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Estilos da Clinica

 ISSN 1415-7128 ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008

 

DOSSIÊ

 

Inibição na produção de texto

 

Inhibition in the literal production

 

Inhibición para escribir

 

 

Anna Rita Sartore

Docente dos cursos de Pedagogia, Psicologia e de Pós-Graduação em Psicopedagogia Institucional e Clínica da Universidade Ibirapuera, São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Fazendo uso de balizas da psicanálise a partir de Freud e Lacan considera-se que a inibição da escrita e a produção de textos que infringem a norma culta não são eventos gerados por déficit cognitivo do aluno e sim resultado de fenômenos da ordem do inconsciente, desencadeados pelo receio do sujeito em desvelar a imagem do próprio corpo através da representação num suporte concreto. Discute-se também um possível efeito de relançamento na escrita, decorrente da fruição da literatura e as conseqüências indesejáveis da operacionalização de obras literárias nas tarefas escolares.

Palavras-chave: psicanálise; educação; inibição; literatura; escrita


ABSTRACT

Using Freud and Lacan psychoanalysis' theories as a reference, it is considered that writing inhibition and texts that infringe the linguistic purism are not fruit of cognitive deficit, but results of unconscious phenomenon triggered by the subject's fear of revealing the image of their own body through it's representation in a concrete support. It is also discussed the improper use of literacy pieces in school's works and the need to permit literature enjoyment as one of the ways to outcome anguish and produce writing desire.

Keywords: psychoanalysis; education; inhibition; literature; writing


RESUMEN

Al hacer uso de balizas del psicoanálisis a partir de Freud y Lacan, se considera que la inhibición de la escrita y la producción de textos que infringen la norma culta no son eventos generados por déficit cognitivo del alumno, sino resultado de fenómenos del orden del inconsciente, desencadenados por temor del sujeto de desvelar la imagen del propio cuerpo por medio de la representación en un soporte concreto. Se discute también un posible efecto de relanzamiento en la escrita, resultante de la fruición de la literatura y las indeseables consecuencias de la operacionalización de obras literarias en las tareas escolares.

Palabras clave: psicoanálisis; educación; inhibición; literatura; escrita


 

 

Introdução

Diante da necessidade de produzir um texto em sala de aula, mesmo dentre os alunos que dominam de forma razoável o idioma, é freqüente ocorrer uma forma de paralisia, algumas vezes acompanhada de desconfortos físicos, tais como: dor, transpiração, inquietude, cujo evento talvez não seja leviano chamar de "sintoma," entendendo nele um significante, ou seja, algo que se mostra e diz do sujeito.

Estes sujeitos, cujos corpos excedem a soma dos seus sistemas orgânicos e convocam afetos, equilibram-se precariamente do outro lado da folha em branco, expiando e espiando o horror que experimentam perante a tarefa de escrever. Desde os pequeninos até os universitários, assistimos a sujeitos revelando, no corpo, que passam de audaciosos a vulneráveis, num átimo, sob o jugo do papel. Esse impedimento é acompanhado por afirmativas, tais como: me deu um branco; eu não consigo colocar a idéia no papel; não acho as palavras, etc. Frases que se repetem e que, de tanto serem ditas, já não contam com ninguém para ouvi-las.

Visto entender-se que todos os fenômenos linguageiros são sempre animados pela pulsão, as ponderações a seguir baseiam-se em pressupostos da psicanálise pautados em Freud e Lacan. É partindo deles que se propõe que alguns sujeitos evitam formalizar a representação pela escrita através da convocação de afetos, que vão desde a inibição até a angústia, resguardando-se dessa forma de um possível afloramento da imagem do próprio corpo.

 

Veto da representação

Tratar da escrita remete à saga que ela própria cunhou. Uma história que – tal qual a constituição de um sujeito – tem idas e voltas, traços que não se apagam envolvendo tabu e recalque. Um exemplo de tabu de escrita, proposto por Pommier (1996), ocorreu a partir de 1364 a.C., no reinado de Akhenaton, quando esse instaurou, à força, o primeiro monoteísmo reconhecido, instituindo o deus Aton como a única divindade a ser cultuada pelos súditos. Como conseqüência, toda a representação de totens, que estava presente nos hieróglifos, passou a ser proibida. O faraó não apenas ordenou o apagamento das efígies de deuses antigos presentes em monumentos e na escrita, como também estendeu a mutilação a tudo o que contivesse o nome Amon, pela referência ao nome de seu pai, Amen-hotep III. Portanto, uma forma de morte do pai.

