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Estilos da Clinica

 ISSN 1415-7128 ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGO

 

A devastação e sua incidência na clínica do autismo

 

Devastation and its occurrence in clinical autism

 

La devastación y su incidencia en la clinica del autismo

 

 

Maria Fátima Gonçalves PinheiroI; Ana Beatriz FreireII

IPsicanalista e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
IIPsicanalista, professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe-se a examinar a articulação entre autismo e devastação, suscitada a partir de um caso de uma criança de seis anos. Utilizando os referenciais teóricos de S. Freud e J. Lacan, este trabalho apresenta uma abordagem do tema da devastação tanto no campo da sexualidade feminina quanto no campo das psicoses, e pretende interrogar o que concerne à função da mãe e sua relação com a devastação na clínica do autismo.

Palavras-chave: devastação; autismo; sexualidade feminina; psicose; função materna


ABSTRACT

The present article aims at analyzing the relationship between autism and devastation brought about by a case of a six-year-old child. Through S. Freud's and J. Lacan's theoretical references, the theme of devastation is analyzed as far as female sexuality and psychoses are concerned. The present analysis also examines motherly function and its relation with clinic devastation in autists.

Keywords:devastation; autism; female sexuality; psychoses; motherly function


RESUMEN

Este articlo se propone a examinar la articulación entre autismo y devastación, suscitada a partir del caso de un niño de seis años. Utilizando los referenciales teóricos de S. Freud y J. Lacan este trabajo presenta un abordage del tema de la devastación tanto en el campo de la sexualidad femenina como en el campo de las psicosis, y pretende interrogar lo que concierne a la función de la madre y su relación con la devastación en la clinica del autismo.

Palabras clave: devastación; autismo; sexualidad femenina; psicosis; función materna


 

 

"O que é a devastação? É ser devastado. O que chamamos de devastar uma região? É quando nos entregamos a uma depredação que se estende a tudo. Não no sentido pequeno, tudo bem completo. É uma depredação sem limites. Isso que Lacan chama de 'o todo fora do universo'; o todo que não se completa como um universo fechado, limitado. É uma depredação uma dor que não pára, que não conhece limites."
(Miller, 2003)

 

Esse pequeno trecho do texto Uma partilha sexual de J. Alain Miller parece-nos bastante instigante para iniciar a reflexão sobre a relação da devastação com o autismo, uma vez que está impregnado de certo exercício poético que potencializa a expressão e nos faz tocados pelo real.

Passados quase oitenta anos desde que Freud relacionou diretamente, no final de sua obra, a devastação à sexualidade feminina, ainda que não tenha feito uso desse termo, localizando esse fenômeno no centro da discussão sobre o destino do falo na menina; faz-se necessário empreendermos uma indagação, que nos possibilite abrir caminhos para pensar a sua abordagem na clínica do autismo.

O tema da devastação tem despertado grande interesse para a psicanálise nos dias atuais, porque, como fenômeno clínico, situa-se fora do contexto que caracteriza tradicionalmente o sintoma, sendo este último uma produção inconsciente que apreende o sofrimento e o circunscreve. O sintoma, para Freud, relaciona-se ao fracasso do Complexo de Édipo, ou seja, à hegemonia insuficiente da ordem simbólica, à insuficiência do pai. A devastação, diferentemente do sintoma, apresenta-se como um sofrimento não localizável, inapreensível e inclassificável, revelando a não articulação do desejo da mãe com o Nome-do-Pai, de acordo com a formulação de Lacan no final dos anos sessenta, quando ele identifica o desejo da mãe como análogo a um grande crocodilo, que pode fechar sua bocarra a qualquer momento, carreando estragos.

Via que nos encaminha tanto para o campo da sexualidade feminina quanto para o campo das psicoses, o tema da devastação oferece-nos o convite para percorrermos algumas passagens da obra de Freud e, a partir dela, acompanhar as questões que Lacan, em seu ensino, examinou, para dar conta de sua inabalável busca de respostas sobre as mulheres e o feminino.

Após delinearmos esses dois campos de incidência da devastação: o da sexualidade feminina e o das psicoses, e partindo das questões suscitadas por um caso de autismo infantil, interrogaremos o que concerne à função da mãe e sua relação com a devastação nessa clínica.

 

A devastação: sexualidade feminina

No artigo de 1931, Sexualidade feminina, Freud (1931/1980a) revela a não existência de paralelismo entre o desenvolvimento sexual feminino e o masculino, realçando ter se surpreendido com o fato relacionado à particularidade inerente à fase primitiva, pré edípica das meninas. Freud situa essa fase como inapreensível em sua clínica, uma vez que as mulheres atendidas por ele pareciam se aferrar às ligações com a figura paterna, afastando-se, assim, da fase primitiva. Entretanto, mesmo ao declarar não ter obtido sucesso no caminho de circunscrever a esfera da primeira ligação da menina com a mãe, Freud alude à dependência da menina em relação à mãe como sendo responsável pelo que ele chamou de "germe da paranóia posterior nas mulheres", germe que se traduz no temor de ser morta ou devorada pela progenitora. Apresenta, então, esse temor como sendo correlato à hostilidade desenvolvida pela criança diante das restrições que a mãe impõe a ela nos primeiros anos de vida.

