Estilos da Clinica
ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.17 no.2 São Paulo dez. 2012
DOSSIÊ
A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS: DESAFIOS E RESULTADOS
Intervenção psicanalítica conjunta pais-filhos: fundamentos teórico/clínicos
Joint intervention parent-child psychoanalytic: theoretical /clinical fundamentals
Intervención conjunta de padres y niños psicoanalítica: fundamentos teórico /clínicos
Helga S. Machado QuagliattoI; Marines de Fátima CunhaII; Ludmilla de Sousa ChavesIII
IMembro filiado do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Centro de Estudos e Eventos Psicanalíticos de Uberlândia (CEEPU), Uberlândia, MG, Brasil. Av. Amazonas, 2245 38405-302 - Uberlândia - MG - Brasil. hquagliatto@yahoo.com.br
IICentro de Estudos e Eventos Psicanalíticos de Uberlândia (CEEPU), Uberlândia, MG, Brasil. Av. Batalhão Mauá, 1482 38440-210 - Araguari - MG - Brasil. marinescunha@yahoo.com.br
IIICentro de Estudos e Eventos Psicanalíticos de Uberlândia (CEEPU), Uberlândia, MG, Brasil. Rua Bernardo Cupertino, 1212 38400-444 - Uberlândia - MG - Brasil. lud_chaves@hotmail.com
RESUMO
A psicanálise de crianças, ao longo de sua história, deparou-se com entraves clínicos que possibilitaram o criar/recriar intervenções analíticas. Em consonância com essas transformações, o presente trabalho pretende apresentar as reflexões de um grupo de estudos/pesquisas, a respeito de uma modalidade clínica com crianças, que prima pela investigação do lugar/relação dos pais no setting - a Intervenção Psicanalítica Conjunta Pais-Filhos. Fundamentados pelo pensamento teórico/clínico de Winnicott, estruturou-se três aspectos de observação da dinâmica familiar: O Infantil; A Comunicação; O Brincar. Estes favorecem a percepção de elementos no manejo clínico, promovendo o desvelar de sentidos para a integração das experiências emocionais de cada integrante do grupo familiar.
Descritores: psicanálise de crianças; intervenção psicanalítica conjunta pais-filhos; Winnicott.
ABSTRACT
The children psychoanalysis, through its history, has faced clinical barriers that made the create/ recreate of analytical conducts possible, making a trajectory that goes from the finding of children analysis possibility to systematization of analytical techniques. Consistent to these transformations, this study intends to show the reflections of a studying / researching group, with regard to a clinical mode with children, which emphasizes the investigation of place / relation to parents in the setting - The joint Psychoanalytical - Intervention of Parents-Children ( IPCPF ). Reasoned on the theoretical / clinical thought of Winnicott, it was possible to structure three aspects of family dynamics observation: The Childish, The Communication, The Play. These favor the perception of elements in the clinic handling, promoting the unveiling of senses and meanings to the integration of emotional experiences of each member of the family group resulting in therapeutic alternatives beyond to AIPCPF, which can include directions to individual analysis.
Index terms: children psychoanalysis; the joint psychoanalytical intervention of parentschildren; Winnicott.
RESUMEN
El psicoanálisis de niños, a lo largo de su historia, se enfrenta a obstáculos que han permitido a los médicos crear o recrear procedimientos de análisis, haciendo uma trayectória que va desde El descrubimiento de um examen de los niños a La sistematización de lãs técnicas analíticas. De acuerdo com estos câmbios, este artículo analiza lãs reflexiones de um grupo de estúdios y sus encuestas, sobre uma modalidad clínica com niños, que tiene que ver com la investigación del lugar o de la relación entre los padres em el establecimiento - Intervención Conjunta Psicoanalítica de Padres-Niños (IPCPF). Motivos por el pensamiento teórico-clínicos de Winnicott, estructurado três aspectos de la observación de la dinâmica familiar: la niñez; la comunicación; los juegos. Estos fomentan La percepcón de los elementos de La gestón clínica, La promoción de La revelación de significados para La integración de lãs experiência emocionales de cada miembro Del grupo familiar, dando lugar a opciones terapêuticas más allá de IPCPF, que podrán incluir indicaciones para el examen(s) individual(s).