Freud (1913/1996a), em Totem e tabu, atribui ao totem a função de substituir o grande pai assassinado, na ordem primeva. Mais tarde, em Moisés e o monoteísmo (1939/1996b), o mesmo autor revela o pai morto na origem da religião judaica. Nossa organização psíquica repousa sobre isso, ou seja, o pai assassinado. Lacan (2005) dirá que tudo, afinal, diz respeito aos Nomes-do-Pai, como função equivalente à Lei. Dessa forma, a onipotência e a completude estão definitivamente perdidas, o que nos coloca, desde sempre, no encalço de ambas.

A instauração do monoteísmo no Egito, como desdobramento, provocou o fato de a escrita egípcia ter encontrado um caminho consonantal de representação, já que as vogais ocupariam o mesmo lugar proibido dos totens e, portanto, estavam vetadas a princípio. Assim, em primeiro lugar ocorre o cerceamento dos hieróglifos para em seguida a proibição recair sobre a representação das vogais (Pommier, 1996). Havia então o veto de representar, mas também havia o veto do dizer. Os fenícios deram testemunho disso com a criação de um alfabeto impronunciável, visto que constituído somente de consoantes. Como se vê, a história delata que a escrita sempre encerrou em si algo mais do que a imaginação parafrásica – sequiosa de sentido e objetivo – consegue como resultado de uma mensagem. Se a sintaxe é compreendida como uma forma de adaptação do ato da fala em escrita, retorna-se ao fato que ambas as ocorrências abarcam a representação impossível de si mesmo. Deste modo, os pressupostos teóricos que tratam da aprendizagem e desenvolvimento da escrita, ao ignorarem o componente subjetivo envolvido na sua produção, resultam insatisfatórios. Por isso é através da psicanálise que se olha para a formação da cultura e interroga-se sobre esse impedimento de representação, reeditado pelo sujeito na forma de inibição de escrita.

 

Psicanálise e pedagogia

Recorrer aos ensinamentos da psicanálise para investigar as dificuldades do sujeito no âmbito escolar produz reações extremadas. Há quem se arrepie, há quem se encante. De toda a forma, teóricos da psicanálise e aqueles da pedagogia se perscrutam e há resistência de ambas as partes. Os pressupostos da pedagogia procuram evitar tudo aquilo que envolva o acaso e preferem não incluir, no seu discurso, a imponderabilidade do sujeito. Os estudiosos da psicanálise, por sua vez, são rigorosos no que diz respeito à aproximação de educadores em busca de respostas, e isso talvez se dê pelo imperativo de evitar que abordagens precipitadas e equívocos de toda ordem produzam um receituário de fazeres (com pretensão analítica) dentro das instituições escolares,

De fato, não é disso que se trata. Não há busca por instrumentos analíticos ou por técnicas que ajudem o professor a domar os embaraços que o afrontam na docência. Busca-se sim compreender aquilo que os saberes psicanalíticos apontam como posturas diversas daquelas amplamente defendidas pelas ciências pedagógicas. Portanto, utilizando fundamentos da psicanálise, põe-se em jogo o inconsciente e pondera-se sobre a legitimidade de propor um paralelo entre os eventos que se fazem presentes na escrita do inconsciente e aqueles que emergem na escrita efetuada num suporte concreto.

No texto Uma nota sobre o 'bloco mágico' (1925/1996c), a respeito da escrita no inconsciente, Freud ressalta a característica ao mesmo tempo indelével e evanescente oferecida por esse suporte. Essa característica também está presente nos textos, visto que, embora capturados pela formalização, a letra neles precisa desvanecer-se como tal para ser posta em funcionamento e permitir a leitura.

Em um paralelo entre texto escrito e sonho, é possível encontrar outras características em comum. Em ambos só se formula o que tem figurabilidade e, tal qual no sonho, a escrita pode conter deslocamentos (metonímias) e sobre-determinações (metáforas), ambas ocorrências involuntárias do ponto de vista do eu. A rigor, qualquer forma de linguagem – dentre elas, a escrita – é metafórica e isso não se dá pelo manejo estilístico de figuras de linguagem, mas sim porque, se não há como o sujeito representar a si próprio, tudo o que acaba por afirmar ou escrever fica aquém, ou além, do que pretendia. A metáfora, portanto, funciona a cada instante em toda a sorte de linguagem cotidiana.

