que ameaça a abertura entre os eixos temporais sobre os quais se sustenta o sistema, "é superada graças a um daqueles significantes instáveis cuja função já aprendemos a estimar" (p. 101), como o brinquedo, a criança e a larva7.

Retomando a doutrina gestáltica do gesto lúdico, proposta em 1928 por Willy Haas, Benjamin (1994, p. 252) chama atenção para o fato de que as brincadeiras de perseguição (gato e rato), defesa (goleiro, tenista) e luta (disputa por uma bola) – que revelariam uma entrada "nos ritmos freqüentemente hostis de um ser humano estranho" – já teriam sido primeiro ensaiadas "com os ritmos originais que se manifestam, em suas formas mais simples, nesses jogos com coisas inanimadas"; ritmos na oscilação dos quais a criança vai se tornando senhora de si mesma. O filósofo exclui também o ponto de vista da imitação, observando que a criança quer sempre fazer de novo, sob a lei da repetição, e que "não é por acaso que Freud acreditava ter descoberto nesse ímpeto um além do princípio do prazer." (p. 253). Como Freud, Benjamin destaca o duplo sentido da palavra Spielen, entre o brincar e o representar: "a essência da representação, como da brincadeira, não é fazer como se, mas fazer sempre de novo, é a transformação em hábito de uma experiência devastadora." (p.253).

Na Rua de mão única de Benjamim (1997) há um canteiro de obra, no qual o filósofo fala da irresistível atração das crianças "pelo resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria". É nesses restos que reconhecem "o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas", e é com esse material que esculpe seu mundo (pp. 18-19). No fragmento Ampliações, encontramos a criança lendo, chegando atrasada, petiscando, andando de carrossel, desordenando, mas é na criança escondida – coração batendo, respiração suspensa – que Benjamin ilumina, de modo comovente, a criança "encerrada no mundo da matéria", e parece abrir com as mãos, a cortina atrás da qual ela se torna "algo ondulante e branco como um fantasma...atrás da porta ela própria é porta...e a casa é o arsenal das máscaras." (pp. 40-41).

Reconhecer estruturas discursivas matriciais do brincar em seus pontos e nas suas modalidades de articulação é localizar o brincar da criança como prática de linguagem pela qual a dimensão simbólica é incorporada, produzindo o efeito sujeito. Brincando, a criança traça a sintaxe em que ela inscreve uma posição subjetiva no campo simbólico, e, operacionalizando essa condição com o próprio brincar ultrapassa-a, exponenciando suas relações. O brincar é operação de constituição de um discurso corporal que, ao assumir sentidos e lugares nos quais a criança é prefigurada, antecipa o sujeito antes de este dominar a língua e falar em seu próprio nome. O brincar é a função que opera a transposição da condição de termo operado pelo Outro para a de jogador, na qual a criança se destaca sujeito8.

Reconstituindo e inventando posições e correlações entre os termos, o brincar testemunha, enfim, a realidade 0psíquica da criança. Mas cabe focalizar, além das propriedades lingüísticas que o brincar coloca em jogo, a singularidade da operação de transposição da experiência para o registro da encenação.

Se as operações de condensação e deslocamento presentes no sonho são fartamente consideradas em qualquer estudo sobre o brincar, as relações entre as condições de figurabilidade e a encenação lúdica são relegadas. Mas, se queremos articular o brincar como operação de escrita, não será vã a retomada da figurabilidade freudiana. Afinal, estabelecer uma hipótese sobre o brincar, mesmo preservando seu caráter de provisoriedade, é constituir as condições para operar uma leitura do brincar. A nossa hipótese é a de que a encenação do brincar é uma operação de escrita cujos traços se oferecem para ser lidos, mesmo que não sejam, de todo, legíveis.

A despeito de contar com o estado de vigília da criança, a coincidência entre os processos de construção da cena lúdica e as condições de figurabilidade do sonho é constatável. Tal coincidência mostra-nos que, se o material lúdico apropriado pela criança para compor a cena pode ser qualquer que compareça na vivência como resíduo do canteiro de obra cultural (tal como os restos diurnos para o sonho), a configuração sintática estabelecida, que repete e reconstrói conexões, cadeias, elos (de causalidade, de tempo, de espaço, de concomitância etc), têm por base "o que causou forte impressão à criança", para usar uma expressão de Freud (1920/ 1992b, p.17) que pode ser retomada como "o que foi impresso pela experiência no corpo". Isso confere ao brincar o mesmo caráter do sonho, no que ele tem de ciframento da experiência, ou seja, de construção de um dialeto inconsciente, pela criança.