Palabras clave: psicoanálisis de niños; intervención psicoanalítica conjunta de los padres e ninõs; Winnicott.
A psicanálise de crianças, ao longo de sua história, tem se deparado com entraves clínicos significativos, que possibilitaram o criar e o recriar de condutas analíticas, percorrendo uma trajetória que vai desde a constatação da possibilidade de analisar crianças - na medida em que o sofrimento e a dor psíquica das mesmas foram legitimados e os sintomas compreendidos como uma aliança entre a pulsionalidade e as adaptações ao meio em que elas vivem - à construções/ evoluções teóricas sobre a subjetividade em seus espaços intrapsíquicos, interpsíquicos, transgeracionais e transubjetivos - socioculturais.
O percurso inicia-se na orientação aos pais sem a presença da criança no setting (Freud, 1909/1980) seguindo para a sistematização de uma técnica individual de análise com crianças e consequentes contribuições sobre estados primitivos da mente - Klein (1932/ 1997); Bion (1957/1991); Bick (1964); Winnicott (1971/1984) - indicando um processo de transformação baseado, fundamentalmente, em aspectos concomitantes e indissociados, como a compreensão e ênfase das escolas psicanalíticas sobre a formação da subjetividade e os impasses clínicos advindos das experiências analíticas com crianças.
Como decorrência dessas transformações, evidencia-se um terceiro elemento: a problematização do binômio pais-filhos e sua influência no setting analítico.
Em consonância a essas transformações e desdobramentos, iniciou-se, em 2006, um grupo de estudos e pesquisas vinculado ao CEEPU (Centro de Estudos e Eventos Psicanalíticos de Uberlândia), cuja referência de trabalho é investigar, a partir da experiência clínica, modalidades de análise de crianças, assim como, o lugar e a relação dos pais no setting. Fomos buscar subsídios teóricos/técnicos que elucidassem a pluralidade de sentidos da trama subjetiva da criança e de seu grupo familiar, sua história, seus elos e suas representações inconscientes, articuladas a condição inerente da contemporaneidade, sem deixar de considerar os elementos brutos, irrepresentáveis.
Sendo assim, o grupo vem desenvolvendo novas possibilidades de intervenção fundamentadas no Método Psicanalítico e nas demandas contemporâneas, que possuem como característica principal o acelerado processo de mudanças, no qual os arranjos/configurações familiares e conjugais são cada vez mais variados e as ligações afetivas tendem a ser pouco duradouras, conferindo às formações vinculares a marca da instabilidade, terceirização de cuidados e isolamento.
Encontramos nos trabalhos de Caron (2000); Mélega (2002); Silva (2003); Almeida et al. (2007); Paravidini (2008); dentre outros, propostas de estruturação de novas modalidades clínicas a fim de ampliar a posição psicanalítica frente ao infantil, na medida em que a criança passa a ser recebida, em diferentes contextos terapêuticos, junto com os pais e/ou cuidadores.
Nesse processar, este grupo de estudos e pesquisa, se deparou com a concepção teórica de Winnicott sobre o Amadurecimento Pessoal, tendo a concebido como uma semente germinadora no solo de nossas inquietações, pela sua perspectiva e compreensão de que o ser humano para existir precisa do cuidado e do desvelo de outro ser, que viabiliza o seu potencial inato:
O bebê nasce com tendências herdadas que o impulsionam impetuosamente para um processo de crescimento. Isso inclui a tendência em direção a integração da personalidade, em direção a totalidade da personalidade em corpo e mente, e em direção ao relacionamento objetal, que gradualmente se torna uma questão de relação interpessoal, à medida que a criança começa a crescer e a notar a existência de outras pessoas [...] Esses processos de crescimento, no entanto, não podem ocorrer sem um ambiente facilitador, especialmente no início, quando há uma condição de dependência quase absoluta. O ambiente facilitador requer uma qualidade humana, e não uma perfeição mecânica, de tal modo que a expressão "mãe satisfatória" me parece atender as necessidades de uma descrição daquilo que a criança precisa, se os processos de crescimento herdados se tornarem uma realidade no desenvolvimento dessa criança específica (Winnicott, 1968/1999b).
