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Estilos da Clinica

 ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.17 no.2 São Paulo dez. 2012

 

ARTIGO

 

O normal e o patológico na relação mãe-bebê: um estudo a partir de manuais de puericultura publicados no Brasil (1919-2009)

 

The normal and the pathological in the mother-baby relationship: a study based on baby books published in Brazil (1919-2009)

 

Lo normal y lo patológico en la relación mamá-bebé: un estudio a partir de manuales de puericultura publicados en Brasil (1919-2009)

 

 

Ana Laura Godinho Lima

Professora no Programa de Mestrado em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), São Paulo, SP, Brasil. alglima@usp.br Av. Arlindo Bettio, 1000 03828-000 - São Paulo - S.P - Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo pretende refletir sobre os critérios de normalidade que se aplicam à relação mãe-bebê. As questões que orientam a análise são as seguintes: como é uma relação mãe-bebê considerada normal? Por outro lado, o que é considerado patológico nessa modalidade de relação? Por meio do exame de manuais de puericultura publicados desde as primeiras décadas do século XX, busca-se verificar mudanças e permanências nas maneiras especializadas de avaliar as relações entre as mães e seus bebês como adequadas ou não. A análise fundamenta-se em textos de Canguilhem e Foucault sobre o conceito de normalização.

Descritores: relação mãe-bebê; normalização da infância e da maternidade; manuais de puericultura; saberes especializados sobre os bebês.


ABSTRACT

This article intends to discuss the criteria of normality that apply to the mother-baby relationship. The questions which the analysis seeks to answer are the following: How is a mother-baby relationship considered to be normal? On the other hand, what is considered to be pathological in this relationship? The analysis is based on baby books published since the first decades of the XX century and intends to verify changes and permanencies in the specialized ways of evaluating the relations between the mothers and their babies. The analysis is based in texts from Canguilhem and Foucault on the concept of normalization.

Index terms: mother-baby relationship; normalization of childhood and maternity; baby books; specialized knowledge about babies.


RESUMEN

Este artículo pretende reflexionar sobre los criterios de normalidad que se aplican a la relación mamá-bebé. Las cuestiones que orientan el análisis son las siguientes: ¿cómo es la relación mamá-bebé considerada normal? Por otro lado, ¿qué se considera patológico en esa modalidad de relación? Mediante el examen de manuales de puericultura publicados desde las primeras décadas del siglo XX, se busca verificar cambios y permanencias en las maneras especializadas de evaluar las relaciones entre las madres y sus bebés como adecuadas o no. El análisis se fundamenta en los trabajos de Canguillem y Foucault sobre el concepto de normalización.

Palabras clave: relación mamá-bebé; normalización de la infancia y de la maternidad; manuales de puericultura, saberes especializados sobre los bebés.


 

 

Introdução

A presença amorosa e tranquilizadora da mãe, seu contato com ela desde o primeiro momento, o colo, o embalo, o carinho, o sorriso, a voz suave, as canções em sussurros, a maneira acolhedora de segurá-lo e o socorro aos seus problemas ensinarão que o mal-estar e a frustração têm um limite, que depois deles virá a gratificação (alimentos gostosos, um banho agradável, um ambiente alegre e um brinquedo ou objeto amado...) e o bebê desenvolverá normalmente várias funções mentais e psíquicas indispensáveis para o seu futuro. (De Lamare, 2008, p. 35)

O texto acima fala sobre a importância da relação mãe-bebê para o desenvolvimento normal da criança. Foi retirado da 42ª. edição do livro A vida do bebê, o manual de puericultura brasileiro mais bem sucedido de todos os tempos, tendo atingido já a marca de seis milhões de exemplares vendidos. Publicado pela primeira vez em 1941, foi redigido pelo eminente doutor Rinaldo de Lamare, professor da cadeira de Pediatria na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que atuou ainda como presidente da Academia Nacional de Medicina e da Sociedade Brasileira de Pediatria (De Lamare, 2008). A vida do bebê continua sendo a obra mais conhecida do gênero, embora haja atualmente muitos outros livros disponíveis aos pais brasileiros em busca de orientações sobre como criar seus filhos.

Há desde os compêndios que seguem as características tradicionais do gênero até vários outros que apresentam forma e conteúdos inovadores. Dentre esses, há aqueles que foram escritos não por pediatras, mas por mães ou mesmo pais que buscam compartilhar com os leitores suas experiências no campo da maternidade ou da paternidade; outros que se destinam a difundir os princípios da medicina alternativa e mesmo manuais que têm como objetivo preparar espiritualmente os pais para a chegada de um novo bebê1. Cada um desses livros apresenta seus próprios parâmetros de normalidade para a avaliação das maneiras como as mães se relacionam com seus bebês, assim como oferecem uma série de sugestões sobre como as mães podem melhorar ou corrigir sua atuação em relação aos bebês, com vistas a solucionar problemas, favorecer o desenvolvimento da criança ou apenas aproveitar melhor a convivência com o filho pequeno.

