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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.3 São Paulo set./dez. 2018

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i3p574-589 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i3p574-589

ARTIGOS

 

Quem sou eu, quem é você? O lugar da infância na contemporaneidade

 

Who am i, who are you? The place of childchood in contemporaneity

 

¿Quién soy yo, quién eres tú? El lugar de la infancia en la contemporaneidad

 

 

Karla Cristina Rocha RibeiroI; Jorge Luís Ferreira AbrãoII

IDoutoranda em Psicologia Clínica pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), docente do curso de Psicologia da Universidade de Marília, Marília, SP, Brasil
IIDocente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Assis, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir o cenário atual da infância a partir da reconfiguração familiar em dois aspectos principais: a monoparentalidade feminina e a diminuição do papel exercido pelo pai. Trata-se de uma pesquisa teórica qualitativa, cuja finalidade é refletir as condições necessárias para que o processo de subjetivação infantil ocorra contemporaneamente.

Descritores: infância; monoparentalidade; pai.


ABSTRACT

The aim of this article is at discussing the current scenario of childhood from the reconfiguration of the family, in two main aspects: the female single parenting and the diminished role played by the father. This is a qualitative theoretical research, whose purpose is to reflect on the available place for the process of child subjectivation to occur contemporaneously.

Index terms: childhood; single parenting; psychoanalysis.


RESUMEN

Este artículo se propone discutir el escenario actual de la infancia a partir de la reconfiguración familiar en dos aspectos principales: la monoparentalidad femenina y la disminución del papel ejercido por el padre. Se trata de una investigación teórica cualitativa, cuya finalidad es reflexionar sobre las condiciones necesarias para que el proceso de subjetivación infantil ocurra contemporáneamente.

Palabras clave: infancia; monoparentalidad; padre.


 

 

Introdução

A infância é mais uma categoria social em transição na contemporaneidade. A noção de infância clássica inaugurada por Ariès (1975) afirma a existência de um mundo inocente e frágil relacionado às crianças, e segundo esta ideia, alguns autores postulam que a infância estaria desaparecendo. Entre eles, Postman (1999) é um dos mais famosos a defender a ideia de que a mudança nos meios de comunicação alterou profundamente a divisão entre o mundo infantil e o do adulto, apontando para o fim da infância. A tese de Postman (1999), ao se embasar no avanço dos meios de comunicação como forma de eliminar a fronteira entre o adulto e o infantil, faz pensar que a criança moderna e autônoma possui mecanismos que independem do adulto para se desenvolver cognitivamente. Essa mudança na relação traz também mudanças na estrutura familiar. Certamente que esse cenário não é o único responsável pelas transformações na família contemporânea. Muitos autores analisam que a família passou de uma estrutura fixa e nuclear, embasada em ideais religiosos e morais, para a atual, múltipla e em transformação.

Das diversas formas que a família se apresenta e dada a sua importância fundamental para o desenvolvimento infantil, interessa-nos refletir sobre uma relação especifica: a infância contemporânea e a família monoparental, cuja ausência paterna se faz marcante.

Zanetti e Gomes (2011) apontam que na gênese dessas transformações está o papel exercido pela ciência, que contrariou a autoridade da igreja e tomou seu lugar no centro da vida coletiva, de maneira que o social se tornou o protagonista da educação das crianças, antes de posse exclusiva dos pais. "Nossa sociedade assumiu a ciência no lugar da função paterna" (p. 496). Para as autoras, estamos diante, no plano sociocultural, de discursos inconsistentes sobre ser pais, de mudanças rápidas na noção familiar e de crianças que são tratadas como sujeitos de direitos e não de deveres, o que na fase adulta facilmente se torna característica de seres pautados no individualismo e não em aspirações de cunho coletivo, justamente o que presenciamos atualmente.

Para Roudinesco (2003),

A família contemporânea assemelha-se a uma rede assexuada, fraterna, sem hierarquia nem autoridade, na qual cada um se sente autônomo ou funcionalizado (p. 155).

