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Estilos da Clinica

 ISSN 1415-7128 ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.26 no.1 São Paulo jan./abr. 2021

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v26i1p180-184 

10.11606/issn.1981-1624.v26i1 p180-184

RESENHA

 

Os percalços da adolescência em meio às mentiras do mundo adulto

 

 

Sybele MacedoI

IPsicóloga e psicanalista. Doutora em Estudos Linguísticos (. E-mail: sy.macedo@gmail.com

 

 

A vida mentirosa dos adultos. Ferrante, E. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, 336p.

"Estou cansada de ser exposta às palavras dos outros" (Ferrante, 2020, 392).

"Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia" (p.9). É assim que Giovanna, a narradora de A vida mentirosa dos adultos (Ferrante, 2020) começa a contar a história de sua adolescência. Filha de Andrea e Nella, um casal de professores e intelectuais de classe média, Giovanna vive uma infância privilegiada no bairro alto de Nápoles até que, aos doze anos, entreouve o pai sussurrando à mãe aquilo que viria a ser sua sentença, jogando-a no abismo que se tornaram os primeiros anos de sua adolescência. Após Nella comentar que os professores de Giovanna estavam decepcionados com seus resultados na escola, Andrea a interrompe, dizendo que a filha estava ficando a cara de Vittoria.

Foi assim que, aos doze anos, soube pela voz do meu pai, sufocada pelo esforço de mantê-la baixa, que eu estava ficando igual à sua irmã, uma mulher na qual - eu o ouvira dizer desde sempre - feiura e maldade coincidiam perfeitamente. (Ferrante, 2020, p. 13)

Andrea, o pai herói de Giovanna, tem suas origens na parte pobre de Nápoles, e ascendeu ao bairro alto e à Academia através de seus estudos, deixando para trás a família com seus modos vulgares e cortando seus laços com os irmãos, especialmente com Vittoria, que condensa toda feiura e ignorância dos quais Andrea conseguiu escapar. Ao comparar a filha à sua irmã, Andrea desperta em Giovanna a curiosidade sobre Vittoria e sobre a cidade e a vida para além da redoma de privilégios na qual a menina foi criada até então. Apesar de sua relutância inicial, Andrea acaba dando a Giovanna a permissão para conhecer a famosa tia. A partir daí a menina descobre não só um mundo novo, com cheiros, cores e dialeto diferentes daqueles que marcaram sua infância privilegiada, mas, também, as mentiras que sustentavam a relação de seus pais.

Giovanna, a princípio, encanta-se por Vittoria e pela periferia do bairro industrial de Nápoles onde a tia vive, cercada de personagens vulgares e encantadores que exalam os cheiros da pobreza, com seus modos e seu vocabulário chulo, proibidos na casa dos pais. A tia, porém, acaba desapontando Giovanna. Ao exigir que ela enxergue quem seus pais realmente são, Vittoria faz com que a menina aprenda também a enxergar os outros a sua volta, quebrando, assim, seu olhar infantil e a fascinação inicial que Giovanna sentiu ao conhecer a tia.

O tema de A vida mentirosa dos adultos não difere muito das obras anteriores de Elena Ferrante. Giovanna, em muitos momentos, nos lembra Elena Greco, a Lenu, narradora da tetralogia napolitana (Ferrante, 2015, 2016b, 2016c, 2017). Como Lenu, Giovanna vê-se diante de questões psíquicas, culturais e sociais que a impulsionam para a construção de uma identidade diferente daquela que seus pais planejaram para ela, refletindo as dificuldades da adolescência e um mal-estar próprio do nosso tempo. Questões como a feminilidade, a importância da educação formal e a ambivalência das amizades femininas também retornam na narrativa de Giovanna. Contudo, enquanto Lenu consegue ascender socialmente e sair do bairro pobre de Nápoles através de seu empenho nos estudos, Giovanna faz um movimento oposto ao ter que lidar com as mentiras de seus pais que culminam em sua separação e colocam em xeque o mundo em que vivia e os ideais que a menina parecia ter até então. As transformações corporais, comuns na adolescência, também ganham mais destaque na narrativa de Giovanna que vê seu rosto, seu cabelo e seu corpo tornarem-na cada vez mais parecida com sua tia Vittoria.

A adolescência como fase crítica do desenvolvimento é um produto da modernidade e do romantismo e descreve um momento muito mais lógico que cronológico, que pode se estender por vários anos até que o sujeito possa aceder a uma posição adulta (Macedo e Almeida, 2019; Macedo, 2020). A adolescência é comumente tida como uma fase crítica que envolve grandes mudanças físicas e complexas operações psíquicas que podem levar ao sofrimento. Freud, em um dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2006) intitulado "As transformações da puberdade", trata da puberdade como a passagem da infância para a vida adulta através da dissolução do complexo de Édipo. Essa fase é marcada pela reedição de questões relativas à sexualidade infantil, especialmente naquilo que diz respeito aos primeiros objetos amorosos e às primeiras identificações.