Contudo, se encenar no brincar é operação análoga à condição de figurabilidade localizada por Freud como operação do sonho, é preciso ir além da idéia de uma transcrição tradutiva, ou seja, da representação do vivido. Ao encenar seu brincar a criança intima-nos a problematizar os interstícios que se situam entre a apresentação e a representação, que Freud elucidou sob o título de "condições de figurabilidade".

A polissemia, de certo modo desconcertante, da noção de figura pode ser captada em diversos trabalhos sobre a etimologia9 do termo figura, e permite-nos transitar na riqueza das acepções que endossam o que a encenação lúdica prenuncia. O termo figura refere-se em sua origem à forma plástica viva, dinâmica, incompleta e lúdica. Ainda no último século antes de Cristo, Varrão extrapola o campo da plástica – em que figura é situada em relação à aparência externa, contorno, forma – e incorpora a forma das palavras, no sentido de imagem acústica, "como o que existe para o sentido da audição." (Auerbach, 1997, pp. 14-15). Referida inicialmente ao registro sensorial, a palavra adquire sentido abstrato na helenização da cultura romana em que, sem dissolver seu sentido plástico, passa a referir-se à forma gramatical, retórica, lógica, matemática, musical e coreográfica. Mesmo que tenha transitado na concepção de modelo e cópia, sempre foi mais concreta e dinâmica. Películas que se desprendem das coisas e flutuam como imagens, as figuras, para Lucrécio, dançam, porque os átomos que as compõem combinam-se e repelem-se em movimentos constantes (pp. 17-18). Em Cícero, o uso da palavra vacila, confundindo-se com forma perceptível, semelhança, e com ele aparece como um termo técnico da retórica. Firmando-se na linguagem culta, recebe de Ovídio o sentido de forma mutável e, finalmente, em Quintiliano (Séc. I), vale por qualquer forma de expressão não literal ou indireta como linguagem figurada, abrangendo os tropos (metáfora, metonímia, sinédoque, antonomásia...), entre eles a figura da alusão velada, "que parecia merecer o nome de figura acima de todas" (p. 25), destinando-se a insinuar, sem dizer, algo a ser mantido em segredo.

No mundo Cristão, figura passa a designar acontecimento antecipatório de natureza profética: algo real e histórico que anuncia outra coisa também real e histórica, a veritas, que revela e realiza a figura, havendo entre os acontecimentos similaridades de estrutura ou de circunstâncias. Auerbach observa que ambas são "concretas em referência a coisas ou pessoas que aparecem como veículos de significados." (p. 31). Foram justamente os escritores latinos da Igreja que desenvolveram o método de interpretação figural, que faz da figura o significado mais profundo das coisas futuras.

Na passagem dos textos gregos da literatura cristã para o latim, figura era usada para indicar forma ou formação (schema), passou a ser usada também no sentido de prefiguração (typos), mas é em Benveniste (1995) que encontramos um registro ao ritmo, rythmos. A origem dessa noção não se encontra precisamente, observa o lingüista, no fluir, nos movimentos regulares das ondas ou no que se repete, como se ensinava nos inícios da gramática comparada, mas do valor captado nos textos filosóficos. Em Aristóteles, ritmo significa forma, e é também essa a significação proposta por Demócrito, mas trata-se, de acordo com a minuciosa análise de Benveniste, da "forma no instante em que é assumida por aquilo que é movediço, móvel, fluido, ... forma improvisada, momentânea, modificada." (1995, pp. 367-368). Platão delimita uma nova acepção ao valor tradicional, aplicando o rythmos "à forma do movimento que o corpo executa na dança e à disposição das figuras nas quais se resolve esse movimento", fixando-se, então, a noção de ritmo como "tudo o que supõe uma atividade contínua decomposta em tempos alternados." (p. 369). Recuperamos, afinal, na relação forma-figura-ritmo, a dimensão de provisoriedade e incompletude, a abertura para falar em termos de processo, de formação; e eisnos de volta a Freud, que buscava um outro saber sobre essa relação.