Entre tantas novidades, contudo, os guias convencionais, redigidos por pediatras reconhecidos e dedicados principalmente aos temas da saúde e do desenvolvimento infantil, mantêm-se como referências de grande credibilidade entre os leitores. Este artigo busca examinar nesses materiais os critérios de normalidade e as orientações dos pediatras que dizem respeito à relação mãe-bebê. As questões que orientam a análise são as seguintes: Como é uma relação mãe-bebê considerada normal? Por outro lado, o que é considerado patológico nessa modalidade de relação? Como é uma mãe normal? O que caracteriza uma mãe anormal? E ainda: Como se comporta um bebê normal? E um bebê anormal? Por meio do exame de manuais de puericultura publicados desde as primeiras décadas do século XX até os dias de hoje, busca-se verificar mudanças e permanências nas maneiras especializadas de avaliar as relações entre as mães e os seus bebês e nos modos de orientar a conduta materna, com vistas a favorecer o desenvolvimento normal da criança. A análise fundamenta-se em textos de Canguilhem e Foucault sobre o conceito de normal e de normalização.

Para a escrita deste artigo foram considerados doze manuais de puericultura escritos por pediatras brasileiros entre 1919 e 2008. Tendo em vista as questões propostas, priorizou-se o exame dos capítulos que descrevem as características do recém-nascido normal, assim como aqueles dedicados à descrição do desenvolvimento infantil e aos problemas da criança.

A seguir apresentam-se considerações sobre o surgimento dos manuais de puericultura, como parte de um conjunto de ações empreendidas pela medicina social desde o século XVIII na Europa e nos séculos XIX e XX no Brasil. Descrevem-se ainda algumas transformações nos modos de produção e nos objetivos propostos para a publicação dos compêndios brasileiros nas primeiras décadas do século XX e nos dias de hoje. Depois disso, à luz de textos de Foucault (1996/2005) e Canguilhem (2005) sobre o conceito de "normalização", efetua-se a análise do conteúdo dos manuais, tendo em vista ampliar a compreensão das questões formuladas na introdução do texto sobre a normalização da relação mãe-bebê.

 

Os manuais de puericultura e a normalização da infância e da família

A família não deve ser mais apenas uma teia de relações que se inscreve em um estatuto social, em um sistema de parentesco, em um mecanismo de transmissão de bens. Deve-se tornar um meio físico denso, saturado, permanente, contínuo que evolua, mantenha e favoreça o corpo da criança. Adquire, então, uma figura material, organiza-se como o meio mais próximo da criança; tende a se tornar, para ela, um espaço imediato de sobrevivência e de evolução. (Foucault, 1996, p. 199)

Segundo Foucault, as publicações dedicadas a transmitir aos pais ensinamentos sobre como cuidar adequadamente dos bebês proliferaram na França a partir da segunda metade do século XVIII, quando a política de saúde elegeu como prioridade o investimento na infância, por meio da medicalização da família. O que se tinha em vista era atacar o problema da mortalidade infantil e garantir que os indivíduos chegassem vivos e produtivos à idade adulta. Tratava-se, portanto, de promover a melhoria da qualidade da população, recorrendo-se, para isso, à higienização das famílias.

Em Ordem médica e norma familiar, a partir da análise de teses de medicina defendidas no Brasil no século XIX, Jurandir Freire Costa observou o mesmo investimento médico na normalização da família. O autor encontrou diversos trabalhos dedicados à defesa do aleitamento materno, além de uma tese em que se atribuía o problema da mortalidade infantil à ignorância das mães em matéria de educação física, moral e intelectual (Costa, 2004, p. 164). Debruçando-se sobre as mesmas fontes, José Gonçalves Gondra (2004) investigou o processo de institucionalização da medicina no Brasil no decorrer da segunda metade do século XIX e observou que a educação higiênica era considerada pelos médicos como um recurso capaz de superar a maioria dos problemas sociais e urbanos enfrentados no país. Pretendendo difundir os princípios da higiene infantil, os médicos ministravam cursos de higiene nas escolas normais; proferiam palestras pelo rádio; escreviam artigos para jornais, publicavam colunas sobre higiene em revistas femininas e dedicavam-se à escrita de manuais de puericultura. De acordo com Wladimir Piza, autor do Livro das mãezinhas,

se os que vão receber este livrinho bem meditarem nos conselhos que veicula, temos a certeza, as cifras de mortalidade de crianças, entre nós, cairão rapidamente e assim, dentro em breve, teremos afastado dos nossos olhos esse fantasma terrível, que penetra nos lares paulistas e rouba do regaço de mães amantíssimas, aqueles que seriam os continuadores das nossas tradições e os propugnadores do nosso progresso. (Piza, 1940, p. 6)