Todas essas mudanças podem ser entendidas como efeitos de uma sociedade pouco compromissada com o próximo. Diante deste cenário de relações, nosso objetivo é discutir a infância contemporânea a partir de dois pontos principais: a monoparentalidade feminina e a reconfiguração da figura/função paterna. Isso porque a família é o primeiro grupo de indivíduos que oferece à criança as condições necessárias de, ao longo de seu desenvolvimento, ir acessando o social maior. A estrutura familiar é classicamente a responsável pelo surgimento da infância enquanto um conceito e também uma preocupação social. A família está em transformação, portanto, está também a infância. Não é nossa intenção alarmar o final de nenhuma dessas duas estruturas, mas refletir, já que, cada tempo histórico carrega em si uma tarefa a ser cumprida pelos indivíduos, o que cabe às crianças realizar nesse universo em mutação?

 

As transformações da infância

Segundo Ariès (1975), o conceito de infância não existia até aproximadamente o século XVII. Nas antigas sociedades tradicionais (século XII), a criança vivia misturada com adultos e não passava por etapas da vida como a juventude, já que ela imitava o adulto e uma vez que chegasse ao seu tamanho físico, tornava-se um deles. Não existia um sentimento de infância, ou seja, a consciência da particularidade infantil que distingue criança de adulto. O que acontecia era literalmente a passagem do colo à sociedade de adultos. Os registros antigos sobre infantes se baseavam em anjos retratados com graciosidade e pinturas de crianças nuas, fortemente inspiradas em ícones religiosos como o menino Jesus.

O contexto histórico do século XVII (reforma dos costumes religiosos e morais) transforma radicalmente a ideia socialmente aceita de infância. Até esse momento, existiam práticas familiares que associavam as crianças às brincadeiras sexuais dos adultos sem chocar o senso comum e que eram tidas como extremamente naturais. Os adultos usavam linguagem grosseira e as crianças podiam ouvir e ver situações escabrosas do mundo adulto que iam desde bebedeiras extremas até cenas sexuais. Essa era a mentalidade da época que se baseava em duas ideias principais: a primeira de que a criança impúbere (antes da puberdade) era alheia à sexualidade, o que fazia com que os gestos sexuais dos adultos fossem totalmente neutralizados e, segundo, não existia a noção de inocência infantil, logo, os assuntos sexuais adultos não poderiam macular uma inocência que não havia.

Assim, no bojo das transformações do século XVII estavam ideias advindas do final da Idade Média que, de cunho religioso, propagavam o ideal moral de que a masturbação infantil deveria ser suprimida a partir da oração e da implantação de um sentimento de culpa. Mudanças no campo da educação levaram ao estabelecimento de um novo comportamento em relação às crianças, de modo que o adulto deveria falar com elas utilizando-se de palavras castas, evitando que as crianças se tocassem e se beijassem, enfim, o adulto deveria ser encarregado de preservar a infância.

Donzelot (1986) alega que as primeiras literaturas sobre a conservação das crianças surgem no século XVIII, a partir da discussão de vários autores sobre os costumes educativos da época, como a prática de hospícios de menores abandonados, criação dos filhos por amas de leite e a educação "artificial" das crianças ricas. Todas essas práticas implicavam em abandono e altos índices de mortalidade. É desse período a crença de que os filhos de homens bons que tinham como nutrizes as amas de leite poderiam se tornar adultos degenerados. Dessa maneira então, a preocupação com a educação e a conservação das crianças tinha inclusive o objetivo de garantir adultos "de bem", não contraventores.