Freud destaca, em suas reflexões acerca da relação pré-edípica da filha com a mãe, que a menina, ao afastar-se da mãe em direção ao pai, por ocasião do Édipo, introduzirá enorme gama de motivos, justificando sua hostilidade em relação à mãe. Ou seja, alegará que a mãe não lhe forneceu um órgão genital adequado, não a amamentou de forma suficiente, não atendeu às expectativas de amor etc. O que Freud assinala é, em suma, que as descobertas da castração e a inveja do pênis condicionam o abandono pela menina de seu vínculo libidinal com a mãe.

No artigo de 1925, intitulado Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, Freud (1925/1980b) escreve que são várias as conseqüências psíquicas da inveja do pênis nas mulheres. Uma delas parece evidenciar uma cicatriz que é um sentimento de inferioridade, que as faz partilhar do desprezo sentido pelos homens por um sexo que se apresenta como inferior. A segunda conseqüência se revela após a inveja do pênis ter abandonado seu verdadeiro objeto, por meio de um deslocamento em que se pode observar a persistência de um traço de ciúme. A terceira conseqüência da inveja do pênis diz respeito a um afrouxamento da relação afetuosa da menina com seu objeto materno, em função de a mãe ser colocada como responsável pela falta da filha. Esse aspecto aponta diretamente para a devastação na relação entre mãe e filha.

A quarta e última conseqüência, que Freud considera a mais importante, é a reação contra a masturbação, por ele descrita como a possibilidade que faz abrir a via para a sexualidade feminina através do deslocamento pênis-criança, ou seja, quando ela abandona o seu desejo de um pênis e coloca no lugar o desejo de um filho. Nesse ponto "a mãe se torna o objeto do seu ciúme" (Freud, 1925/1980b, p.318).

Em sua conferência de 1932 sobre a feminilidade, Freud (1932/1980c) descreve, novamente, o aspecto paranóide da relação mãe-filha como conseqüência da relação primitiva da menina com a mãe, na qual o medo de ser envenenada ou assassinada se faz pregnante para a menina. Freud afirma que uma tendência à agressividade encontra-se sempre presente ao lado de um amor intenso, e que o amor dedicado a um objeto é proporcional à frustração que pode advir do mesmo. Nesse artigo de 1932, Freud indica que a intensa ligação mãe-filha tem como destino sua destruição, para dar lugar à ligação da menina com o pai. E especifica: "o afastar-se da mãe, na menina, é um passo que se acompanha de hostilidade; a vinculação à mãe termina em ódio." (Freud, 1932/1980c), p.150).

Lacan retoma essa questão introduzida por Freud sobre os termos 'devastação' ou 'estrago' na relação mãe-filha. O termo devastação foi utilizado por Lacan, primeiramente, nos Escritos (1998a, p.279), no relatório do Congresso de Roma, intitulado Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise em relação à filiação. Esse termo é empregado a propósito da constituição da subjetividade, da localização do sujeito com respeito às leis do parentesco, cuja quebra remeteria à devastação.

No segundo momento, Lacan utiliza esse termo no seminário Las formaciones del inconsciente (1979), ao firmar o necessário confronto na menina entre "a lei não controlada do capricho materno" e "a metáfora paterna", assinalando a ruptura necessária como devastação do laço mãe filha, condição de entrada no complexo de Édipo. Em outros três momentos de seu ensino, Lacan demarca a devastação como liquidação do laço com o desejo materno. O terceiro momento refere-se ao desenvolvimento que faz a respeito do desejo da mãe, no seminário O avesso da psicanálise, ao proferir que: "O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão – a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar a sua bocarra. O desejo da mãe é isso....Então, tentei explicar que havia algo de tranqüilizador....Há um rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da bocarra, e isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É o rolo que os põe a salvo se, de repente, aquilo se fecha." (Lacan, 1992, p.105).

O quarto momento em que Lacan trata da devastação é no seu texto O aturdito, no qual ele diz: "a elucubração freudiana do complexo de Édipo, em que a mulher é nele como um peixe fora d'água por ser nela a castração ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem como mulher, ela realmente parece receber mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação." (Lacan, 2003a, p.465).

O quinto momento se dá na Conferência de Yale (em 1975), quando alude, a partir de sua experiência analítica, à devastação que ocorre na relação mãe-filha, além de ressaltar que não foi sem motivos que Freud erigiu toda uma construção ao redor desse tema. Lacan situa essa questão, na conferência norte-americana, da seguinte maneira: "É um dos mistérios da psicanálise que o menino seja imediatamente atraído pela mãe, enquanto que a menina está num estado de censura, de desarmonia com ela. Tenho bastante experiência analítica para saber o quanto a relação mãe-filha pode ser devastadora." (Lacan, 1995, p.8).

Cabe-nos evidenciar, diante do que Lacan assinalou sobre a devastação, que há duas derivadas da inscrição da mulher analisadas por ele a partir do seminário Mais, ainda em 1972 e 1973: uma, localizada a partir do falo; e outra, que está para além do falo (Lacan, 1985a).

A que se dá a partir do falo e diz respeito à ausência de pênis/falo tem como resultado aquilo que Freud denominou 'inveja do pênis', aspecto já sublinhado por nós e que concorreria para promover a decepção da menina em relação à mãe. Essa derivada pode deixar a mulher na posição de ter sofrido um dano e, conseqüentemente, coloca-a em um lugar reivindicatório, no sentido de ressarcir o dano – posição ocupada pela mulher na histeria. Lacan (1985b) elucida que a realização do próprio sexo para a mulher não se dá de forma simétrica à do homem no complexo de Édipo. No complexo de Édipo há um desvio suplementar, não pela identificação da menina com a mãe, mas, ao contrário, pela identificação com o objeto paterno. Lacan (1985b, p.197) irá ressaltar que, na histeria, aquilo que seria desvantagem para a mulher quanto ao acesso à identificação com seu próprio sexo, transforma-se em vantagem, em função da identificação imaginária com o pai, o que, segundo ele, é perfeitamente acessível, em virtude de sua posição na organização edipiana.