Diversos pesquisadores têm se voltado para o exame da bibliografia especializada dedicada aos pais sobre o cuidado e a educação dos filhos2. Como tem sido destacado em parte desses trabalhos, o esforço empreendido pelos primeiros pediatras que se dedicaram a divulgar os princípios da higiene infantil na forma de manuais parece ter gerado uma demanda por cada vez mais orientações.

Atualmente, além dos pediatras, diversos outros especialistas têm contribuído com recomendações formuladas em seu campo específico de atuação. Obstetras, psiquiatras, psicólogos, neurologistas, nutricionistas e outros profissionais têm redigido guias para pais ou vêm oferecendo sua contribuição em compêndios elaborados por equipes multidisciplinares, como é o caso de A saúde dos nossos filhos (Waksman et al, 2005), organizado pelo departamento de pediatria do Hospital Albert Einstein. Esse manual traz orientações sobre o desenvolvimento da criança e sobre doenças, emergências e acidentes. Há uma seção em que se procura responder a dúvidas frequentes, como as seguintes: "meu filho é desatento"; "meu filho está gordo"; "meu filho não para de chorar". Participaram na elaboração desse compêndio 91 profissionais, a maioria dos quais médicos de diversas especialidades, mas também enfermeiras, psicólogas, psicanalistas, nutricionistas, pedagogas e inclusive uma "musicoterapeuta" e uma "brinquedista" (Waksman, Schvartsman & Troster, 2005, p. 17).

A ampliação das especialidades profissionais que se ocupam do desenvolvimento infantil, assim como a sofisticação crescente dos procedimentos de pesquisa e dos recursos tecnológicos empregados na área da saúde favoreceu uma expansão inédita dos conhecimentos nessa área, bem como a percepção de que os primeiros anos de vida são decisivos para o desenvolvimento ulterior do ser humano. Sendo assim, a tarefa de cuidar das crianças parece cada vez mais exigente para as famílias e os primeiros educadores, o que tende a reforçar a sensação de que é necessário recorrer a conselhos especializados de diversas áreas. Os próprios manuais o afirmam:

Na época atual, apenas o instinto e as características imanentes são insuficientes para uma atenção adequada, pois as pessoas, a família, a sociedade e o ambiente estão cada vez mais difíceis e complexos. É imperiosa a necessidade de aprender e, mais do que isto, aprender bem como se cuida adequadamente do desenvolvimento de uma pessoa. (Waksman et al., 2005, p. 11)

Os manuais mais recentes examinados neste artigo costumam apresentar a intenção de esclarecer os pais sobre os princípios básicos da criação dos filhos com o objetivo de evitar dificuldades previsíveis e sofrimentos desnecessários. Esperam contribuir para tornar a experiência vivida pelos pais e filhos durante a primeira infância tão gratificante e enriquecedora quanto possível. Em seu Manual do bebê, o doutor Ruy Pupo Filho (2002) afirma:

Ao longo desses anos de prática, pude perceber que a informação adequada fornecida aos pais na hora certa pode evitar muitas dificuldades. Ou pelo menos atenuá-las bastante. De tal forma que a chegada do bebê possa ser realmente festejada, curtida e vivenciada como um momento especial e único na vida daquelas pessoas. Sem nenhum tipo de sofrimento desnecessário. (pp. 3-4)

De modo que se pode estabelecer aqui uma primeira distinção importante entre os manuais mais antigos e os recentes. No início do século passado, ao difundir os princípios da higiene infantil, os pediatras declaravam que sua intenção era contribuir para solucionar um grave problema de saúde pública, as altas taxas de mortalidade das crianças nos primeiros anos. Desejavam ainda promover o aprimoramento da qualidade da população como um todo, tendo em vista o progresso da nação. A relação mãe-bebê patológica era, portanto, aquela que punha em risco a saúde da criança e, assim, o futuro da nação. Essa intenção não aparece anunciada da mesma maneira nos compêndios atuais. Nos dias de hoje, a principal motivação dos pediatras para elaborar um manual de puericultura parece ser a de contribuir para a felicidade e a realização de cada mãe, cada filho, cada família. De modo que a patologia associa-se principalmente à insatisfação, ao desprazer da mãe na relação com o bebê e aos sintomas de sofrimento da criança, ainda que, do ponto de vista orgânico, ela esteja passando bem. Isso não quer dizer que o tema da felicidade estivesse ausente dos manuais mais antigos, ou que o tema da saúde pública seja considerado de pouca importância nos guias atuais. A diferença é que, enquanto nas décadas iniciais do século XX, a felicidade do bebê costumava ser apresentada como uma decorrência natural de sua boa saúde, atualmente o raciocínio parece ser o inverso: entende-se que um bebê que tiver a sorte de ter uma mãe que se sente feliz em cuidar dele será muito provavelmente saudável. É assim que muitos dos problemas de saúde frequentes na primeira infância são atualmente atribuídos a problemas emocionais da mãe, que se refletem no filho. Em Manual do bebê (2002), por exemplo, o autor relaciona o problema da cólica dos recém-nascidos à ansiedade dos pais (Pupo Filho, 2002, p. 13).