Conservar as crianças significará pôr fim aos malefícios da criadagem, promover novas condições de educação que, por um lado, possam fazer frente à nocividade de seus efeitos sobre as crianças que lhes são confiadas e, por outro lado, fazer com que todos os indivíduos que têm tendência a entregar seus filhos à solicitude do Estado ou à indústria mortífera das nutrizes voltem a educá-los. (Donzelot, 1986, p. 21)

A educação que passa a ser pensada a partir desse período, na visão do autor, estava organizada em torno de dois polos principais: a difusão da medicina doméstica (classes burguesas retirando os filhos dos cuidados de serviçais) e a economia social, baseada em filantropia, ou seja, no planejamento da vida dos pobres com a finalidade de diminuir os gastos sociais com sua reprodução, além de obter um número desejado de trabalhadores. Deste modo, a família nuclear torna-se a célula básica e fundamental para sustentar o edifício da recém-construída concepção de infância.

As principais transformações desse período foram: a ligação próxima e orgânica entre o médico e a família (surge a figura do médico de família), elaboração de livros médicos para as famílias burguesas sobre a criação, educação e medicação das crianças, o fechamento das famílias quanto às influências negativas do antigo meio educacional que era composto por serviçais e amas de leite, aliança do médico com a mãe enquanto uma figura reconhecida por ele por sua utilidade educativa. Tudo isso compôs o cenário que levou a predominância do saber médico no cuidado com a criança, para além dos conselhos populares das comadres e dos antigos tradicionalismos.

Ao majorar a autoridade civil da mãe, o médico lhe fornece um status social. É essa promoção da mulher como mãe, como educadora auxiliar médica, que servirá como ponto de apoio para as principais correntes feministas do século XIX. (Donzelot, 1986, pp. 25-26)

Donzelot (1986) analisa que, nesse cenário, duas verdades despontaram e passaram a coexistir. Para as famílias abastadas, os cuidados com a conservação das crianças vinham de livros e da aliança com a medicina, em uma tentativa tácita de retrair o controle da educação dos filhos a partir do contato com os serviçais. A aproximação da medicina atuou para que a mulher fosse empoderada em seu papel de mãe e que as crianças tivessem uma liberação para serem crianças; agora havia uma espécie de cordão sanitário que delimitava o campo do desenvolvimento infantil e, nessa liberação protegida, os pequenos cresciam como seres de direito.

Em contrapartida, nas famílias populares imperava o analfabetismo e a preocupação com a conservação das crianças passava pela economia do estado, que, com métodos higienistas, estabelecia vigilância direta às famílias pobres, travestida de proteção discreta.

O Estado, segundo Donzelot (1986), tratou de coibir a reprodução e baixar a taxa de natalidade a partir de práticas como entravar abandonos disfarçados em hospícios e para as nutrizes, controlar uniões livres (concubinato), impedir a vagabundagem e a mendicância. Na análise do autor, o que perturba a família é o imoral, mas o que perturba o Estado é o desperdício de força viva e o sustento dos ditos inúteis (não trabalhadores). Para conter os avanços populacionais das classes baixas, aumenta-se o controle médico sobre a criação de filhos, o que leva a surgir as primeiras sociedades protetoras da infância na França, com a finalidade de inspecionar crianças colocadas pelos pais em nutrizes, aperfeiçoar o sistema de educação, ampliar os métodos de higiene e vigiar as classes pobres em suas práticas de vida. Assim, para as famílias populares restou a liberdade vigiada e a seus infantes o lugar de seres de dever.

Postman (1999) afirma que a ideia da infância é uma das maiores invenções do século XVII e ele considera que pensá-la só se torna possível quando socialmente se passa a pensar na noção de indivíduo atrelada a de classe social. Para ele, a ideia da infância nasce com a classe média porque seria esta classe burguesa a primeira a manifestar interesse em sustentar tanto a infância quanto sua ideia. A tese do autor é de que a noção de infância nasce a partir da ideia de que cada indivíduo é importante em si e que a mente humana é mais importante que a noção de comunidade. Era necessário aprender a partir dos livros e, para isso, era preciso separar os adultos das crianças, já que a fase adulta e emancipada deveria ser conquistada a partir do domínio da leitura e não apenas da evolução biológica. Para adquirir conhecimento, a criança deveria ir à escola, e dessa maneira, estas foram reinventadas como locais em que a instrução era valorizada e que as crianças obteriam realização simbólica de um dia tornar-se adulto. Com isso, a criança passou a ser respeitada como uma criatura especial, separada e protegida do mundo adulto.