Ao escrever, o sujeito pode trabalhar de modo comparável ao da elaboração onírica, fazendo uso de artifícios semelhantes, ou seja, condensando, deslocando, lançando mão da figuração, das imagens, brincando com o efeito sonoro das palavras. Dessa elaboração pode resultar tanto um texto incompreensível quanto um texto literário de grande valor, e acredita-se que esse último se caracteriza por falar do desejo e trazê-lo à cena.

 

Língua e "alíngua"

A língua é identificador comum a todos os componentes de um determinado grupo social. A estrutura de uma frase, escrita ou falada, é da categoria do linear, implicando numa ordem lógica, característica que Freud (1900/1996d) atribui ao processo secundário. O processo primário, por sua vez, depende do funcionamento do inconsciente e, por isso, é simultâneo e não organizado. Nele há uma sintaxe, ou seja, uma multiplicidade de significantes, de elementos expressivos do discurso, que determinam – à revelia do sujeito – suas ações e palavras. Aos significantes que coabitam em uma desordem aparente, Lacan chamou de lalangue, "alíngua" (1985). As associações entre eles são singulares e constituem a trilha deixada pelas primeiras experiências constitutivas do sujeito. "Alíngua", portanto, é produção original do sujeito e é nutrida por ligações incoerentes, que caem no esquecimento e não entram no ciclo da simbolização.

Embora o mecanismo do recalque, que separa o processo primário do secundário, tenha como objetivo manter no inconsciente as idéias e representações ligadas às pulsões, as duas ordens se interpenetram. Por isso, por mais volitiva que a escrita aspire ser, envolve significantes do processo primário e a presença deles pode resultar numa escrita que aparente falta de habilidade com o idioma. É possível que burilar e reescrever um texto sejam tarefas movidas pela tentativa, inconsciente, de mitigar essas marcas, substituindo-as por significantes de convenção, embora não seja possível extirpar a "alíngua" do texto porque, obstinada, ela reincide.

No que diz respeito ao trabalho escolar com a língua, este se refere, em grande parte, ao domínio das regras do idioma. Para tal, é preciso que o sujeito identifique e escolha um significante e o ligue, em seguida, a outros significantes. Entretanto, se para escrever não se utiliza apenas as associações da língua, é possível que a triagem de significantes, para uma produção textual, aproxime o sujeito daqueles que ele luta por afastar de si e que isso faça efeito de paralisia. Dessa forma, acredita-se que os afetos, desde a inibição até a angústia, sejam convocados e até se mostrem em sala de aula, quando o sujeito é instado a escrever.

 

Afetos e escrita

Ao tratar de afeto, Lacan (2002) reitera tudo o que o afeto não é. Ele não é dado de imediato, não é desencadeador e não está recalcado. "O afeto está desamarrado, ele segue à deriva. Nós o encontramos deslocado, louco, invertido, metabolizado, mas não recalcado." (p. 21). O afeto se mostra, como lapso, acusando uma hiância na cadeia discursiva. Nessa cadeia se dispõe, por omissão, aquilo que é passível de ser recalcado, ou seja, aquilo justamente que retorna e faz sintoma.

Ao se propor que a inibição é um dos afetos convocados diante da tarefa da escrever, não se faz referência à inibição enquanto fator constituinte e necessário ao recalque e à cultura, porque essa é integrante do quadro do desenvolvimento psíquico. Trata-se daquela que, se excedendo, pode configurar-se em patologia. Lembra Santiago (2005) que há uma sorte de inibição restringindo não só as atividades do eu, mas que, se estendendo, até atinge ao próprio processo sublimatório.

Freud (1926/1996e) faz uma articulação entre inibição, sintoma e angústia e Lacan (2002) trata dessa questão utilizando o esquema de vetores para grafar os sucederes afetivos com os quais o sujeito se depara em sua aproximação ao desejo. Os afetos dispostos nos eixos do movimento e da dificuldade estão num gradiente crescente, porque quanto maior a aproximação ao desejo, mais insuportável será para o sujeito.

 

 

Os termos do gradiente são reveladores e Lacan centra-se nisso: a referência está nas próprias palavras. A começar pela inibição diz que, em sentido amplo, ela está na dimensão do movimento, inibindo-o, mesmo que se trate apenas de movimento metafórico, ou seja, mesmo que não se trate de uma função locomotora. No eixo do movimento, descendo para o sintoma, Lacan propõe que há o advento da emoção. Nesse termo, retirando o prefixo "e" tem-se o termo moção, que diz respeito a movimento, quer seja pela sua presença ou bloqueio.