Por sua vez, o guia da Sociedade Brasileira de Pediatria, intitulado Filhos: da gravidez aos dois anos de idade (Lopez & Campos Jr., 2009) afirma que o estado emocional da mãe é determinante para o sucesso da amamentação e para o desenvolvimento do lactente. Atualmente, portanto, a saúde e o bom desenvolvimento do bebê são muitas vezes apresentados como decorrência de um ambiente familiar feliz, enquanto nos manuais publicados nas décadas de 1940 e 1950 ocorria o inverso: era comum afirmar-se que a felicidade dos bebês era conseqüência natural de cuidados higiênicos adequados. "A sisudez não é peculiar à criancinha sadia; ao contrário: sorri por qualquer pretexto, à menor excitação ou à vista de todo objeto luminoso ou fortemente colorido" (Rocha, 1951, p. 70). Naquele período, procurava-se convencer as mães de que a receita para a felicidade de seus rebentos era a estrita observância dos princípios da higiene infantil, em que o asseio e a disciplina eram aspectos fundamentais e complementares. Hoje em dia, embora ainda se valorizem as condições higiênicas do ambiente onde se desenvolve a criança, é comum afirmar-se que o elemento mais importante para a saúde do bebê é uma mãe carinhosa e dedicada, aquela a que Winnicott se referia como sendo a boa mãe comum. A influência do pediatra psicanalista no discurso especializado atual é evidente, muitas vezes explícita, como no caso de Filhos: da gravidez aos 2 anos de idade, em que se sugere aos pais de "crianças especiais" a leitura de quatro textos desse autor. As referências à obra de Winnicott aparecem ainda no capítulo "Vínculo pais-filho", onde se afirma: "A mãe que se adapta perfeitamente às necessidades do recém-nascido é chamada de 'mãe suficientemente boa'" (Lopez & Campos Jr., 2009, p. 51).

Os pediatras das primeiras décadas do século XX desejavam que as mães se tornassem capazes de controlar o excesso de cuidados e atenções dispensadas aos seus filhos e aprendessem a atuar como verdadeiras enfermeiras, executando suas tarefas de modo eficiente e racional, orientadas pelos preceitos da higiene infantil. Atualmente, pelo contrário, boa parte dos doutores lhes solicita que exercitem a sua sensibilidade materna no trato com seus bebês; que se tranquilizem; que se tornem mais confiantes em si mesmas e menos dependentes dos saberes médicos. No manual elaborado pela Sociedade Brasileira de Pediatria lê-se: "É interessante lembrar que ninguém, nem mesmo o médico, nem o marido ou sua própria mãe, pode saber mais do que você, mãe, quais as melhores condições para amamentar o bebê ou para dar comida à criança maior" (Lopez & Campos Jr., 2009, p. 51). Mesmo assim, cabe observar que nunca houve tanta oferta de orientação especializada aos pais sobre como proceder em cada situação.

 

As mães e os seus bebês entre a normalidade e a patologia no discurso pediátrico

Em sua obra O normal e o patológico, Canguilhem (1995) adverte para o fato de que, quando se trata de seres humanos, a normalidade do organismo não se define exclusivamente por suas características naturais, mas pelo modo de vida no qual o indivíduo está inserido: "as normas fisiológicas definem não tanto uma natureza humana, mas, sobretudo, hábitos humanos relacionados com os gêneros de vida, os níveis de vida e os ritmos de vida" (pp. 125-126). Essa é uma ideia importante porque nem todo modo de vida foi ou é considerado normal pelos pediatras. Pode-se identificar nos manuais publicados ao longo de todo período a valorização de um estilo de vida familiar, que se apresenta como normativo, servindo como referência para a avaliação das condições vividas em cada caso. Esse estilo de vida inclui elementos tais como: renda adequada; planejamento familiar; disponibilidade materna para amamentar e cuidar pessoalmente do bebê nos primeiros meses ou anos de vida; rotina regular; hábitos saudáveis de alimentação e higiene; disposição para renunciar a hábitos pouco saudáveis, tais como o consumo de álcool e cigarros; instrução dos pais em matéria de puericultura; atmosfera de tranqüilidade no lar, etc. Cada desvio em relação a essa norma era/é considerado como uma falta a ser preenchida; um erro a ser corrigido ou um problema a ser superado.