O modelo de infância toma forma e o de família também, devido à invenção e expansão da escolarização formal. A família seria a encarregada de uma série de funções educadoras e moralizantes. A criação do currículo seriado fez com que a criança precisasse atingir metas para ser considerada adulta. Precisaria então demonstrar capacidade de pensamento lógico, postergação, autocontrole. A família nuclear ainda figurava como a mantenedora e guardiã das capacidades intelectuais e emocionais da criança, uma coadjuvante em seu processo de tornar-se adulto.

As discussões sobre a infância contemporânea têm início a partir de mudanças conjecturais no plano econômico, político e social, cujo marco é o período da Segunda Guerra Mundial, quando, principalmente a partir da ida da maioria dos homens para o front de batalha, restou às mulheres o acúmulo de inúmeras funções e inclusive a necessidade de vender sua força de trabalho para sobreviver e assim criar seus filhos.

Segundo Abrão (2001), com a ida das mulheres para o mercado de trabalho e a multiplicação de seus papéis sociais, veio também os movimentos de emancipação feminina que levaram a mudanças permanentes na organização familiar até então dominante. Esses movimentos também acarretaram uma série de transformações, principalmente devido ao fato de que, a partir desse momento, a mulher não era mais a única a ter que oferecer cuidado para as crianças, passando esta função a ser dividida também com outras figuras da relação familiar e com instituições.

Além disso, a partir da segunda metade do século XX, o poder paterno se reconfigura num contexto de relações sociais/familiares mais igualitárias e não mais centradas na figura de um homem provedor. Entre as novas narrativas sobre a infância, está o reconhecimento desta como estruturante dos processos sociais na cadeia geracional. Segundo Castro (2002), "crianças e adultos são parceiros na construção do mundo em que vivemos" (p. 52). Além de que, a partir dos novos estudos sociais sobre a infância de Prout (2005), temos que:

As mudanças que se processam nas representações da infância acompanham as transformações que ocorrem no mundo globalizado, fazendo com que a criança seja reconhecida como mais ativa e mais participante e, simultaneamente como um indivíduo menos dócil e bem mais difícil de lidar. (p. 28)

Assim, a infância complementa o cenário de processos culturais e sociais maiores que reconfiguram aquilo que era primordial para seu desenvolvimento dito saudável, que é justamente a noção de família nuclear.

Reconhecer a infância como uma construção social e cultural historicamente localizável implica entender que ela é uma noção que corresponde a determinada forma de pensamento e, portanto, a determinados conhecimentos e saberes. (Díaz, 2010, p. 198)

Em suma, para os autores clássicos como Ariès e Postman, é necessário que exista uma constituição familiar e legal para que a criança passe a "existir" de forma singular no mundo e não seja apenas vista como um adulto em miniatura ou como um ser inocente e frágil. São as preocupações advindas da moral, da religião e da educação que embasam a família como estrutura até a contemporaneidade e fazem com que a infância seja alvo de preocupação das politicas públicas e dos discursos de especialistas. Então, diante das mudanças da configuração familiar vivenciadas na contemporaneidade, a infância está se reestruturando também e não necessariamente desaparecendo. A nosso ver ela é multifacetada, complexa e está em transição, justamente porque a questão familiar se encontra em reestruturação também.

 

A monoparentalidade feminina e a reconfiguração da figura paterna

Weissmann (2013) aponta que as famílias contemporâneas são estruturadas de novas formas, possuem arranjos familiares diferentes da família nuclear, modelo europeu constituído a partir de pai e mãe casados na igreja e somente depois, capazes de gerar e criar seus filhos. Mas isso não necessariamente nos permite pensar que são famílias desestruturadas. A autora pensa que "a família contemporânea é uma instituição democrática, horizontal, na qual o poder está descentralizado e repartido entre seus membros" (p. 77).