Na concepção de Winnicott (1966/1999a), a família constitui um grupo, cujo funcionamento se relaciona com a estrutura da personalidade do indivíduo. Ela é o primeiro agrupamento e o mais próximo dentro da unidade da personalidade da criança, seguida pelos grupos escolares e pela sociedade. Para ele, o que deve ser percebido para o entendimento dos aspectos infantis/primitivos, do adulto ou da criança, são os estados de desenvolvimento e crescimento da pessoa desde a sua concepção e sua relação com o meio ambiente, após o nascimento: "Não seria possível entender a atitude dos pais relativa aos seus filhos sem considerar o significado de cada criança em termos de fantasia consciente e inconsciente dos pais..." (Winnicott, 1965/2005, p. 63).
A partir de meados da década de 60, este pensador já questionava os procedimentos diagnósticos: "Qual é a pessoa doente neste caso? Ainda que seja a criança, às vezes é outra pessoa que causou e está mantendo a perturbação, ou então pode ser que o problema seja um fator social" (Winnicott, 1966/1999a, p. 124).
E também se ocupava em pensar na eficiência do manejo clínico, imprimindo relevância às primeiras Consultas Terapêuticas com crianças, no sentido de avaliar e intervir no conflito inconsciente no tempo possível e disponível de contato, antes de qualquer escolha terapêutica de longo curso (Winnicott, 1971/1984).
Com essa premissa, Winnicott ampliou e lançou as bases para novas perspectivas de trabalho em Psicanálise preconizando não haver necessidade de uma escolha técnica a priori, mas sim, que o analista se posicione livremente para adotar o procedimento que julgar importante ao caso:
O princípio básico é o fornecimento de um setting humano e, embora o terapeuta fique livre para ser ele próprio, que ele não distorça o curso dos acontecimentos por fazer ou não fazer coisas por causa de sua própria ansiedade ou culpa, ou sua própria necessidade de alcançar sucesso (Winnicott, 1965/1994, p. 247).
Na busca de sintonia com essas reflexões, assimilamos de Brafman (1999) o trabalho de inclusão da família e/ou cuidadores nas primeiras horas de observação com a criança que motivou a consulta, como um desenvolvimento daquelas Consultas Terapêuticas.
Ao se avaliar as possibilidades de uma dada criança ser submetida à análise, Winnicott (1966/1999a) também argumenta que não se deve pensar apenas no diagnóstico do distúrbio e na disponibilidade do analista. Deve-se considerar também a capacidade que a família pode ter de tolerar o distúrbio ao longo do período durante o qual os efeitos da análise ainda não se fazem ver.
Para tolerar o distúrbio de um filho ou delinear se o significado desse sintoma é reacional a impasses de comunicação do grupo familiar em que a função materna e/ou paterna possa estar desconfigurada às necessidades daquela criança, são necessárias um tempo de elaboração dos pais em um ambiente facilitador que evidencie e acolha as experiências emocionais.
Intervenção psicanalítica conjunta pais-filhos
Em nossa prática clínica ao sermos procurados para atendimento de uma criança até a latência apresentamos uma proposta de avaliação conjunta (com o grupo em que a criança vive: pais, irmãos, responsáveis) da situação perturbadora que motivou a procura por um analista. O termo em conjunto refere-se à experiência emocional, visto que o ser humano precisa desta para integrar-se. Todos os estados do ser precisam ser experenciados: caso contrário, esses estados permanecem não integrados.
Na proposta de Intervenção Psicanalítica Conjunta Pais-Filhos (IPCPF), a atenção recai não só no funcionamento mental e o desenvolvimento emocional da criança que motivou a consulta, mas também a interação entre os membros do grupo familiar, na medida em que se concebe que cada participante desperta e reage a fatores inconscientes dos seus pares e que os pais só conseguem ajudar seus filhos, se não se identificarem com os conflitos inconscientes dos mesmos. Se ocorrer dos pais interpretarem, inconscientemente, o conflito da criança como reflexo de suas próprias angústias, perdem a capacidade de ajudá-la e exacerbam o conflito. Forma-se um ciclo vicioso (Brafman, 1999).