A seguir, analisam-se especificamente as descrições e prescrições relativas à mãe e ao bebê, buscando-se identificar como foram caracterizadas as mães normais e anormais, bem como as crianças normais e anormais, segundo o discurso da pediatria desde a primeira metade do século XX.

Segundo Canguilhem,

A saúde perfeita não passa de um conceito normativo, de um tipo ideal. Raciocinando com todo o rigor, uma norma não existe, apenas desempenha seu papel que é desvalorizar a existência para permitir a correção dessa mesma existência. Dizer que a saúde perfeita não existe é apenas dizer que o conceito de saúde não é o de uma existência, mas sim o de uma norma cuja função e cujo valor é relacionar esta norma com a existência a fim de provocar a modificação desta. (1995, p. 54)

Assim como a saúde perfeita não encontra existência concreta, mas corresponde a um conceito normativo que visa transformar a vida das pessoas, assim também a mãe normal e o bebê normal consistem em tipos normativos, idealizados pelos pediatras e outros especialistas para promover transformações na relação mãe-bebê, tendo em vista atingir seus objetivos. Em seus manuais, os autores frequentemente apresentavam noções de eugenia e cuidados médicos pré-natais, pois entendiam que a instrução dos pais nessas matérias permitiria evitar o nascimento de crianças anormais. O pediatra Francisco Laport (1941), em seu livro A.B.C. das mães, afirmava que as providências para prevenir a anormalidade nas crianças deveriam ser iniciadas bem antes do nascimento. No capítulo 1, intitulado "Conselho aos pais" o doutor advertia: "Devemos, de inicio, frisar o seguinte: só muito antes da criança nascer, podem os pais cooperar com sucesso para o nascimento de um bebê sadio" (p. 7). Laport aconselhava os adultos que fossem portadores de vícios ou taras orgânicas, tais como a sífilis ou a tuberculose, que renunciassem ao casamento e à procriação para evitar o nascimento de crianças débeis congênitas. Em diversas passagens dos guias maternos publicados na primeira metade do século XX está presente a ideia de que a família normal era aquela capaz de responsabilizar-se por si mesma, pelo cuidado e a educação de seus filhos. Depender da caridade ou do poder público configurava-se, assim, como patologia e acreditavase que eram os pais portadores de taras hereditárias aqueles mais propensos a produzir filhos que se tornariam um peso para a sociedade.

Em manuais recentes, como A saúde dos nossos filhos (Waksman et al, 2005), esse tema também está presente, embora não mais por meio do apelo para que os pais portadores de doenças ou vícios desistam da união ou da concepção. Também já não se pressupõe que os pais do bebê sejam casados. Mesmo assim, espera-se que adultos esclarecidos estejam dispostos a modificar sua conduta com vistas a favorecer a saúde do futuro filho. Espera-se ainda que se submetam a todo tipo de exames e controles prénatais que têm como objetivo propiciar maior segurança ao desenvolvimento intra-uterino da criança.

Para além dos defeitos de origem biológica, em seus compêndios de puericultura os pediatras discorrem também sobre os entraves ao desenvolvimento infantil decorrentes de problemas de personalidade da mãe. Importa, portanto, investigar quais eram, segundo a compreensão dos doutores, esses desvios.

De um modo geral, pode-se afirmar que, segundo o discurso especializado veiculado na primeira metade do século XX, problemática era a mãe muito emocional. Denominada pelos pediatras como "nervosa", ela era excessivamente preocupada com o filho, o que a levava a não respeitar o horário das mamadas, a agasalhar demais a criança e a estimulá-la ou mimá-la demais. Sendo pouco racional, era suscetível às superstições e faltava-lhe a tranqüilidade e a objetividade necessárias ao adequado atendimento das necessidades da criança, sobretudo quando essa era acometida por uma doença infantil, o que era capaz de levar a mãe nervosa ao desespero e à impotência. De acordo com o Livro das mães (Departamento Nacional da Criança, 1962), o problema era mais comum nas mães de primeiro filho, devido à sua inexperiência.