Para Moreira, Bedran e Carellos (2011), o início da mudança no contexto familiar brasileiro ocorre a partir da década de 1960 e tem como marcos o advento da pílula anticoncepcional, maior nível de escolarização das mulheres e sua consequente afirmação no mundo do trabalho. Para as autoras, porém, esse cenário reflete um paradoxo, pois essas conquistas arrastaram consigo algumas problemáticas femininas como a dupla jornada de trabalho, as dificuldades em articular o novo papel feminino nas relações amorosas e no casamento. Com isso, a separação passa a ser uma opção cada vez mais frequente, principalmente quando se torna legal no final dos anos 1970. A partir da constituição de 1988 também ocorre a formalização da união estável. A constituição também abole o termo "chefe de família", tornando, social e conjugalmente, homens e mulheres iguais em direitos e deveres.

As leis refletiram então, a nosso ver, o clima social e as mudanças cotidianas das relações humanas em um momento em que a industrialização e o mundo do trabalho reconfiguravam os vínculos, pois a antiga fórmula de homem provedor da casa já não encontrava respaldo nas relações que se formavam. Mas não diminuiu a cultura do machismo, pois mesmo mulheres sendo iguais em direitos, ainda são menos remuneradas e, em casos de gravidez fora de relacionamentos, são praticamente as únicas a arcarem com as responsabilidades. A situação de ser mãe solteira e trabalhadora traz um grande sofrimento a essas mulheres, como as quatro presentes neste estudo. O acúmulo das funções e a falta de apoio familiar resultam nessa fragilidade das famílias chefiadas por mulheres, como iremos aqui discutir. Somado a isso temos a falta de dinheiro, desemprego e situação financeira instável, o que configura a vulnerabilidade social dessas famílias.

Dividida entre um ideal imaginário de família nuclear e as varias configurações de famílias (monoparentais, reconstituídas, homoparentais), a família contemporânea sofre um processo contínuo de reinvenção de si mesma, embora persista como o centro de referência para a delimitação da subjetividade e também como alvo prioritário de cuidado das políticas públicas. (Moreira et al., 2011, p. 164)

Então, diante da mudança social do papel exercido pelas mulheres, como fica a figura do homem?

Weissmann (2013) analisa que existe um enfraquecimento da função paterna, que foi perdendo sua capacidade simbólica de transmitir cultura com o passar dos anos. Legalmente, o pai não é isento de suas obrigações. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (1990) retira a diferenciação entre filhos legítimos e ilegítimos (gerados dentro ou fora do casamento). Torna as crianças e adolescentes alvos privilegiados da proteção integral. Esse estatuto dispõe que a criança tem o direito de conviver com sua família. Mesmo que não more com seu pai biológico, ela tem o direito de conhecê-lo e ele tem obrigações para com ela. Na prática, as coisas ocorrem de forma bem diferente. Os homens não buscam o lugar de pai, não se encarregam do filho que geraram. Isso cabe somente à mãe, que tem sua figura ampliada, fortalecida e, muitas vezes, exclusiva na tarefa de deter o controle da procriação, pois cabe somente à mulher a decisão de ter um filho, desde a opção da inseminação artificial até o aborto. A essas famílias cuidadas por apenas um dos genitores dá-se o nome de monoparental.

Segundo Weissmann (2013), esse conceito surge por volta de 1975 com a socióloga feminista Andrée Michel, acompanhado do termo "mãe solteira". A família monoparental é aquela que designa famílias irregulares em que o poder é exercido pela mulher-mãe, única figura de autoridade. A autora reflete sobre dois grupos principais de mulheres: o primeiro seria aquele que busca somente o filho e tem condições materiais de arcar financeiramente com os custos disso, seja a partir da realização de inseminação, barriga de aluguel ou adoção, seja por encontros sexuais com o propósito de engravidar. Essas famílias monoparentais têm início com a lucidez e o desejo da mulher em ter o filho somente para si.