Giovanna, que tinha o pai como seu herói absoluto e a mãe, com sua inteligência e sua feminilidade contida, como modelo de classe e beleza, acaba se dando conta de que o mundo que eles viviam era na verdade uma mentira e que as figuras que ela idealizava eram cheias de defeitos. A menina também tem que lidar com seu corpo que vem mudando desde a sua primeira menstruação. Com sua magreza, seus seios fartos e suas feições marcantes, Giovanna vê-se cada vez mais parecida com Vittória, e busca na tia a ancoragem para novas identificações.

A adolescência é um período de reatualização do estádio do espelho (Rassial, 1999) e implica o luto pela perda do corpo infantil e a constituição psíquica de um corpo adulto, bem como a passagem do eu especular para o eu social. Nesse período, o jovem precisa lidar com a morte simbólica do outro primordial (lugar ocupado pelas figuras parentais) que lhe forneceu a imagem e os traços de seu corpo infantil e passa a interrogá-lo. Giovanna, ao ouvir seu pai comparando-a à Vittoria vê a ideia que fazia de si e do mundo vacilar. Seu corpo, que adquiriu sua representação na infância, não mais corresponde àquilo que ela vê no espelho e no reflexo do olhar de seus pais. As mudanças decorrentes da puberdade demandam uma passagem do corpo pulsional infantil para um corpo pulsional que agora comporte, também, o exercício de uma posição sexuada.

O golpe do real da puberdade recai violentamente sobre Giovana que precisa reapropriar-se de seu corpo que agora parece ameaçador e estranho, transbordando desejos incontroláveis. Na adolescência, o eu sofre um abalo decorrente das mudanças orgânicas impostas pela puberdade. O eu como projeção mental de uma superfície precisa ser reconstruído e ressignificado. O corpo infantil parece ter sido despedaçado e precisa ser novamente contido, reescrito por significantes, que Giovanna parece encontrar no mundo recém descoberto da tia Vittoria.

O encontro com Vittória e com a periferia de Nápoles provê Giovanna de novas ancoragens identificatórias. Seu corpo modificado pela puberdade passa a ser ora escondido em roupas pretas, ora excessivamente mostrado em trajes sensuais que chamam a atenção dos rapazes que passam a gravitar em sua volta, interessados nos favores sexuais que ela lhes oferece. O italiano culto de seus pais vai dando lugar ao dialeto e ao vocabulário chulo da periferia de Nápoles (antes reservados às conversas e brincadeiras com as amigas) e o ateísmo de sua casa é colocado em xeque pela devoção católica de tia Vittória.

Não há mais lugar para o corpo e para a identidade infantis, forjados pelas figuras parentais. Os pais idealizados de Giovanna e seu casamento aparentemente perfeito dissolvem-se diante das mentiras descobertas pela menina. Andrea, o pai herói de sua infância, abandona o lar e a família para viver com a amante e suas filhas, amigas de Giovanna, tornando-se objeto do rancor da menina. Sua mãe, Nella, antes bela e elegante passa, então, a definhar-se evocando na filha raiva e pena, fazendo o leitor recorrente de Elena Ferrante lembrar-se de Olga, a narradora de Dias de abandono (2016a). Como Olga, Nella parece perder os contornos de sua identidade ao ser abandonada por Andrea e deixa também de ser o ideal de feminilidade antes aspirado por sua filha. A educação e o êxito acadêmico, tão importantes para os pais de Giovanna, perdem seu valor, dando lugar ao interesse da menina por romances vulgares e às descobertas acerca de sua sexualidade.

Ao longo de A vida mentirosa dos adultos acompanhamos Giovanna perder-se em meio às suas tentativas de processar psiquicamente os excessos que a invadem por fora, provenientes de sua nova configuração familiar e do encontro com o outro mundo apresentado por Vittoria, e, também por dentro, na forma de exigências pulsionais que demandam a busca por novas formas de satisfação sexual.

As fronteiras que pareciam tão definidas na infância protegida de Giovanna perdem seus contornos à medida que sua adolescência avança. O mundo rico e instruído onde vivia é invadido pelo cinza industrial e pelos cortiços do bairro pobre de Vittoria. O idioma italiano das rodas intelectuais frequentadas por seus pais é misturado ao dialeto napolitano. As brincadeiras sexuais com sua amiga de infância são substituídas por encontros com rapazes da escola e do bairro de Vittoria, que às vezes parecem ultrapassar seus limites. Se é tarefa da adolescência refazer o circuito pulsional e as bordas corporais diante das transformações decorrentes da puberdade, Giovanna vê-se diante de uma tarefa ainda maior: tentar dar novos contornos ao mundo que se abriu para ela a partir do encontro com sua tia e com as verdades que seus pais tentavam esconder.