Nos dias de hoje, os manuais demonstram a preocupação dos especialistas com a mãe "deprimida", ou seja, aquela que se sente incapaz de atender a todas as necessidades do recém-nascido ou não consegue se sentir satisfeita e realizada ao cuidar de seu filho. Os pediatras admitem que muitas mães sofrem com esse problema e costumam relacioná-lo às súbitas alterações hormonais pelas quais passa a mulher no puerpério. Em todo caso, entendem que essa tristeza deve ceder normalmente em até duas semanas, caso contrário configura-se como "depressão pós-parto", condição que, segundo os especialistas, exige tratamento, pois a vulnerabilidade psicológica da mãe pode por em risco a saúde e o desenvolvimento do bebê. A esse respeito, é curioso notar que nos manuais antigos não se fazia referência à depressão pós-parto, o que faz pensar que o problema possa estar relacionado a mudanças culturais e não a fatores biológicos.

Nas primeiras décadas do século XX a mãe anormal era aquela cuja ligação emocional com o bebê era considerada excessiva, na medida em que seu comportamento protetor impedia que se estabelecesse o regime disciplinar considerado desejável pelos médicos. Para esses autores, boa mãe era a mulher mais prática e racional, disposta a seguir à risca o regulamento higiênico. Atualmente, os especialistas, influenciados pelo discurso psicanalítico, tendem a considerar que as mães mais afetivas estão em melhores condições de proporcionar aos seus bebês um bom começo, enquanto aquelas mais afeitas ao mundo da profissão, da eficiência e da racionalidade podem ser colocadas sob suspeita. Imagina-se que possam ter dificuldades em se devotar ao bebê e em aceitar a vida de renúncias que supostamente a maternidade implica. Esse risco é considerado no livro A saúde de nossos filhos, que dedica um capítulo ao tema da depressão pós-parto (Waksman et al., 2005, p. 84).

Outra categoria de mães que os manuais de puericultura apresentam como desviante da norma é formada por aquelas que, por uma ou outra razão, não amamentam seus bebês. Os autores dos manuais das décadas iniciais do século XX eram especialmente duros com aquelas que recusavam o peito aos seus filhos por vaidade ou por não desejarem renunciar à vida social. Acusavam-nas de "desnaturadas" e afirmavam que essas sequer mereciam o título de mãe. Afirmavam ainda que a ligação entre mãe e filho se tornava necessariamente mais frouxa quando a mãe se recusava a amamentar.

É no íntimo contacto da amamentação que se fortalece o amor materno e se gera o amor filial. A mãe que abandona a outrem o privilégio de amamentar o filho, ou, por comodidade sua, lhe dá alimentos artificiais, cava entre si e a criança um grande abismo, depois difícil de transpor. (Almeida Júnior & Mursa, 1938, p. 61)

Nos manuais recentes a mãe que não amamenta também é apresentada como desviante. Dentre aqueles examinados neste artigo, o mais enfático a esse respeito é o Manual do bebê, do Dr. Ruy Pupo Filho. Além de advertir as mães sobre os perigos que rondam a criança submetida a outras formas de alimentação, o autor afirma que as crianças que mamam no peito são superiores àquelas que não o fazem. Diz ele: "E as pesquisas comprovam: crianças amamentadas são mais inteligentes!" E ainda: "Um bebê amamentado no seio será, para o resto da vida, uma pessoa mais saudável, feliz e segura" (Pupo Filho, 2002, p. 105).

Em diversos dos manuais examinados, o bebê normal é descrito em suas características físicas, seu estado de espírito e o seu de-senvolvimento (peso, comprimento, habilidades conquistadas semana a semana, mês a mês). A normalidade era verificada por meio da balança, da fita métrica, do termômetro e do volume de leite ou de alimentos consumidos a cada refeição. Era comum apresentarem-se tabelas indicando os valores normais para cada faixa etária, muitas vezes divididos em duas colunas, uma para o sexo masculino e outra para o feminino. De todo modo, admitia-se a existência de consideráveis variações individuais. Almeida Júnior e Mario Mursa afirmavam que era preciso levá-las em conta, sobretudo na avaliação do desenvolvimento intelectual: "Dadas as extensas variações individuais, mais acentuadas ainda que as do físico, dependentes da hereditariedade e da ação do meio familiar, não se pode estabelecer um esquema uniforme para o desenvolvimento intelectual da criança" (1938, p. 154).

A descrição do desenvolvimento normal do bebê por meio da indicação da idade média para a aquisição de cada habilidade é um aspecto importante a ser considerado nessa análise sobre os critérios de normalidade aplicados à avaliação do bebê. A maior parte dos manuais consultados fornece aos pais indicações sobre o que as crianças devem ser capazes de fazer em cada faixa etária. Tais parâmetros permitem avaliar o desenvolvimento do bebê a partir de uma perspectiva temporal, de modo que os indivíduos que se distanciam da norma são classificados como atrasados ou adiantados.