Já o segundo grupo é analisado pela autora a partir da busca amorosa da mulher por um homem que, com ela, deseje formar uma família. Seria o caso de mulheres que buscam o homem, mas desse encontro surge a gravidez, a consequente crise na relação e a opção pelo filho, realizada pela mulher. São em sua maioria pertencentes às classes sociais mais baixas. Dessa maneira, a monoparentalidade não é uma opção, mas o único caminho possível.

A busca remete ao desejo sexual, à procura de um parceiro sexual e a parentalidade surge depois, como acaso. Nesse momento, essas mulheres-mães decidem assumir o encargo do filho na hora em que esses homens-pais se desentendem de seu lugar parental, conformando-se, assim, a família monoparental por decisão materna. (Weissmann, 2013, p. 81)

Nesses casos, além do abandono/rompimento amoroso vivido pela mulher, existem ainda outras questões, por exemplo, a possível rejeição em relação ao filho e, muito frequentemente, as dificuldades financeiras existentes para se criar um filho sem auxilio de outrem. Assim, além de monoparentalidade, as famílias chefiadas exclusivamente por mulheres, em sua maioria, também vivenciam situações de vulnerabilidade1.

As famílias monoparentais femininas têm sido consideradas em situação de vulnerabilidade e, tanto pela situação de pobreza, uma vez que a mulher não conta com a figura de um provedor que divida com ela os encargos do cuidado das crianças e dos adolescentes, quanto pela situação de fragilidade dos laços afetivos e de referências de autoridade. (Moreira et al., 2011, p. 168)

O termo vulnerabilidade social é mais ligado ao mundo do trabalho e visa englobar aqueles indivíduos que não estão excluídos das trocas sociais em geral, mas que encontram dificuldades de acesso a bens de consumo, políticas públicas, condições materiais de vida etc. Esse termo é capaz de captar "situações intermediárias de risco, localizadas entre situações extremas de inclusão e exclusão, dando um sentido dinâmico para o estudo das desigualdades" (Cronemberger e Teixeira, 2013, p. 18). Esse risco é compreendido por elas como a fragilidade diante de situações de precariedade (desemprego, trabalho, pobreza, falta de proteção social, ruptura de vínculos, gravidez precoce), não apenas de renda.

Penso que, certamente essa gama de questões que englobam a vulnerabilidade se manifesta em maior escala naquelas famílias já marginalizadas pelo processo social, pois, apenas um desses fatores não seria suficiente para caracterizar a situação de vulnerabilidade em si. São complexidades que aparecem em conjunto. E como reforçam Cronemberger e Teixeira (2013), "a questão da família pobre aparece como a face mais cruel da disparidade econômica e da desigualdade social" (p. 21).

Neste sentido, analisa-se que mesmo que existam políticas públicas cujo foco é a família, essas medidas ainda não são capazes de eliminar a vulnerabilidade social, uma vez que estão ligadas a burocracias e políticas administrativas que, muito frequentemente, não executam a lei.

Segundo a Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004) e as Normas Operacionais Básicas do Sistema Único da Assistência Social (NOB-SUAS) (Brasil, 2005), a família é o foco de intervenção, não apenas após o risco, mas como prevenção, a partir da proteção social básica. Ela atua em três eixos: proteção das fragilidades de cada ciclo de vida (infância, adolescência e idosos), proteção na convivência familiar e proteção à dignidade humana e suas violações.