Os encontros podem durar em torno de seis a doze sessões, com uma hora de duração cada, permitindo uma flexibilidade que atenda as necessidades de compreensão da dinâmica familiar e de seus componentes.
Prepara-se a sala com brinquedos e material de desenho não configurado, para configurar o inconsciente e favorecer a condição dos pais observarem a si, aos filhos e as interações do grupo, na experiência emocional com um analista que possa ter uma postura que propicie um ambiente, físico e emocional, de proximidade, pontuando as angústias evidenciadas, a fim de favorecer elaborações afetivas, cognitivas e simbólicas.
Neste ponto o trabalho incide:
a) Sobre o INFANTIL, ou seja, sobre os modelos infantis que não sofreram suficientes elaborações para cada membro do grupo familiar e como ocorre a repercussão do infantil no grupo.
Observa-se, neste contexto, tendo como referencial os estágios de amadurecimento propostos por Winnicott (1945/2000a): graus de dependência; estados de integração, nãointegração e desintegração; as tarefas no processo de integração; o objeto, a relação e o uso do objeto; as fantasias inconscientes e as defesas.
Segundo Winnicott (1947/ 2000b), há uma grande diferença entre pessoas, em qualquer idade, que tiveram experiências iniciais satisfatórias e aqueles cujas experiências iniciais foram, sucessivamente, deficientes ou distorcidas. Pois, neste segundo caso, é o analista a primeira pessoa a fornecer certas coisas essenciais no meio ambiente, o que traz uma importância vital para detalhes técnicos da prática analítica destes casos, manejo este que pode ser evidenciado nesta proposta de AIPCPF.
b) Sobre a COMUNICAÇÃO do grupo familiar para integrar a experiência emocional.
Dependendo do momento no desenvolvimento emocional e das tarefas que cada membro do grupo familiar está envolvido, são diferentes as formas de comunicação. A comu-nicação está intimamente relacionada à forma como o objeto é percebido, ou seja, à medida que o objeto deixa de ser subjetivamente percebido, experienciando a transicionalidade, para ser objetivamente percebido, na qual a criança gradualmente deixa para trás a área da onipotência como uma experiência de vida, altera-se a forma da comunicação. Na primeira situação - em que o objeto é subjetivo - é desnecessário que a comunicação com a criança seja explícita, já na segunda - objeto objetivamente percebido - a comunicação torna-se ou explícita ou confusa (Winnicott, 1963/1983b).
Essas variações também são vividas no convívio do grupo familiar com o analista que, compreende a relação transferencial, nesta modalidade de trabalho, como uma oportunidade para alcançar algo na busca de sentido para aquela experiência emocional (Winnicott, 1955-56/2000c).
c) sobre o BRINCAR: as expressões lúdicas e gráficas das crianças na interlocução com o discurso e senso de humor parental, bem como, a linguagem pré-verbal são indícios de saúde emocional: "É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou adulto fruem sua liberdade de criação", afirma Winnicott (1971/1975, p. 79).
O analista, desta forma, observa na IPCPF o fazer e a condição do brincar, em um tempo e em um espaço e não o seu conteúdo. E também, a maneira que a(s) criança(s) e seus pais se envolvem e se concentram na brincadeira. A criatividade deste ato pode permitir uma seqüência de relacionamentos e desenvolvimentos entre a realidade psíquica pessoal e os seus objetos (subjetivos - transicionais - objetivamente percebidos) para uma realidade concreta ou compartilhada.
O manejo clínico
Frente a estas considerações, relataremos uma primeira sessão de AIPCPF para explicitar as interações observadas em seus detalhes relacionais:
Alberto é filho único e tem 2 anos e 2 meses. A mãe é 20 anos mais nova que o pai e este relata que demorou muito para ter filhos, vendo em Alberto a possibilidade de continuidade de sua geração e dos negócios.