Como último termo da coluna encontra-se a perturbação. Lacan insiste que há uma distância respeitável entre ela e a emoção (l'émotion et l'émoi). Em émoi – perturbação – tem-se a queda de potência, enquanto na emoção temos a desordem, que muitas vezes é potencializadora da ação. A perturbação é o embaraço no seu grau máximo. Na perturbação, a possibilidade do sujeito atuar de forma conveniente parece seqüestrada.

Seguindo o eixo da dificuldade e lidando com a paralisação, à qual a inibição remete, encontra-se algo maior que é o impedimento. Lacan qualifica-o como um "sintoma posto no museu", como se fosse o exemplar de um resto vivido. Lembra o autor que impedimento vem de impedicare, cair numa armadilha. É uma armadilha narcísica, introdutora de um limite àquilo que o sujeito pode investir no objeto.

O último termo para a terceira coluna é o embaraço, proveniente da palavra imbacare e que faz alusão a barra. É isso que é vivido no embaraço, o sujeito investido da barra! O embaraço será, então, uma forma leve de angústia.

Como barreiras contra a angústia há ainda o acting-out e a passagem ao ato. Se até esse ponto do gradiente estava em pauta o seqüestro da ação, cabe perguntar o por quê do surgimento do acting-out e da passagem ao ato, que são expressões de ação. Dirá Lacan (2002) que a ação toma sua certeza da certeza da angústia, apropriando-se dela. Ora, se o significante tem a propriedade de enganar, a angústia é justamente aquilo que fornece a certeza. Em virtude disso, a angústia não pode ser situada na ordem do significante, fato que permitiria o seu deslizamento na cadeia e o seu conseqüente abrandamento metonímico. A angústia está situada no registro do real.

Evidentemente, não é qualquer ação que consegue abrandar a certeza da angústia, mas sim aquela ação arrebatada, incontrolável. Enquanto o sujeito está envolvido numa ação de porte, não fica preso na angústia. Isto justifica a entrada no quadro do acting-out, justamente pelo seu alto grau de ação. Nele torna-se presente o objeto a, faz-se uma cena onde ele apareça mantendo, ao mesmo tempo, distância dele. Lacan se refere ao acting-out como uma "transferência selvagem" que contém um pedido de impossível verbalização.

Como última forma de evitar a angústia, temos a passagem ao ato. Se o acting-out é uma posta em cena, a passagem ao ato é a saída dela. Há o curto-circuito da vida mental do sujeito, impelindo-o a uma ação vigorosa. Lacan define essa ação como uma retirada de cena na qual, como numa defenestração ou salto no vazio, o sujeito se reduz a objeto excluído.

De volta ao cenário escolar, diante da solicitação de escrita, supõe-se testemunhar a emergência de afetos, tais como: emoção, perturbação, impedimento, sintoma e até acting-out. Acopladas a eles surgem também certas falas tais como: "eu realmente não consigo", "esta é uma barreira que eu sempre tive", etc., que sugerem envolvimento com uma resignação gozosa. A legitimação da própria inibição decorre do fato de ela se enlaçar com o que Harari (1997) denomina de gozo sígnico pegajoso.

"O sujeito sustenta como crença, a respeito de sua inibição, tão somente o que afirma, sem deixar um resquício apto para o equívoco ... aí se manifesta uma espécie de semblante de resignação gozosamente interessada que pode ser substituída por: Sim, sou assim. E daí?" (p. 54, itálico do autor).

Em vista disso, mesmo que as queixas dos alunos provoquem, nos professores, ações pedagógicas para a superação das dificuldades admitidas, como são gozo de linguagem e reduzem a inibição a um modo de ser, acabam por ser aceitas como incontornáveis. Esse arranjo pode resultar num acordo de impossibilidades entre os sujeitos envolvidos, isentando a ambos de responsabilizarem-se pelo seu desejo.

 

Diferentes embaraços na escrita

Há inúmeros obstáculos que o sujeito pode imprimir na sua escrita, como proteção, contra a emergência daquilo que não suporta. Muitas vezes, isso resulta em embaraços de escrita com os quais o professor se depara cotidianamente em sala de aula e que atribui a causas diversas, tais como: falha na alfabetização, insuficiência de leitura, pobreza de vocabulário, falta de empenho e outras.