Destaca-se ainda que muitas dessas novas formas de organização familiar, como as famílias chefiadas por mulheres, as monoparentais, a de um único provedor em situação de trabalho precário e irregular, acumulam pobreza, vulnerabilidades, impossibilidades de cuidados aos membros dependentes no seu interior. (Cronemberger & Teixeira, 2013, p. 24)

Sendo a infância um momento em que a família tem uma importância vital e o mundo externo assume a responsabilidade de oferecer contornos reais e continência possível à angústia da criança, a configuração familiar monoparental certamente traz a esses pequenos sujeitos marcas profundas em sua constituição, principalmente pela ausência de um dos genitores e, em muitos casos, a total ausência da possibilidade de falar sobre isso. A configuração familiar delas se sustenta na falta de uma figura fundamental, que além de um ser de deveres ou legalmente implicado na situação familiar, é também necessário para a constituição do afeto, da lei, dos limites, da alteridade, enfim, da cultura. Estamos falando do pai.

Segundo a psicanálise, a presença paterna na vida de todos os indivíduos é importante e fundamental para sua constituição psíquica e social. "A criança que entra na relação com o pai experimenta não ser onipotente, experimenta estar vinculada a regras, às vezes penosas, que deve respeitar" (Risé, 2007, p. 22).

A marca do pai é a marca da ferida narcísica que livra da onipotência e atesta um limite, o da castração, em que a criança não pode ter tudo o que deseja, devendo internalizar a lei da cultura para se inserir no meio social que a circunda. Assim, o principio de autoridade simbolizado pela função paterna é constitutivo da personalidade e condição para seu desenvolvimento (Risé, 2007).

Em interessante estudo, Damiani e Colossi (2015) realizaram entrevistas com adultos que haviam sido criados sem a presença paterna a fim de analisar a percepção destes em relação à ausência física e afetiva do pai. Puderam concluir que essa marca acarreta consequências na vida do adulto, que estão ligadas a conflitos no desenvolvimento psicológico e cognitivo desde a infância, além de transtornos comportamentais. Os entrevistados apontaram que os problemas comportamentais já se apresentavam na pré-escola e se mantiveram ao longo da vida escolar, revelando resultados como baixo rendimento, ausência nas aulas, risco aumentado de envolvimento com drogas, relacionamentos amorosos frágeis, depressão, ansiedade e dificuldades emocionais em geral. Na percepção desses adultos, a marca da ausência se faz presente de forma fundante de suas personalidades.

Winnicott tratou a questão paterna como sendo a figura do pai necessária para estabelecer o self, pois proporciona ao bebê o rompimento de sua dependência total com a mãe. Nesse contexto, o pai é o protetor da dupla, aquele que contém a díade.

A terceira pessoa parece-me desempenhar um papel muito importante. O pai pode ou não funcionar como mãe substituta, mas em algum momento seu papel é percebido como diferente, e é aqui, a meu ver, que o bebê poderá fazer uso do pai como um diagrama para a sua própria integração, ao chegar o tempo de tornar-se uma unidade. Se o pai não está lá, o bebê terá de realizar o mesmo desenvolvimento, mas de um modo mais trabalhoso, ou então utilizando algum relacionamento bastante estável com uma pessoa inteira. Desse modo, podemos imaginar que o pai talvez seja, para a criança, um primeiro vislumbre de integração e do que é uma pessoa inteira. (Newman, 2003, p. 319).

Segundo Ferreira e Aiello-Vaisberg (2006), num contexto mais amplo, Winnicott tratou a questão do pai para além de ser somente a figura que provê cuidados práticos para a família. Ele atribuiu ao pai a mesma condição de espelho (inicialmente assumida pela mãe), segundo a qual a criança poderá reconhecer-se como ser real, alcançando maturidade emocional. É necessário um terceiro que interfira na dupla mãe-bebê, dando condições a este de desenvolver seu próprio self. O pai pode ou não alcançar êxito nessa tarefa e isso está ligado tanto a sua própria história emocional, quanto a sua história com a mãe de seu bebê. Roudinesco (2003) assinala que:

Winnicott restabelecia de fato um equilíbrio entre os dois polos do materno e do paterno ao assinalar que o pai é "necessário para dar à mãe um apoio moral, para sustentá-la em sua autoridade, para ser a encarnação da lei e da ordem que a mãe introduz na vida da criança." Ele pensava em prol da ideia de uma partilha da autoridade simbólica. (p. 108).