A noção freudiana de Darstellung e de sua extensão Darstellbarkeit encontrou como tradução mais próxima nas línguas latinas figura e figurabilidade respectivamente. O advérbio DA [aí, então, naquele momento, na medida em que], condensando espaço e tempo na causalidade da narrativa, articula-se a STELLEN, [colocar em pé, armar, em condições de funcionar] para formar DARSTELLEN colocar diante dos olhos, mostrar publicamente, constituir, colocar em forma sensorialmente apreensível, tendo caráter intersubjetivo por visar o outro. Nesse sentido, lembra-nos Hanns (1996), difere (apesar de ser muitas vezes traduzida para o português como sinônimo) de representação. Mesmo que haja sentidos comuns (interpretar dramaticamente é constituir, mostrar), diferenciam-se, precisa o autor, porque representabilidade tem em português os sentidos de "reproduzir mentalmente", "estar no lugar de", "encenar uma peça teatral", enquanto figurabilidade poderia ser traduzida por neologismos como exprimibilidade em imagens. Nos sonhos, lembra Hanns, a figurabilidade refere-se às possibilidades de um conteúdo ser colocado em linguagem e mostrado (p. 381). É importante notar que a figurabilidade, ligada ao processo de deslocamento, produz também a desfiguração.

Em Totem e tabu, ao afirmar a confiança dos homens primitivos no poder de seus desejos, que ele produz pela via mágica, Freud (1912/1992h) compara a figurabilidade que articula a magia nos homens primitivos ao brincar das crianças: "A respeito da criança que se encontra em condições psíquicas análogas, mas que não tem capacidade de execução motora, já sustentamos, em outro lugar, a seguinte hipótese: no começo, ela satisfaz seus desejos pela via da alucinação, estabelecendo a situação satisfatória mediante excitações centrífugas de seus órgãos sensoriais. Para os primitivos adultos, abre-se outro caminho. De seu desejo pende um impulso motor, a vontade, e esta – que depois mudará a face da terra a serviço da satisfação de desejos – é empregada então para figurar a satisfação, de sorte que, por assim dizer, se possa vivenciá-la mediante alucinações motrizes. Tal figuração de desejo satisfeito é, em todos os pontos, comparável ao jogo das crianças, que neles releva a técnica da satisfação puramente sensorial. Se o jogo e a figuração imitativa contentam a criança e o primitivo, ele não é o signo de modéstia tal como o entendemos, nem de resignação por discernir sua impotência real, mas a conseqüência bem compreensível do valor preponderante que outorgam a seu desejo, da vontade que dele depende e dos caminhos empreendidos por esse desejo. Com o tempo, o acento psíquico desloca-se dos motivos da ação mágica para seu meio, a ação mesma. Talvez, diríamos melhor, apenas esses meios tornam evidente para o primitivo a sobre-estimação de seus atos psíquicos. Agora parece, como se fosse a ação mágica mesma, a que, em virtude de sua similitude com o desejado, o obrigará a produzir-se." (pp. 87-8, itálicos do autor).

Temos assim a idéia de que o brincar translitera: operando por meio da figurabilidade, o brincar ultrapassa a representação do vivido – como reevocação, reprodução em imagens do já adquirido em experiência anterior – para tornar-se vivência de fato, vivência que escreve, ou seja, reinventa, cifrando, num voto de resolver o afeto da angústia desmedida em realização de desejo.

Interessa notar que a noção de figurabilidade implica a alteridade, uma vez que se trata de apresentar, de mostrar sob testemunho. Presentificar, constituir e exteriorizar implicam a colocação em forma de algo captável por um outro; ou seja, implicam necessariamente uma forma de transmissão (Veras, 1999). O uso da figurabilidade, lembra Pereira Leite (2001, p. 54), pressupõe que o próprio sujeito que a produz presentifique a satisfação do desejo tendo a si mesmo como destinatário. A transformação em imagem sensorial confere uma natureza alucinatória à figurabilidade, em formas "mais semelhantes a percepções do que a representações mnêmicas" (Freud, 1900, citado por Pereira Leite, p. 54), justificando que o outro – o destinatário da figuração – possa ser o próprio sujeito que figura. Afinal, trata-se de fazer de um sujeito angustiado um outro sujeito, desejante.