De fato, existe um tipo de escrita que, a princípio, parece revelar falta de vocabulário, uma penúria de linguagem, enfim. Cordié (1998) nos lembra que é possível que dificuldades de fala e escrita estejam diretamente ligadas a uma carência de laboração das estruturas simbólicas na infância. O efeito da oralidade, que cerca o sujeito desde o nascimento, engendra afeto que, por sua vez, pode ser colocado em circulação através da mesma linguagem. Ainda que, em circunstância urbana, exista uma imersão inevitável na linguagem, esta pode não carregar as situações de afeto que caracterizam o desenvolvimento de estruturas simbólicas significativas. Isso pode se dar nos sujeitos que crescem no seio de famílias taciturnas e monossilábicas e é o caso que parece estar mais próximo de confirmar o discurso de déficit defendido pelas ciências pedagógicas. Nesse caso, um déficit de repertório de palavras.

Entretanto, cabe pensar se, para aqueles que cresceram sob essas condições, não houve de fato saída. Embora esses fatores não sejam desprezíveis, um cenário de silêncio não resulta necessariamente em uma estagnação da linguagem, porque há um vigor inerente nela, do qual o sujeito toma posse. Dirá Belintane (2005) que mesmo crianças criadas em ambientes onde os pais, sobrecarregados com a lida da sobrevivência, não podem dar-se ao luxo de uma boa conversa com filhos, a própria criança, poderá criar laço com a linguagem. Em outras palavras, até mesmo aquilo que pode indicar que a penúria de estruturas simbólicas significativas venha de fator externo ao sujeito e incontornável por ele, não o é. Tal proposta situaria o sujeito como mero objeto e, como tal, impotente.

Na mesma trilha de atribuir a dificuldade de produção textual dos alunos a algum déficit, existe um discurso recorrente (que circula como senso comum) que afirma que quem lê muito, escreve melhor. Questiona-se se é possível fazer uma amarra tão decisiva entre os dois eventos, parece temerário, mas é razoável dizer que dentre aqueles que escrevem com fluência, encontraremos muitos leitores assíduos.

Entretanto, leitura assídua nem sempre produz uma escrita de autoria. Observa-se, sobretudo nos textos de alunos universitários, um tipo de escrita que embora seja correta do ponto de vista da sintaxe, não permite que se detecte o sujeito da produção, ou seja, uma escrita copista. São textos, comuns em monografias de término de curso, que parecem desenvolver-se em torno de um modelizador, importando maciçamente jargão de diversos gêneros e se, em alguma altura da proposta, o sujeito é convocado a emergir na própria produção, o texto quebra e perde fluidez.

Nesse ponto, busca-se uma pista indagando se isso não se daria, em alguns casos, como resultado do fato que quem lê muito pode tomar mais emprestado o discurso de outro para escrever e talvez – nesse artifício – preservar mais de si mesmo, enquanto compromete o outro, que discursa por ele.

Evidentemente, em todo discurso há uma marca que vem do Outro, mas a "escrita-copismo" a excede e faz uso maciço de discurso importado, preservando e escamoteando a forma de o sujeito ler o mundo e as diferenças sexuais. Isto poupa a posição narcísica e conserva a distância em relação ao desejo, cuja proximidade afeta o sujeito através da angústia.

Há outro tipo de escrita que se dá pela própria recusa em escrever. No sujeito que se nega a escrever podemos supor um ato, no sentido psicanalítico do termo, ou seja, que vem do inconsciente e que está acoplado a uma manifestação sintomática. Algumas formas de recusa assemelham-se a um acting-out no momento em que, ao ser requisitado para empreender uma produção escrita, o aluno, por exemplo, precisa recorrentemente ir ao banheiro, tem ânsias, transpira, deixa cair objetos, arranca páginas, remexe-se incessantemente na carteira etc. Em suma, é uma escrita de outra ordem.

Do ponto de vista educacional, há outra inabilidade de escrita que é aquela na qual reincidem erros ortográficos e trechos confusos. É a escrita tachada de incompetente, mas que pode ser considerada certeira porque sugere desvelamento do inconsciente. Os erros ortográficos, bem como o aparecimento de intervalos ambíguos no texto, como já se disse, podem ser resultado de deslocamentos e condensações que romperam com o acordo tácito que há em todo o idioma para torná-lo inteligível. Credita-se seu aparecimento à invasão de "alíngua". Em outras palavras, o sujeito inclui significantes próprios, em lugares que o discurso não comporta.