No entanto, estão preocupados, porque o filho não consegue brincar com outras crianças de sua idade: chora e se isola. Não suporta barulhos e detecta os mesmos a distância, reagindo com irritabilidade. O seu brinquedo favorito é passar o dedo nas rodas dos carrinhos ou rolar uma bola no chão.
O pai chega ao consultório com Alberto no colo e ao colocá-lo no chão, a criança se dirige imediatamente aos brinquedos demonstrando interesse e curiosidade. Os pais se sentam e ele explora os materiais. Pega a caixa de massa de modelar e tenta abri-la. Insiste muito, mas não consegue. Os pais não reagem e Alberto continua tentando sem pedir ajuda. A analista pontua: "parece estar difícil abrir esta caixinha!" A mãe diz: "é mesmo!" A analista prossegue: "por que será que está tão difícil?" A mãe diz: "Uhê! É dura, né meu filho?". Alberto tenta de várias formas e chega a suar. A analista diz: "parece uma tarefa difícil para mãos tão pequenas, mas Alberto não pediu ajuda para o papai e a mamãe... e o papai e a mamãe o que podem fazer?". A mãe diz: "a mamãe vai abrir para você." Alberto sorri. São doze bastões coloridos de massa de modelar. Ele pega o azul e olha para a mãe. Ela diz: "que cor é essa?" Ele responde: "Azul." Sucessivamente, todas as cores são nomeadas. É impressionante como as respostas são precisas, incluindo gradações de cores. Porém, Alberto não brinca de modelar e é observado que ele não conhece a função da massinha. A mãe pede a Alberto que nomeie algumas cores em inglês e ele responde corretamente. O pai olha para a analista, que o sente orgulhoso com as respostas do filho. A analista pergunta: "O Alberto já aprendeu cores, mas e brincar de massinha?" A mãe diz que ele não tem massinha em casa.
Alberto se dirige a mesa e pega uma embalagem contendo animais domésticos e selvagens. A mãe pede para ele vir guardar as massinhas. A criança responde a solicitação da mãe e tenta colocá-las na caixa. A mãe insiste que seja feito de forma organizada. O menino tenta. A mãe diz que detesta criança desorganizada. A analista questiona: "mas ele tem que aprender sozinho?" O pai se levanta e ajuda o filho a guardar. Alberto termina a tarefa e depois, despeja os animais no chão. A mãe, prontamente, pergunta o nome de cada um dos bichos e as cores. A criança responde algumas coisas e vai para a porta tentando abrila. O pai comenta que ele sempre quer ir embora dos lugares e que nunca brinca com ninguém. A analista diz: "talvez seja muito chato apenas brincar de nomear cores. Será que existe outro jeito de brincar?" Após uma pausa, o pai fala: "olha, tem lego!" A criança se volta para o pai e começa a manusear as peças. Esforça-se muito para encaixar uma na outra, mas não obtém sucesso. Fica irritado, bate as peças no chão. A mãe boceja. Depois de considerável tempo de trabalho, o menino, já suado, desiste e pega um carrinho. O pai pergunta a marca do carro. Ele responde: "Fusca". O pai inicia uma série de perguntas sobre as marcas dos carros dos familiares. O menino é preciso nas respostas, porém vira o carrinho de cabeça para baixo e começa a passar os dedinhos nas rodas. A mãe diz: "É assim que ele fica e aí ninguém quer brincar com ele!" A analista pergunta: "Então como brinca de carrinho?" Os pais se olham. Depois de um tempo, o pai pega outro carrinho e empurra para o filho. O menino olha para o pai que pede a ele para mandar de volta. O menino responde e os dois começam a brincar. No intercurso deste início de comunicação lúdica entre pai e filho, a analista segue comentando as evoluções dos carrinhos e da dupla. Ao final da sessão, o menino não quer ir embora.