Que as crianças queiram brincar com adultos ou franqueiem a presença destes em seus jogos indicia um apelo a uma alteridade efetivamente constituída como testemunha e muitas vezes como interventor ativo da construção figural. Nessa situação, a incidência do clínico no brincar pode permitir edificar pontes e dissolver barreiras que sufocam a circulação significante, cristalizando posições subjetivas. A aposta aí é a de que a rigidez das inibições não trace uma via fixa e definitiva, impedindo, no congelamento de seus caminhos, o que poderá ter sido. Lembrando o que Lacan afirma sobre o Fort-da como ato, em A lógica do fantasma10: não é o lado ativo da motricidade (que permite pensar que a vontade preside o jogo) a dimensão essencial, mas a estrutura lógica que torna esse jogo exemplar. A possibilidade de uma leitura das relações matriciais da constelação que estrutura o brincar pode introduzir um outro modo de funcionamento; um acontecimento que perturbe e ultrapasse a relação fixa entre os termos, apresentando uma vertente inédita, que permita estabelecer a diferença entre uma impotência da inibição e uma impossibilidade lógica.

O clínico é termo do jogo, e será alçado a posições correlativas diversas no brincar da criança. É transitando entre objeto operado e sujeito operador que o clínico pode produzir acontecimentos na estrutura que se fixa, e dar estrutura aos acontecimentos.

Isso implica elevar o après-coup salientado por Freud a suas importantes conseqüências terapêuticas. Afinal, se o brincar é acontecimento que constitui a figurabilidade de acontecimentos traumáticos que o antecedem, localizando-os numa série de sentidos em que o sujeito pode experimentar sua permanência e até constatar seu equacionamento, intervir no brincar aponta a direção do tratamento na clínica com crianças. Figurar seria a retroação significativa do brincar sobre o traumático e o acolhimento do efeito retardado do traumático sobre o brincar; enfim, trata-se de constituir figurações para restituir sua potência simbólica constrita por inibições que represam o deslizamento dos termos ou impõe-lhes uma deriva infinita.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: angelavorcaro@uol.com.br
E-mail: viveras@uol.com.br

Recebido em abril/2008.
Aceito em junho/2008.

 

 

NOTAS

1 Fragmento 52, traduzido por José Cavalcante de Souza (Cf. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 56).
2 A cena em que Ernst experimenta seu próprio desaparecimento aparece na 6ª nota de rodapé, p.15, Más allá del principio de placer (Freud, 1920/1992b): "Esta interpretação foi certificada plenamente depois por outra observação. Um dia, em que havia estado muitas horas ausente, a mãe foi saudada, em seu regresso, com esta comunicação: "Bebê o-o-o-o!"; primeiro isso mostrou-se incompreensível; porém, logo se pôde comprovar que durante essa longa solidão a criança havia encontrado um meio de fazer desaparecer a si mesma. Descobriu sua imagem no espelho do armário que chegava quase até o chão, e logo ocultou seu corpo, de modo tal que a imagem do espelho se foi".
3 Episódio narrado no capítulo IV (O retorno do totemismo na infância) de Tótem y tabú (1912), citando Ferenczi.
4 Para um estudo desse percurso cf. Vorcaro (2006).
5 Na apresentação à edição bilíngüe de escritos de Leonardo (Obras literárias, filosóficas e morais), Carmelo Distante reconhece o aspecto fragmentário dessas produções, mas convoca o leitor a extrair deles "uma unidade substancial intrínseca" (p. 16). Para o apresentador da obra, Da Vinci valia-se de tudo, da razão e da imaginação, filosofando ou divertindo-se com adivinhações, gracejos, fábulas, descrições de realidades fantásticas.
6 Metáfora, composição de 1982 (Ver Bené Fonteles, 1999).
7 Vorcaro (1997) afirma que a palavra latina pkpa, em português, pupa (pupila), menina, crisálida, que ainda não passou pela metamorfose e está em condição provisória (p. 23).
8 Vorcaro (2003) traz um estudo dos vários jogos da criança em sua constituição.
9 Remetemos aqui ao trabalho de Pereira Leite (2001), bem como à sua fonte principal sobre o tema: Auerbach (1997).
10 Lição de 10 de maio de 1967, inédito.

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