A outra derivada da inscrição da mulher responde à falta de um significante que possa representá-la, o que implicaria a espera impossível de uma identificação feminina, e diz respeito ao gozo para além do falo, um gozo suplementar, infinito.

Soler (2005) faz referência ao gozo suplementar, diferentemente do gozo fálico, como aquele que "ultrapassa" o sujeito, por ser "heterogêneo à estrutura descontínua dos fenômenos regulados pela linguagem, com a conseqüência de que esse gozo não é identificatório" (p.56). Ela irá sustentar a diferença das mulheres em relação aos homens, situando os últimos como aqueles para quem o gozo fálico tem valor identificatório. E exemplifica a partir da constatação de que os homens se vangloriam de seus desempenhos, sempre fálicos, e se reconhecem como sendo mais homens quanto mais acumulam gozo fálico. Nessa medida, é observável que o homem se certifica de ser homem pela apropriação fálica. Para Soler, o gozo suplementar, em contrapartida ao gozo fálico, não traz segurança para a mulher, pois uma mulher não se faz reconhecer como mulher pelo número de seus orgasmos ou pela intensidade de seus êxtases. E muito longe de se exibir, sucede a esse gozo esconder-se. Daí os esforços feitos pela mulher para se identificar pelo amo, o que resulta no fato de que, na impossibilidade de ser A mulher, sobra-lhe a condição de ser uma mulher para um homem. Isso esclarece o fato de as mulheres, mais que os homens, se ligarem a tudo o que se relaciona ao amor.

Como Lacan (1985a) demonstrou, a posição feminina se vê dividida entre dois modos de gozo: o gozo fálico e o Outro gozo ou gozo suplementar. O gozo suplementar estabelecido como o gozo próprio da mulher foi referendado por Lacan "como este do qual ela não diz nada". Destarte, a divisão do gozo feminino entre passividade e castração parece ser revelador de um ponto impossível da essência daquilo que se chama feminilidade.

Lacan, na sua procura incansável de respostas sobre esse ponto impossível e inencontrável da feminilidade, dirá: a mulher não existe. As mulheres são "não-todas", isto é, não estão todas no registro fálico, ao contrário dos homens, que se encontram do lado do falicismo; no entanto, fora do registro não significa que as mulheres estão fora da relação com o falo.

A devastação está desde sempre presente do lado da mulher, o que fez Miller (2003) no seu texto Uma partilha sexual demonstrar, a partir de uma dialética binária, a localização de dois modos de gozar, colocando o sintoma como um modo de gozar masculino e a devastação como um modo de gozar feminino. Dessa maneira, situa o termo 'devastação' como simétrico em relação ao sintoma, sendo a devastação, por natureza, a outra face do amor. Miller esclarece que a devastação e o amor estão marcados pelo mesmo princípio: o grande A barrado, o não-todo, no sentido do sem limite. Ele, então, delimita algumas diferenças que separam o sintoma da devastação. Segundo esse autor, sintoma é algo que diz de um sofrimento localizável, apreensível, que é possível classificar, enquanto na devastação, que é inclassificável, o sofrimento fala de uma dor que não se reduz que não conhece limites.

Miller anuncia que o termo 'devastação' inscreve um valor erotomaníaco na própria etimologia: "O termo devastação (ravage) é derivado de arrebatar (ravir). O próprio verbo arrebatar (ravir) é originado do latim popular rapire, um verbo que quer dizer 'apreender violentamente' e que derivou a palavra 'rapto': que se pega à força, que se arranca... O verbo arrebatar é também um termo da mística, assim como o deslumbramento (ravissement). Isso quer dizer que se é transportado para o céu, na língua clássica. E, no horizonte do arrebatar, há o êxtase." (Miller, 2003, p.20).

Retomando a questão do gozo suplementar, ou seja, do gozo próprio feminino, Miller, na sua elaboração a partir do que Lacan (1985a) situa no seminário Mais, ainda, discrimina duas facetas desse gozo: uma que diz respeito ao gozo do corpo, uma vez que se encontra para além do falo. E outra que implica no gozo da fala. Essa última concepção remete àquilo que Lacan recortou como a satisfação do blábláblá. E, de acordo com a leitura de Miller, isto lhe deu sustentação para aferir que o gozo da fala está em correlação com o significante como tal. Nesse aspecto, é um gozo que faz seu caminho pelo amor; e o que é significativo, a partir disso, é que o amor não é pensável sem a fala.

Na relação amorosa, a mulher endereça ao homem, a partir de sua condição de não-toda, uma demanda de amor que contém em si uma especificidade da ordem do absoluto e do infinito. Como esse Outro, no entanto, não pode ser encontrado, na medida em que estaria inscrito na ordem do absoluto, o que aparece é o Outro da falta. A demanda de amor dirigida ao par amoroso, então, retorna sob as vestes da devastação. Aquilo que poderia vir com a palavra do Outro, vem como silêncio. É nesse aspecto que Lacan (2007) apontou o homem como parceiro devastação para uma mulher. Devastação tanto na qualidade de arremessá-la ao pior, quanto de arremessá-la à felicidade suprema.