Pode-se dizer que em todos os manuais de puericultura consultados nesta pesquisa, as mães são encorajadas a atuarem como "fiscais do desenvolvimento infantil", expressão que foi apropriadamente empregada por Cláudia Amaral dos Santos (2009) em seu trabalho de investigação sobre diferentes edições de A vida do bebê. De fato, o compêndio do Dr. De Lamare parece ter sido um dos mais bem sucedidos nessa empresa, uma vez que 24 dos 32 capítulos (na edição de 2008) têm como objetivo principal descrever as características do bebê que atravessa uma determinada fase do desenvolvimento. Um diferencial desse livro é trazer na primeira página de cada capítulo uma fotografia de um bebê na idade indicada, seguida de uma legenda que chama atenção para um aspecto importante daquela etapa. Na página que abre o capítulo referente aos três meses, por exemplo, observa-se a fotografia de um bebê de bruços, com a cabeça erguida. A legenda é a seguinte: "Sustentar a cabeça aos três meses é a melhor prova de que o desenvolvimento psicomotor do bebê está perfeito" (De Lamare, 2008, p. 218). Ainda na mesma página, depois da fotografia apresenta-se uma tabela intitulada "O desenvolvimento do bebê" que traz as medidas esperadas para o terceiro mês em relação ao peso, estatura, perímetro cefálico, perímetro torácico e ganho de peso mensal, com valores diferentes para meninos e meninas. Esse guia apresenta ainda uma seqüência de provas para a avaliação do desenvolvimento da inteligência da criança, mês a mês. A grande legibilidade dessas informações, que permitem fazer uma ampla avaliação do desenvolvimento de um bebê consultando-se poucas páginas do livro, contribui para explicar o grande sucesso de A vida do bebê, entre tantos manuais do gênero.

O recém-nascido considerado anormal era aquele portador de deformidades hereditárias ou congênitas, conforme a designação empregada nas primeiras décadas do século XX. Era também o bebê prematuro ou débil congênito, aquele que, apesar de nascido no tempo certo, apresentava-se insuficientemente desenvolvido para adaptar-se ao meio extra-uterino. Nos compêndios atuais, evita-se a designação "anormal" e emprega-se a expressão bebê com "deficiência", bebê "especial" ou "portador de necessidades especiais", mais de acordo com a perspectiva atual, que defende a inclusão dos indivíduos portadores de deficiência na sociedade.

Para além das deficiências físicas e mentais, trata-se de problemas de comportamento apresentados pelas crianças, cujas causas são associadas tanto a disposições hereditárias quanto a erros educativos cometidos pelos pais. Nas décadas iniciais do século XX diversos problemas de comportamento eram explicados como decorrentes do "temperamento nervoso" da criança. Em A.B.C das mães, do Dr. Francisco Laport, há um capítulo intitulado "Hábitos nervosos", que trata dos seguintes problemas: enurese, convulsões, "batimentos de cabeça", masturbação, vômitos, insônia, "chupar o polegar", cacoetes, "roer as unhas" e "piscar os olhos". É curioso observar que, não importava qual desses distúrbios a criança apresentasse, atribuía-se sua origem ao nervosismo, de modo que a providência a tomar era quase sempre a mesma: em primeiro lugar consultar o médico, para averiguar a existência de causa orgânica. Eliminada essa hipótese, os pais deveriam tratar de proporcionar à criança vida ao ar livre, exercícios adequados à idade, alimentação saudável e um ambiente tranqüilo, livre de excitações. Era o que recomendava, por exemplo, o Dr. Fernandes Figueira em suas Consultas práticas de higiene infantil:

Numa idade em que a compreensão se desenha, ainda cumpre afastar das causas de esgotamento a criança irritável. Afastemo-la das visitas e dos passeios nos grandes centros. Brinquedos sem contrariedades, recreações no campo e na floresta, algum exercício, e pouco trabalho intelectual. Como isso vale mais que dar calmantes e existência irregular e ruidosa! (Figueira, 1919, p. 286)

Pode-se compreender a descrição do temperamento "nervoso", assim como as recomendações para o seu tratamento como uma maneira que os pediatras da primeira metade do século passado encontraram de criticar os aspectos que consideravam anti-higiênicos no modo de vida das famílias burguesas. A proteção e o mimo com que se costumava cercar as crianças de boa condição social eram considerados excessivos e prejudiciais à formação do futuro cidadão da pátria ou da futura mãe de família. Às vezes, os problemas eram atribuídos à vida em apartamento, que se disseminava em meio urbano. Vários médicos consideravam o apartamento um tipo de habitação nefasto para a saúde das crianças, pois as mantinha contidas em um espaço exíguo e artificial. Na visão desses especialistas, a todas as crianças deveria ser assegurada a possibilidade de viver ao ar livre e de beneficiar-se de passeios e banhos de sol diários.