Para Winnicott (1983), cabe ao pai oferecer suporte moral à mãe e enriquecer o universo da criança com seu conhecimento. O homem na sua função de pai pode e deve proporcionar um ambiente favorável à dupla mãe-bebê. Por que então, em muitas famílias, principalmente naquelas monoparentais, isso não acontece?

Ferreira e Aiello-Vaisberg (2006) pontuam que, em relação à figura do pai, a psicanálise a compreende como fundamental e destacada, uma vez que cabe a ela proporcionar a integração da personalidade da criança. Quando o pai não está presente, o bebê terá uma árdua tarefa ao longo do seu desenvolvimento rumo à integração. A criança precisará de alternativas, de outros caminhos, de "algum outro relacionamento que seja bastante estável com uma pessoa total" (Winnicott, 1994, p. 188).

Então, para o autor, é necessário que outro faça essa função de amparo e de continência. Vale refletir que na estrutura das famílias contemporâneas, existem inúmeras formações que acompanham o desenvolvimento da sociedade e de suas formas de organização. E que, como lembra Dolto (1999), não existe família ideal, o ideal é ter família. Com isso ela quer dizer que o ideal é que exista um grupo de indivíduos capazes de conter as angústias e apresentar o mundo à criança, de maneira que, gradativamente, ela vá assimilando e integrando em seu universo simbólico a cultura em seu redor. As crianças contemporâneas possuem, além de todas as dificuldades advindas do próprio curso desse desenvolvimento, mais esta tarefa: assimilar e sobreviver a um universo em transformação, no qual os adultos não são mais necessariamente os guardiões das informações e da educação. Um mundo democratizado o suficiente para que as crianças participem diretamente dele, sem necessitar do auxilio de outrora. Este é o desafio da infância contemporânea, que, como o olhar do espelho, desafia os adultos também.

 

Considerações finais

Pensamos que a reflexão sobre determinado fenômeno deve acompanhar seu tempo histórico, sem, no entanto, realizar uma leitura de valores positivos ou negativos em comparação a algum momento anterior. Pensar que existe certa desestrutura na infância ou na família contemporânea é ser saudosista dos conceitos clássicos de infância inocente e frágil e família nuclear. Utilizamos as categorias monoparentalidade e ausência paterna como exemplificadores específicos da infância contemporânea.

Como bem aponta Weismann (2013), a comparação entre a família estruturada de outrora e a desestruturada atual demonstra a idealização de que somente na família nuclear, apoiada na figura de um casal que se ama, é que os filhos poderiam obter estabilidade, conforto e boa criação. Sabemos que, diante do cenário atual, esse não é mais o caso. Mas nem por isso essa instituição desapareceu ou é a responsável por causar danos terríveis às crianças. A transformação do mundo se reflete aí.

É possível pensar que, de uma forma ou de outra, toda família (e todo filho) nasce por um desejo, tanto de existir quanto de não existência. Talvez esteja no cerne desse desejo, que a princípio é materno, a qualidade do laço a ser estabelecido pela criança como mundo a sua volta. Há casos em que a mulher decide pela monoparentalidade e há casos em que esta é a única opção que se apresenta. Estes últimos casos, frequentemente, vêm acompanhados de rejeição paterna e então a marca do nascimento dessa família passa também pela marca da rejeição.

De qualquer forma, a infância contemporânea está marcada pelas transformações nessas duas estruturas basais: a família e a figura paterna. Esse é o lugar da infância no momento. Um lugar que aponta para a falta, o desamparo, mas também para as possibilidades de transformação, na medida em que o mundo ao redor possa se mostrar continente.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em março/2018.
Aceito em novembro/2018.

 

 

NOTA

1. Entre 2000 e 2010, o Censo destaca que o papel da mulher responsável pela família foi de 22,2% para 37,3%. Em 2010, o tipo familiar mais frequente era o formado pelas monoparentais femininas (53,5%) (IBGE, 2012).

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