No tocante à aproximação que Lacan faz entre a mulher e a loucura, cabe-nos sublinhar que esse é um ponto em que a devastação tem como marca o índice de infinito da estrutura de não-todo. Nessa direção, aproximamos desse ponto o que Lacan (1979), no seu seminário Las formaciones del inconsciente, tratou como sendo um traço da "verdadeira mulher", algo da ordem do extravio, idiossincrasia que não remete unicamente a uma simples reivindicação fálica, mas que é reveladora de algo que está para além do falo: um gozo que ex-siste, e que ultrapassa o sujeito.

 

A devastação: psicose

Como podemos diferenciar a devastação que localiza o sujeito feminino no campo da neurose, dos fenômenos da devastação no campo da psicose, incluindo os fenômenos da devastação presentes no autismo?

Cabe-nos situar, primeiramente que, na neurose, ao operar a metáfora paterna institui-se a significação fálica, situando o sujeito feminino na ordem do desejo. Podemos dizer, igualmente, que a causa do desejo para um sujeito só adquire sua função pela eficácia da castração, expressão denominada por Lacan de "potência de pura perda". No entanto, temos que considerar que o aspecto que liga a mulher à loucura não está referenciado pela foraclusão do Nome-do-Pai, como na psicose, mas pela constituição de um gozo suplementar, fora do registro fálico – e nessa acepção, o não-todo não é sinônimo de foraclusão, fato este que levou Lacan (1993) em Televisão a dizer: "o universal do que elas desejam é loucura: todas as mulheres são loucas... É justamente por isso que elas não são todas, isto é, não loucas-de-todo, antes conciliadoras: a tal ponto que não há limites às concessões que cada uma faz para um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens." (Lacan, 1993, p.70).

Miller (2003) refere-se a esse "amor louco" da mulher grifando o adjetivo 'louco' para acentuar que o amor, por essência, é sem limite, e que, segundo ele, foi por esse motivo que Lacan apresentou-o a partir de seus esquemas e dialética, situando-o mais além do ter. Explica que o amor na definição lacaniana "dar o que não se tem" encontra-se sobre a anulação completa do ter, e é isso que faz com que se possa visar o ser como o que está mais além do ter. É nesse ponto que podemos dizer que a devastação e o amor possuem o mesmo princípio, o não todo, no sentido do sem limite.

No caso da foraclusão do Nome-do-Pai, como nos sublinhou Elisa Alvarenga no seu artigo Devastação na psicose, "no lugar do ponto de estofo que não há, temos a redução do sujeito ao seu ser de objeto para o Outro." (2003, p.47). É nesse lugar que ocupa, de objeto para o Outro, que podemos introduzir a questão do sujeito na psicose. E esse aspecto se coloca em relação à sua posição frente ao desejo da mãe.

Como sabemos, dentro da concepção lacaniana, o campo do desejo da mãe comporta uma zona obscura, não saturada pelo Nome-do-Pai e, assim sendo, sem limite definido, o que não pode deixar de ter conseqüências subjetivas. Com o objetivo de traçar nosso percurso de forma a articular a devastação e o autismo, faz-se necessário precisarmos o papel da mãe.

Já na primeira tópica de sua obra, Freud chamava atenção para a mãe no romance edipiano da criança, dando-lhe o lugar de mãe-objeto – referindo-se a um objeto de amor, de desejo, e mesmo das pulsões de morte. Objeto este a ser perdido.

Na concepção dos pós-freudianos, a mãe se situa num lugar de grande destaque, o que fez, por exemplo, Melanie Klein encher o corpo da mãe com objetos, e Winnicott abordá-la sob a ênfase dos cuidados. A psicanálise localizou a mãe dentro de um contexto, no qual, por um lado, era depositada nela uma oferta de gozar, e, por outro, uma limitação de gozo, como nos fez observar Soler (2005). Verificamos, assim, no próprio desenvolvimento da história da psicanálise, um retorno à mãe, que se estendeu aos estudos relativos às crianças e à psicose, como também às questões sobre o sintoma, que de alguma forma levaram Freud a atestar alguns impasses e limites na clínica. Esses aspectos ligados aos impasses clínicos instigaram Freud ao ponto de fazê-lo escrever sua segunda tópica, alargando o horizonte teórico sobre questões como pulsão de morte, reação terapêutica negativa, e mal-estar na cultura.

Longe de a mãe ser localizada como responsável ou não, na fala dos pacientes, por seus fracassos ou sucessos, como detectamos na clínica, temos que pontuar que ela está sempre inscrita no núcleo das recordações mais marcantes para o sujeito. Desse modo, podemos dizer que é a mãe como "Outro primordial" que deixa as marcas mais indeléveis no sujeito, uma vez que ao interpretar as manifestações da criança no seu primeiro momento de vida faz com que esta seja introduzida no mundo simbólico e no circuito da demanda. Observamos, entretanto, que na clínica do autismo essa função estruturante da mãe não se coloca, o que equivale a dizer que as mães têm muita dificuldade para exercer essa função de interpretação. Exemplificando essa dificuldade, a mãe de um menino autista, nos fala – em entrevista nos primeiros tempos do tratamento de seu filho – que ao ouvi-lo chorar nos primeiros meses de vida, nada podia fazer, porque diante de alguém que chora ela sempre se cala. Outra mãe, a de uma menina autista, sustentava a sua incapacidade de responder ao choro da filha, quando esta ainda era bebê, dizendo que a única resposta possível era o seu próprio choro. Cada uma dessas mães, como pudemos depreender, apresenta uma maneira própria de obturar a falta, contudo, não nos cabe especificar essas dificuldades aqui, uma vez que estas só podem ser pensadas dentro do particular de cada caso.