Este primeiro encontro permite, simultaneamente, observar aspectos de submissão e obediência da criança frente às solicitações dos pais, bem como seus recursos expressos em sua vitalidade e curiosidade frente ao novo, proporcionando intervenções na dinâmica familiar.
É possível perceber ao vivo, ou seja, na experiência emocional que os pais apresentam dificuldades em compreender as necessidades do filho, hipervalorizando a aprendizagem conceitual e a independência precoce. Os seus aspectos narcísicos impedem a comunicação com a criança, que se recolhe e não solicita a presença afetiva dos mesmos. Neste contexto, a criança apenas responde ao objeto, sem estabelecer relações. Os brinquedos não servem para brincar e se apropriar da experiência.
Assim, a função do analista configura-se como um intérprete das experiências emocionais, pela sua presença empática, favorecendo uma qualidade na comunicação e possibilitando um campo de intersecção afetiva entre pais e filho, que se abre para a construção de um espaço potencial, por meio do brincar.
Prepara-se, nesta modalidade de trabalho, um campo para o amadurecimento do material, visto que a Interpretação fora deste amadurecimento pode ser sentida como doutrinação e produzir submissão, como nos ensina Winnicott (1960/1983a).
Alternativas terapêuticas
As alternativas terapêuticas desta modalidade técnica incluem inúmeras variáveis a serem analisadas para as indicações posteriores a este período. Vale ressaltar que um dos propósitos é que o próprio grupo, com as intervenções do analista, conclua pela indicação ou não de análise individual para um ou mais membros do grupo familiar. Portanto, o trabalho favorece a compreensão emocional da família sobre a indicação de análise individual e a permanência, no caso da criança, no trabalho analítico propriamente dito.
No caso de indicação para análise individual de mais de um membro do grupo familiar é importante discutir quem permanece com o analista que realizou o trabalho conjunto. A preferência é da criança mais nova da família.
Salientamos que, com crianças em sua primeira infância ou com quadro de autismo, psicose infantil ou seus correlatos, o trabalho requer, por um período significativo, a presença dos pais visto que, há uma unidade que ainda não pode se independer.
Podem ocorrer situações em que ao final do trabalho de AIPCPF, não haja indicação para análise individual. Os pais puderam assumir novamente, de maneira eficiente, a função materna e paterna, dados os recursos de integração da experiência emocional encontrados pelo grupo.
Considerações finais
Sendo a Ciência Psicanalítica correlata à vida, ela permite ampliações e transformações de suas teorias e técnicas, a fim de expandir a compreensão tanto da subjetividade humana como da contemporaneidade, em suas interfaces, sem que assim se altere o seu método.
Dentre essas evoluções e amparados pelas contribuições teóricas e técnicas de D. W. Winnicott, acreditamos que a IPCPF, possibilita a criação de um espaço em que seja possí-vel ao grupo familiar vivenciar e compreender, protegido pelo setting analítico, situações conflituosas e a partir delas, ser capaz de desvelar sentidos e significados para a integração das experiências emocionais.
E é exatamente por se constituir em um encontro afetivo/transferencial entre o analista e o grupo familiar, que esta modalidade clínica exige uma formação e condição específica do analista, por colocá-lo em contato direto com angústias primitivas individuais e coletivas, demandando assim, a criação de um ambiente facilitador lúdico e criativo, que favoreça uma sustentabilidade emocional.
Finalizamos nossas reflexões com uma recomendação cuidadosa de Winnicott sobre a formação analítica para aqueles que pretendem levar a cabo o trabalho de Consultas Terapêuticas:
(...) sou de opinião de que, a fim de prepararse para efetuar este trabalho, o terapeuta deve tornar-se inteiramente familiarizado com a técnica psicanalítica clássica e levar até o "amargo" fim um certo número de análises conduzidas com base em sessões diárias, continuadas através de anos. Só desta maneira é que o analista aprende o que tem que ser aprendido dos pacientes e só desta maneira é que ele domina a técnica de reter interpretações que têm validade, sem importância imediata ou urgente (Winnicott, 1975/ 1994, p. 244).
REFERÊNCIAS
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Recebido em março/2011.
Aceito em agosto/2011.