De maneira análoga, as publicações mais recentes também expressam as restrições dos pediatras em relação a determinados hábitos das famílias atuais. Em A saúde de nossos filhos, alertam-se os leitores para o problema do consumismo e para os riscos associados à influência da televisão e da internet na formação das crianças. Sugere-se que os pais procurem se comportar como bons modelos, dando preferência a atividades como a leitura e os esportes, em vez de passar longos períodos em frente à TV (Waksman et al., 2005, pp. 256-257). Filhos: da gravidez aos 2 anos de idade, enfatiza a importância de se criar para o lactente um ambiente seguro e afetivo, por meio da observância da rotina e da auto-vigilância emocional dos pais. Segundo o compêndio, é importante que os pais estejam se sentindo bem ao se relacionarem com os filhos pequenos, pois as crianças são sensíveis às alterações de humor de seus cuidadores. Recomenda-se: "Se você estiver nervoso(a), afaste-se um pouco do bebê, pois ele é capaz de sentir o seu nervosismo e pode começar a chorar sem parar." (Lopez & Campos Jr., 2009, p. 280). Mais uma vez encontramos a ideia de que pais nervosos tendem a produzir bebês nervosos, dessa vez num guia recente.

 

Considerações finais

Os discursos da puericultura examinados neste artigo expressam a percepção dos pediatras sobre a relação mãe-bebê e sua importância para a vida em sociedade. Vivendo em condições econômicas e culturais privilegiadas, os médicos têm sua própria compreensão dos problemas vividos pelas famílias e vislumbram alternativas para superá-los. Os textos nos quais buscam comunicar-se com os pais nos revelam suas preocupações e suas esperanças em relação às condições vividas pelas crianças.

Nas primeiras décadas do século XX, os pediatras personificaram a defesa da ciência e da racionalidade e procuraram converter as mães em suas principais aliadas na missão de promover a higienização da sociedade. Dirigiam-se especialmente às mulheres de boa condição social, instruídas, que viviam em meio urbano e estavam empenhadas em ser e parecer modernas. O modelo de boa mãe era, então, aquela que colaborava com o médico, atuando como mãe-enfermeira. A mãe responsável empenhada em cuidar pessoalmente do seu lar e de sua família, atenta às recomendações científicas. Para esses médicos, anormal e problemática era a mãe excessivamente afetiva. Preocupada em satisfazer todas as vontades do filhinho, era incapaz de impor o mínimo de disciplina e o resultado era uma criança com os mais variados problemas de saúde e de comportamento.

Os autores dos guias mais recentes, ao contrário de seus colegas das gerações anteriores, valorizam a sensibilidade e a afetividade maternas na relação com o bebê e consideram-na não mais como um empecilho, mas como uma condição indispensável para a saúde física e psicológica da criança. Informados pela psicanálise e pela psicologia do desenvolvimento, os autores dos compêndios atuais encorajam as mães a conversarem com seus bebês, a tomarem-nos ao colo sempre que desejarem e a seguirem sua própria intuição. Atualmente, considera-se que o normal e desejável é que a mãe sinta-se realizada ao cuidar de seu bebê, mesmo que isso exija dela uma série de sacrifícios pessoais. Consideram-se patológicos os casos em que a mãe se mostra deprimida ou indiferente em relação ao seu bebê.

Uma categoria que atravessou o período considerado no discurso da puericultura é a do nervosismo, que aparece ora na mãe, ora no bebê ou em ambos simultaneamente. Por meio dessa categoria, os autores reconhecem que existe tensão na díade mãe-bebê. Há algo além do amor incondicional e da simbiose harmônica entre mãe e recém-nascido. Há o nervosismo, que se manifesta das mais variadas formas. No entanto, embora os autores reconheçam sua presença incômoda, não parecem dispostos a aceitá-lo como manifestação normal no difícil processo de adaptação entre dois indivíduos que começam a se conhecer. Classificam o nervosismo como patológico, como um problema a ser solucionado a partir de uma série de medidas profiláticas ou terapêuticas, às vezes medicamentosas.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Alguns exemplos desses manuais alternativos são: Veiga & Rodrigues (2003); Goebel & Glölkler (1993); Chopra, Simon & Abrams (2006).

2 Dentre os pesquisadores brasileiros que têm estudado essa bibliografia, pode-se citar: Santos (2009); Freire (2009, 2008); Martins (2008); Bock (2007); Volpe (2006).

 

 

Recebido em junho/2011.
Aceito em setembro/2011.