"É como ser da fala que ela [a mãe] deixa sua marca no filho." (Soler, 2005, p.91). Essa marca também se imprime no corpo, uma vez que o significante é incorporado a partir da dimensão da fala. Lacan, nos seus Escritos, aponta para a dimensão de potência simbólica da mãe: "o dito primeiro decreta, legifera, sentencia, é oráculo, confere ao outro real sua obscura autoridade." (1998b, p.822). Nesse aspecto podemos surpreender-nos, na clínica, com os comentários feitos pelos analisandos sobre as palavras da mãe, expressões muitas vezes imperativas, as quais são vividas como devastadoras e até mesmo persecutórias. Quando a criança nasce, sua inserção no mundo se dá por meio do corpo como organismo sexuado. E para que esse corpo viva não basta apenas submetê-lo aos cuidados regularizados pelos hábitos; é fundamental que haja a linguagem, para que a demanda se articule, e para que o corpo seja corporalizado de maneira significante. Desse modo, podemos falar que é a mãe, como representante primeira do verbo, que fará a mediação da linguagem com o corpo, ao empregar sua voz para regular o gozo.

No autismo1, vemos que as mães muitas vezes falam de seus filhos sem se endereçarem a eles, o que nos remete ao que Bruno (1991) indicou: "se não há uma demanda endereçada, uma mensagem com um nome e endereço, como podemos extrair o sujeito do anonimato da linguagem e transformá-lo em ser da fala?" (não paginado).

A partir de Freud, podemos sublinhar que o recém-nascido não é um sujeito, mas um objeto, cujo lugar a lhe ser reservado dependerá do inconsciente materno. Inconsciente que marcará o destino da criança, ao revelar a posição que ela virá a ocupar para a mãe frente à sua falta de falo. A posição subjetiva da mãe em relação ao falo, decorrente das inscrições provenientes do complexo de Édipo e do complexo de castração, terá papel fundamental na constituição do sujeito, recortando o que é singular para a criança. Há mães que, por não permitirem a possibilidade da troca fálica (como as mães das crianças esquizofrênicas e das crianças autistas), viverão esse objeto surgido no real, que é o filho, como um órgão ou um pedaço de carne, completamente desfalicizados. Parece-nos ser essa a via da devastação apresentada por Brousse (2004), quando o sujeito, por se encontrar desapossado de seu lugar, é reduzido ao silêncio, restando-lhe um corpo em excesso ou uma carne desfalicizada.

Lacan (2003b), em seu clássico texto Nota sobre a criança, no qual faz constar uma nota enviada por ele a Jenny Aubry, psicanalista que exercia o seu trabalho com crianças, irá ressaltar a importância da transmissão de um desejo não anônimo para a constituição de um sujeito. Essa transmissão não se daria pelos cuidados com a satisfação das necessidades, mas sim pelo exercício das funções materna e paterna, ou seja, a mãe, com seus cuidados, a partir de um interesse particularizado, marcaria a criança por suas próprias faltas, ao passo que, o pai, enquanto nome, seria a encarnação da Lei no desejo.

Na referida nota, Lacan descreve duas posições que a criança pode vir a ocupar frente ao Outro: uma posição sintomática, quando ela responde ao que se coloca como sintomático na estrutura familiar; e uma outra posição, na qual a criança ocupa a posição de objeto – e, nesse caso, assinalamos que a metáfora paterna não opera, pois, como Lacan escreveu: "A articulação se reduz muito quando o sintoma que vem a prevalecer decorre da subjetividade da mãe. Aqui, é diretamente como correlata de uma fantasia que a criança é implicada. A distância entre a identificação com ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação (aquela que é normalmente assegurada pela função do pai) deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se torna o 'objeto' da mãe, e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade deste objeto. A criança realiza a presença do que J. Lacan designa como objeto 'a' na fantasia. Ela satura, substituindo-se a este objeto, a modalidade de falta em que se especifica o desejo da mãe, seja qual for sua estrutura especial: neurótica, psicótica ou perversa." (Lacan, 2003b, p.370).

Assim, a criança, ao ficar capturada na estrutura fantasmática da mãe, torna-se um objeto desta, localizando-se aí como um objeto condensador de gozo, que não entrou nas equações simbólicas por uma falha na simbolização. Para não se cristalizar no lugar de objeto fantasmático da mãe, o desejo da mãe deverá ser metaforizado pelos Nomes-do-Pai, quando, então, a criança poderá criar uma versão para o desejo devorador da mãe, através de um mito particular, ou de sintomas.

Miller (1998), a partir de sua leitura do seminário A relação de objeto, de Lacan, irá estabelecer uma premissa bastante clara no que se refere à relação mãe-criança. Dirá que não é somente a função do pai, cuja incidência sobre o desejo da mãe é, sem dúvida, necessária para permitir ao sujeito um acesso normativo à sua posição sexual, mas é preciso que a criança não sature, para a mãe, a falta em que apóia o seu desejo. Essa questão está relacionada ao que Lacan (1998d) precisou no texto A significação do falo: "[é] para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. É pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada. Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é endereçada." (p.694).