Fabiana Secches, autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020) comenta, em entrevista à revista Cult (Timerman, 2020), que em A vida mentirosa dos adultos (2020) o leitor vê-se diante de um romance de formação às avessas, com a descida de Giovanna a uma espécie de inferno dantesco. Ao contrário de Lenu, narradora da Tetralogia Napolitana (Ferrante, 2015, 2016b, 2016c, 2017) e das protagonistas anteriores de Ferrante que nascem pobres e ascendem socialmente, carregando essa marca ao longo da vida, Giovanna faz um movimento contrário. Seu percurso não é de ascensão ou de construção social. É na descida e na demolição que Giovanna vai trilhando sua jornada de aprendizado e crescimento.

A psicanálise tem um dívida antiga com a literatura, fonte inesgotável para qualquer campo que se interesse pela condição humana. Ferrante, com sua escolha pelo anonimato e seu estilo de escrita, faz com que suas obras ganhem ares de autobiografias ficcionais. Giovanna, ao rememorar os primeiros anos de sua adolescência, parece estar sentada no divã, construindo sua narrativa em análise. Através de suas memórias, por vezes assustadoras, vislumbramos as difíceis operações psíquicas em jogo na passagem da adolescência e a crescente ambivalência das relações humanas com as quais nos deparamos com o fim da infância. O realismo de Elena Ferrante aproxima o leitor dos conflitos mais íntimos e, muitas vezes, desconfortáveis de suas personagens, revelando as camadas mais obscuras das mulheres que povoam suas obras.

As rememorações de Giovanna acerca dos primeiros anos de sua adolescência em A vida mentirosa dos adultos deixam o leitor ansioso por saber mais. Entre o italiano culto de seus pais e o dialeto vulgar do mundo de Vittoria, Giovanna parece terminar o romance perdida entre significantes que os adultos a sua volta tentam lhe impor, a ponto de dizer-se "cansada de ser exposta às palavras dos outros" (Ferrante, 2020, p. 392). Nas primeiras páginas do romance, Giovanna diz que escapou e que continua escapando dentro das linhas que escreve com o intuito de dar a si mesma uma história, que ela descreve como nada além de um nó emaranhado, uma confusão ríspida de sofrimento, sem nenhuma redenção. Ainda assim, entre as transições, paixões, percalços e descobertas da adolescência, Giovanna consegue encontrar um fio para sua história que, como leitores, esperamos ainda descobrir até onde irá chegar.

Referências

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Ferrante, E. (2015). A amiga genial. São Paulo, SP: Biblioteca Azul.         [ Links ]

Ferrante, E. (2020). A vida mentirosa dos adultos. Rio de Janeiro, RJ: Intrínseca.         [ Links ]

Ferrante, E. (2016a). Dias de abandono. São Paulo, SP: Biblioteca Azul.         [ Links ]

Ferrante, E. (2016b). História do novo sobrenome: a amiga genial, volume 2. São Paulo: Biblioteca Azul.         [ Links ]

Ferrante, E. (2016c). História de quem foge e de quem fica. São Paulo: Biblioteca Azul.         [ Links ]

Ferrante, E. (2017). História da menina perdida: maturidade-velhice. São Paulo: Biblioteca Azul.         [ Links ]

Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In. S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Fragmento de análise de um caso de histeria. ("O caso Dora") e outros textos (P.C. Souza, trad., pp. 13-172.) São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)         [ Links ]

Macedo, S. (2020). Alinhavos de tinta: o ato de tatuar-se na narrativa de sofrimento de um jovem adulto. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Uberlândia. Pós-graduação em Estudos Linguísticos.         [ Links ]

Macedo, S. & Almeida, M. L. (2019). As transformações corporais na adolescência através de tatuagens, piercings e alargadores. Estilos da Clínica, 24(1), 134-146. doi: https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i1p134-146         [ Links ]

Rassial, J.J. (1999). O adolescente e o psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Secches, F. V. A. (2020). Elena Ferrante: uma longa experiência de ausência. São Paulo: Editora Claraboia.         [ Links ]

Timerman, N. (2020). A nova aparição de Elena Ferrante. Revista Cult. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/a-nova-aparicao-de-elena- ferrante/         [ Links ]

 

 

Recebido em fevereiro de 2021 – Aceito em março de 2021.

 

 

Revisão gramatical: Aline Motta Macedo
E-mail: pontoevirgulart@gmail.com

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