 

Queixas docentes

Trabalha-se na investigação de uma escrita com autoria e de boa qualidade, tão cobiçada pelos professores para seus alunos, pelo fato dela envolver algo mais do que experiência ou empenho. Por isso, a interdição resiste a todas as tentativas técnicas de superá-la.

Queixas docentes em relação ao desempenho dos alunos não é fenômeno novo. Talvez seja pelo fato de possuirmos uma memória seletiva do passado em que se afirma que o desempenho dos alunos "antigamente" era muito melhor. Aparentemente, os alunos eram mais competentes e empenhados. Além de tais afirmações atribuírem todos os descompassos de aprendizagem apenas ao aluno, convém lembrar que a submersão nesse discurso imaginário pode torná-lo cada vez mais verdadeiro.

De toda forma, se baixarmos as armas da indignação frente ao atual desempenho dos alunos, veremos que nos bancos escolares sempre houve subjetividade silenciada, sujeitos acometidos de angústias, paralisados por uma inibição cuja origem está distante dos motivos aos quais a atribuímos e que mostram, no corpo, a impossibilidade de aproximação ao desejo.

Angústia e significante são como que oponentes. A angústia aparece quando esse objeto, que deveria estar perdido em relação ao real, não se isola, não é nem suprimido nem escondido. Nessa área, gozo e angústia estão próximos. Eis aí uma importante afirmação da psicanálise. Portanto, a angústia não é resultado de não saber realizar uma tarefa, não é a folha em branco ou o branco do esquecimento que inibem, a angústia vem de outro lugar. É a lida com a aproximação do real que é horror e o sujeito não desconhece isso.

Esse horror não pode ser suplantado por técnicas, porque o real escapa e se impõe. Lacan insiste que "não temos outros meios de apreendê-lo a não ser por intermédio do simbólico." (1997, p. 128). Desde que o real é inalcançável e o imaginário é um embuste, resta ao professor fazer uso dos utensílios culturais que dispõe. Diz Lacan: "A função simbólica constitui universo no interior do qual tudo o que é humano tem de ordenar-se." (1975, p. 166).

A função do professor, quanto ao conhecimento, tem a ver com transmissão, embora essa palavra tenha adquirido proporções de heresia e sinônimo de desprezo à inteligência e às potencialidades dos alunos. Evidentemente, não se toma aqui o termo transmissão como absorção inerte do que quer que seja por parte dos alunos, mas, sendo conhecimento simbólico, é do transmissível que se trata. Assim, se o professor conseguir relativizar o imaginário poderio dos métodos e implicar-se na sua função, aceitando seu limite e fazendo vigorar a Lei, pode oferecer espaço e instrumentos do simbólico para que a palavra faça emergir elementos que são ocultos pelo imaginário.

 

A literatura: transferência e relançamento na escrita

Na área de ensino do idioma é a literatura que se apresenta particularmente fértil como franqueadora de sublimação e objeto dela, sobretudo aquelas obras que resistiram ao tempo por um valor intrínseco e por isso se tornaram consagradas. O que se aprende, afinal, com essa literatura? Algo difícil de definir, visto que é um conhecimento que percorre outra via que não a cognitiva e atinge outra instância, raramente reconhecida como profícua dentro do âmbito escolar.

No que diz respeito às propostas escolares do ensino da língua portuguesa, a queixa docente circula em torno da afirmação que os alunos não gostam de escrever nem de ler, habilidades reconhecidamente "cognitivas" que seriam indispensáveis à construção de qualquer conhecimento. Portanto, ler para aprender a ler e analisar as obras, para aprender a escrever. Dessa forma, efeitos subjetivos, decorrentes da leitura e da escrita, são pouco valorizados.

No que diz respeito à produção de texto, imperam solicitações de temas assépticos, propostos sem uma leitura prévia que pudesse despertar interesse no assunto ou intrigar. Além disso, o texto a ser produzido é cercado de imposições de toda a ordem, tais como: tamanho, gênero, objetivos etc. Embora, evidentemente, esses requisitos façam parte de um limite dentro do qual se possa se aprender a produzir textos que circulam socialmente, não há espaço, momento ou incentivo para que o sujeito se ponha a escrever guiado pelo desejo, que poderia ser convocado por uma leitura de boa qualidade.