Depreendemos a partir da leitura que fizemos desses textos que a metáfora paterna remete a uma divisão do desejo, que impõe que o objeto 'criança' não seja tudo para a mãe. O que quer dizer que há uma condição de não-todo: o desejo da mãe deve se dirigir para um homem e ser atraído por ele, exigindo que o pai seja um homem. É essencial, portanto, que a criança não só preencha, mas divida, no sujeito feminino que tem acesso à função materna, a mãe e a mulher.

A clínica é soberana ao nos apontar que quanto mais a criança preenche a mãe, mais ela a angustia, de acordo com a fórmula segundo a qual é a falta da falta que angustia. Neste aspecto "a mãe angustiada é, inicialmente, aquela que não deseja, ou deseja pouco, ou mal, enquanto mulher." (Miller, 1998, p.8).

Outro ponto importante, que queremos ressaltar, diz respeito à metáfora infantil do falo, ou seja, ao fato de a criança ser equivalente ao falo. Com relação a isso, pode-se afirmar que essa metáfora só é exitosa se falhar, se não fixar o sujeito à identificação fálica. Pode-se dizer, contrariamente, que ela só é bem sucedida se der acesso à significação fálica, na modalidade da castração simbólica, sendo, então, preservado o não-todo feminino (Miller, 1998).

Ao trabalharmos a idéia de que a criança provoca uma divergência do desejo feminino, deparamo-nos com a seguinte indagação: Será essa divergência do desejo feminino que convoca o pai diante do nascimento do filho a se perguntar: Quem sou eu para ela? Nessa medida, cabe-nos concordar com o argumento de Miller, quando este sustenta que a função viril apenas se realiza na paternidade, no momento em que implica o consentimento de aceitar um desejo fora de si mesmo. Já a falsa paternidade, ou patogênica, seria aquela em que o sujeito estaria identificado ao Nome-do-Pai como universal do pai, constituindo-se como um vetor de um desejo anônimo com o objetivo de encarnar o absoluto e o abstrato da ordem. No caso em que ocorre a impossibilidade de admitir o particular do desejo no outro sexo, o falso pai acarretará uma pressão na criança no sentido de encontrar refúgio na fantasia materna, na fantasia de uma mãe negada como mulher.

A partir desse enfoque, faz-se necessária a retomada da expressão utilizada por Lacan de "humanizar o desejo" para falar da função bem sucedida da paternidade, que seria a de sustentar a mediação entre as exigências abstratas da ordem, o desejo anônimo do discurso universal, de um lado, e o que decorre, para a criança, do particular do desejo da mãe, de outro lado.

Constatamos que, ao faltar à mãe a dimensão de um desejo outro, outro que implica algo que não se satisfaz na relação desta com o filho, este último ficará determinado a realizar a fantasia da mãe, e, ao preenchê-la, estará destinado, a se situar como propriedade da mãe. Nesse caso, podemos verificar os efeitos danosos, não quando se trata de falta de amor, mas quando há excesso de amor, impedindo que a separação se estabeleça. Não foi sem conseqüências que Lacan apontou para o desejo da mãe como uma vontade sem lei, como puro capricho no primeiro tempo do Édipo, caso a mãe não transmita um significante que designe uma posição terceira entre ela e a criança. Por outro lado, com a metáfora paterna, operação que localiza o significante do pai no lugar do significante da mãe, a falta materna se especifica, implicando a divisão entre a mãe e a mulher, o que torna a mãe não-toda para seu filho.

Lacan (1998c) havia se indagado em Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina: "se a mediação fálica drena tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher, notadamente, toda a corrente do instinto materno." (p.739). E a partir de tal indagação introduzimos uma outra pergunta: quais seriam os efeitos para uma criança quando a mãe se coloca fora de qualquer inscrição fálica? Quando a mãe, ao contrário de se ocupar em demasia com o filho, deixa-o sem recursos diante do seu silêncio? Grande parte das mães de crianças autistas que entrevistamos nos fala muito pouco de seus filhos ou nada tem a dizer sobre eles. Os relatos, em sua maioria, restringem-se ao interesse diagnóstico e às perguntas sobre o tratamento. Dois aspectos clínicos chamam-nos a atenção: o fato de os pais não se implicarem nas dificuldades apresentadas pelos filhos – e quando se implicam são, em geral, os aspectos genéticos os relacionados; ou o não endereçamento aos filhos de qualquer mensagem, o que contribui para a opacidade do Outro absoluto.

Bruno (1991) diz que o que é próprio ao autismo é o fato de não entrar em função o desejo materno. Circunscrevemos a função do desejo materno como o que foi apontado por Lacan em 1969, e que diz respeito à implicação de um desejo que não seja anônimo, uma vez que os cuidados da mãe "trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas." (p.369).

Bruno irá mencionar, quanto à esquizofrenia (e podemos estender ao autismo), que: "isso fala dele sem jamais endereçar-se a ele", expressão que manifesta a presença de um desejo anônimo em relação à criança. O desejo anônimo implica que não há endereçamento de uma mensagem à criança; isso fala de sua desaparição como sujeito, pois tanto o nome quanto o endereço são inexistentes, impossibilitando o recebimento da mensagem, o que, a nosso ver, significa um ponto de devastação, ponto esse em que o sujeito se encontra desapossado de seu lugar.

 

A devastação em um caso de autismo: Bernardo, a mãe e a avó materna

Esclarecemos, primeiramente, que não iremos tratar neste artigo do trabalho que realizamos na direção do tratamento, ao longo de um ano, com essa criança de seis anos, mas considerar os aspectos clínico-teóricos relevantes referidos à sua relação com o Outro materno, que conflagram a devastação nesse caso de autismo.

No trabalho da escuta com os pais de Bernardo, realizado nas entrevistas preliminares ao tratamento (e mesmo nas decorridas durante o mesmo), pudemos colher alguns significantes que apontavam para o lugar que Bernardo veio a ocupar no fantasma da mãe. Esses significantes foram tomados a partir de uma seqüência de entrevistas, embora tenhamos que destacar que estas foram estabelecidas com uma freqüência superior com Maria, a mãe de Bernardo. Essa seqüência de entrevistas serviu-nos como referência para pensar, a partir da clínica, a articulação entre o autismo e o ponto de devastação com o Outro materno.

Maria, no início, evidenciou um distanciamento de Pedro, o pai de Bernardo, queixando-se muitas vezes do fato de este não dar a atenção a ela e aos filhos, em função da intensa jornada de trabalho a que se dedica. O que mais a deixava incomodada era o fato de o marido sair com os amigos nos dias em que se encontrava de folga no trabalho. Isso teria acarretado grande desgaste no relacionamento, de acordo com Maria.

Bernardo apresentou, também, em alguns momentos "reações de raiva" em relação ao pai, motivadas, segundo Maria, pela ausência deste. Ao se referir à sua família original, Maria relata que na infância não teve nenhum contato com o pai, e que só foi conhecê-lo aos 13 anos de idade. Diante da insistência em aproximar-se dele, sua mãe lhe disse: "Você está crescida, pode procurá-lo sozinha, se ele tivesse interesse em você, já a teria procurado". Maria, então, desiste de buscar essa aproximação com o pai. Podemos depreender que Maria fica impedida de endereçar-se ao pai, dificultando a chance de deduzir sua falta como mulher.

Maria fala muito do pai, responsabilizando-o por ter abandonado a mãe quando ela ainda era bebê. Quando Maria nasceu, sua mãe tinha 15 anos e, logo a seguir, passaram, a mãe e ela, a morar na casa da família onde sua mãe trabalhava. Ainda pequena, quando sua mãe passava por muitas dificuldades financeiras e de moradia, Maria teve que separar-se dela, indo viver no Nordeste com os avós maternos, que a criaram. Desde então, Maria passou a encontrar a mãe em raras ocasiões – ela voltou a se casar e teve outros filhos, sendo novamente abandonada pelo marido, depois de certo tempo. Na época em que sua mãe estava casada com o segundo marido, Maria veio a morar com eles, fato que foi descrito por ela como "terrível", pois não gostava do padrasto. Cansada da vida que levava com a mãe e o padrasto, Maria apaixona-se por Pedro, e já no início do namoro resolvem se casar. A primeira gravidez não fora planejada, embora tenha passado bem. Uma filha é fruto dessa primeira gravidez, com a diferença de quatro anos em relação a Bernardo. Pouco antes de nascer a primeira filha do casal, Pedro adoece seriamente e Maria fica só, no parto, assim como nas primeiras semanas subseqüentes a este. Configura-se, então, um momento bastante difícil para Maria, pois Pedro logo que se recupera do problema de saúde passa a beber muito. Pedro, enquanto pai, não funciona como agente de privação da mãe, parece apresentar-se a serviço do capricho materno.

Maria relata que a gravidez de Bernardo foi muito desejada, pois ela queria um segundo filho. Nessa gravidez, Maria teve deslocamento de placenta, o que a obrigou a ficar de repouso durante algum tempo. Quando o menino nasceu, ela entrou em desespero, pois acreditava que o filho estivesse morto, uma vez que demorou a chorar ao nascer. Na ocasião, foi sedada para se acalmar, pois gritava incansavelmente que o filho estava morto. Ao acordar, viu que Bernardo se encontrava bem, fato que a fez segurá-lo no colo.

Meses depois, Maria engravidou novamente, mas, ao descer uma escada com Bernardo ao colo, caiu e perdeu a gravidez referida como não desejada. A partir desse acontecimento, ela revela enorme dificuldade em se separar de Bernardo, dizendo ter medo de perdê-lo. Abandona, então, o emprego que tinha para se dedicar exclusivamente a ele, não deixando ninguém se aproximar do filho.

Em situações em que a presença de terceiros se evidenciava, Maria se afligia com comentários que apontavam seu zelo exagerado, ou sua presença excessiva em relação ao filho. Esses fatos a afastavam da convivência familiar e social, pois, como alegava, quaisquer questionamentos por parte de familiares sobre sua conduta em relação ao filho faziam-na sentir-se extremamente angustiada.

A angústia também se apresentava em ocasiões em que saía com Bernardo para alguma atividade externa a casa – ela sempre imaginava que algo grave poderia acontecer ao filho, o que a fazia retornar a casa. Em uma oportunidade rara, ao permitir que Bernardo experimentasse andar de bicicleta e ao vê-lo tombar, Maria foi acometida de uma culpa intensa – Bernardo fraturou o fêmur e ficou imobilizado por dois meses.