As propostas de leitura das grandes obras literárias restringem-se, muitas vezes, a uma superficial e equivocada tarefa de interpretação de textos que se resume em impor, ao aluno, a empreitada de apreender significados que comporiam a intenção do autor e que estariam localizados em uma ou outra passagem do texto. Nesse ponto, é interessante lembrar o que diz Lacan a respeito do engodo de interpretação que a linguagem provoca: "fracassaremos em sustentar sua questão enquanto não nos tivermos livrado da ilusão de que o significante atende à função de representar o significado." (1998, p. 501).

A literatura de valor oferece uma forma de captar o meio e de falar de suas próprias conexões com ele, de tal forma que supera – por um determinado ângulo –, o conhecimento científico, visto que este tem amarras que aquela pode ignorar. É, portanto, desvio de função operacionalizar a literatura, reduzindo-a o trabalho com ela a mero exercício de captar intenções alheias num jogo de certo e errado. Entende-se que as propostas devem privilegiar a promoção de um contato mais refinado com o texto, possibilitando uma aproximação que resulte em uma leitura-autoria, ou seja, aquela em que o leitor compõe outro texto, enquanto lê. Propõe-se que na leitura pode ocorrer transferência que gera, por acréscimo, efeito de trabalho.

Em O seminário, livro 8, Lacan (1992) afirma que trataria da transferência dentro do que chamou de disparidade subjetiva, mas não como fruto de uma mera dessimetria. Insistiu em tratar da disparidade subjetiva entendida como a posição de dois sujeitos "em presença". Tratava, na ocasião, da situação analítica.

Entretanto, entende-se que na leitura também há uma disparidade intrínseca. Portanto, existe a possibilidade de singular transferência do sujeito com a obra literária.

Em sua práxis, ao ouvir o sujeito, a psicanálise privilegia uma escuta peculiar, prestando atenção ao literal, porque nele há o que não pode ser dito. Evitar a operacionalização da leitura, através de tarefas escolares, é favorecer a apreensão singular da obra, ou seja, a captura pelo leitor daquilo que o texto revela "não dizendo".

Nas obras de valor há um literal que suplanta e até subverte a semântica, convocando o leitor. Nesse rumo, parece razoável centrar-se num literal das palavras e relançá-lo como pista. Mas pista de quê? Não pista de intenção autoral, redutora da interpretação e mera ferramenta para conferir se a leitura foi efetuada, e sim pista que intrigue, gerando retorno ao texto.

O jogo posto é a proposta de uma interpretação de texto que lavre o terreno de outra forma. Admite se que a própria formulação de questões e propostas profícuas, que convoquem o leitor para que ele embarque numa camada além da parafrásica, esbarra nas próprias significações do professor que as concebe. É a condição do humano e limite das possibilidades da linguagem. Porém, se contornar essas limitações não é fácil, pode-se ao menos evitar as más questões, aquelas que fazem um circuito de mediocridade entre a pergunta e a resposta cabível, aparentemente a única fiadora da questão. Isto é mero exercício repetidor de escrita, não de autoria.

Há elementos, nas obras consagradas, que atingem o sujeito e, mesmo que se admita que não sejam capturáveis, há pegadas deles no texto. Lembra Willemart que os fantasmas deixam na ficção, tal qual no sonho narrado, "índices de sua presença como condensações, as estranhezas, os lapsos, as homofonias." (1997, p. 102). Propõe-se que alguns desses índices, dessas estranhezas, podem ser supostos e pistas a serem relançadas, fazendo enigma. A vantagem de um enigma é que ele autoriza o percurso singular dos diferentes sujeitos, até mesmo se o ponto de chegada for (con)sensual.

No trabalho com a literatura como fazer escolar, evitar que se seqüestre a possibilidade de fruição da leitura pode favorecer que o princípio da realidade se afaste por momentos e reine, para o sujeito, um genuíno prazer estético. Deriva também desse a possibilidade de o sujeito dotar-se de maior destreza com os significantes da língua para, eventualmente, camuflar os seus próprios. Finalmente pode-se esperar que ocorra o relançamento o sujeito na escrita, se como diz Barthes (1988, p. 50), "o que desejamos é apenas o desejo que o escritor teve de escrever".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: ar.sartore@uol.com.br

Recebido em fevereiro/2008.
Aceito em maio/2008.

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