Maria, nas entrevistas preliminares ao tratamento de Bernardo, retomava sempre a mesma lembrança, que retornava em sua fala como um ponto de angústia, e que dizia respeito ao fato de, na gravidez de Bernardo, Pedro não ter parado de beber, somente interrompendo o "vício", como diz Maria, ao realizar uma cirurgia, época do nascimento de Bernardo. E, assim, não pôde acompanhá-la, deixando Maria outra vez só na hora do parto. E é nesta hora que Maria grita desesperada pelo grito que Bernardo não lhe ofertou ao nascer – e isso fez que ela o colocasse no lugar de morto. Ao invés de objeto do dom, Bernardo parece revelar o objeto do dom que ela não teve, perdido pelo abandono dos homens de sua mãe, incluindo o seu pai, que a deixa sem referência em relação ao dom. Vacuidade que fala de uma despossessão de uma imagem de si.

Lacan (2003c), em Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, nos dirá: "Não bastaria isso para reconhecermos o que aconteceu com Lol, e que revela o que acontece com o amor, ou seja, com essa imagem, imagem de si de que o outro reveste você e que a veste, e que, quando desta é desinvestida, a deixa? O que ser embaixo dela?" (p.201).

Nessa perspectiva, Maria, mãe de Bernardo, dá testemunho de como interpretou o seu encontro com um pai, e de como sua mãe respondeu à questão do ser mulher: reenviando ao domínio devastador desta, ao trazer a marca dos signos de exclusão, como corpo de mulher que foi deixada por seus homens. Para nós, isso parece ter produzido em Maria efeitos de devastação.

Podemos demarcar três eixos na hipótese da devastação que atravessa a existência de três gerações: a da avó materna, a da mãe e a de Bernardo. Nesse aspecto, vale ressaltarmos a importante alocução que Lacan proferiu, em 1967, nas jornadas sobre as psicoses da criança, a qual parte da observação de Cooper de que "para se obter uma criança psicótica, é preciso ao menos o trabalho de duas gerações, sendo ela o seu fruto na terceira." (Lacan, 2003d, p.360).

Primeiramente, situaremos a devastação no eixo que estabelecemos como simbólico, e que se refere ao primeiro apontamento feito por Lacan (1998a) a respeito do termo 'devastação' como referido à filiação. Há uma falha de transmissão do Nome-do-Pai na articulação entre o desejo e a lei, por meio de uma degradação da figura paterna, ou mesmo de uma falência dos recursos simbólicos transmitidos na filiação, ao não transmitir o não-todo da posição feminina.

O segundo eixo que chamamos de 'imaginário' remete àquilo que diz respeito à demanda, que fixa o sujeito, impedindo-o de se manter num circuito de trocas, interferindo na mediação simbólica, e fazendo-o aferrar-se a uma posição narcisista (relação dual entre mãe e filho).

O terceiro eixo parece-nos apontar a vertente real da devastação que situa a relação mãe/filha, que foi estabelecido por Lacan no artigo de 1972, O aturdito. Ali, o que está em jogo não depende da castração, mas, sim, da espera dolorosa de "mais substância", algo que implica o mistério de um gozo "a mais". A nosso ver, esse é um ponto extremamente espinhoso da devastação, pois se dirige ao ilimitado que a "substância" encarna como um pedaço de real refratário à troca simbólica.

Para concluir, recortaremos o aspecto fundamental apontado na economia psíquica de Maria em relação a Bernardo: trata-se do lugar que este vem ocupar em relação a ela, como objeto da mãe. Nesse sentido, orientados por Lacan, diríamos que Bernardo satura a falta da mãe, velando a modalidade de falta em que se especifica o desejo da mãe. Com relação a esse aspecto, podemos formular, também, que ao se colocar como objeto da mãe Bernardo tem a função de revelar a verdade desse objeto: aquele que traz a marca da devastação, o valor da morte. Bernardo, portanto, fica situado fora do sintoma do casal parental. Esse aspecto estabelece, em última instância, uma idiossincrasia: trata-se de uma devastação no lugar do sintoma. O que nos leva a deduzir que há devastação quando o sintoma por si só não consegue tratar o gozo. Sendo assim, uma das respostas que o Outro materno pode dar à dimensão real do feminino é conseqüência da devastação, uma vez que "mobiliza mais o insaciável do amor do que o desejo" (Brousse, 2004, p.216), na medida em que neste último está implicada a falta. Com efeito, e não sem conseqüências, este nos parece ser um ponto crucial concernente à psicanálise com crianças – a questão do feminino, que persegue como uma sombra as vicissitudes do Nome-do-Pai.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: fatimapinheiro@globo.com
E-mail: freireanab@hotmail.com

Recebido em abril/2008.
Aceito em junho/2008.

 

 

NOTA

1 Não pretendemos desenvolver a questão que diz respeito à diferença entre autismo e psicose, ou ainda, se o autismo se refere a uma quarta estrutura como assinalam Rosine Lefort e J. C Maleval. Optamos, contudo, em aproximar o autismo do campo da esquizofrenia como o fizeram Eric Laurent, Marc Strauss e Alexandre Stevens uma vez que ambos, esquizofrenia e autismo, têm como conseqüência da foraclusão do Nome-do-Pai e da não extração do objeto, um retorno do gozo no corpo: na esquizofrenia, no real do corpo e no autismo, no real das próprias bordas que não se constituíram como erógenas.

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